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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub 26-Fev-2024

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e59685 

Artigos

Vidas em Grafia:o tema mítico do engolimento em narrativas do livre brincar

Lives in self-writting:the mythical theme of “rebirthing” in spontaneous playing narratives

Investigación narrativa:el tema mítico de la deglución en las narrativas del libre jugar

Maria Auxiliadora Fontana Baseioi 
http://orcid.org/0000-0003-3474-9434

Cristiane Del Nero Velascoii 
http://orcid.org/0000-0003-4417-5438

i Doutora em Letras, pela Universidade de São Paulo; pós-doutorado em Estudos Portugueses e Lusófonos no Instituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho, Portugal; Coordenadora de pesquisa na Faculdade Rudolf Steiner, docente da graduação e da especialização na mesma instituição; Professora no Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas e no curso de Letras da Unisa. E-mail: mbaseio@uol.com.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-3474-9434.

ii Mestranda do programa interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Santo Amaro (bolsista Capes). É integrante do grupo de Pesquisa: Arte, Cultura e Imaginário (Unisa), certificado pelo CNPq. Licenciada em Educação Artística pela Fundação Armando Álvares Penteado, com Especialização em Arte Educação pela ECA-USP. E-mail: crisdelvel@hotmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-4417-5438.


Resumo

O motivo do engolimento mostra-se recorrente no brincar livre das crianças, reverberando, de maneira simbólica, experiências de morte-vida. Esta investigação, realizada qualitativamente na forma de pesquisa narrativa autobiográfica, em perspectiva interdisciplinar, tece reflexões sobre a experiência vivida pela pesquisadora como docente em duas escolas de Educação Infantil da região oeste do município de São Paulo (SP). O trabalho pontua a experiência do brincar espontâneo da criança como prática pedagógica a ser reconhecida curricularmente como relevante para o desenvolvimento infantil, discutindo sentidos construídos pelas crianças na atividade lúdica. A base teórica centra-se em autores do Círculo de Eranos, como Gilbert Durand, Joseph Campbell e Mircea Eliade. O educador da primeira infância necessita valorizar a experiência espontânea do brincar, abrindo canais para as expressões do imaginário da criança capazes de favorecer sua formação e desenvolvimento saudável.

Palavras-chave: pesquisa autobiográfica; narrativa; brincar livre; motivo do engolimento; imaginário

Abstract

The mythical theme of “rebirthing” is recurrent in children's spontaneous playing. Simbolically, it could mean life-and-death experiences. This autobiographical narrative research, from an interdisciplinary perspective, intends to reflect on the experience lived by the researcher as a teacher in two kindergarten schools in the western region of São Paulo. The study emphasizes the spontaneous playing as a pedagogical practice to be curricularly recognized as relevant to children's development and discusses meanings built by children in the playful activity. The theoretical basis focuses on authors from the Circle of Eranos, such as Gilbert Durand, Joseph Campbell and Mircea Eliade. Early childhood educators need to value the spontaneous experience of playing, opening channels for the child's imaginary expressions capable of promoting their formation and healthy development.

Keywords: autobiographical research; narrative; teaching; mythical theme of “rebirthing; imaginary

Resumen

La imagen mítica de la deglución es recurrente en el juego libre de los niños, repercutiendo simbólicamente en experiencias de vida-muerte. Esta investigación, realizada cualitativamente en forma de investigación narrativa autobiográfica, en una perspectiva interdisciplinaria, pretende reflexionar sobre la experiencia vivida por la investigadora como profesora en dos escuelas alternativas en la región oeste de São Paulo. El trabajo enfatiza la experiencia del juego espontáneo del niño como una práctica pedagógica a ser reconocida curricularmente como relevante para el desarrollo infantil, discutiendo los significados construidos por los niños en la actividad lúdica. La base teórica se centra en autores del Círculo de Eranos, como Gilbert Durand, Joseph Campbell y Mircea Eliade. Los educadores de la primera infancia necesitan valorar la experiencia espontánea del juego, abriendo canales para las expresiones imaginarias del niño capaces de promover su formación y desarrollo saludable.

Palabras clave: investigación autobiográfica; narrativa; enseñanza; imagen mítica de la deglución; imaginario

1 INTRODUÇÃO

O tema mítico do engolimento, bastante recorrente em narrativas tradicionais de diversos tempos e lugares, mostra-se presente nas observações do brincar espontâneo da criança, podendo associar-se a movimentos de travessia, como a passagem por limiares. A presente pesquisa tem como objetivo investigar experiências do brincar espontâneo de crianças na Educação Infantil recolhidas pela pesquisadora-docente em duas escolas privadas da zona oeste do município de São Paulo (SP). Especificamente, serão analisadas narrativas brincadas de modo livre, que recriam o motivo imaginário do engolimento, traduzindo o movimento de morte-vida.

Metodologicamente, será adotada uma abordagem qualitativa, na forma de pesquisa narrativa autobiográfica, bem como a perspectiva interdisciplinar, colocando em diálogo os estudos do imaginário desenvolvidos por Gilbert Durand, Joseph Campbell e Mircea Eliade, as diretrizes inovadoras que fundamentam as escolas de Educação Infantil onde as experiências foram vividas e coletadas pela pesquisadora e os princípios da arte de narrar.

As observações realizadas durante anos de docência - 1999-2021 - nos dois ambientes educativos pesquisados suscitaram questões relevantes sobre o brincar infantil: do que brincam as crianças quando o brincar não é dirigido? Que sentidos elas constroem no brincar espontâneo? De que maneira o brincar expressa movimentos interiores imprescindíveis ao seu desenvolvimento? Nesse contexto, a presente investigação traz reflexões sobre a experiência do brincar livre da criança como prática pedagógica a ser reconhecida curricularmente como relevante para o desenvolvimento infantil, analisando sentidos construídos pelas crianças em seu movimento espontâneo. Pretende-se valorizar a importância do livre brincar como direito humano na Educação Infantil; o papel do educador que atua a partir das linguagens do brincar, desenvolvendo uma escuta sensível para o universo da infância; a arte de contar histórias inserida nas linguagens da criança e do pesquisador, ressaltando a função humanizadora dessa experiência.

