1 HIBRIDISMO PEDAGÓGICO E CURRICULAR NA IBERO-AMÉRICA: APONTAMENTOS INICIAIS
Embora o currículo seja herdeiro dos movimentos pedagógicos do século XIX (Tanner; Tanner, 1980), sua consolidação como disciplina ocorreu a partir de 1912, quando Franklin Bobbitt ministrou uma cadeira sobre currículo na Universidade de Chicago e publicou o primeiro texto, The curriculum, em 1918 (Bobbitt, 1918), ano reconhecido pelos especialistas como a fundação do campo. Em seguida, de 1914 a 1922, dois anos após inaugurar a disciplina de currículo, Bobbitt conduziu estudos diagnósticos sobre o currículo em vários distritos escolares, incluindo Cleveland (Bobbitt, 1915a) e San Antonio (Bobbitt, 1915b). Entre esses, seu estudo em Los Angeles (Bobbit, 1922) serviu como base teórico-metodológica para sua obra magna How to make a curriculum (Bobbit, 1924).
Desde o trabalho de Bobbit até o final da década de 1960, a preocupação central do campo foi o planejamento curricular. Nesse período, a pequena obra de Tyler, com apenas 100 páginas, intitulada Basic principles of curriculum and instruction, que era parte de seus apontamentos de aula, foi considerada a “bíblia do currículo” (Pinar, 2014). Entretanto, com as primeiras críticas à racionalidade tyleriana feitas por Kliebard (1970) e o surgimento da obra seminal que definiu o curso da teoria crítica Curriculum theorizing: the reconceptualists (Pinar, 1975), o campo novamente começou a se reestruturar.
A obra de Tyler e a teoria crítica anglo-saxônica seguiram caminhos distintos, misturando-se com outras abordagens e circunstâncias em diferentes partes do mundo. Houve, portanto, uma hibridização. Antes da hibridização curricular, também ocorreu uma hibridização pedagógica na Ibero-América. As grandes pedagogias europeias se entrelaçaram umas com as outras - puras ou misturadas -, atravessaram o oceano e deram origem a novas abordagens pedagógicas.
Nesse contexto, o objetivo deste artigo foi realizar uma análise inicial dos processos de hibridização pedagógica e curricular que ocorreram na Ibero-América, particularmente no Brasil, na Argentina, na Colômbia, na Espanha e no México. A fundamentação teórica do presente trabalho são os estudos pioneiros sobre transferência educativa e hibridismo, realizados pelos curriculistas brasileiros Lopes (2005), Lopes e Macedo, (2003) e Moreira (1990, 2003).
Além desta introdução, o texto está dividido em mais cinco partes. Na primeira parte, é apresentado o marco referencial dos processos de hibridismo pedagógico com base nos estudos de Canclini (2013). Na segunda, o texto distingue cinco processos de hibridização pedagógica na América Latina, abrangendo a influência mútua entre ideias pedagógicas da Espanha, dos Estados Unidos e dos países latino-americanos. Na terceira, faz-se um esboço dos processos de hibridismo pedagógico até as primeiras décadas do século XX. Em seguida, é realizada uma análise exploratória dos processos de hibridismo curricular em seis países da Ibero-América: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Espanha e México. Por fim, nas conclusões, são identificados os aspectos mais relevantes dos processos de hibridação, sem entrar em detalhes específicos sobre a extensão desses processos na região ibero-americana.
2 MARCO REFERENCIAL
Canclini (2013) argumenta que as mudanças nos modos de produção trazem consigo uma cultura popular internacional que organiza os consumidores em torno de estilos de vida compartilhados, mas não homogeneizados. Isso se manifesta em elementos como vestimenta, ídolos, filmes, heróis esportivos etc. Ele desenvolveu um conceito que nos ajuda a entender parte desse processo de hibridização no campo curricular, que se intensificou a partir dos contatos entre curriculistas estadunidenses e países ibero-americanos, especialmente após a tradução para o espanhol da obra de Tyler (1973).
