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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub 26-Feb-2024

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e59676 

Artigos

Narrar histórias de pesquisas e fazer pesquisa com a autobiografia1

Narrating research stories and doing research with autobiography

Narrando historias de investigaciones y realizando investigación con autobiografía

i Doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisadora na UERJ - Pós-Doutorado Júnior. E-mail: santtosmaria.m@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-9297-4539.


Resumo

Neste artigo, busco interpelar o uso da autobiografia para pesquisa no campo da educação, chamando a atenção para o campo do currículo e para a imprevisibilidade dos acontecimentos. Argumento que a autobiografia é parte de um movimento desconstrutivo e performático e com implicações para as experiências da vida. Sinalizo ainda que, como método e fazer educacional, é mais um processo intelectual do que narrativo, pois, como forma de investigação, lida com as complexidades subjetivas dos nossos eus. Tais suposições são feitas principalmente pela minha experiência com o uso da autobiografia e da aproximação das defesas teóricas de Janet Miller, Elizabeth Macedo e Thiago Ranniery, que me ajudam a responder que a autobiografia, em perspectiva pós-estrutural, pode ser um modo de reconhecer uma abertura maior à educação, ao currículo e à política curricular.

Palavras-chave: autobiografia; educação; pesquisa; currículo

Abstract

In this article I aim to question the use of autobiography for educational research, calling attention to the curriculum field and the unpredictability of events. I argue that autobiography is part of a deconstructive and performative movement with implications for life experiences. I also point out that, as an educational method and practice, it is more an intellectual process than a narrative one, since, as a form of investigation, it deals with the subjective complexities of our selves. Such assumptions are made mainly by my experience with the use of autobiography and the approximation to the theoretical defenses of Janet Miller, Elizabeth Macedo and Thiago Ranniery, that help me to answer that autobiography, in a post-structural perspective, can be a way of recognizing greater openness to education, curriculum and curriculum policy.

Keywords: autobiography; education; research; curriculum

Resumen

En este artículo, busco interpelar el uso de la autobiografía para la investigación en el campo de la educación, llamando la atención para el campo del currículo y para la imprevisibilidad de los acontecimientos. Argumento que la autobiografía es parte de un movimiento deconstructivo y performativo, con implicaciones en las experiencias de vida. También señalo que, como método y práctica educativa, es más un proceso intelectual que narrativo, pues, al ser una forma de investigación, trata con las complejidades subjetivas de nosotros mismos. Tales suposiciones son hechas principalmente por la experiencia con el uso de la autobiografía y la aproximación de las defensas teóricas de Janet Miller, Elizabeth Macedo y Thiago Ranniery, que me ayudan a responder que la autobiografía, en una perspectiva postestructural, puede ser un modo de reconocer una mayor abertura a la educación, al currículo y a la política curricular.

Palabras clave: autobiografía; educación; investigación; currículo

1 INTRODUÇÃO

Não sei contar direito. Aprendi um pouco foi com o meu compadre Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso: quer não é o caso inteiro em si, mas a sobre-coisa, a outra coisa.

(Trecho de Grande Sertão: Veredas,

João Guimarães Rosa, 2021, p. 210).

Quando comecei a estudar a autobiografia como alternativa de pesquisa em educação interpelava-me sobre formas de produção que não respondessem apenas a confirmações de acontecimentos da vida. Perguntava-me quais seriam minhas contribuições se apenas narrasse minha história como pesquisadora que tinha interesse na teoria racial com foco em grupos quilombolas do estado do Rio Grande do Norte e como poderia responder a suposições ao currículo em quilombolas fazendo uso da autobiografia. Estava em doutoramento e com aproximações teóricas dos estudos da pesquisadora americana Janet Miller, cuja defesa para uso da autobiografia, de perspectiva pós-estrutural, diz de um processo performático, sempre sujeito à retornos e abertos à subjetividade. Um modo de investigação - como metodologia e prática educacional - que permite interrogar o desconhecido das experiências, assim como imaginar que o currículo e o que fazemos dele é autobiográfico (Santos, 2022).

Foi explorando as construções do seu uso que estive imersa em um modo de trabalho não familiar e em interpelações para meus estudos com o currículo e quilombolas. Desconfortante em seu aspecto teórico, tive que lidar com o projeto da desconstrução - desconstrução não como sinônimo da destruição, mas sim, como estratégia de pensamento que reconhece as bordas da estrutura do discurso - “manter em aberto a liberdade da questão” (Rodrigues, 2020, p. 9). Isto porque, a desconstrução na teoria pós-estrutural “é o que nunca saberemos do alcance, senão a possibilidade de busca para ela” (Santos, 2022, p. 19). Por isso, age em nossas pesquisas e estudos como forma de pensamento que desestabiliza as certezas da tradição do discurso da educação e expõe aspectos nunca inteiramente concebidos2. Aliás, essa evocação da desconstrução foi o que me permitiu elaborar narrativas em uma sequência de eventos, outros acontecimentos e encenar o surgimento da autobiografia - “da fala e do si mesmo” (Santos, 2022, p. 16).