Os aspectos éticos que envolvem essa investigação estão respaldados pela aprovação do projeto de pesquisa na Plataforma Brasil com protocolo CAAE 61287722.1.0000.0081 e pelas instituições coparticipantes, a Escola Casa Redonda e Escola Ciranda Educação, em conformidade com a Resolução CNS 466/12.

2 A PESQUISA NARRATIVA AUTOBIOGRÁFICA COMO FORMA DE GRAFAR A VIDA

Nos últimos anos, a área da Educação tem pautado relevantes discussões acerca da necessidade de uma produção científica inovadora que fortaleça a voz do educador em um processo formativo. Nesse contexto, a pesquisa autobiográfica, com base em seus princípios epistemológicos, revela-se como um ponto de inflexão, uma “virada narrativa” capaz de responder não apenas como um método disruptivo de um paradigma científico desgastado, mas também como uma prática formativa do docente, em uma perspectiva passível de protagonizar a experiência como produção de conhecimento e como forma de autoconhecimento, em um movimento de partilha de si na relação consigo mesmo e com o outro. No dizer de Jorge Larrosa,

A experiência é algo que (nos) acontece e que às vezes (treme), ou vibra, algo que nos faz pensar, algo que nos faz sofrer ou gozar, algo que luta pela expressão, às vezes, algumas vezes, quando cai em mãos de alguém capaz de dar forma a esse tremor, então, somente então, se converte em canto. E esse canto atravessa o tempo e o espaço. E ressoa em outras experiências e em outros tremores e em outros cantos (Larrosa, 2019, p. 10).

Larrosa valoriza um pensar a educação a partir da experiência, anunciando possibilidades de aproximá-la da arte, acercando-se do sentimento de que “a vida esteja viva” e aberta à sua própria abertura. Nesse sentido, a investigação engrandece e humaniza, na medida em que dá sentido ao que nos acontece e, também, ao que somos.

Walter Benjamin assinala o valor da experiência em um contexto excessivamente tomado pela informação e observa o processo de desvalorização da arte de narrar como forma de intercambiar experiências. Afirma o autor: “Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. [...] quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação” (Benjamin, 1994, p. 203). A narrativa, essa forma artesanal de comunicação, carrega a marca do narrador, “como a mão do oleiro na argila do vaso.” Nesse sentido, a pesquisa narrativa autobiográfica valoriza a vida do professor, na medida em que possibilita o sentir, viver e reviver a partir de dentro da sua atuação docente, e permite narrá-la de modo artesanal.

Conferir lugar de centralidade ao sujeito da experiência - e não objeto - mostra-se relevante nas Ciências Humanas, sobretudo na área da Educação, pois, ao dar oportunidade para o docente compartilhar práticas pedagógicas, contribui-se para a superação da dicotomia entre teoria e prática, imprimindo coerência a uma profissão que se constrói sob as bases do encontro de vidas, de saberes e de fazeres. Testemunho e legado tecem essa escrita reflexiva que narra e problematiza a história de uma vida em seu imbricamento com a vida de outros.

O recurso das narrativas como método de pesquisa vem sendo usado no Brasil há pouco mais de duas décadas, a partir das contribuições do português António Nóvoa (1992), com as histórias de vida de professores, e dos autores canadenses Michael Connelly e Jean Clandinin, entre outros. O livro Pesquisa narrativa: experiência e história em pesquisa qualitativa apresenta o método em questão como uma significativa possibilidade de investigar em educação, defendendo que “as histórias ilustram a importância de aprender a pensar de forma narrativa quando se desenham os problemas de pesquisa, quando se entra no campo de pesquisa e quando se compõe os textos de campo e os textos de pesquisa” (Connelly; Clandinin, 2011, p. 17).

Os autores apontam a grande influência do filósofo John Dewey em seu trabalho, principalmente no que se refere ao conceito de experiência como palavra-chave para os estudos em Educação. O pensar narrativo situa-se nas fronteiras entre a teoria, as pessoas e o lugar do pesquisador; é nesse “entremeio” de vidas e histórias que a pesquisa se dá, sendo, portanto, essencialmente relacional. Nesse tipo de investigação, é fundamental que o pesquisador exercite e alterne as perspectivas de distanciamento e de proximidade, uma vez que ele também faz parte desse lugar de histórias. Essa investigação engendra uma complexa articulação entre memória, observação com registros de campo e textos teóricos.

A pesquisa narrativa de experiências educativas só passa a existir porque houve uma experiência significativa na vida do sujeito-pesquisador. “É da experiência vivida que emergem temas e perguntas a partir dos quais se elegem os referenciais teóricos com os quais se irá dialogar e que, por sua vez, fazem emergir as lições a serem tiradas” (Lima; Geraldi; Geraldi, 2015, p. 27).

Foi a experiência vivida durante mais de 20 anos de trabalho com Educação Infantil e narração artística, acompanhando brincadeiras espontâneas de crianças, que levou a educadora a iniciar a presente pesquisa. Ao escutar o pedido por uma “história de engolir” - feito por um aluno que, prontamente, explicou a ela do que se tratava, apresentando contos que conhecia e que, segundo ele, eram “de engolir” -, a educadora pôde perceber como aquela criança havia tecido relações entre narrativas tradicionais, pinçando o motivo do engolimento. Esse motivo também fora observado por ela em certo tipo recorrente de faz de conta que recria o tema mítico do retorno ao útero.