Assim, hibridismo, conforme definido por Canclini (2013, p. 8, tradução nossa), refere-se aos “[...] processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas distintas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”. Essa categoria é amplamente utilizada nos estudos culturais, e um exemplo prático citado pelo autor é o spanglish, uma mistura linguística entre espanhol e inglês que emergiu nos Estados Unidos dentro das comunidades de língua hispânica. Além disso, Canclini (2013) destaca que, ao longo do século XX, houve uma expansão significativa nos processos de hibridização, especialmente na América Latina. Nessa região, a interação entre diferentes culturas moldou uma identidade cultural complexa e diversificada, desde os colonizadores espanhóis e portugueses até a influência posterior de ingleses, africanos, alemães e italianos na América do Sul, tornando-se um elemento essencial na composição da identidade latino-americana.
Nessa direção, Canclini (2003) propõe uma mudança no foco de estudo, deslocando-o da identidade para a heterogeneidade e o hibridismo intercultural. Ele argumenta que, diante das atuais condições da globalização, é mais pertinente utilizar os conceitos de mestiçagem e hibridismo, uma vez que, enquanto o conceito de identidade é estático, as culturas modernas e pós-modernas estão em constante evolução. No entanto, o autor ressalta que a globalização não apenas integra e promove mestiçagens, mas também gera desigualdades. Dito isso, Canclini (2006, tradução nossa) destaca:
Hibridismo implica reconciliação entre culturas adversas; é uma noção que busca caracterizar a condição das culturas contemporâneas nas quais ocorrem muitas misturas entre o erudito e o popular, o tradicional e o moderno, o nacional e o estrangeiro. Essas misturas podem acontecer de diversas formas.
Quanto ao hibridismo curricular, Moreira (1990) iniciou sua abordagem desse tema no final dos anos de 1980 e destacou que o campo do currículo no Brasil havia sido influenciado pelos Estados Unidos. Com base nas ideias de Ragatt, o autor nomeou esse processo como “transferência educacional” (educational borrowing), que compreende o movimento de ideias, modelos institucionais e práticas de um país para outro. Posteriormente, Moreira (2003) e Lopes e Macedo (2003), inspirados nas ideias de García Canclini, denominaram esse processo como hibridismo curricular.
3 HISTÓRICO: HIBRIDIZAÇÃO PEDAGÓGICA NA AMÉRICA LATINA
Em geral, podem-se distinguir cinco processos de hibridização pedagógica que ocorreram na América Latina: o primeiro resulta da mistura de ideias pedagógicas ou teorias curriculares da Espanha com outros países europeus. O segundo envolve a hibridização ou mistura de ideias pedagógicas espanholas com as ideias pedagógicas dos Estados Unidos. O terceiro refere-se à hibridização das ideias pedagógicas espanholas com as dos países latino-americanos. O quarto é a hibridização dessas ideias pedagógicas entre países da região latino-americana. O quinto e último processo diz respeito à influência mútua e adoção de ideias pedagógicas entre a América Latina e a Espanha.
As teorias de pedagogos como Ovide Decroly, Celestine Freinet, María Montessori e, especialmente, John Dewey inspiraram os sistemas escolares da Espanha, Argentina, Brasil, Colômbia e México. No século XX, observa-se a hibridização pedagógica no centro escolar espanhol Institución Libre de Enseñanza, que desenvolveu sua própria teoria pedagógica com base nas teorias pedagógicas de outros países da Europa Central e nas ideias de John Dewey (García Garduño, 2011).
A Guerra Civil Espanhola (1936-1939) provocou a diáspora de grandes pedagogos espanhóis que trabalhavam na prestigiada Institución Libre de Enseñanza. Forçados ao exílio, emigraram para países como México, Costa Rica e Argentina, influenciando também Colômbia, Venezuela e Chile. As ideias desses professores eram inspiradas em Dewey, Freinet, Decroly, Montessori e nos filósofos alemães Hegel e Krause (Negrín, 1999). Com a chegada dos pedagogos espanhóis, as escolas dos países onde eles se exilaram criaram uma cultura pedagógica híbrida. No México, por exemplo, as ideias da Escola Nova nas instituições se inclinaram mais para o uso da pedagogia de Freinet do que de qualquer outro pedagogo. Patricio Redondo e Ramón Costa Jou, pedagogos da Institución Libre de Enseñanza que emigraram para o México, empregaram essa pedagogia nas escolas que fundaram (Costa Jou, 1974).