Enquanto pesquisava como o uso da autobiografia poderia contribuir para o fazer do currículo, por meio da defesa teórica de Janet Miller fui me deparando com a impossibilidade de construção definitiva de narrativa e aspectos de vida - “a impossibilidade de compreender totalmente nossas paisagens originais” (Miller, 2021a, p. 30). Nas aproximações que fiz dos seus estudos (Miller, 2005, 2010, 2014, 2021a, 2021b; Miller; Macedo, 2018), percebi um ânimo teórico, diria, para explanar a não linearidade narrativa entre passado, presente e futuro. A marcação desses três tempos “se coloca como estruturas temporais da subjetividade, de modo que entre eles não há coerência lógica, eles se interpenetram no self histórico” (Macedo, 2018, p. 163). Seria, assim, um sentido de tempo que não torna o presente, o passado e o futuro o mesmo, mas integra o espaço pessoal e suas significações, já que “cria novas formas de relação” entre eles - “em certa medida, subvertida pela referência a um tempo subjetivo” (Macedo, 2018, p. 164). Ao invés de seguir uma sequência cronológica para os acontecimentos, propõe examinar nela dimensões pessoais e políticas - olhar para a realidade cotidiana e perguntar sobre o mundo em que vive, buscando trazer à existência “um eu em relação com o conhecimento e o mundo” (Miller, 2021a, p. 26).

Aqui, então, quero chamar a atenção para o aspecto da autobiografia pós-estrutural ao qual fui apresentada por Janet Miller: ela não se resume a construir uma narrativa para conhecer o eu ou para apresentar de forma resumida uma versão com fins de superação (Miller, 2005, 2021a). Tampouco é uma versão simplista da memória. Trata-se de uma abertura contínua para o narrável que explora construções políticas e sociais do currículo, da política de currículo e da educação (Santos, 2022; Santos; Macedo, 2022). Como método e prática educacional, assume um “apontar maneiras pelas quais as identidades e vozes [...] nunca são apenas - ou mesmo - públicas ou privadas. [...] As vozes nunca são apenas a descoberta esperada de algo pré-existente, nunca são fixas e imutáveis” (Miller, 2005, p. 232). Ainda mais quando a noção de experiência ocidental não concebe a ideia de que os sujeitos são constituídos pela experiência e “nem considera como nos conhecemos a nós mesmos por intermédio de regimes discursivos, regimes que servem como registros culturais (em mudança) para o que conta como experiência e para quem conta como um sujeito que experimenta” (Miller, 2021a, p. 34). É por isso que a autobiografia de que falo se apresenta a todo instante como convite contínuo a imaginar outras possibilidades ou versões de nós mesmos, longe de qualquer prescrição esperada ou normatizada pelo vivido da vida. Ela é um movimento teórico e metodológico que aciona as múltiplas construções de nossa identidade. Estando em todos os aspectos da experiência e em todos os aspectos da educação, questiona as suposições particulares da ontologia, movendo a vida (a Bio) de forma multidimensional (Santos, 2022; Santos; Macedo, 2022) - que inclui conhecimento, formação, produção, currículo, enfretamentos, forças, discursos políticos e sociais.

Dito isto, apresento o movimento que me proponho nesse texto: interpelar o uso da autobiografia para pesquisa no campo da educação, chamando a atenção para o campo do currículo e para a imprevisibilidade dos acontecimentos. Tal proposição argui para um modo de fazer autobiográfico contínuo e flexionado, além de incitar a compreender que suposições para o campo da educação e do currículo apresentam generalizações positivistas da sua teórica. Trata-se de acenar um modo de fazer pesquisa autobiográfica em educação narrando minha experiência como pesquisadora, professora, mulher e nordestina, sabendo que o que importa ou o que está em jogo não é a narrativa em si ou a conceituação de ser pesquisadora, professora, mulher e nordestina, mas sim a natureza da experiência (Santos, 2022; Santos; Macedo, 2022). Não proponho uma pergunta inicial, pois há uma convocação para os leitores fazerem suas próprias suposições e questões, sabendo que o discurso que aqui é produzido poderá anunciar algo da memória, as autobiografias - ficcionadas ou não. Também não proponho um discurso para que a forma como defendo a autobiografia seja o único caminho possível em pesquisas com foco na teoria curricular. Apenas advirto que, quando se busca realizar a autobiografia - seja como método ou pesquisa educacional - haverá o reconhecimento de que se encontra em toda parte (Santos, 2022; Santos; Macedo, 2022; Miller, 2005; Duque-Estrada, 2009). Ela escapa ao acontecimento - “isto é, a possibilidade de um pensamento que não mais siga o dogmatismo metafísico, que não mais se dê sobre um sujeito que guarda uma unidade consigo mesmo” (Duque-Estrada, 2009, p. 29).

Dessa maneira, primeiro vou explorar a ideia da autobiografia em perspectiva pós-estrutural em articulação com as ideias de Janet Miller para destituir minhas defesas como estudo e pesquisa educacional. Herdeira que sou de seu pensamento, proponho oferecer aspectos para qualquer pensamento de versão simplista da autobiografia. Em seguida, aceno ao compromisso do uso autobiografia para o campo de pesquisa com o currículo. Para isso, continuo explorando o pensamento de Janet Miller em articulação às ideias de Macedo (2018), Miller e Macedo (2018), Gabriel (2021), Ranniery (2018) e outros, que questionam modos de produzir currículo com a autobiografia e outras formas de pesquisa. Aqui, algumas suposições para as políticas curriculares em quilombolas emergirão, pois este escrito só é possível por aquilo que implica minhas histórias de vida: a relação como pesquisadora com quilombolas do estado do Rio Grande do Norte - que provoca um movimento desconstrutivo em mim, no outro e no texto que anunciou ser autobiográfico -, pois todo texto é ele mesmo autobiográfico. Por fim, uma última suposição, alertando para a unicidade de autobiografias estruturais, sabendo dos riscos que corro, sobretudo ao anunciar que a autobiografia em perspectiva pós-estrutural pode trazer uma abertura maior à existência, à educação e ao currículo.