Em uma perspectiva interdisciplinar, alicerçada aqui a partir da ideia de tecer junto os saberes, no entendimento de Edgar Morin, propomos uma nova forma de pensar a educação e a pesquisa em educação. Compartilhamos com Morin o entendimento de que a unidade complexa do ser humano não se alcança pelo pensamento disjuntivo (Morin, 2002), prescrito por uma ciência que se constrói cartesianamente em uma relação que cinde sujeito e objeto, matéria e espírito, existência e essência. Pela religação dos saberes, ciência e arte poderão criar vínculos fortalecedores de uma nova forma de consciência capaz de avaliar, com mais sensibilidade, as complexas tessituras humanas.

3 O MOTIVO DO ENGOLIMENTO: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

O motivo do engolimento é um tema relevante em discussões que envolvem estudos sobre o imaginário. As variadas imagens que o traduzem nas diferentes culturas podem ser encontradas em narrativas míticas, contos de fadas, narrativas bíblicas, festas populares, canções de ninar, filmes, obras de arte, entre outras expressões culturais humanas.

Relacionaremos, nesta pesquisa, o motivo do engolimento com os estudos do imaginário que se desenvolveram no século XX, vinculados ao Círculo de Eranos. O movimento, iniciado em 1933, na Suíça, agregou, de forma interdisciplinar, autores de diversas áreas do saber, tais como: Carl Gustav Jung, Joseph Campbell, Mircea Eliade, Henry Corbin, Gaston Bachelard, Edgar Morin e Gilbert Durand, entre outros. A palavra eranos é de origem grega e significa comida em comum ou troca de alimentos, imprimindo o espírito de igualdade que permeava os encontros em torno de uma afinidade de ideias (Ferreira; Silveira, 2015). No Círculo de Eranos, destacamos o mito como um dos grandes temas comuns para os estudos sobre o imaginário e para a compreensão da psique humana, sendo que a presente pesquisa pretende se debruçar sobre o tema mítico do engolimento, recorrente em narrativas do livre brincar. Entre os autores do Círculo de Eranos, assentaremos nossas reflexões, sobretudo, nas ideias de Campbell, Eliade e Durand.

Conforme Joseph Campbell (2002), a jornada do herói ou o conceito de monomito corresponde ao modelo comum da aventura humana presente nas mitologias dos mais diversos povos, sendo o motivo do engolimento um de seus estágios: a passagem do herói pelo limiar mágico que separa o conhecido do desconhecido. A ideia de uma travessia que compreende um renascimento é simbolizada pela imagem universal do útero, relacionando-se aos ritos de iniciação - experiências sagradas às quais se dedicou também Mircea Eliade (1991) em suas pesquisas.

Em sua obra Mito e Realidade (1991), Eliade discorre sobre o simbolismo de rituais iniciatórios arcaicos que implicavam um regressus ad uterum, experiência por meio da qual o neófito era transformado em embrião pelo seu preceptor, a fim de fazê-lo renascer depois. O retorno ao útero expressava-se quer pela reclusão do jovem numa cabana, quer pelo fato de ser simbolicamente tragado por um monstro, quer pela entrada num terreno sagrado identificado ao útero da Mãe-Terra. Muitos mitos relacionam-se a esses ritos de iniciação e, segundo o autor, duas imagens míticas do retorno podem ser ressaltadas: “1) um herói sendo tragado por um monstro marinho e emergindo vitorioso depois de evadir-se do ventre do monstro; 2) a travessia iniciatória de uma vagina dentata ou a descida perigosa numa caverna ou greta, assemelhadas à boca ou ao útero da Mãe-Terra.” (Eliade, 1991, p. 76). Ambas as imagens evidenciam um novo nascimento, de ordem espiritual, gestado no retorno à origem, ou seja, a gestação se repete como preparação simbólica para o renascimento. Retornar ao ventre é, nessa perspectiva, a experiência de adentrar o mistério da vida, correspondendo o estado embrionário à noite que antecede a criação do mundo.

Os engolimentos e regurgitações rituais também foram abordados por Vladimir Propp (2002), que, embora não pertença ao Círculo de Eranos, teve relevante contribuição nos estudos do conto maravilhoso, estudando seus motivos nos vestígios de mitos e ritos arcaicos. Segundo o autor, esses ritos tinham como benefício iniciatório conferir faculdades mágicas ao neófito, a fim de que se tornasse um xamã, ou um grande caçador. O jovem era simbolicamente engolido, comungava da essência do monstruoso engolidor e, de seu interior, saía com o poder de falar a linguagem dos animais, ou seja, com a aquisição da força mágica ligada à prosperidade da caça. Conforme Propp, quando os ritos ainda estavam vivos, os mitos eram segredos narrados durante as iniciações. Ao longo do tempo, os ritos foram desaparecendo, mas as narrativas permaneceram em movimento, transmitidas oralmente.

Muitos contos maravilhosos apresentam estrutura iniciática e guardam motivos temáticos míticos que podem ser compreendidos como reminiscências de antigos ritos (Propp, 2002). Em narrativas tradicionais das mais diversas culturas, encontramos o engolimento simbolizado pela imagem do ventre da baleia ou do grande peixe; do herói no cesto, tonel, caixa ou arca lançada na água, que parece derivar do motivo do herói dentro do peixe; do túmulo de vidro onde a jovem se encontra em estado de morte temporária; do rapto da donzela e sua descida ao reino das profundezas da terra, também associado ao reino dos mortos e ao próprio rito da semente que precisa ser enterrada para germinar.