Um exemplo notável do hibridismo de ideias pedagógicas entre países latino-americanos ocorreu com a fundação do Centro Regional de Educação Fundamental para a América Latina (CREFAL), no final da década de 1950. A instituição foi criada por sugestão da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e dedicou-se à educação de adultos. Seu credo pedagógico foi resultado das contribuições dos mais proeminentes pedagogos da região latino-americana, incluindo Argentina, Brasil, México, Peru e Equador, entre outros. Segundo Rivas (2003), as ideias dos pedagogos latino-americanos foram influenciadas por obras de Erich Kahler, Clyde Kluckhohn, Karl Manheim, José Ortega y Gasset, John Dewey e Max Weber. Dessa hibridização emergiu uma fusão: uma pedagogia latino-americana voltada para a educação de adultos.
Outro exemplo é a influência das ideias educativas brasileiras na consolidação do movimento da escola argentina, por meio do educador Lourenço Filho. Seu livro Introdução ao Estudo da Escola Nova foi traduzido para o espanhol dois anos após sua publicação no Brasil e teve uma grande aceitação ao ponto de os argentinos considerarem-no uma das 12 obras fundamentais da pedagogia latino-americana (Jafella, 2002). O trabalho de Lourenço Filho também teve impacto no México e em outros países da América Latina e, desde a década de 1960, os educadores latino-americanos têm usado o teste ABC para medir o desenvolvimento da alfabetização das crianças.
Contrariamente ao que se poderia pensar, Dewey não se tornou conhecido na América Latina por meio dos Estados Unidos, mas, sim, da Espanha, que continua sendo um dos canais mais importantes pelos quais a América Latina hispânica conhece as inovações educativas produzidas na Europa e nos Estados Unidos. Após o Japão, a Espanha foi o segundo país estrangeiro a traduzir a obra de Dewey, My pedagogic creed. Parte dessa obra foi traduzida para o catalão em 1899, apenas alguns anos após sua publicação em inglês, e logo depois para o espanhol (Nubiola; Sierra, 2001). Esses mesmos autores afirmam que Dewey teve uma profunda influência nas inovações propostas pelo filósofo e educador mexicano José Vasconcelos, responsável por organizar a educação pública mexicana na segunda década do século XX. O caso do Brasil difere desse contexto, já que a Escola Nova foi firmemente estabelecida, tendo como representantes mais proeminentes Lorenço Filho, Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira. Este último foi discípulo de Dewey e estudou no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos (Moreira, 1990).
4 HIBRIDISMO CURRICULAR NA IBERO-AMÉRICA
Em termos gerais, os processos de hibridismo no campo do currículo na Ibero-América estão relacionados à adoção dos termos curriculum, currículo, currículum com acento agudo e plan de estudios, bem como à publicação da obra de Tyler (1973), cuja primeira edição é do final da década de 1940 (Tyler, 1949) e marcou o surgimento da teoria crítica e da teoria pós-crítica. Aspectos comuns nessa etapa de hibridização nos países estudados incluem um forte foco no planejamento curricular e a formulação de objetivos comportamentais inspirados nas obras de Popham e Gronlund. Além de Tyler e Taba, o clássico livro de Doll, Taylor e Alexander também exerceu certa influência nessa fase (García Garduño, 2011).