2 INTRUSÕES À AUTOBIOGRAFIA PÓS-ESTRUTURAL

Ao propor-me escrever este texto, percebo que o trabalho teórico de Janet Miller me provoca a fazer minhas próprias perguntas sobre o uso da autobiografia e a trazer tensões e estímulos para essa forma de pesquisa. De igual forma, percebo que só posso fazer isso trazendo-a ao texto, explorando o que já li das suas suposições sobre gênero, identidade, currículo, educação, autobiografias ou narrativas de si. Portanto, nesta seção, me proponho a explorar o uso da autobiografia em pesquisa da educação advertindo para o impossível de qualquer descrição e, mesmo assim, trazendo deslocamentos sobre o que ela pode produzir como teoria que busca responder de maneira ética às políticas de currículo e ao próprio currículo. Como não há uma maneira de começar, “pois algo já foi feito” (Santos, 2022) e aqui “está no não importa o quê, já se apostou tudo” (Bennington, 1996, p. 23), começo dizendo que quando há o anúncio do desejo para a pesquisa autobiográfica há também uma demanda de resposta para dizer o que ela é ou o que ela responde e a quem responde. Ressoa assim um encontro com a responsabilidade de falar da autobiografia como algo que, sendo conhecida é desconhecida e, por isso, não poderá ser jamais totalmente conhecida - mesmo que existisse aqui outra demanda para falar da longa tradição de narrativas autobiográficas em educação.

Acreditando ser complexo qualquer fechamento para responder o que é uma autobiografia e sua possibilidade, postulo que ela só é possível pela imprevisibilidade do biográfico da vida. Trata-se, na teoria pós-estrutural - com a qual estou lidando neste texto -, de um fazer aberto sem intenção para uma linearidade do narrável que “nos encoraja a lutar contra os efeitos de formas essencialistas, unitárias e padronizadas de currículo, pedagogia e pesquisa em nossas vidas como alunos, professores e pesquisadores” (Miller, 2014, p. 2060).

Esse argumento com base as percepções de Miller (2005, 2014) é o que me permite dizer que a autobiografia ou narrativa de si é mais um processo intelectual com ênfase a realizar revisões contínuas para o vivido da vida - que exploram medos, fantasias, vergonhas, melancolismos e sentimentos que, por mais que se tente mostrar o seu contrário, não podem opor-se à existência; do que uma ação narrativa - o biográfico de nós mesmos. Refere-se, portanto, a uma forma de investigação que lida com as complexidades subjetivas e um modo de fazer que carrega algo muito particular: o constrangimento de enfrentar a si mesmo, o outro, as experiências educacionais, a relação do eu com a pesquisa, o ensino, o conteúdo e o currículo; e até mesmo o nosso controle, a ideia dele, para nossa existência no mundo. Diria até, no que defendo (Santos, 2022), que a autobiografia emerge como uma experiência de conhecimento de olhar para si mesma (olhar o self) - olhar para as expectativas da experiência e, em consequência, lidar com aquilo que perturba. Respondendo na linguagem de Miller (2014), o uso da autobiografia nos situa sobre um campo que fornece riqueza de conhecimentos e suposições que às vezes é contraditória a tudo das nossas relações, “em particular, as histórias de nossas circunstâncias atuais” (p. 2048); e isso coloca em jogo o constrangimento do qual falei.

A propósito, o constrangimento é desvencilhado de qualquer forma de controle, pois ele está aqui e ali e em toda parte. Está no desejo do auto-do-bio-do-gráfico [do que pode ser grafado na vida] que diz que as versões de nós mesmos, nossas experiências são insuficientes, e não inclui em si a realidade, mas sim aquilo que deixamos de referenciar em nossas narrativas. Aqui seria dizer dos vestígios das nossas histórias e que não se limitam ao que já conhecemos (Santos, 2022). Não é sem importância que o constrangimento é um modo que sustenta, a meu ver, o retorno do vivido, o retorno do retorno (Miller, 2005) que acaba introduzindo tensões variadas das coisas acontecidas ou ficcionadas, mesmo que reconheçamos que o retorno não reconstrói o passado nem mesmo uma lembrança (Santos, 2022). Ainda mais quando a ideia de narrar e revistar histórias não é processo de reencontro com o passado, tampouco é encontro com o presente e ainda não aponta para um porvir, pois cabe analisar que se trata de uma situação em experiência (uma circunstância biográfica) em que o que conta é a natureza do experenciado - da experiência. Seus cortes ou recortes narrativos “não são inassimiláveis à representação de qualquer sujeito”, posto que “não há traços de essência” (Santos, 2022, p. 38), ainda que sabendo que seu conteúdo “só existe e só produz significados onde existe vida” (Santos, 2022, p. 42) e, ele mesmo, suspendido do nada. É por isso que o constrangimento de que falo pode ser apreendido como uma forma de desconforto que sempre impossibilitará uma narrativa plena e que comunica outras e mais interpretações - um anúncio do dizer como as coisas são sempre produzíveis de outros sentidos (Miller, 2005; 2021; Santos, 2022) e de como respondem aos nossos sistemas de crenças reificados pelas normas do mundo.

