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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.21  São Paulo  2023  Epub 26-Fev-2024

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2023v21e61559 

Artigos

(Im)possibilidades de problematizar no Ensino Tecnocientífico os impactos da pandemia no desenvolvimento humano:percepções de professores de engenharia

(Im)possibilities of problematizing the impacts of the pandemic on human development in Techno-Scientific Teaching:perceptions of engineering professors

(Im)posibilidades de problematizar los impactos de la pandemia en el desarrollo humano en la Enseñanza Tecnocientífica:percepciones de profesores de ingeniería

Amanda Ferreira de Albuquerquei 
http://orcid.org/0009-0000-1276-0005

Luciano Andreatta Carvalho da Costaii 
http://orcid.org/0000-0002-6455-5238

i Doutoranda em Educação em Ciências pelo PpgECi/UFRGS. Técnica em assuntos educacionais - UFRPE. E-mail: amandaf.albuquerque@gmail.com - ORCID iD: https://orcid.org/0009-0000-1276-0005.

ii Doutor em Engenharia pela UFRGS. Professor e pesquisador da UERGS, nos Programas de Pós-Gradução em Ensino e Educação e da Fundação Liberato. E-mail: luciano-costa@uergs.edu.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-6455-5238.


Resumo

A abordagem do desenvolvimento humano coloca as pessoas no centro da análise do bem-estar. Nesse sentido, é necessário desenvolver uma educação tecnocientífica comprometida com questões humanas e, consequentemente, com uma formação humanista que defenda um desenvolvimento tecnológico imbricado ao desenvolvimento humano. Nesse sentido, o intuito deste artigo é identificar percepções de professores de engenharia acerca das consequências da pandemia para o desenvolvimento humano e sua relação com o ensino de engenharia. Tal objetivo se fundamenta em estudos de Bazzo, Morin e Freire. Mediante a formação de grupos focais (GF) e o exame do material por meio Análise de Conteúdo, apontamos a necessidade de formação epistemológica dos docentes e a importância da valorização do diálogo entre professor e aluno no processo de ensino aprendizagem e de humanização do curso de engenharia.

Palavras-chave: educação tecnocientífica; engenharia; covid-19

Abstract

The human development approach places people at the center of well-being analysis. In this sense, it is necessary to develop a techno-scientific education committed to human issues and, consequently, with a humanist education that defends a technological development intertwined with human development. In this sense, this article has the objective of identifying perceptions of engineering professors about the consequences of the pandemic for human development and its relationship with engineering teaching. This objective is based on studies by Bazzo, Morin and Freire. Through the formation of focus groups (GF) and the examination of the material through Content Analysis, we point out the need for an epistemological training of teachers, and the importance of valuing the dialogue between teacher and student in the teaching-learning process in the humanization process of the engineering course.

Keywords: technoscientific education; engineering; covid-19

Resumen

El enfoque de desarrollo humano sitúa a las personas en el centro del análisis del bienestar. En este sentido, es necesario desarrollar una educación tecnocientífica comprometida con lo humano y, en consecuencia, con una educación humanista que defienda un desarrollo tecnológico entrelazado con el desarrollo humano. En ese sentido, este artículo tiene el objetivo de identificar las percepciones de los profesores de ingeniería sobre las consecuencias de la pandemia para el desarrollo humano y su relación con la educación en ingeniería. Este objetivo se basa en estudios de Bazzo, Morin y Freire. A través de la formación de grupos focales (GF) y el examen del material a través del Análisis de Contenido, señalamos la necesidad de una formación epistemológica de los docentes, y la importancia de valorar el diálogo entre docente y alumno en el proceso de enseñanza-aprendizaje en la proceso de humanización de la carrera de ingeniería.

Palabras clave: educación tecnocientífica; ingeniería; covid-19

1 INTRODUÇÃO

A abordagem do desenvolvimento humano coloca as pessoas no centro da análise do bem-estar, perspectiva oposta ao que sugere a concepção simplista de desenvolvimento como sinônimo de progresso tecnológico baseada no crescimento econômico. Nesse sentido, pensar em ciência e tecnologia por um viés humanista implica reconhecer uma nova visão das concepções acerca de educação tecnológica, de mundo e de sujeito. Para Bazzo (2019), os problemas humanos proporcionam reflexões e alterações em nossa maneira de trabalhar o conhecimento e as variáveis sociais, econômicas e políticas atuais são consideradas elementos essenciais para análise e interpretação da realidade. Assim, abordar o desenvolvimento humano na educação tecnocientífica envolve implementar uma formação de ordem humanista nas escolas de tecnologia.

O atual cenário global ainda tem vivido os impactos da maior crise humanitária dos últimos tempos, a pandemia do Coronavírus, que alastrou pelo mundo a doença denominada Covid-19, a qual gerou mudanças drásticas e consequências inimagináveis na vida das pessoas. A pandemia da Covid-19 acentuou problemas do curso civilizatório resultantes da conjunção de crises políticas, econômicas, sociais, nacionais e globais, entre elas a desigualdade social, fruto de formas de exclusão das benesses do desenvolvimento em uma sociedade tecnologizada.

Nesse sentido, ciência e tecnologia possuem uma relação simbiótica cujos desdobramentos atingem todos os indivíduos, de diferentes formas, sejam especialistas ou não especialistas. Portanto, a posição socioespacial de um indivíduo pode afetar seu acesso às benesses tecnológicas, ao mesmo tempo que o modo de produção tecnológico e a quem este serve sustentam as formações socioespaciais. Isso se dá em razão do processo de produção da sociedade, o qual, à medida que resulta das interações entre indivíduos, também retroage sobre eles. Tal processo Morin (2015, p. 74) nomeia como recursivo, em que “os produtos e os efeitos são ao mesmo tempo causas e produtores do que os produz”. Esse princípio da complexidade governa a relação entre os sujeitos e o mundo.