Segundo a teoria do imaginário de Gilbert Durand (2012), existem duas intenções fundamentalmente diversas na base da organização de imagens colhidas em culturas diversas. Enquanto uma delas divide o universo em opostos, a outra une, complementa e harmoniza, o que permite classificar as imagens em dois regimes: o diurno, caracterizado pela luz que permite as distinções, e o noturno, caracterizado pela noite que amalgama a dualidade. Na concepção durandiana, as primeiras representações humanas partem da corporeidade, de uma gesticulação correspondente aos reflexos dominantes básicos do ser humano: ao reflexo postural ereto correspondem os schèmes ou intenções fundamentais de ascensão, divisão e luta; ao reflexo de deglutição e ao percurso interior dos alimentos correspondem os schèmes de descida e interiorização; ao reflexo de sucção e copulação, correspondem os schèmes de ciclicidade e ritmo.

Sendo assim, o regime diurno está ligado à dominante postural e o regime noturno subdivide-se nas dominantes digestiva e cíclica (Durand, 2012). Para o autor, os arquétipos, imagens de caráter universal, são representações dos schèmes, dão forma às intenções fundamentais dos gestos, ao passo que os símbolos são traduções dos arquétipos em contextos culturais específicos. Os mitos, por sua vez, são sistemas de símbolos, arquétipos e schèmes que se compõem em um relato fundante.

Questões humanas relacionadas à morte, ao tempo e à finitude são traduzidas por símbolos. Há os símbolos animalescos (teriomorfos), aqueles relativos à queda (catamórficos) e também à escuridão (nictomórficos). O regime diurno da imagem combate a angústia existencial com armas cortantes, luminosas e ascensionais, simbolizadas, por exemplo, pela espada, a lança, o cetro, ou seja, a imaginação heroica luta e destrói o “monstro”, a face amedrontadora da morte. Já o regime noturno desdramatiza o conteúdo angustiante, criando um universo harmonioso e invertendo o significado da morte; transforma o túmulo em útero, berço que embala o retorno às origens: renascimento.

Portanto, a consciência da finitude humana faz parte de constelações de imagens com aspectos angustiantes ou positivos. Nesse sentido, o ato de morder ou devorar pode aparecer em seu aspecto aterrorizante de animalidade, expresso em diversas mitologias, como, por exemplo, no mito grego de Cronos devorando seus próprios filhos, e nos contos de fadas, por meio da imagem dos lobos, onças e leões devoradores, ogros e bruxas comedores de crianças. Mas, o engolimento também pode se expressar em seus aspectos benéficos, como uma maneira de assimilar a essência do outro. É nesse caso que encontramos os peixes engolidores nas narrativas tradicionais, sendo o mar o grande engolidor de todos os peixes, simbologia que pode se estender também às bonecas russas em que a maior contém as menores, e à própria estrutura das cantilenas universais que apresentam elementos acumulativos (Pitta, 2017). Nesta eufemização da morte, as águas abissais tornam-se receptáculo, continente de outros continentes; a queda no abismo converte-se em descanso na intimidade do vaso-taça-útero, num caminho de retorno à essência primordial.

4 GRAFIAS DE VIDA: A PESQUISA NARRATIVA COMO ARTE DE COMPARTILHAR EXPERIÊNCIAS EM EDUCAÇÃO

Minhas avós foram muito presentes na infância e o imaginário alimentado nesse convívio faz parte das histórias que conto hoje. Sou contadora, ‘cantadeira’ e escritora de histórias. Desde 1998, trabalho com narrativas de tradição oral, no ponto de encontro entre arte e educação. É sobre pontos de encontro e entremeios que vou contar:

A mãe de minha mãe, Elizabeth, sempre morou em nossa casa. Eu e minhas irmãs organizávamos tabelas e rodízios para ver quem iria dormir em sua cama, porque a experiência era sempre acolhedora. Ela apagava todas as luzes do quarto e fazia o convite em forma de parlenda: Vamos para dentro da barriga da vaca? Então, a Vó Beth, como costumávamos chamá-la, contava histórias e as palavras que saíam de sua boca abriam clareiras repletas de imagens na escuridão encantada do ventre da vaca. Algumas décadas depois, vim a conhecer alguns mitos que apresentam a imagem da vaca primordial ou Grande Mãe nutrix, como por exemplo a vaca Audumbla, da mitologia nórdica, ou a Deusa egípcia Hathor, que me remeteram à experiência vivida com a Vó Beth.

Já minha avó paterna, Yolanda, a Vó Landa, também me introduziu nos encantamentos da boca da noite, mas suas palavras eram devoradoras. Essa ‘bruxavó’ malvada chamava qualquer pessoa de ‘nenê’, não importava a idade. Vivia espargindo suas mágoas e lamentações, evocando medos. Ela nos ameaçava com maldições divinas, papões que moravam embaixo da cama e um certo homem do saco que roubava crianças desobedientes. Bem mais tarde, pesquisando contos populares brasileiros, reencontrei o Homem do surrão, personagem que literalmente carrega o estômago nas costas e encontra parentesco com o Quibungo africano, mas este, no lugar do surrão, tem uma boca ou buraco devorador. Melhor seria se, em minha infância, eles tivessem habitado os contos, porém, eram de carne e osso: rondavam a casa de minha avó.

Quando comecei a trabalhar com narração artística, resolvi entrevistá-la, recolher suas narrativas de vida e, nesse processo, acabei criando uma personagem tragicômica, inspirada em suas histórias. Assim nasceu a Vó Nenê e, sob a pele dessa redentora personagem, pude finalmente sair de dentro da barriga da ‘bruxavó’.