Tal compreensão dá margem para interrogar as nuances do vivido da vida e os detalhes de tudo que nos permeia, mas de modo conflituoso e desiquilibrado, pois muitas das presunções da autobiografia carrega esses efeitos. Ainda mais porque em qualquer forma de narrativa pode haver, ou não, conexões prévias. Nos seus estudos (2005; 2010; 2014), Miller observa que em qualquer recitação da memória - sempre contingente e fragmentada - há um desejo de falar, mas não necessariamente de lembrar, haja vista que o desejo do desejo está em reconhecer os aspectos do passado e não o passado em si. Precisamente, há necessidade de assumir a responsabilidade de resposta para aquilo que chega (Santos, 2022) ou por quaisquer contos nostálgicos (Miller, 2014) os quais ansiamos ou idealizamos. Tal gesto é estruturado por histórias embaralhadas ou imaginadas e representações impossíveis que podem apontar em direção do que ainda está por vir - alguns futuros possíveis. Porém, em qualquer rasura da memória, não há como voltar para o passado (Miller, 2010), apenas esbarrar com preocupações do presente que sugerem o porvir, mas sem qualquer promessa de acertos - mesmo sabendo que o passado não é apenas uma imagem mental subjetiva, mas sim que ele é presença viva e nos fornece meios para nossas (outras) experiências educacionais e no mundo. Para isso, defendo que o que sustenta o fazer autobiografia para a educação e produções de significações ao currículo é o eterno interrogar (Santos, 2022). Nele não há um lugar para fixação, senão um modo de pensamento que assombra a memória. Pode ser que algumas suposições ou pensamentos demorem, habitem e permaneçam na narrativa ou no biográfico, mas sempre com infinitas interrupções e inquietações - “inquietar-se sobre o que se coloca como tempo presente e como traços de verdades que foram estabelecidos em outros momentos afirmados” (p. 43).

Como sugere Miller (2005, 2010, 2021a), processos autobiográficos ou narrativas autobiográficas é mais do que escrever uma história ou lembrar histórias. “É uma forma de se engajar com o passado através do qual o presente e possíveis futuros podem ser vistos em contextos inter-relacionados e com diversas formas sociais, bem como subjetivas - e, portanto, contingentes e fluidos - lembradores” (Miller, 2010, p. 20). À vista disso, a autobiografia não sugere e não sugerirá um porto seguro para nossas suposições. Ao contrário: o porto é um lugar que só descarrega nossas confusões e tensões da memória, nossas implicações conosco e com o mundo e experiências, não importando o contexto, o tempo, o espaço, o lugar. Por isso, responder ao autobiográfico - ao seu fazer - é lidar com as próprias subjetividades, o que implica certa ironia em relação a olhar para o passado com fins de verificação de nossas histórias (Miller, 2005, 2014), “para as raízes, para a autenticidade e, simultaneamente, para evocar o poder afetivo da nostalgia” (Miller, 2010, p. 15), porque o processo do fazer narrativo não atua como uma descrição densa - esse gênero borrado (Santos, 2022), e sim, como acontecimento - que, diga-se, nós que o fazemos. Com isso, permanecerá sempre o desequilíbrio de versão final ou inicial do sujeito. Suas memórias, como postulo (Santos, 2022, p. 42), serão sempre “incompletas e impossíveis de celebrar um sujeito-eu acabado”. Serão resumidas e, por isso, não respondem a “qualquer promessa positiva de sujeito” (Santos, 2022, p. 42).

Na verdade, a autobiografia é um modo de resposta para os momentos temporais que nos chegam e nos exigem lutar “contra qualquer versão da nostalgia” (Miller, 2010, p. 15), a menos que a nostalgia (o movimento dela) reconheça a impossibilidade do voltar para o passado e acione construções de histórias parciais que justaponham memórias temporais como “tipos inconclusivos e fragmentários de ‘verdades’ como uma maneira de adicionar ironia a qualquer impulsos nostálgicos restaurativos para a perda lamentada de tradição e continuidade” (Miller, 2010, p. 15). Espera-se com isso romper com a crença do linear, do sequencial, do eu-acessível e análises racionais de si mesmo e, então, acessar um “eu” performático (Miller, 2005) que “se torna um ser provisório por meio da construção social” (Miller, 2021a, p. 34). É por isso que se trata de um processo complexo, já que os esforços para empreender um pensamento de não retorno ao passado fornece condições para eventuais mudanças de pensamento - perturbações, como costumo mencionar (Santos, 2022), e que aprovisionam peças confusas das nossas memórias - algo que nos leva a desenvolver nossas pesquisas e teorizar o campo da educação e do currículo, especialmente quando continuam a emergir regulações para a pedagogia e o currículo em instâncias a padrões comuns de ensino e aprendizagem e testes padronizados para medir a qualidade das escolas (Miller; Macedo, 2018; Miller, 2005).