A sociedade é produzida pelas interações entre indivíduos, mas a sociedade uma vez produzida, retroage sobre os indivíduos e os produz. Se não houvesse a sociedade e sua cultura, uma linguagem, um saber adquirido, não seríamos indivíduos humanos. Ou seja, os indivíduos produzem a sociedade que produz os indivíduos (Morin, 2015, p. 74).

A velocidade de tais interações tem sido cada vez maior diante das exigências da sociedade contemporânea fortemente marcada por ciência e tecnologia. Assim como ocorreu na pandemia, cuja rápida replicação viral não favoreceu o tempo de combatê-la, ocasionando danos de variadas ordens para a humanidade, a forma acelerada com que a tecnologia avança pode não ser proporcional a nossa capacidade de reação, uma vez que a reflexão humana segue um ritmo natural. Ezra Klein, colunista do New York Times, que reside na baía de São Francisco nos EUA e tem convivido com pessoas envolvidas no campo da Inteligência Artificial (IA), fez a seguinte declaração: “É uma comunidade que vive com um senso alterado do tempo e das consequências. Seus membros estão criando um poder que não compreendem, com uma rapidez em que eles próprios muitas vezes não acreditam” (Klein, 2023, on-line). Assim, temos uma eminente problemática civilizatória, a qual, ao mesmo tempo que vivencia um progresso tecnológico acelerado, não consegue lidar com as profundas desigualdades e injustiças socioambientais acrescidas dos impactos da recente pandemia. Diante do exposto, aponta-se a importância de se trabalharem na educação técnico-científica temas transversais de cunho humanista, de tudo o que integra o universo humano, seu desenvolvimento, suas ações e impactos no processo civilizatório, no intuito de formar a consciência crítica acerca da interligação dessas questões à ciência e tecnologia.

No campo da educação, normas obrigatórias como as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) (Brasil, 2019) têm orientado os currículos dos cursos e dos sistemas de ensino, ao passo que ocorrem inúmeras transformações em várias áreas da sociedade. Nesse contexto, destaca-se a engenharia - um campo essencialmente imbricado à ciência, tecnologia, cultura e sociedade, que possui uma grande parcela de responsabilidade pelo progresso tecnológico e seus impactos na vida das pessoas. Portanto, em um cenário pós-pandemia envolta em crises, mudanças e avanços tecnológicos, é imprescindível que os responsáveis pela educação em engenharia tenham o entendimento de que, além dos aspectos técnicos específicos do curso, questões envolvendo desenvolvimento humano e social devem ser tratadas de maneira significativa nos processos de formação do futuro engenheiro. Diante disso, é essencial para o profissional de engenharia o desenvolvimento da visão sistêmica do mundo, ou seja, reconhecer que, como agente de transformação social, ele faz parte do todo. Segundo Morin (2001), a compreensão mútua entre os seres humanos, quer próximos, quer estranhos, é daqui para frente vital para que as relações humanas saiam de seu estado bárbaro de incompreensão. Portanto, para que se efetive a formação humanista do profissional de Engenharia, condizente com um mundo que ainda sofre os impactos deixados pela pandemia, é necessário que sejam substituídos diversos paradigmas tradicionais existentes no ambiente acadêmico. À vista disso, Raia Jr. (2004) afirma que é nos bancos das universidades que estão sendo forjados os profissionais que terão em mãos a incumbência de conduzir com esperança a caminhada do mundo neste século. Logo, é necessário transformar as estruturas universitárias.

Ao problematizar o papel, as competências e as responsabilidades do professor de engenharia diante da perspectiva de uma educação tecnocientífica comprometida com questões humanas e, consequentemente, com uma formação humanista que defenda um desenvolvimento tecnológico imbricado ao desenvolvimento humano, este artigo parte da observação do processo civilizatório contemporâneo e suas variáveis atentando para os impactos gerados pela Covid-19 na humanidade.

Tal exame tem o propósito de identificar percepções de professores de engenharia acerca das consequências da pandemia para o desenvolvimento humano e sua relação com o ensino de engenharia e se pauta por estudos de Bazzo (2017, 2018, 2019) e Morin (2001, 2002, 2015, 2018, 2020), como também por investigações que se embasam nos referidos teóricos. Esses autores colocam em pauta o processo civilizatório em curso e apontam possíveis caminhos para uma análise crítica da ciência, tecnologia e sociedade, fundamentando a abordagem Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), no sentido de propor alternativas educacionais para resolver ou, pelo menos, diminuir desigualdades que, historicamente, existem em nossa sociedade e que foram acentuadas pela Covid-19.

Esse campo de estudo se alinha à problemática do presente artigo por investigar tanto os fatores sociais que exercem influência nas mudanças científico-tecnológicas quanto as implicações sociais e ambientais decorrentes dessas transformações (Bazzo; Linsingen; Pereira, 2003). Nesse contexto, CTS compreende ciência e tecnologia como construções sociais complexas, envolvendo uma diversidade de questões epistemológicas, políticas e éticas (Cutcliffe, 2003). Esse enfoque busca aprofundar a compreensão das interações dinâmicas entre ciência, tecnologia e sociedade, destacando sua relevância na abordagem de problemas contemporâneos e na promoção de soluções responsáveis e sustentáveis.