A racionalidade de Tyler não foi adotada de forma homogênea na Ibero-América. Poucos sabem que a primeira tradução da obra não foi realizada pela editora Troquel em 1973, intitulada Principios básicos del currículo, mas, sim, por Mario Leyton. Em coautoria com Tyler, publicou o livro Planeamiento educacional: principios básicos del curriculum y el aprendizaje (Leyton, 1969). A obra é pouco conhecida fora do Chile. Embora o autor tenha feito uma tradução melhor do que a realizada pela editora Troquel, a obra de Leyton - dividida em duas partes - inicia com uma reinterpretação sua do modelo tyleriano, já que Leyton aponta que o modelo de Tyler é linear. A segunda parte é dedicada à obra de Tyler, intitulada Principios básicos del curriculum y del aprendizaje: introducción, traducción y adaptación de Mario Leyton. Apesar de Leyton oferecer uma tradução melhor, a dele não permite uma distinção clara entre a obra de Tyler e os comentários e análises de Leyton. Esse autor traduziu de forma apropriada o termo instruction do título Basic Principles of Curriculum and Instruction como aprendizagem. A edição em espanhol optou por suprimir a palavra do título. Talvez se Leyton tivesse publicado a obra de Tyler de forma independente, sem misturar suas análises e introduções, e tivesse creditado Tyler como coautor na capa do livro (como mencionado nas páginas internas, na página 59), a obra teria tido um impacto maior na Ibero-América e a tradução pela editora Troquel não teria sido necessária quatro anos depois.
O surgimento da teoria crítica coincide com a forte crise econômica na região latino-americana e com a abertura democrática na Espanha. Desde o final da década de 1970, começou-se a questionar nos países ibero-americanos a racionalidade técnica do currículo. A América Latina foi um terreno fértil para o desenvolvimento da teoria crítica. A região enfrentou a pior crise econômica de sua história recente; países como Brasil e Argentina sofreram níveis de inflação de quatro dígitos, enquanto o México teve inflação de três dígitos. Todos os países tinham uma enorme dívida externa considerada impagável. Na América Latina, a década de 1980 é conhecida como a “década perdida”. Na Espanha, os eventos políticos levaram à adoção da teoria crítica do currículo. O país passava por mudanças em todas as suas estruturas políticas, sociais, econômicas e educacionais devido à implementação de um sistema democrático.
A emergência e o desenvolvimento das teorias pós-críticas ocorreram inicialmente no Brasil, por meio das obras de Tomaz Tadeu da Silva (por exemplo, 1993), entre outros autores citados neste trabalho. É no Brasil que essa teoria se consolidou de forma mais significativa. No México e na Argentina, seu desenvolvimento é visível, mas não tão proeminente quanto no Brasil. Já em países como Espanha e outros da região, sua presença é escassa ou praticamente inexistente.
5 PROCESSOS DE HIBRIDIZAÇÃO NOS PAÍSES IBERO-AMERICANOS
Esta seção concentra-se, então, na análise exploratória dos processos de hibridismo curricular em seis países da Ibero-América: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Espanha e México.
5.1 Argentina
O campo do currículo começou a se difundir na década de 1960 por meio da Aliança para o Progresso, uma iniciativa do Presidente Kennedy para cooperação com a América Latina, bem como da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da Unesco. O objetivo era traduzir e publicar livros, além de promover a constituição de centros nacionais de currículo (Palamidessi; Feldmann, 2003).
Na Argentina, o termo curriculum é amplamente empregado e se tornou comum para designar especialidades e atividades educativas (Palamidessi; Feldman, 2003). Normalmente, não se utiliza acento nesse termo no contexto argentino, prática que remonta à década de 1970. Curiosamente, apesar de a obra de Tyler ter sido traduzida pela editora argentina Troquel como Principios básicos del currículo, em 1973, não se observa o uso frequente do termo “currículo” no contexto educacional argentino.
De acordo com o inventário de Furlan (1998), as traduções das obras de Tyler e Taba, que foram as mais influentes no meio ibero-americano naquela época, não estão na lista de livros apoiados pelo governo dos EUA para sua tradução.
Cabe ressaltar que o primeiro questionamento crítico ao enfoque técnico-racional na Ibero-América surgiu na Argentina (Feeney, 2014; Palamidessi; Feldamn, 2003) com Edelstein e Rodríguez (1972). O texto publicado por essas autoras da Universidade de Córdoba questionou a didática instrumental de sua época, à luz das obras de Nerici e outros pedagogos contemporâneos. Essa crítica foi publicada dois anos após o questionamento da obra de Tyler por Kliebard (1970).