Aliás, as peças confusas da memória compelem para perspectivas filosóficas e teóricas de compreensão do currículo e da educação, complicando ainda mais nossas certezas ou nossos esforços coletivos e individuais para formas de ensino, de aprendizagem e de conhecimentos, para formas únicas de experiências no mundo - sem que seja preciso repousar no passado - este que que não está nem ali, aqui ou lá (Miller, 2005; 2014; Santos, 2022; Miller; Macedo, 2018). Algo que modos simples e transparentes de autobiografias podem nos impossibilitar, ainda mais porque essa forma de proposta enfatiza passado, presente e futuro como totalizantes. Seus resultados essencializados “não exploram e teorizam contextos e influências sociais ou culturais, incluindo discursos educacionais historicamente específicos sobre construções dos ‘eus’ que têm ‘experiências’” (Miller, 2021a, p. 34), assim como não diluem o eu do ser, mas que poderiam se resistissem a uma definitiva versão de narrativa.

Isso me memora o dia que encontrei Janet pela primeira vez, no I Seminário Poéticas e Políticas da Pesquisa em Educação, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), campus Praia Vermelha; como foi caótico ouvir suas suposições, que diziam que a autobiografia apontava para muitas dissoluções do eu: eu-humano, eu-não-humano, eu-diferente, eu-não, eu-sujeito, eu-indivíduo, e mais; sinalizando que, como método e como pesquisa educacional - ou se quiséssemos chamar escrita de si e gênero narrativo literário -, envolvia um relato ou narrativa de histórias que nunca assumirá um eu racional. Em vez disso, modos autobiográficos performáticos, sempre políticos, subjetivos e diferentemente materializados, com isso o apelo de que deveríamos olhar para as construções dos nossos eus - “reconhecer construções de nossos ‘eus’ como mediados por discursos, contextos culturais e pelo inconsciente” (Miller, 2021a, p. 35), seguida do convite à observação de que aqueles que estão sempre deparados ou se abrindo para a teorização da autobiografia pós-estrutural lidam sempre com o provisório, com o fragmentado, com o multi-referente de si; por isso, seu uso não é e não será apenas para resistir a uma narrativa contínua ou refletir sobre um currículo teorizado (Miller, 2005, 2021a), mas também para ver um modo de “expandir e continuar a legitimar concepções curriculares concebidas a partir de filosofia, estética, crítica literária, teologia, bem como de feministas, queer, psicanalíticas, pós-coloniais, pós-estruturalistas, ‘lugar’ e perspectivas críticas” (Miller, 2010, p. 19).

O pressuposto dessa ideia posto no dia do seminário traz um alerta que Janet vem sempre postulando nos seus estudos: precisamente no campo da educação há infinitas narrativas com intencionalidades de relatos autobiográficos que buscam manifestar a presença de um eu soberano, um eu racional e consciente do seu processo, mas que ignora enquadramentos sociais discursivos, “o que depois ajuda a formatar construções dominantes de narrativas e ‘identidades’ escolares preferidas” (Miller, 2014, p. 2057). Esses tipos de versões são nomeados por Miller (2005) como histórias alegres e dificilmente vão chamar a atenção para as particularidades e contradições do ensino, da educação, do aprendizado e do currículo, justamente porque estão instaladas em contextos discursivos tradicionais das nossas formas de fazer pesquisa; logo, “tendem a fazer vista grossa para contradições, paradoxos, relações de poder, intervalos e silêncios - o incognoscível - que permeiam qualquer construção de self ou relacionamentos ou concepções curriculares” (Miller, 2014, p. 2057). Dessa maneira, se a pretensão é fazer ou trabalhar com defesas teóricas pós, devemos nos colocar acessíveis para respostas e questões abertas à perturbação de nossos eus e frequentemente perguntar: quais os aspectos da minha experiência estão por vir, estes que rasuram a minha subjetividade e que ainda não foram narrados?

Estar implicada a essa pergunta é continuamente se colocar capaz de assumir um trabalho educacional autobiográfico completamente disruptivo e continuamente em-processo, “como modo de se opor à incessante insistência na certeza” (Miller, 2014, p. 2056). É assumir a complexidade que envolve contar histórias - nossas histórias - em interação com o mundo, com o vivido da vida. Ao postular isso, lembro de uma interpelação lançada por Miller ainda no I Seminário Poéticas e Políticas da Pesquisa em Educação, que convidava a mim e a todos que a ouviam a pensar diferente daquilo que já havíamos herdado das nossas formações e até mesmo de nós mesmos; tentando repensar a natureza do ser ou olhar para nossas inúmeras subjetividades: “que possíveis iterações do autobiográfico devemos trabalhar para imaginar e encenar?”. Certamente, havia um interesse de que ali percebêssemos que, como escrita ou gênero literário, não é era algo original, pois narrar algo original só é possível como rasura (Santos, 2022), além de sinalizar que, como processo subjetivo, não havia nada a ser recuperado para a autobiografia, a não ser “um campo de possibilidade do que pode ser dito que, dado ao contexto normativo [...], torna a investigação e a escrita possíveis” (Santos, 2022, p. 42).