Por defendermos a ideia de que a educação CTS no ensino tecnocientífico deve englobar objetivos comuns do que temos denominado de formação humanista, exporemos a concepção humanista de educação de Freire (1985; 2003; 2005; 2008) incorporada ao enfoque CTS, como também perspectivas de autores alinhados à tal abordagem. Ressaltamos que não é pretensão deste artigo oferecer uma única resposta a essa questão, mas sim, a partir de percepções de educadores, trazer elementos que apontem (im)possibilidades de se efetivar uma abordagem humanista no processo formativo dos discentes de engenharia. Nessa perspectiva, somos conduzidos a repensar o papel da educação tecnocientífica, observando a necessidade de uma formação integral do educando de engenharia, ao mesmo tempo que se consideram os docentes como sujeitos em formação de sua prática.

2 METODOLOGIA

Seguindo a premissa de Haguette (2010), que define a pesquisa qualitativa como uma pesquisa educacional orientada para ação, na qual ocorre a participação conjunta de pesquisadores e pesquisados, com o objetivo de mudança ou transformação social será adotada a pesquisa qualitativa como método de investigação científica. Este estudo é parte da pesquisa “A educação em engenharia sob a perspectiva da formação humanista: uma análise em um contexto pós-pandemia”, no âmbito do processo de doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O estudo de caso foi empregado, dentro desta investigação, como estratégia para uma análise profunda do objeto, de maneira que permita seu amplo e detalhado conhecimento (Gil, 2008). O lócus da pesquisa é a Unidade Acadêmica do Cabo de Santo Agostinho (UACSA) da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) - por se tratar de um importante Centro Acadêmico Universitário dos cursos de Engenharia. Os instrumentos de análise adotados para este estudo foram: Análise de documento institucional - Projeto Pedagógico de Curso (PPC); e Grupo Focal (GF) com roteiro de perguntas. Quanto ao critério de composição do GF, foi considerado o propósito da amostragem qualitativa que é “refletir a diversidade dentro do grupo ou população sob estudo, em vez de aspirar ao recrutamento de uma amostragem representativa” (Barbour, 2009, p. 86).

Tal diversidade proporciona variedades de percepções que contribuem para o enriquecimento da geração de dados. Sendo assim, foram convidados para o GF não apenas professores engenheiros, mas igualmente professores com outras formações acadêmicas, como a matemática, uma vez que estes também atuam diretamente na formação dos futuros engenheiros e são professores das disciplinas comumente chamadas de “núcleo duro” da engenharia e, portanto, estão envolvidas no caráter eminentemente tecnicista do curso.

É importante assinalar que nesta investigação o critério de amostragem considera que,

[...] nas pesquisas qualitativas, as amostras não devem ser pensadas por quantidade e nem precisam ser sistemáticas. Mas a sua construção precisa envolver uma série de decisões não sobre quantos indivíduos serão ouvidos, mas sobre a abrangência dos atores sociais, da seleção dos participantes e das condições desta seleção (Onwuegbuzie; Leech, 2007 apudMinayo, 2017, p. 5).

Por essa razão, segundo a literatura que trata de grupos focais, a quantidade de participantes é variada, aconselhando de três até doze pessoas. Para esta pesquisa, foi adotada a proposta de Barbour (2009), cuja recomendação é de três a oito pessoas. Foram formados dois grupos focais, cada um constituído por quatro professores. Para cada encontro foi realizado um encontro de 90 minutos, desenvolvido por meio da plataforma Google Meet. Segundo Flick (2009, p. 182), “ao contrário da entrevista de grupo, a discussão em grupo estimula o debate e utiliza a dinâmica nele desenvolvida como fontes centrais de conhecimento”. Além disso, essa técnica possibilita um ganho de tempo, porquanto é realizada com uma equipe de pessoas simultaneamente, isto é, um grupo discutindo e aprofundando de forma coletiva determinado tema.

Com relação à metodologia de análise dos GFs, feita por meio da Análise de Conteúdo (AC) proposta por Bardin (2016), os caminhos percorridos iniciam-se pela delimitação de categorias primeiras de análise. As categorias primeiras resultam de um processo que começou com a definição do problema de pesquisa e dos objetivos que nortearam a busca por respostas. Ainda, tais categorias são reflexos da construção teórica acerca do objeto de pesquisa e das intencionalidades materializadas no instrumento de coleta de dados e informações (Bordin, 2018).

Nessa perspectiva, a temática em forma de questão - ‘Como você compreende os impactos da pandemia para desenvolvimento humano? Você acredita que esses impactos geram alguma consequência para o ensino de Engenharia?’ -, quando examinada diante das transcrições dos GFs, permitiu o direcionamento da análise para a seguinte categoria primeira: “Os Impactos da Pandemia no Desenvolvimento Humano e suas Consequências para o Ensino de Engenharia”. Assim, definida tal categoria primeira, a partir da leitura cuidadosa do material transcrito, foram estabelecidas as unidades de análise, as quais foram destacadas em negrito. Segundo Bardin (2016) e Moraes (1999), tais unidades podem ser palavras-chave, frases ou temas sínteses que ‘emergem’ e se destacam nos documentos e/ou entrevistas, processo designado por Unitarização. A partir disso, na etapa denominada Categorização, as unidades que emergiram do texto foram classificadas em (sub)categorias, conforme o objetivo e o arcabouço teórico da investigação. Dessarte, com a interpretação inferencial que se dá por meio de um processo reflexivo que envolve o estabelecimento de relações com referenciais teóricos existentes sobre os temas, observaram-se no material analisado possibilidades e/ou impossibilidades de se efetivar uma educação em engenharia comprometida com o desenvolvimento humano, ou seja, com uma formação humanista.

Ressaltamos que produzir inferência em AC consiste não apenas em produzir suposições subconscientes sobre determinada mensagem, mas também em embasá-las com pressupostos teóricos de várias concepções de mundo e com os contextos nos quais seus interlocutores estão inseridos (Franco, 2008). Reforçamos que os termos e/ou expressões mais representativos(as) das unidades de análise, enfatizados em negrito, serviram como base para agrupar as convergências e assim emergirem as subcategorias.