Com minhas avós, vivi, ao mesmo tempo, a experiência de um engolimento acolhedor e angustiante: a noite encantada dentro da barriga da vaca, o ventre matricial aquecido pelo fogo das histórias que saíam da boca de minha avó materna, e a boca devoradora da ‘bruxavó’ paterna. Porém, foi apenas a partir do meu trabalho com Educação Infantil que comecei a refletir sobre as imagens do engolimento nas histórias de tradição oral, nas brincadeiras espontâneas das crianças e em minha própria infância.

O ponto de partida para essa reflexão foi o pedido de Lorenzo, que, na época, tinha 5 anos: Conta uma história de engolir? Num primeiro momento, sem compreender, pedi que me explicasse melhor e, prontamente, foi mencionando várias histórias conhecidas que, segundo ele, também eram ‘de engolir’. Então, pude perceber como Lorenzo havia tecido relações entre narrativas tradicionais, pinçando o motivo mítico do engolimento. Isso apurou minha escuta para outros entrelaces e, cada vez mais, fui percebendo como as crianças reconhecem urdiduras humanas primordiais guardadas nas histórias de tradição oral.

Em meu trabalho como educadora, há mais de 20 anos, conto histórias de tradição oral - especialmente contos e mitos - de muitos povos, bem como participo das brincadeiras espontâneas de faz de conta. Acompanho simplesmente observando, mas também brincando com as crianças, deixando que me atribuam papeis nos incríveis roteiros criados por elas. Dentre inúmeras narrativas do brincar, certo tipo de faz de conta relacionado ao motivo do engolimento mostrou-se recorrente, despertando minha atenção ao longo do tempo. Essas brincadeiras espontâneas se expressavam em dois movimentos principais: crianças brincando de nascer, de desmaiar, de morrer e renascer transformadas em novas personagens; crianças me convidando para também brincar de faz de conta e assumir o papel de uma personagem engolidora - como, por exemplo, a bruxa malvada, o dragão devorador ou o lobo mau - para, por meio da brincadeira, confrontá-la, destruí-la, transformá-la.

Do conjunto de histórias vividas, emergiram muitas inquietações. Com a mesma intensidade que me pediam ‘contos de engolir’, suas brincadeiras espontâneas recriavam o tema mítico do engolimento. Eu me perguntava qual o sentido profundo daquelas narrativas, a importância das imagens do engolimento para a formação das crianças e, também, em que medida os repertórios tradicionais oferecidos, ou seja, as histórias que eu contava interferiam enriquecendo o faz de conta.

Vivi essas experiências em duas escolas particulares de Educação Infantil: a Casa Redonda Centro de Estudos, atualmente Escola Casa Redonda, instituição localizada em Carapicuíba, São Paulo, com 40 anos de existência, certificada como referência de inovação e criatividade na Educação Básica pelo Ministério da Educação (MEC); e a Escola Ciranda Educação, situada em Cotia, São Paulo, que, inspirada na Casa Redonda, há 22 anos desenvolve uma pedagogia da sensibilidade.

Importante contextualizar os princípios fundantes das escolas, os quais as tornam espaços continentes, receptáculos favoráveis ao movimento do livre brincar. Ambas afirmam a existência de uma Cultura Infantil que reconhece o brincar como linguagem universal de conhecimento. São espaços que acolhem um grupo multietário, recebendo em média 30 crianças em turma única, entre 2 e 6 anos, que são acompanhadas por 4 educadores. A criança, o brincar e a natureza encontram-se intimamente entrelaçados. As escolas são pautadas em uma educação que prioriza a escuta sensível e as linguagens do brincar, alicerçadas na cultura popular brasileira e no repertório tradicional infantil.

É no livre exercício da infância, no convívio natural e espontâneo entre as crianças que um vasto repertório tradicional infantil se forma; seu cultivo se dá com o corpo em todas as suas dimensões. Nessa perspectiva, por Cultura Infantil compreende-se o conjunto de experiências, descobertas e fazeres da criança buscando a si mesma e ao outro em sua interação com o mundo. Tal conjunto encontra raízes muito antigas na memória da humanidade (Hortélio apudSilva, 2016).

Sabemos que existem diversos contextos em que a infância se dá, mas é o brincar que reúne todos eles. A palavra brincar vem de vinculum em Latim, que significa laço. O brincar como linguagem de conhecimento das crianças é profundamente criativo, gera vínculos afetivos e deixa marcas significativas em suas histórias de vida (Pereira, 2013). Linguagem que nasce no corpo, corpo que é natureza, o brincar combina silêncio, palavra, ritmo, canto, gesto, movimento.

Espécie de “lâmpada de Aladino” (Cascudo, 1976), o brinquedo se transforma nas mãos da criança numa diversidade incontável, imprevista e maravilhosa. Por brinquedo compreende-se tanto o objeto com que se brinca - que pode ser o próprio corpo da criança -, quanto a brincadeira em si, sendo o brincar o processo iniciador do humano. Interessante observar que, no Brasil, os termos brinquedo e brincadeira estão também associados às manifestações e folguedos populares e aos seus mestres brincantes. Os artistas populares brincam, o espetáculo é o seu brinquedo e o palco da brincadeira pode ser a rua, o quintal, a praia, o terreiro ou o centro da roda.

As brincadeiras tradicionais são muito mais que diversão ou entretenimento. Como realização simbólica, elas tocam um ponto além, extremamente sutil: a dimensão espiritual presente na alma humana. Essa dimensão também se manifesta na beleza e na inteireza das manifestações e das festas cíclicas da cultura brasileira, revelando a força do Brasil mestiço com a presença das matrizes indígena, ibérica e africana, e de todas as tradições que nos irmanam no caldeirão da nossa identidade (Pereira, 2013).