A adoção da teoria crítica do currículo foi postergada até meados dos anos de 1980 devido ao golpe militar na Argentina, sendo retomada somente após o retorno da democracia ao país (Palamidessi; Feldamn, 2003). Provavelmente, o exílio enfrentado pelos estudiosos do currículo na década anterior retardou o progresso nessa área, resultando em uma ruptura no ethos acadêmico.
A corrente pós-moderna/pós-crítica na Argentina está presente desde o final dos anos de 1990. De acordo com Silvia Morelli (comunicação pessoal, abril de 2022), o início dessa corrente deu-se com a publicação de Caruso e Dussel (1998) De Sarmiento a los Simpsons. Os autores questionam a cultura binária e homogênea da sociedade e da escola. Atualmente, essa corrente está ganhando mais força no país. A influência pós-estruturalista brasileira é notável entre os estudiosos argentinos, como demonstrado por Morelli (2017).
5.2 Brasil
O Brasil foi o primeiro país ibero-americano onde a disciplina e a palavra “currículo” foram introduzidas e empregadas. Segundo Moreira (1990, 2003), durante o governo do presidente Juscelino Kubitschek, em 1956, foi criado o Programa de Assistência Brasil-Estados Unidos para a Educação Elementar. Nesse programa, os professores brasileiros foram treinados na elaboração e no planejamento de currículos. Em 1955, foi publicado o primeiro livro brasileiro sobre currículo, Introdução ao estudo da escola primária, de autoria de João Roberto Moreira. Além disso, Hilda Taba visitou o país no final da década para ministrar palestras sobre o tema. Desde então, a palavra “currículo” foi adotada no Brasil, provavelmente influenciada pelo contato com especialistas dos Estados Unidos na época. Atualmente, ela já faz parte da linguagem comum (Pedra, 1997).
A incorporação da teoria crítica no campo curricular brasileiro ocorreu na década de 1970, sendo Paulo Freire uma das principais influências dessa corrente (Moreira, 1990; 2003). No entanto, foi nos anos de 1980 que essa influência se intensificou, especialmente por meio de autores europeus e, em menor medida, americanos (Lopes, 2003). Lopes (2005, p. 2) resume de forma clara o hibridismo que ocorreu na fase pós-crítica: “[...] se expressa pela associação das teorias críticas com base neomarxista, fenomenológica e interacionista a proposições das teorias pós-críticas vinculadas aos discursos pós-moderno, pós-estrutural e pós-colonial”. Ao contrário de outros países, no Brasil, a corrente pós-crítica se estabeleceu de forma mais sólida e completa.
5.3 Chile
O Chile, depois do Brasil, adotou a palavra curriculum. Contudo, plan de estúdios, currículum e currículo coexistiram durante alguns anos (Magendzo; Abraham; Lavín, 2014). Parece que os dois últimos termos são atualmente usados com mais frequência. Mario Leyton foi o fundador da área. Educado nos Estados Unidos, ele foi discípulo direto de Ralph Tyler. Uma de suas principais contribuições, que ainda perdura, foi a fundação, em 1967, do Centro de Perfeccionamiento, Experimentación e Investigaciones Pedagógicas (CPEIP), que continua sendo o motor da formação de professores nesse país e um exemplo para a América Latina.
Outra característica do campo curricular chileno é a influência que teve nas reformas educacionais, desde Mario Leyton, que atuou como Diretor da Comissão Nacional Curricular e Subsecretário de Educação durante o Governo de Eduardo Frei, até as reformas mais recentes. Assim, Magendzo, Abraham e Lavín (2014) apontam que a área no Chile tem sido associada ao desenvolvimento curricular. A influência dos especialistas curriculares chilenos nas reformas educacionais é mais visível do que em outros países da região. Da mesma forma, outra peculiaridade do campo chileno foi que especialistas na área formaram uma associação curricular profissional durante o regime militar. Criada em 1982, a Asociación Chilena de Currículo Educacional (ACHCE) reuniu os currículos da época e, a partir da década de 1990, começou a reduzir suas atividades.