Dessa maneira, entre as (im)possibilidades de implementação de uma formação humanista na engenharia, a partir da percepção de docentes, identificamos duas (sub)categorias entre as unidades de análise levantadas: “Uma questão epistemológica” para apontar a necessidade de formação epistemológica dos docentes; e “Humanizar para formar: a necessidade do diálogo”, indicando a importância da valorização do diálogo entre professor e aluno no processo de ensino-aprendizagem.

Após a definição das subcategorias, procedeu-se à etapa da Descrição, na qual foi elaborado um texto-síntese para cada uma delas com o objetivo de expressar o conjunto de significados presentes nas unidades de análise. Nesse contexto, buscando tornar o estudo viável, serão apresentados aqui trechos das falas dos GFs, extraídos do processo de (sub)categorização. Nesses trechos, usaremos a letra “T” seguida de numeral (ex.: T1) para preservar a identidade dos professores. Seguindo a etapa de Análise/Interpretação, os elementos - manifestos e latentes -, dos quais emergiram as subcategorias, foram examinados pelas lentes das referidas perspectivas teóricas, estabelecendo relações também ao que se propõe o PPC dos cursos de engenharia da UACSA. Tudo isso foi observado sob um contexto de consequências do processo histórico envolto pela pandemia da Covid-19.

A seguir, primeiramente, realizaremos uma explanação acerca da fundamentação teórica que direcionou o estudo para posteriormente apresentar o desenvolvimento das unidades de análise supracitadas.

3 ENTRE EQUAÇÕES E VARIÁVEIS DE UM PROCESSO CIVILIZATÓRIO: A NECESSIDADE DA ABORDAGEM HUMANA

Pensar o processo civilizatório envolvido por máquinas, tecnologias e seres humanos aponta-nos para a relação entre ciência, tecnologia e sociedade e seu processo educacional. Para Bazzo, Linsingen e Pereira (2003, p. 119), CTS define um “campo de trabalho cujo objeto de estudo está constituído pelos aspectos sociais da ciência e da tecnologia, tanto no que concerne aos fatores sociais que influem na mudança científica-tecnológica, como no que diz respeito às consequências sociais e ambientais”. Em suma, CTS investiga os fenômenos sociais, políticos e econômicos que formatam a mudança científica-tecnológica e as variadas consequências dela resultantes.

Nessa linha de pensamento, Cutcliffe (2003) postula que os estudos CTS buscam compreender e analisar ciência e tecnologia como construção social complexa, implicando a diversidade de questões epistemológicas, políticas e éticas. Portanto, para a CTS, a ciência e a tecnologia não são agentes de destruição totalmente autônomos nem meros instrumentos neutros prontos para quaisquer fins. Ao contrário, a ciência e a tecnologia são consideradas como processos sociais envolvidos por valores que se produzem em distintos contextos históricos. Em outras palavras, ciência e tecnologia não podem ser vistas como autônomas, e somente é possível entendê-las como fenômenos eminentemente sociais, com profundas consequências das mais variadas ordens, sejam políticas, culturais, ambientais, educacionais, econômicas, ideológicas, ético-morais etc.

Nesse sentido, a compreensão da indissociabilidade entre ciência e tecnologia com seu contexto histórico, social, cultural e político deve fundamentar o processo formativo em engenharia, ou seja, dos cursos tecnológicos. Logo, a educação técnico-científica deve ser repensada e atualizada a fim de ampliar suas discussões de forma crítica e interdisciplinar, articulando-as com problemáticas humanas. Portanto, é preciso romper com paradigmas tradicionais, os quais se amparam na concepção da ‘tecnologia pela tecnologia’, uma vez que estes não contemplam a formação integral de profissionais que atuarão em uma sociedade cada vez mais complexa e problemática e assim necessita mais de ‘humanos’, e não somente de ‘técnicos’ (Bordin; Bazzo, 2017).

Esse processo depende das concepções de mundo e de sociedade nele imbricadas. Dessarte, para formar profissionais mais humanos é crucial preparar docentes conscientes de seu papel de educador, o qual necessita não apenas do entendimento de métodos e técnicas de ensino, mas também do conhecimento das questões que afetam o curso do processo civilizatório e como isso atinge nosso modo de ser e estar no mundo. Nesse sentido, é fundamental que o professor não se proponha a meramente formar profissionais “obedientes” aos ditames do capital econômico, mas conduza uma formação profissional e humana consciente de sua responsabilidade no curso da civilização moderna, compreendendo as implicações do contexto histórico, político e social nas condições de existência dos indivíduos. Essa postura precisa ser desenvolvida em toda prática educativa.

Pensar uma formação humanista atrelada a um enfoque CTS resgata o caráter político no processo educacional, uma vez que não há produção de conhecimento neutro, seja por intermédio da ciência, seja mediante quaisquer outras formas de interpretar e agir no mundo. Logo, o entendimento dos professores acerca do conceito de homem e de mundo é o que direcionará a ação educativa, pois, como afirma Freire (2003), não existe educação neutra. Para esse processo é preciso superar a visão reducionista de CTS, a qual se limita a debater implicações sociais envolvidas pela concepção de que a tecnologia sempre beneficia o desenvolvimento econômico essencial para a sociedade.

Assim, Santos (2008) defende a imprescindibilidade de resgatar uma educação política que visa à transformação do modelo racional de ciência e tecnologia excludente para um modelo voltado para a justiça e igualdade social. Ainda segundo o autor, ao se trabalhar com a abordagem CTS, é fundamental aplicar uma perspectiva humanística, uma vez que a compreensão equivocada de que instituições de ensino devem orientar os estudantes a lidarem com a tecnologia, bem como a se adaptarem às modificações que o avanço tecnológico proporciona, pode gerar uma ideia ingênua da ciência. Portanto, para que uma pessoa seja de fato alfabetizada científica e tecnologicamente, é necessário que ela esteja apta a questionar os processos de desenvolvimento científico e tecnológico em nossa sociedade, levando em consideração a ideologia dominante incutida nesse desenvolvimento, participando assim ativamente das tomadas de decisões que envolvem ciência e tecnologia (Santos, 2008).