Nessa perspectiva, qualquer acontecimento a ser narrado, qualquer fato autobiográfico deve tornar menos familiares as performances do eu - de ser professor(a), pesquisador(a), teórico(a), sindicalista, pai, mãe, mulher, coordenador(a) pedagógico(a) etc. - como forma de lidar ou encarar os nossos excessos e a nossa não linearidade para fatos e experiências. Talvez seja arriscada a não familiaridade, é verdade! Mas é preciso encarar o excesso dos nossos reconhecimentos e imaginar outra abordagem do auto da biografia de si mesmo e que parece não ter sido tentada antes - porque o excesso é parte da compreensão da incompletude das biografias; é também “imprevisível, imensurável, impossível de conter, parcialmente incoerente, e impossível de ser inteiramente conhecida” (Miller, 2014, p. 2061). Pode até soar estranho e confuso ler sobre isso, assim como é estranhamente confuso e difícil pensar diferente de nós mesmos e pensar em um modo de fazer pesquisa autobiográfica sem uma estrutura linear - ainda mais quando queremos dar respostas às nossas pesquisas e aos nossos fazeres educacionais; só que qualquer versão que responda ao excesso e a uma não cronologia de tempo, reitero, evoca impulsos para um processo performático sem representações definitivas de identidade, de trabalho em educação, de currículo e dos eus (Miller, 2014). Então, para mim, se há um desafio nesse processo e que responda à autobiografia é este: envolver-se continuamente com o desconforto de deixar o não familiar ser não família (Santos, 2022).

Lido com isso como uma recomendação e como convite para uma autobiografia “com múltiplos significados e usos que é capaz de provocar um movimento desconstrutivo entre o eu e o outro, o texto narrativo e as subjetividades e o mundo” (Santos, 2022, p. 41). Mas não posso sugerir que todos façam o mesmo, porque essa é a minha maneira de estar sempre desconcertante para a autobiografia nas minhas pesquisas e estudos. Muito provavelmente, ao fazer essa leitura e de outros textos de base de estudo pós-estrutural, muitos comecem a se deparar com conflitos em relação a si mesmos, em relação ao outro e às experiências do mundo - se dando conta, como mostra Miller (2014, p. 2060), de que “versões padronizadas e mensuráveis de ‘boas’ práticas e performances educacionais minimizam as complexidades relacionais, afetivas, subjetivas e incorporadas das vidas dos professores e alunos”.

Lamento que não tenha respondido a um modo confortante de pesquisa e fazer educacional autobiográfico. Porém argumento que, se trouxesse conforto, estaria entorpecendo a minha vontade de que todos que façam uso deste texto imaginem outra forma de olhar para o mundo e suas circunstâncias, para os delírios das próprias experiências e de outra forma de fazer autobiografia. Algo de que quero falar na próxima seção, só que chamando a atenção para o compromisso do campo de pesquisa com o currículo - o que significa em alguns momentos olhar também para as políticas curriculares. Por fim, se parece ser extremamente confuso se deparar como essas informações que anunciam retorno do retorno, tensões, conflitos e desequilíbrios da memória, lembro apenas que há na autobiografia uma relação para o acontecimento que nos desfamiliariza para qualquer temporização - presente, passado e futuro - e nos aproxima de contextos e acontecimentos imprevisíveis das nossas experiências (Miller, 2005, 2021a) e, por isso, a faz possível de realizar, escrever, fundir, fissurar.

3 RESPONDENDO À PESQUISA AUTOBIOGRÁFICA

No dia que ouvi Janet pela primeira vez, no campus Praia Vermelha da UFRJ, tomei a liberdade de imaginar um modo de psicografia para a escrita. Havia de minha parte pouca leitura e argumento teórico para pensar um modo de fazer autobiográfico pós-estrutural desassossegado, mesmo eu já estando inteiramente assombrada para as minhas experiências de pesquisa e da memória - “para aquilo que não foi narrado e não foi apagado” (Santos, 2002, p. 31). Contudo, a proposta de psicografia que cogitei não é uma escrita mediúnica, e sim “um modo subjetivo de escrita em que tudo foge da realidade, daquilo que parece pertencer ao sujeito numa outra dimensão” (Santos, 2022, p. 34). Postulando de outra maneira, “algo fantasmático que em nada pode habitar como realidade aparente ou como uma verdade estabelecida, como uma verdade já dada” (Santos, 2022, p. 34). Isso se refere a um modo de discutir o mundo e as realidades percepcionais que vivemos.

Mas essa ideia não é apenas para o método ou forma literária da autobiografia, e sim um modo de descontruir conceitos já estabelecidos ou fixados nos nossos estudos e pesquisas e, inclusive, outras formas de pensar o currículo e as políticas de currículo. Aqui me vem à memória o texto do pesquisador Ranniery (2018), Vem cá, e se fosse tudo ficção?, que interpela o currículo, o gênero, a vida, o discurso pedagógico e o trabalho de encenação da sua escrita - a condição ficcional que explana “crítica imaginativa experimental” (p. 985), como forma de perguntar a todos se haveria diferença se sua tese de doutorado fosse toda na ordem da ficção -, sabendo que ficcionar “é sobre o quão a vida pode impregnar a imaginação curricular ao ser o corpo de uma escrita que é transfiguração de mundos” (Ranniery, 2018, p. 995), o que me parece ser uma forma de dizer que nas nossas pesquisas - definidas como autobiográficas, ficções, narrativas de si - podemos empreender não só o biográfico da vida, mas também tudo das nossas investigações - tudo que reconhecemos acionar a desconstrução de sentidos já dados, “ali, onde as performances fazem do pensamento carne para viver outro mundo!” (Ranniery, 2018, p. 996).