Segundo Magendzo, Abraham e Lavín (2014), além da racionalidade tyleriana que entrou de primeira mão naquele país com Mario Leyton, outras correntes que têm sido cultivadas são o currículo como práxis e deliberativo inspirado em Stenhouse e Schwab. Depois da ditadura, na década de 1990, a corrente crítica inspirada nos clássicos anglo-saxões apareceu com menos timidez. Como se pode ver, o Chile é o país onde a hibridação curricular é menos notável. O pensamento curricular anglo-saxão foi adotado e recriado de forma mais fiel do que em outros países. Essa peculiaridade pode dever-se ao fato de os especialistas mais destacados, entre os quais Mario Leyton, Abraham Magendzo, Christian Cox, Viola Soto, Daniel Johnson Mardones e vários outros, terem estudado na Europa e nos Estados Unidos. As teorias curriculares foram adotadas de forma mais ortodoxa do que em outros países devido à formação prévia de seus acadêmicos. Não seria arriscado dizer que o Chile se caracteriza porque uma parte importante dos seus currículos mais notáveis foram formados no exterior, o que não aconteceu em outros países ibero-americanos. Muito recentemente, começa a aparecer a hibridação da teoria de Pinar com as epistemologias do sul por exemplo, como tem estudado Mardones (2020).
5.4 Colômbia
Na Colômbia, como em outros países da América do Sul, o currículo foi introduzido por meio de planejamento curricular na década de 1970, com a assistência de agências dos Estados Unidos e da Unesco. Destaca-se a participação do especialista chileno Mario Leyton Soto, discípulo e colaborador de Ralph Tyler (Lago de Vergára et al., 2014). Entretanto, é à Colômbia que se deve a publicação da primeira edição monográfica sobre currículo. Nessa edição, o termo curriculum foi escrito sem o acento agudo. Atualmente, é mais comum nesse país o uso de currículo.
A revista Educación Hoy, fundada em 1970, dedicou seu número 15 ao campo do currículo (Patiño, 1973). Entre os colaboradores, destacam-se o venezuelano Calixto Suárez, consultor da OEA, a estadunidense Louise L. Tyler, discípula de Ralph Tyler na Universidade de Chicago e professora na Universidade da Califórnia - embora sem parentesco com R. Tyler - e um professor da Universidade de Indiana. O quarto artigo, sobre planejamento curricular, foi escrito pela Direção Nacional de Educação de Adultos do Ministério da Educação e Cultura da Argentina. Essa edição da revista marcou o primeiro intercâmbio de autores de diferentes países.
A teoria crítica teve sua origem por duas vertentes. A primeira ocorreu por meio da Federação Colombiana de Trabalhadores da Educação (FECODE). Em seu congresso realizado em 1982, houve críticas ao planejamento curricular imposto pelas agências internacionais e pelo Ministério da Educação. A segunda vertente foi liderada por acadêmicos colombianos.
O currículo foi associado basicamente ao planejamento e à concepção de objetivos comportamentais (Lago de Vergára et al., 2014). Especialistas e educadores concordaram que o currículo - entendido como planejamento - havia sido imposto à pedagogia. Assim, para os educadores colombianos, o planejamento curricular instrumental estava fortemente associado ao significado do campo curricular (Aristizábal, 2008).
A disseminação do trabalho de Basil Bernstein na Colômbia contribuiu para o desenvolvimento da teoria crítica. Mario Dìaz Villa, juntamente com Christian Cox, do Chile, foram discípulos diretos desse sociólogo. Em sua obra Pedagogia, controle simbólico e identidade, Bernstein (1998) ilustra sua teoria com os resultados das teses desses autores, que ele mesmo orientou. Mario Díaz Villa tem sido o principal divulgador do pensamento de Bernstein por meio de suas próprias publicações e traduções da obra do autor.