Essa premissa considera um conjunto de princípios e valores (políticos, econômicos e ideológicos) que regulam a sociedade. As prioridades dos sistemas políticos se resumem a pautas que demandam decisões que têm como mote finalidades econômicas, as quais não são capazes de atender problemáticas de ordem social e humana. Tal perspectiva simplista e excludente impede a observância de um conjunto de outras variáveis inseridas no curso civilizatório e que precisam ser tratadas na sua totalidade.

Bazzo (2018) faz um alerta para a urgência de se tratarem os problemas humanos afetados por essas variáveis de maneira conjunta, a fim de que não continuemos tentando resolver a equação civilizatória ignorando variáveis que transtornam a civilização contemporânea, como o ocorrido diante da pandemia que gerou um cenário de vastas incertezas que ainda permanecem. Como afirma Morin (2020, p. 6), a Covid-19 nos revelou mais uma vez a insuficiência do modo de conhecimento que nos foi prescrito, que nos faz separar o que é inseparável e reduzir a um único elemento aquilo que é ao mesmo tempo uno e diverso, evidenciando que “tudo aquilo que parecia separado está conectado, porque uma catástrofe sanitária envolve integralmente a totalidade de tudo o que é humano”.

Bazzo (2017), ao desenvolver estudos acerca do mundo contemporâneo e da relação, afirma que a dinâmica social sofre influências das mais diversas variáveis que fazem parte do complexo processo civilizatório humano. Essas variáveis compõem o que o autor metaforicamente denomina ‘equação civilizatória’, referindo-se às questões econômicas, políticas, sociais, culturais, ambientais, científicas, tecnológicas, entre tantas outras que fazem parte do atual contexto global. Desse modo, Bazzo (2019, p. 45) declara que “o mundo ferve em situações desafiadoras, por meio das quais as variáveis contemporâneas mudam a cada instante e colocam a todos diante do problema inexorável da sobrevivência humana quanto às finalidades de viver em comunidades”. Nesse contexto, “a Covid-19, uma grande crise mundial deste século, denuncia inúmeros problemas do processo civilizatório em curso, acentua as desigualdades e muda drasticamente a vida das pessoas” (Dambros; Binder; Bazzo, 2021, p. 723).

Vimos que tais referenciais defendem um enfoque CTS consciente da complexidade que o envolve, abordado intrinsecamente com as problemáticas humanas. Essa premissa se alinha com o postulado de Freire (2008) acerca da educação problematizadora na qual tanto alunos como professores são sujeitos ativos e capazes de compartilhar e construir conhecimentos. Nessa perspectiva, não existe educação fora da sociedade humana, portanto o autor defende uma pedagogia humanística voltada para as condições humanas, levando em consideração o mundo onde os indivíduos estão inseridos. Logo, é possível sustentar que a educação é sempre um processo humano. Essa perspectiva nos remete à seguinte afirmação de Pitano (2017, p. 88):

[...] o sujeito social é fruto de um caminho de aprendizagem e superação de estágios de consciência. Um caminho jamais linear e, menos ainda, predeterminado. É movimento humano na história de suas relações cada vez mais conscientes com os outros e com o que ocorre no mundo.

Nesse sentido, a construção do sujeito social é um processo dinâmico e em constante evolução, que se desenvolve por meio de interações com outras pessoas e com o contexto social e cultural em que o indivíduo está inserido. Por essa razão, esse processo de formação do sujeito social, em virtude de sua natureza interativa, dinâmica e em contínua transformação, deve ser alvo de reflexão crítica e problematização.

Freire (1985) define problematizar como exercício de uma análise crítica sobre a realidade problema. Para tanto, é necessário que os sujeitos voltem-se dialogicamente para a realidade mediatizadora com o objetivo de transformá-la. Esse processo se dá mediante a comunhão de ideias, ou seja, o diálogo. Logo, nesse entendimento de educação dialógica-problematizadora (Freire, 1985), os estudantes e professores são sujeitos ativos no processo, cujo ponto de partida para a problematização e compreensão do mundo em que vivem são as experiências diárias e a realidade existencial dos alunos. Esse movimento é fruto da práxis educativa, a qual é uma atividade intencional, transformadora e consciente. Uma ação que visa à transformação do mundo e do próprio ser humano.

Inserido nos estudos sobre o processo do conhecimento, Lukács (2012) reitera que não há conhecimento isolado da práxis. Nessa perspectiva, o conhecimento é, também, práxis e seu caráter meramente contemplativo deve ser superado. A práxis envolve uma relação, ontológica e dialética, com a teoria. Nessa perspectiva, a conscientização é essencial para a transformação social da realidade e dos próprios indivíduos por meio da atividade crítica e prática. Assim, o desenvolvimento da essência prática da teoria se dá a partir da própria teoria e da relação da consciência com a realidade. Nesse sentido, quando pensamos em desenvolvimento da práxis, a epistemologia aparece como ponto de partida.

No enfoque CTS alinhado ao pressuposto epistemológico de uma educação dialógica-problematizadora, o aluno deve ser tratado como protagonista na construção de seu conhecimento e, portanto, encorajado a ter uma participação ativa em sala de aula. Nele, os estudantes são incentivados a problematizar as complexas correlações CTS, por meio da discussão integrada de conhecimentos científicos e tecnológicos e assuntos considerados socialmente importantes. A mediação desse processo é de competência do educador e, para tal, ele deve criar um ambiente saudável e instigante em sala de aula. Nesse sentido, a epistemologia e sua relação com os processos de formação de professores deve ser um tema essencial nas discussões dos projetos pedagógicos dos cursos das instituições educacionais que lidam com ciência e tecnologia.