Ressaltamos aqui essa dimensão do brincar “transparente para o transcendente” (Durkheim apudCampbell, 2003), que encontra correspondências na concepção de imaginação criadora saída do mundus imaginalis, de Henry Corbin (1976). O mundo imaginal encontra-se entre o mundo sensível e o inteligível, é o mundo intermediário, da relação, no qual o corpo se espiritualiza e o espírito se corporifica. Lá, nesse entremeio, o invisível se torna visível e o visível, em sua transparência, revela o invisível. O real pertence tanto à realidade sensível, quanto à inteligível, e o mundo das imagens é a ponte entre elas (Pitta, 2017). A criança, na primeira infância, não conhece o desejo de transcender, pois “ela própria é transcendência” (Piorski, 2013), e o brincar é seu território de narrativas, o vínculo originário que ela estabelece entre o mundo objetivo e o mundo imaginal.

A maneira como ela indaga e traduz questões primordiais por meio de imagens encontra correspondências nas narrativas míticas. O mundo é como um monstro enorme. Quando ele ‘tá’ de boca aberta é de dia, quando ele ‘tá’ de boca fechada é de noite... Assim contou Theo, aos 6 anos de idade. Preciosas histórias como essa, saídas da boca de crianças, poesias e revelações do ser humano ainda novo, assemelham-se às cosmogonias universais. Ao mesmo tempo, as imagens primordiais das narrativas de tradição oral fazem morada no coração das crianças, que atualizam os mitos no rito de suas brincadeiras. Brincando, elas criam, destroem e recriam mundos, cosmos diversos.

Nas brincadeiras de faz de conta, as crianças vivenciam possibilidades de experimentar a vida. A escuta dessas “vozes das crianças” envolve abertura e flexibilidade, um respeito pelo sagrado dos mundos infantis (Friedmann, 2011). Porém, essa escuta e a postura diante das crianças a partir das linguagens infantis está em construção. É preciso compreender que somos originários do Cosmos, mas o próprio fato de olharmos o Universo de forma científica e racional já nos separa dele. Nós trazemos em nossa singularidade todo mistério, guardado no fundo da natureza humana e é essa unidade que traz em si os princípios de suas múltiplas diversidades (Morin, 2002).

Adultos que trabalham com crianças ainda têm atribuído finalidades específicas ao brincar, que se tornou brinquedo pedagógico, destituído de sua inteireza, de seu caráter essencial de liberdade e criatividade humanas, sem compreenderem sua dimensão ‘invisível’, seu espaço sagrado e tempo mítico. As brincadeiras têm sido cronometradas, controladas, encaixadas em rotinas escolares, compartimentadas de acordo com determinadas funções, fragmentadas. Da mesma forma, aos contos vêm sendo atribuídas funcionalidades, quando a experiência com as histórias de tradição oral é muito mais ampla do que aquela que se pretende a partir dos objetivos definidos nos planejamentos escolares. Ao mesmo tempo, educadores têm se infantilizado numa tentativa de se aproximarem das crianças e daquilo que supostamente seria o universo infantil. Fala-se muito com a intenção de ensinar, quando seria fundamental desenvolver a observação e a escuta sensível, aberta ao inteligível.

Tal escuta foi e continua sendo exercitada na Escola Casa Redonda e na Escola Ciranda Educação. Inserimos as histórias de tradição oral no acervo de brincadeiras infantis: a experiência de contar, ouvir e brincar histórias. Os contos de tradição oral, por exemplo, são apreciados pelas crianças desde muito pequenas, como leite primordial da imaginação infantil. Contar histórias “como uma atividade em si” (Machado, 2015) configura-se como uma experiência significativa; o contato com constelações de imagens revela uma infinita variedade de correspondências internas. Essas narrativas nos aproximam porque nos recordam de nossa humanidade, são verdadeiras janelas através das quais podemos olhar além e para dentro.

É possível aprender com as crianças, pois elas transitam naturalmente entre o lado de cá e o lado de lá das janelas e, dessa forma, estão sempre descortinando possibilidades ao escutarem histórias. À medida que escutam, uma ponte se estabelece entre palavras e imagens, de modo que, pela prática milenar de se contar histórias, presente nas diversas tradições orais, dimensões do Ser vão sendo vividas. “A criança vive as palavras: a palavra para ela é imagem” (Velasco, 2018, p. 76); a história brinca dentro dela e essa experiência cria bases para a capacidade simbólico-metafórica, favorecendo o exercício de ver criativamente. Sob a perspectiva de uma educação integrativa e sensível, contar histórias a uma criança é favorecer a criação de sua própria história.

Não costumo contar histórias às crianças com funções específicas, ou com a finalidade de propor alguma atividade a partir da escuta, mas, muitas vezes, naturalmente, as crianças expressam elementos dos contos por meio de outras linguagens do brincar. Chamo de “histórias brincadas” as dramatizações da primeira infância, as brincadeiras espontâneas de faz de conta. Com frequência, pude identificar a dinâmica combinação de repertórios singulares e coletivos, ou seja, a criança como contadora de suas histórias de vida, ao mesmo tempo incorporando imagens e fragmentos das histórias tradicionais conhecidas; o faz de conta como fruto do encontro entre o imaginário infantil e o imaginário das narrativas tradicionais (Velasco, 2018).

É importante ressaltar que esse exercício do faz de conta infantil em muito se aproxima do movimento de transmissão oral dos contos, que se encontram no entrelace entre a memória e a imaginação popular (Cascudo, 2001). Contos tradicionais são antigos na memória dos povos; sua autoria é anônima, ou seja, não se sabe quem “inventou” a história, por isso ela é considerada criação coletiva, de todas as pessoas que a transmitem e recriam, imprimindo nela detalhes pessoais e identidade cultural. Essas narrativas são combinações ilimitadas de motivos temáticos fundamentais, que se revelam como “um grande catálogo dos destinos humanos”, em sua “infinita variedade e infinita repetição” (Calvino, 2001).