Foi o que tentei sinalizar na minha tese de doutorado, a qual anunciou o exercício de responder à (im)possibilidade de uma narrativa autobiográfica minha com os quilombolas do Arrojado, da cidade de Portalegre, Rio Grande do Norte. Tal tentativa buscou borrar, em alguns momentos, sentidos para a Teoria do Currículo e as políticas com quilombolas, sinalizando que a escolha da teoria pós-estrutural para uma autobiografia também pós não jogava outros campos empírico-epistemológicos fora. Ou uma produção de estudo fora. Do contrário: responderia às tensões, às contradições, às lacunas que pareciam ser conhecidas e já então teorizadas nas produções e estudos divulgados (Santos, 2022).

A esse respeito, sinalizo a difícil tarefa de desaprender a controlar as fases da pesquisa e o próprio processo da escrita. Isso não quer dizer fazer um percurso sem questionar suas implicações ou não assumir qualquer responsabilidade para a pesquisa, pois não se pode esquecer da ética, do projeto ético, na qual todos estamos implicados: responder responsivamente ao outro aquilo que chega para a educação por meio dos nossos estudos (Santos, 2022; Santos; Macedo, 2022; Butler, 2017; Miller; Macedo, 2018). Então, quando manifesto isso do desaprender, das tensões, das lacunas, falo do quanto é importante questionar o como e o porquê das escolhas dos nossos objetos de estudo, a seleção de material teórico e quais as intenções ao desenvolvermos a pesquisa, o que exige lidar com as subjetividades e nossos eus, que “pensam inclusive diferente do nós” (Santos, 2022, p. 35) e ajuda-nos a desconfiar da transparência das experiências e histórias (Miller; Macedo, 2018).

Pesa sobre isso a tarefa de olhar para nós e a teoria, e, então, situar uma forma de fazer que, mesmo bem-intencionada, deixa à borda uma sequência de linhas soltas, pois, como sinalizam Miller e Macedo (2018), é isso que vai nos “constituindo-descentrando como efeitos da relação” (p. 961) nossa com tudo que nos intra-age - “nós-eles-teorias-textos-ambiente-normas” (p. 962). Dito isso, julgo que, se tivesse começado essa seção já respondendo ao compromisso da autobiografia para o campo do currículo, isso poderia ser menos inspirador e inquietante, já que os efeitos da relação nossa com o mundo, o outro, a teoria, a identidade, a diferença, etc., implica também situar o autobiográfico das pesquisas, além de reconhecer que em autobiografias com fins de interpelar a educação, o currículo e as políticas curriculares é necessário um engajamento dinâmico, filosófico, teórico e político, que não pode eximir o desejo de incluir outras versões delas mesmas. No entanto, essas versões nunca podem emergir como desejo fixo, e sim como aspecto da incompletude, necessário para análises contínuas de em-construção, que, próprias dos estudos autobiográficos, reconfiguram o eu, o outro, o currículo, as políticas (Miller, 2005, 2021a). Aliás, é importante que se diga que nada se confessa à educação e ao currículo com a autobiografia, senão evocação de “detalhes mais pessoais que sempre estiveram intra-agindo” (Santos, 2022, p. 43) nas nossas histórias - nossas outras versões de história.

O que estou buscando dizer é que o fazer autobiográfico deve ser visto como modo de arguir sobre possíveis suposições e reconhecimentos [quem sabe até preconceitos] instados na nossa entorpecência de pensar ou imaginar formas outras de fazer política e currículo. Isso lembra o que Miller (2021b) argumentou sobre o pensamento de Maxine Greene em relação à Literatura e às Artes para o currículo, de que elas podem servir não apenas para representar o que é, mais também o que poderia ser. Assim, o uso da autobiografia na pesquisa educacional pode trazer o desejo de reconhecer as contingências, complexidades e diferenças que são cotidianamente sustentadas por nós e nossas relações - especialmente potencialidades que enquadram e moldam as políticas e, consequentemente, o currículo, dentro e fora dos espaços de iterações das escolas (Santos, 2022; Miller; Macedo, 2018). Não por acaso, na construção da minha tese de doutorado (Santos, 2022) faço a seguinte interpelação: “como pensar políticas curriculares para quilombola em que apenas a diferença apareça?” (p. 40). Nela há um desejo de anunciar que a representação dos sujeitos quilombolas não pode ser dada a fechamentos nas políticas - e nunca poderemos falar por inteiro da sua representação. No entanto, isso posiciona a olhar o currículo e as políticas curriculares como algo que atravessa a vida (Miller, 2005; Miller; Macedo, 2018; Duque-Estrada, 2009), o biográfico da vida.

Dessa maneira, pensando nos efeitos de análise para processos autobiográficos na educação, eles nos movem para outras possibilidades de chegar e ir além do que podemos responder (Miller, 2021b; 2005), pois o seu compromisso atravessa o vazio da memória e da imaginação, o habitual e comum daquilo que já está posto. Além do mais, nos direciona a compreender o caráter tanto normativo da política curricular e o movimento do currículo, que, preso ao enquadramento discurso, parece ser sempre limitado. Nesse sentido, a articulação das políticas curriculares (para quilombolas ou outro grupo), do currículo e estudos autobiográficos está em assumir uma política associada a histórias de vidas - porque “não é possível separar política de histórias de vida” (Santos, 2022, p. 52). Não é possível separar o currículo da vida (Miller, 2005; Miller; Macedo, 2018; Santos, 2022), já que seu caráter fundamental é o território do vivido, da existência, da experiência, um tanto próximo do que Ranniery (2018) colocou sobre imaginação: e “se fosse como” (p. 996) - um modo de trabalho que reivindica imaginar “sobre outros mundos possíveis” (p. 997).