A perspectiva epistemológica adotada pelos docentes relativamente à construção do conhecimento materializa-se na maneira como estes pensam e organizam suas práticas pedagógicas direcionadas ao processo de ensino-aprendizagem dentro e fora de sala de aula. Isso significa que as formas de pensar o conhecimento influenciam diretamente as ações docentes, como organizar o currículo, escolher os materiais didáticos, planejar as atividades e avaliar os resultados (Machado, 2011).

Logo, a postura epistemológica latente ou manifesta pode fazer avançar, retardar ou até impedir o processo de construção do conhecimento (Becker, 1993). Esse modo de pensar enfatiza a necessidade, nas palavras de Morin (2018), de reformar o pensamento docente, uma vez que o entendimento dos professores acerca do conceito de homem e de mundo é o que direcionará a intencionalidade da ação educativa e consequentemente suas implicações na formação dos estudantes.

4 UMA QUESTÃO EPISTEMOLÓGICA

Como apresentado no texto introdutório, abordar o desenvolvimento humano, para além de uma perspectiva simplista que o considera como sinônimo de progresso tecnológico e consequentemente econômico, é colocar as pessoas no centro da análise do bem-estar. Dessa forma, esta abordagem considera o processo de ampliação das liberdades humanas quanto às suas capacidades e oportunidades.

O crescimento econômico de uma sociedade, de forma isolada, não se traduz automaticamente em qualidade de vida e, muitas vezes, o que se observa é um reforço das desigualdades. É preciso que este crescimento seja entendido como parte do processo de expansão das liberdades e transformado em conquistas concretas para as pessoas: crianças mais saudáveis, educação universal e de qualidade, ampliação da participação política dos cidadãos, preservação ambiental, equilíbrio da renda e oportunidades para todas as pessoas, maior liberdade de expressão, entre outras (Atlas do Desenvolvimento..., 2021, on-line).

Dessarte, é imprescindível que os responsáveis pela educação em engenharia tenham o entendimento de que, além dos aspectos técnicos específicos do curso, questões envolvendo desenvolvimento humano e social devem ser tratadas de maneira significativa nos processos de formação do futuro engenheiro. No entanto, isso dependerá da compreensão dos professores acerca do conceito de homem, de mundo e, portanto, de vida. É esse entendimento que conduzirá a ação educativa. Essa perspectiva serviu como base para a interpretação das unidades de análise da categoria em questão.

Nesse contexto, percebeu-se a presença de percepção que indica fragilidade acerca da compreensão do que é desenvolvimento humano e sua imbricada relação com o desenvolvimento tecnocientífico, uma vez que tal relação está estreitamente ligada à engenharia, configurando uma plena relação da engenharia com o mundo. Isso se torna incongruente no contexto de uma Unidade Acadêmica cujos PPCs objetivam abordar a formação da pessoa humana fundamentada pela aprendizagem de valores éticos, e do profissional com sólida base de conhecimento teórico científico e humano.

T1: [...] essas coisas estão bem entranhadas, qualidade de vida, bem-estar individual e social, relacionados com a pandemia e trazer isso pra o ensino de engenharia. Enfim, não que sejam coisas desconexas, mas que não são coisas relacionadas diretamente.

T3: [...] Então talvez seja um caminho, ter momentos previstos dentro do esquema da universidade de tentar inserir essa parte mais humana da engenharia, sem perder as características. Então a boa formação do engenheiro, a gente não pode abrir mão disso em função de outras coisas. Então a gente não pode perder o foco da engenharia.

Essa limitação dissocia diretamente a responsabilidade da engenharia com relação às questões de desenvolvimento humano, o que está intrinsecamente relacionado com o modelo linear de desenvolvimento tecnocientífico. Segundo Nascimento e Linsingen (2006, p. 100), a homogeneidade entre ciência e tecnologia preconizada pelo modelo linear determina também uma “‘oportuna’ comunhão da tecnologia com os preceitos clássicos de neutralidade e autonomia imputados à atividade científica, preceitos estes que também se manifestam nos atos pedagógicos das áreas técnicas”. Com base nessa compreensão, é possível inferir nos trechos mencionados uma percepção que enfatiza a responsabilidade técnica da profissão e relega questões humanas a um segundo plano, quando, na realidade, elas deveriam ser abordadas de forma integrada com a técnica, como defendido em uma formação humanista. Essa perspectiva é consequência do entendimento de que o investimento em tecnologia é visto como uma solução direta para impulsionar o crescimento econômico e, por conseguinte, melhorar a qualidade de vida da população. Essa concepção foi observada em outra unidade de análise.

T3: Obviamente a gente tem exemplos aí internacionais de que investimento nessa área de tecnologia, né? De mesmo na parte de educação, mesmo, básica, mas já focada nessa parte de tecnologia já vai dar resultados e crescimento econômico, né? E consequentemente crescimento econômico também tem uma tendência, se for bem gerenciado pelos governos, tem uma tendência também de melhorar a qualidade de vida da população, né?

A valorização da educação está voltada para o mundo do trabalho como ascensão social, respondendo assim às forças do mercado capitalista. Ressaltamos que reconhecemos o potencial da engenharia como propulsora de desenvolvimento, porém, para tanto, defendemos a necessidade de uma formação mais consistente, integradora e libertadora, na qual as soluções tecnológicas sejam orientadas por uma abordagem humanista. Nessa direção, os PPCs da UACSA objetivam a formação da pessoa humana a partir da aquisição de valores éticos, bem como a formação do profissional com sólida base de conhecimento teórico científico e humano. Esse propósito se alinha às orientações das DCN (Brasil, 2019) para o curso de engenharia, as quais corroboram uma tendência universal de tornar a formação em engenharia direcionada para uma prática generalista e humanizada.