Por meio de imagens, os contos apontam constantes básicas, representam formas primárias da experiência humana. Em sua variedade e repetição, brincamos internamente as aventuras de aprendizagem gravadas na memória do coração dos povos. Esses saberes ‘de cor’ são patrimônio imaterial, transmissões de conhecimentos sobre a alma humana. Guardam segredos transmitidos pelos símbolos, seus mensageiros, recriados em sua transmissão de boca a ouvido. Nos ensinamentos de Daniel Munduruku (2005, p.24): “Se as palavras conseguirem adormecer dentro do coração, quando acordarem, sairão histórias novas, contadas a partir do sonho do contador [...]”.

Em minha trajetória como educadora, o trabalho vai sendo criado e recriado no exercício de um pensar narrativo, essencialmente relacional, que se situa nas fronteiras, no entremeio de vidas e histórias. Nunca planejei, por exemplo, brincar de nascer ou morrer com nenhuma criança, porém, há anos, venho observando como os ciclos de vida-morte-vida fazem parte do currículo interno do ser e como brincadeiras espontâneas podem ritualizar passagens profundas. Essa percepção tem direcionado meus estudos desde esse momento.

A importância de um espaço que favoreça e acolha a força original da imaginação infantil, bem como o respeito ao tempo das brincadeiras para além dos cronômetros de uma rotina que fragmenta o brincar são aspectos fundamentais para que experiências significativas aconteçam. Igualmente importante é o vínculo com educadores dispostos a acompanhar esse movimento, guiados pelas crianças, isto é, a presença de adultos que busquem se alfabetizar nas linguagens do brincar a partir da regência do pensar narrativo e integrador inerente a elas.

Como uma espécie de parteira de almas, acompanhei muitas crianças em seu faz de conta, acolhendo (re)nascimentos precedidos por um sono de morte. Durante uma dessas brincadeiras, escutei da boca de Maria Clara, que estava com 5 anos: Acho que quando a gente morre, a gente vai ‘pro’ mesmo lugar de onde a gente veio antes de nascer... Nesse tipo de “história brincada”, as crianças, aninhadas, entregues aos embalos noturnos, pediam que eu cantasse para que pudessem (re)nascer. Esses berços, muitas vezes cavados na areia, lembravam os mais antigos túmulos neandertalenses, nos quais os mortos eram enterrados em posição fetal, sugerindo a crença na renascença (Morin, 1979). Da mesma forma, para a criança pequena, nesse tipo de rito-brinquedo, a morte era vivida como transformação de um estado a outro, assim como, a cada noite, também morremos para esta dimensão e despertamos para o sonhar.

Os acalantos, brincadeiras presentes no repertório tradicional da infância, são os vínculos que iniciam a criança nos mistérios da vida e da morte, os sussurros mântricos que facilitam essa travessia. O primeiro sentido a se desenvolver no embrião humano é a audição, ainda com três semanas de vida, e o primeiro som que a criança escuta no útero é o tambor do coração da mãe junto ao seu, amplificado em sua propagação através do líquido amniótico. O gesto atemporal de embalar a criança aconchegada ao tambor do peito reaviva a memória recente das águas uterinas. A voz de quem nina é barqueira que conduz ao mundo dos sonhos. Ao mesmo tempo que embala, de alguma forma também se deixa embalar, sendo o cordão o vínculo entre corações, o elo de confiança que permite ir e retornar. Nas brincadeiras de (re)nascer, crianças retornavam transformadas em personagens, muitas vezes filhotes de bichos que emitiam seus primeiros sons no mundo de cá. Nasciam, também, como meus filhos e filhas, demandando cuidados, pedindo que as olhasse com atenção, que as reconhecesse belas.

Das mais diversas formas, o roteiro apresentava uma constante: para nascer, era preciso adormecer. Crianças solicitavam que eu as auxiliasse na construção dos berços-túmulos, que as cobrisse com camadas de tecidos. Algumas pediam para serem chocadas, aquecidas; outras, gestavam a si mesmas, silentes e imóveis em seus ovos-crisálidas. Havia aquelas que experimentavam nascer acompanhadas, em duplas ou trios. E eu as embalava, gêmeas, trigêmeas, encaixadas em um mesmo cesto, escondidas e reveladas, repetidas vezes.

Fonte: Dados coletados pela pesquisadora.

Figura 1 Berços - Túmulos de areia 1 

Fonte: Dados coletados pela pesquisadora.

Figura 2 Berços -Túmulos de areia 2 

Fonte: Dados coletados pela pesquisadora

Figura 3 Berços -Túmulos de areia 3 

Fonte: Dados coletados pela pesquisadora

Figura 4 Bela Adormecida 

Fonte: Dados coletados pela pesquisadora.

Figura 5 Ovo - Crisálida 

Fonte: Dados coletados pela pesquisadora.

Figura 6 Berço - Cesto 

Esse adormecimento também permeava outros tipos de faz de conta, não necessariamente aqueles nos quais as crianças, de antemão, já anunciavam que queriam brincar de nascer. Às vezes, nos enredos criados por elas, eram perseguidas, atacadas, enfeitiçadas e então se entregavam verdadeiramente ao desmaio. Belas e belos adormecidos chegavam, inclusive, a perder o tônus corporal, tamanha entrega ao rito, mobilizando outras crianças que, envolvidas pela brincadeira, buscavam formas de trazê-las de volta. As crianças viviam a morte como passagem pelo limiar, possibilidade de transformação e renascimento, “por ser esse tema essencialmente uterino e por serem elas visceralmente, umbilicalmente, recordadas do útero” (Piorski, 2016, p. 90).