5.5 Espanha
Na Espanha, o termo curriculum foi introduzido via América Latina (Moreno, 1998), presumivelmente por meio das primeiras traduções feitas na Argentina. Inicialmente, o currículo era chamado de programa de ensino. Ao contrário do que aconteceu em outros países, os trabalhos de Tyler e Taba não foram muito bem recebidos na Espanha. Moreno (1998) comenta que o currículo entrou na Espanha pela porta dos fundos. Nesse país, o currículo é usado com e sem sotaque. O principal estudioso do campo é Gimeno Sacristán (1988), que opta por usar a palavra curriculum sem o acento.
O caso da chegada da teoria crítica do currículo à Espanha nos evidencia que nem todos os processos de hibridação são lineares ou ordenados. Através desse país, a Hispanoamérica teve acesso aos textos de Adorno, Habermas e Foucault, alguns dos quais traduzidos para o espanhol desde a década de 1960. No entanto, Bolívar (1998) aponta que a incorporação da teoria crítica na Espanha se deu mais por meio dos escritores estadunidenses do que dos textos já traduzidos. Isso reitera o que já foi afirmado aqui, isto é, os processos de hibridação educacional muitas vezes não seguem uma trajetória linear. As ideias de um autor podem permanecer despercebidas, mesmo estando próximas por muitos anos; muitas vezes é necessário que um agente externo as revele e demonstre seu valor. Um exemplo marcante disso é o caso de Paulo Freire. Embora as editoras espanholas tenham traduzido sua obra desde o início dos anos de 1970, foi por intermédio de Henry Giroux que os curriculistas espanhóis verdadeiramente descobriram o pensador brasileiro (Bolívar, 1998).
A obra de Gimeno Sacristán (1988), El Curriculum: una reflexión sobre la práctica, possivelmente seja aquela que teve o maior impacto na Ibero-América. Esse trabalho, como nenhum outro de sua época, inspirou-se no pensamento curricular dos principais especialistas dos Estados Unidos e do Reino Unido para oferecer uma proposta teórica original. Além da ligação com a prática, a obra enfatiza que o currículo é uma seleção cultural. Essa ideia parece ter sido inspirada na escola inglesa de currículo, especialmente no trabalho de Denis Lawton (1976), Classe, cultura e currículo (Londres: Routledge). Além disso, outro livro de Gimeno Sacristán (1982), A Pedagogia por objetivos: obsessão pela eficiência (Ediciones Morata), lembra a obra do historiador estadunidense Raymond Callahan (1962), Educação e o culto da eficiência (University of Chicago Press). Essas obras, entre muitas outras, são citadas em seu livro sobre currículo. Parece não haver evidências na Espanha de que a corrente pós-crítica esteja sendo cultivada.
5.6 México
No México, ao contrário de seus pares ibero-americanos, o termo plan de estudios predominou por muitos anos para nomear o currículo; nos últimos anos, o uso da palavra currículo ou currículum está se tornando mais frequente. O campo não foi iniciado e desenvolvido na educação básica, como ocorreu em outros países, mas, sim, na educação superior. Ángel Díaz Barriga sustenta que esse fenômeno ocorreu devido à forte centralização da educação básica.
A primeira obra sobre currículo que teve impacto visível no México foi a de Glazman e De Ibarrola, publicada pela primeira vez em 1974 (Glazman; De Ibarrola, 1978). Esse livro foi, sem dúvida, o mais influente durante os anos de 1970 e início dos anos de 1980. Não se trata de uma adaptação ortodoxa do modelo tyleriano ou de Taba. As autoras não as citam. A obra é mais um híbrido e assemelha-se mais à abordagem conceitual-empiricista descrita por Pinar (1975) do que ao modelo tyleriano tradicional. Os três aspectos básicos da proposta mexicana de currículo residem na redação comportamental dos objetivos, no planejamento sistêmico do ensino, uma forte ênfase na análise de conteúdo como técnica para o planejamento e desenvolvimento do currículo, e na avaliação curricular.
No México, uma parte importante da teoria crítica do currículo chegou por meio de acadêmicos argentinos exilados, os quais foram influenciados pela leitura de Gramsci, de pedagogos neomarxistas como o francês Georges Snyders e o italiano Mario Manacorda, além dos sociólogos latino-americanos (brasileiros, argentinos e chilenos) da teoria da dependência, que afirmavam que os países desenvolvidos eram o centro e a América Latina a periferia. Posteriormente, as posições críticas foram enriquecidas com as contribuições da Escola de Frankfurt e de outros autores neomarxistas (García Garduño, 2011).