T2: [...] Isso deveria ser enfatizado o tempo inteiro que as pessoas precisam entrar nas escolas, precisam estudar. Elas precisam conseguir por elas mesmas. Ela tem que lutar, ela tem que ir atrás pra melhorar a qualidade de vida delas, poder ajudar a família daqui a uns anos.

Bazzo (2017), ao rastrear as origens dos programas em CTS, relacionando-as ao ensino de engenharia, compreende que antes de disciplinas é preciso interferir no conhecimento epistemológico dos professores a fim de que sejam apontados caminhos de mudança e organização curricular em direção a uma formação humanista dos estudantes. É importante considerar que culturas instituídas continuadamente fomentadas pelo poder de mando exercem controle sobre seres humanos associadamente a domínios da política, mídia, economia etc.:

Não sou ingênuo a ponto de não reconhecer as inúmeras implicações de outras variáveis nesse emaranhado processo. As culturas instituídas e, constantemente, potencializadas pelo poder de mando e de controle das mentes e dos corpos dóceis aliadas de maneira indissociável à política, à economia, à mídia, ao território, e à língua oficial dominante, entre tantos outros elementos, são fortíssimos coadjuvantes nesse empreitada de educar integralmente os jovens estudantes (Bazzo, 2017, p. 82).

A mudança de postura epistemológica possibilita aos docentes atuar de modo mais efetivo na construção de currículos e programas que conduzam a promoção de debates críticos, de investigações e de proposta para resolução das problemáticas sociais da atualidade. Além disso, tal mudança viabiliza “alternativas para uma educação científica menos convencional e capaz de estabelecer uma relação verdadeiramente humana, mais efetiva e mais próxima à felicidade” (Bazzo, 2019, p. 156).

Foi possível identificar nas unidades de análise a percepção que reconhece que na atuação do engenheiro há implicações sociais. No entanto, foram observadas fragilidades na compreensão e/ou na capacidade de lidar de forma satisfatória e coerente com tais implicações.

T4: [...] Eu acho que a gente pode aproveitar essa oportunidade. Sinceramente, na prática, eu não vejo isso de forma muito clara, se serviu ou não pra humanizar, mas obviamente causou um impacto.

T5: [...] Às vezes, eu quero trazer um tema pra problematizar em sala, mas nãotempo. A ementa, tem que cumprir a carga horária, aquela coisa. Eu acho que do ponto de vista institucional, olhar pra esse tempo de outra forma. Como que eu quero usar esse tempo?

T6: [...] A gente vem tentando fazer, mas na prática é algo mais complicado colocar isso de forma curricular.

T7: [...] Mas eu acho que essa discussão pode ser enriquecida. Como materializar essas discussões nas atividades formativas do curso? Acho que aí a gente precisava pensar...boa pergunta...não sei. O que é que vocês sugerem?

Diante do exposto, observa-se que a implantação de uma formação mais humana e integral nos cursos de engenharia ainda enfrenta dificuldades, como a ausência de preparo e de formação epistemológica dos docentes. Tal situação é fomentada por uma concepção de ciência e tecnologia positivista e fragmentada ainda resistente nos cursos de engenharia. Esse comportamento culmina, como afirma Pacey (1990), em escolhas pedagógicas mais cômodas ao considerar unicamente os detalhes técnicos e deixar de lado outros aspectos, reproduzindo a forma como os próprios docentes foram educados.

5 HUMANIZAR PARA FORMAR: A NECESSIDADE DO DIÁLOGO

Conforme ensinamentos de Freire (1993), a ação de formar discentes como agentes de transformação do mundo, com senso de solidariedade e criatividade para propor soluções a uma realidade globalizada permeada por uma multiplicidade de questões, requer que o professor, com seu aluno, reconheça-se como sujeito do conhecimento e como sujeito aprendente. Em outras palavras, o professor ensina e aprende e o aluno aprende e ensina. Nesse sentido, o processo de ensino-aprendizagem é dialógico, logo, a educação é dialógica.

Nesse contexto, ao analisarmos as unidades de análise, percebemos uma percepção docente (acentuada pela pandemia) que está alinhada com a abordagem humanista de formação. Essa abordagem visa a responsabilidade social e a formação de profissionais como agentes de transformação do meio em que vivem. Essa perspectiva se efetiva pelo reconhecimento da importância de humanizar os cursos de engenharia, valorizando o conhecimento da realidade pessoal, social e cultural dos alunos, que tem início no diálogo pessoal.

T1: Eu tenho uma relação muito boa com meus alunos, então eu ouço muito, eu converso muito com eles. Então, o tanto de coisas que ouvi, de pessoas que perderam parentes, mudaram de vida. Tem muita gente que... “olha, eu perdi meu pai, perdi minha mãe. Tô tendo que trabalhar”.

T2: Então é uma necessidade a gente conversar com os alunos; nos propormos à conversa, ouvir eles sobre a pandemia. Não tem como, foi uma mudança de paradigma na vida deles.

T3: Não que a gente tenha que facilitar, não é isso, mas entender, compreender a realidade de muitos alunos que tiveram essa mudança abrupta devido ao efeito da pandemia. Eu acho muito difícil. Também são muitas situações diferentes, é muito dinâmico né e muito plural a nossa realidade. Mas eu acho que o caminho é fazer esse trabalho de escuta basicamente.