Assim como nos contos de tradição oral, encontramos dragões, serpentes e criaturas assustadoras guardando o limiar entre os mundos, inúmeras são as cantigas de ninar com papões no imaginário dos povos. Para diversas tradições, durante os sonhos, o Espírito sai temporariamente do corpo, transitando livremente entre mundos. Os papões são os guardiões da passagem, do limiar mágico entre a vigília e o sono. A eles o canto que embala pede passagem, para que a criança faça a travessia em segurança. Ao mesmo tempo, é interessante refletir que o primeiro mecanismo conhecido pelo bebê é o de mamar e regurgitar e, nesse sentido, os papões se aproximam do universo oral dos pequenos que, segundo o dito popular, “só comem e dormem”. A “pega” é a expressão usada para acomodação da boca do bebê no mamilo e, nesse “pega-pega”, ele se torna o próprio Papão (Machado, 2017).

Esse jogo entre ser devorado e devorar o outro permeia muitas “histórias brincadas”, num ativo pega-pega, no qual engolido se torna engolidor e engolidor, engolido. Na maior parte das vezes, as crianças me convocavam a assumir o papel de alguma personagem devoradora, que seria destruída por elas, ou seja, transformada. Num segundo momento, eram elas que me devoravam. Às vezes, o faz de conta revelava-se predominantemente ativo, e as transformações aconteciam de forma bastante acelerada, porém, em outros momentos, o tempo de adormecer e aguardar o (re)nascimento silenciava o intenso movimento de luta, fuga e combate. Guiada pelas crianças, em repetidas brincadeiras, morri na forma de uma personagem devoradora - bruxa, madrasta, ogra, monstrenga, onça, lobo mau - para renascer acolhedora, continente, no papel de mãe, princesa, rainha, mamãe cabrinha, entre outras.

A infância é um tempo repleto de ciclos, nos quais as crianças elaboram medos, perdas, transformações. Morrendo e renascendo simbólica e verdadeiramente em suas brincadeiras de faz de conta, elas realizam passagens e saltos de crescimento; ampliam espaços internos, fazendo uso da capacidade de imaginação como agente determinante de seu processo criador. Da mesma forma, posso dizer que também eu vivi transformações ao participar dessas narrativas do brincar. Experiências significativas não acontecem de um lado só, elas envolvem vínculo, troca, e se realizam no ponto de encontro.

Pensar o currículo de forma arejada, porosa aos saberes enraizados nas camadas humanas mais profundas, abre espaços para que essa troca aconteça entre e além, a partir de linguagens que permitam a comunicação simbólica. É possível nutrir o imaginário de quem aprende ensinando e de quem ensina aprendendo, enquanto um sistema dinâmico, aberto às surpresas e ao inesperado, porém não há receitas para isso: a experiência se dá justamente nas frestas da boca aberta.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No livre exercício da infância, no encontro entre criança e educador, um vínculo de humanidade se tece. A compreensão da cultura infantil como experiências e fazeres da criança buscando a si e ao outro em interação com o mundo favorece o entendimento das linguagens do brincar.

O processo de conhecimento na primeira infância acontece universalmente por meio da brincadeira, de modo que o adulto que atua na Educação Infantil precisa alfabetizar-se em suas linguagens. Não se trata somente de enriquecer o repertório com brinquedos, cantigas e histórias que fazem parte dos acervos da cultura infantil, mas, acima de tudo, (re)aprender a olhar os universos infantis através dos olhos das próprias crianças, conscientes de que isso não significa infantilizar a comunicação estabelecida com elas. Compreender o brincar desde dentro, a partir de sua própria regência, alicerçada na imaginação criadora, pode revelar-se uma experiência bastante significativa.

Nessa perspectiva, assimilar a grandeza de saberes que o brincar engendra em seu ventre é habitar um estado de infância, uma dimensão espiritual humana de maravilhamento e inventividade profundamente iniciadora. Da mesma forma que os ritos arcaicos implicavam uma experiência de retorno às origens, ao mistério da criação, o movimento espontâneo das brincadeiras infantis pode ritualizar momentos importantes do desenvolvimento da criança, gestando um vir a ser. À semelhança dos mitos e contos tradicionais, que abrem janelas através das quais podemos ver além e para dentro, a experiência de quem brinca precisa ser aberta à sua própria abertura, ou seja, para além do repertório tradicional infantil, é necessário exercitar o pensamento integrador inerente a ele.

Assim como o primeiro passo para a arte de narrar é escutar histórias, podemos dizer que a escuta e observação das narrativas das crianças é primordial para que se possa aprender a brincar com elas. Nesse sentido, bases curriculares abertas e flexíveis ao currículo interno do ser, ao tempo que rege a brincadeira espontânea infantil, podem favorecer um convívio que privilegie as relações humanas, que ensine menos pelo discurso e mais pela experiência vivida em sua dimensão simbólica profunda.

As crianças pequenas acessam diretamente as unidades de sentido presentes no imaginário das narrativas tradicionais, vivem em seus corpos as intenções de gestos humanos primordiais. Elas têm muito a ensinar aos educadores acerca de um movimento que reúne, um pensar que tece correspondências por meio de imagens, criando e recriando universos. Acolher as potencialidades cosmogônicas do livre brincar, acompanhar suas relações, surpresas e múltiplas expressões pode ser uma jornada de aperfeiçoamento humano. Na teia rendada das narrativas de vida, o brincar tece pontes; as crianças transitam entre mundos, atravessam naturalmente os limiares e, assim, transformam a brincadeira em rito de passagem, criado e recriado no tempo eterno da aventura humana.

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Recebido: 20 de Outubro de 2022; Aceito: 07 de Março de 2023; Publicado: 20 de Dezembro de 2023

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