Pode parecer que esta implicância com estudos autobiográficos e experiência de vida esteja sendo repetitiva, mas advirto que, se quisermos estar comprometidos com outras significações para o currículo - que não seja aquela conceituação de grade curricular, conhecimento e planejamento -, se quisermos estar comprometidos com a teoria curricular, e com o ato de educar, devemos lidar com a nossa bagagem de vida - de como estamos implicados a tudo e a todo o tempo do mundo - incluídas as dimensões políticas, históricas, culturais, de raça etc. Isso mesmo outros pesquisadores fazem ou têm chamado a atenção (Miller; Macedo, 2018; Ranniery, 2017, 2018; Macedo, 2018; Miller, 2005, 2014; Santos; Macedo, 2022; Gabriel, 2021; Macedo; Silva, 2021; Cunha; Ritter, 2021) como ação de recuperar a autobiografia “como o modo principal de interrogação e de pesquisa em currículo e, ao mesmo tempo, rejeitar a ideia de um sujeito auto-constituído” (Miller; Macedo, 2018, p. 950), o que poderia ser interpretado como forma de devolver “às vidas que circulam e se entrelaçam nos currículos a estranha turbulência de existir” (Ranniery, 2018, p. 995). Isso reitera a crença, na acepção de Miller e Macedo (2018), de que nos currículos e políticas curriculares em educação seria produtivo que reconhecessem o imprevisível das relações e dos acontecimentos da vida “porque é ele que nos desloca para cada vez mais longe” (p. 962) - “para reconfigurar o ‘eu’ e o outro” (Miller, 2021a, p. 36).

Dito isso, o fazer autobiográfico atua como modo de explorar teoricamente questões e acontecimentos já formulados (Gabriel, 2021; Miller, 2005), já que não é apenas a condição para o biográfico. É também um modo de produzir sentidos e deslocamentos para o que já estamos inseridos - um modo de pensar a subjetivação em contextos da educação que parecem ser discursivamente particulares (Miller, 2014). Sob esse aspecto, se há um propósito da autobiografia para o currículo, a política curricular e a educação, concordando com Miller (2005, 2014, 2021a), é o de assumir o potencial imaginativo dos nossos trabalhos, “interromper, ao invés de reforçar, as versões estáticas e essencializadas de nossos ‘eus’” (Miller, 2021a, p. 36). Isto que aposto como possível de fazer pela sua desconstrução - pelo intervir que movimenta o mundo e o nós do mundo, pois, afinal, parece ser determinante para abandonar crenças enraizadas no campo teórico estrutural de pesquisas autobiográficas, no modo como fazemos educação e produzimos sentidos ao currículo e a sua política.

4 SUPOSIÇÃO FINAL

Sempre que me proponho a estudar o uso da autobiografia para a educação reforço a ideia de que, para fazer uma pesquisa educacional autobiográfica ou produzir sentidos ao currículo, devo tentar não alcançar um resultado final. Analisando essa ideia de reforço, diria que, se não tivesse me aproximado dos estudos de Janet Miller e do seu campo teórico pós-estrutural, (talvez) ainda estivesse imersa em um modo de fazer autobiografia e pesquisa com análises de superação - de ser professora, pesquisadora, mulher, nordestina etc. Ainda estarei pensando unicamente em uma produção curricular associada à seleção e organização de conteúdo; a planos de atividade, cargas horárias e infinitas propostas pedagógicas. Embora esteja chamando a atenção para isso, não quero dizer que todas as pessoas devam abandonar suas crenças e heranças teóricas, e sim abrir-se à experiência de pensar outros modos de currículo e educação. Abrir-se ao desconforto de pensar outros modos de fazer autobiografia, pois isso quem sabe ajude a imaginar e a questionar que, estando disposto ao desconforto, não seja aquilo que torna a educação possível; não seja aquilo que faz o currículo e as políticas de currículo serem acontecimentos. Talvez meu delírio seja que, pensando em um modo de autobiografia pós-estrutural ou pós, pós, pós, haja uma abertura maior para a existência da educação, do currículo, do ensino, do conhecimento, da aprendizagem etc. Talvez, como Ranniery (2018), isso implique “deixar de fazer pesquisa para fazer outra coisa que não sabemos o que será e nem será preciso saber” (p. 997). Não sei! Mas, se alguma coisa é possível, ou se alguma coisa me resta a dizer, é desafiar a crença de que há alguma unicidade para pesquisa autobiográfica - que institui a confiança para um currículo único de existência, para formas únicas de fazer currículo; para formas únicas da política curricular e da educação. Algo que convido a todos a constranger-se.

REFERÊNCIAS

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NOTAS:

1 Pesquisa realizada com o apoio financeiro do CNPq.

2 Uma das explicações à desconstrução pode ser analisada em Carla Rodrigues (2020) quando apresenta a crítica de Derrida ao falocentrismo (“desestabilizadora das certezas da tradição e do discurso do sujeito masculino” (p. 13)), indicando que a desconstrução pode ser um reconhecer das estruturas do pensamento e que “nos põe diante do reconhecimento da herança cultural” (p. 14).

Recebido: 20 de Outubro de 2022; Aceito: 16 de Fevereiro de 2023; Publicado: 20 de Dezembro de 2023

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