T4: Então, assim, hoje eu digo: Eu vou adaptar a minha prática à realidade deste aluno que tenho diante de mim. Não dá pra não exigir o mínimo daquele aluno. E a pandemia trouxe essa reflexão pra mim muito fortemente.

T5: A gente tem 4 horas seguidas de aula, então assim, é bem cansativo. Então a gente conversa, a gente dá uma pausa. A gente vai pra o assunto, volta pra uma discussão. Os alunos, eles trazem experiência de estágio, de vida.

Compreensões dessa natureza revelam que nessas unidades há presença de percepções que se aproximam dos princípios de dialogicidade em Freire (1985, 2003, 2008) e escuta ativa. Quando o educador escuta o aluno, possibilita o diálogo entre eles, apoiando o protagonismo do discente. Nesse sentido, é permitido ao aluno assumir o papel de cidadão, de ator na sociedade.

Nos excertos supracitados, os docentes relatam que a pandemia os sensibilizou para, em suas práticas, o desenvolvimento de uma escuta ativa, um diálogo não engessado que se abre para além de conteúdos de disciplina. Essa mudança de postura nos conduz à análise de Santos (2021, p. 38), que distingue algumas metáforas para representar as ações do novo coronavírus, entre elas a metáfora do “vírus como pedagogo”: “A metáfora do pedagogo é a única que nos obriga a interagir com o vírus, a convertê-lo num sujeito digno de ter um diálogo conosco”. Nesse sentido, é imprescindível fomentar efetivamente um processo de ensino-aprendizagem mais significativo nos cursos de engenharia, valorizando que a relação do professor com o estudante aconteça de maneira franca e empática. Como nos ensina Freire (2020), é necessário que aqueles que falam de modo democrático silenciem-se para que se permita que a voz daqueles que devem ser ouvidos apareça.

Nesse processo dialógico entre professor e aluno, visto nas falas anteriores, surge a possibilidade de tratar questões que, por vezes, têm dificultado a efetivação de um ensino de engenharia mais humanizado, como a prática da compartimentalização e a dissociabilidade entre o conhecimento científico e o mundo que o cerca. Para que o ensino de engenharia de fato coloque em prática o princípio da abordagem contextualizada, defendido pelo PPC da UACSA, é necessário que o processo educativo não se aparte da vida prática. Conectar-se ao cotidiano das pessoas é um meio para isso, fazendo com que tal processo não seja um fim em si mesmo e se torne uma estrutura meramente acadêmica (Bazzo, 2017).

Atrelado a isso, destacamos que uma das políticas para o ensino previstas no PPC da UACSA é a criação de mecanismos de atenção aos estudantes, com o intuito de aumentar sua autoestima e motivá-los nas atividades acadêmicas. No entanto, para que isso ocorra, é necessário que, nos espaços de capacitações, a prática docente seja discutida como estratégia para quebrar paradigmas tradicionais em favor da inovação nas estratégias didáticas e em opções pedagógicas que se fundamentem em um processo educativo no qual o professor apareça como o ‘outro’ mediador da aprendizagem do estudante. Tendo em vista que o docente deve atuar como mediador do processo de ensino-aprendizagem, ele é o ponto de partida para o funcionamento dessa relação.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Reconhecemos que são inúmeros os impactos causados pela Covid-19 à humanidade e, consequentemente, à educação e que, de alguma maneira, os agentes envolvidos no processo educacional, indistintamente, foram afetados. Portanto, diante das inesgotáveis questões que merecem nossa reflexão, a provocação é que pensemos acerca do que muda em nossa consciência planetária com a crise da Covid-19 (Morin, 2020). Nesse sentido, é imprescindível que aqueles que atuam no ensino de engenharia sejam capazes de tomar consciência de si e do mundo, por intermédio da discussão crítica acerca dos modos do homem se relacionar com o mundo e suas repercussões. Como nos ensina Bazzo (2019), os problemas humanos proporcionam reflexões e alterações em nossa maneira de trabalhar o conhecimento, e as variáveis sociais, econômicas e políticas da atualidade são elementos essenciais para análise e interpretação da realidade.

O caminho de desenvolver espaços permanentes de formação epistemológica dos docentes que atuam na engenharia, dentro das próprias instituições de ensino, parece-nos viável para aprimorar a consciência cidadã que os torna educadores, bem como responsáveis pela formação daqueles que trabalharão com tecnologia:

O olhar do homem que trabalha com tecnologia não pode ser estático ou apenas direcionado para o produto, não importando o que acontece à sua volta. Esta postura alheia às consequências problemáticas da ciência e da tecnologia tem ocasionado, em diferentes situações, muitas mazelas decorrentes da má utilização dos produtos tecnológicos (Bazzo, 2017, p. 68).

Assim, ao defendermos a imprescindibilidade de implementação de uma formação humanista na engenharia e, consequentemente, na educação tecnocientífica em geral, pautada pelo desenvolvimento humano, reconhecemos a necessidade de o processo formativo de professores do curso estar pautado pela formação epistemológica. Esse processo, para além de uma formação técnica, deve estar comprometido em preparar um educador consciente, em sua prática, das questões humanas e complexas do mundo e de suas inter-relações com a ciência e a tecnologia. Desse modo, a formação epistemológica docente deve fomentar a formação de professores como agentes criadores e transformadores de suas práticas como educadores e cidadãos habilitados não apenas para o mundo do trabalho, mas também para o mundo da vida. Essa abordagem promove possibilidades de promover uma atividade docente que desenvolva a formação de estudantes como agentes de transformação do mundo, com senso de solidariedade e criatividade para propor soluções a uma realidade globalizada permeada por uma multiplicidade de questões cada vez mais complexas.

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Recebido: 06 de Abril de 2023; Aceito: 06 de Agosto de 2023; Publicado: 30 de Novembro de 2023

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