A hibridização entre os jovens acadêmicos argentinos, que se viram obrigados a deixar o país durante os anos de 1975 a 1977 devido à ditadura militar, e os acadêmicos mexicanos, principalmente da Universidade Nacional Autónoma de México, foi um processo significativo. Destacam-se nomes como Azucena Rodríguez, Alfredo Furlán, Eduardo Remedi e Roberto Follari entre os mais notáveis desse intercâmbio. Em conjunto com o mexicano Ángel Díaz Barriga, eles deram início a um questionamento do modelo curricular técnico-racional.
O hibridismo ocorreu quando a crítica à didática instrumental realizada por Eldestein e Rodríguez (1972), juntamente com as leituras de autores europeus trazidas por esses curriculistas argentinos para o México, foi transposta para a crítica da racionalidade tyleriana. Em outras palavras, a crítica à didática instrumental fundiu-se com a crítica à tecnologia educacional da época, dando origem à teoria crítica do currículo. Esse híbrido ArgentMex posteriormente incorporou as contribuições da teoria crítica anglo-saxônica. Essa hibridez é claramente expressa na obra mais representativa da década de 1980, Didáctica y currículo (Díaz Barriga, 1984).
A corrente pós-crítica e pós-moderna no México foi introduzida no final dos anos de 1980, quando Alicia de Alba começou a questionar a teoria crítica. Sua obra (De Alba, 1986, 1991) é um híbrido que combina autores críticos como Giroux e McLaren com autores pós-modernos e pós-estruturalistas. No México, a corrente pós-crítica não se espalhou como no Brasil. De Alba e seu grupo de pesquisa são os representantes mais proeminentes.
6 CONCLUSÕES
O conceito de hibridismo, originalmente proposto por García Canclini, mas utilizado por estudiosos brasileiros do campo do currículo, desempenha um papel fundamental na compreensão das complexas interações e trajetórias que moldaram o campo curricular na Ibero-América. Foi a partir da hibridização das ideias de pedagogos europeus e dos estudos de John Dewey que uma série de movimentos curriculares emergiu, cada um refletindo as nuances e as demandas específicas de seus contextos. Desse modo, o hibridismo estruturou a forma como o currículo foi desenvolvido e compreendido em cada país.
Considerando-se o exposto, este estudo sobre o hibridismo curricular na Ibero-América desvenda um panorama multifacetado e em constante transformação. Ao analisarem-se os processos de hibridização em países como Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Espanha e México, encontra-se uma complexa teia de influências e trajetórias que moldaram a evolução dos estudos de currículo nesses países. Observa-se como diferentes correntes pedagógicas se entrelaçaram e se metamorfosearam ao longo do tempo, evidenciando a riqueza e a diversidade das experiências educacionais. É importante salientar que a hibridização curricular não se deu de forma uniforme, pois a incorporação de autores, como Tyler, da teoria crítica e da pós-crítica foi mediada por fatores históricos, políticos e socioculturais específicos de cada país, resultando em diferentes interpretações e abordagens.
Inicialmente, a influência de Ralph Tyler foi predominante na introdução dos princípios do planejamento curricular na Ibero-América, embora sua interpretação tenha variado consideravelmente de acordo com o contexto de cada país. Enquanto alguns adotaram esses princípios de maneira mais ortodoxa, outros se insurgiram com críticas e abordagens alternativas, frequentemente inspiradas por pensadores locais e movimentos pedagógicos emergentes.
A influência de Tyler e do planejamento curricular em muitos países se deu por meio da assistência de agências do governo dos Estados Unidos. No entanto, a adoção da teoria crítica seguiu trajetórias diversas. Enquanto no Brasil e na Espanha ela foi diretamente introduzida por autores anglo-saxônicos, na Colômbia, emergiu como uma reação à rigidez do modelo tyleriano. Já na Argentina e no México, a crítica à didática instrumental originou uma abordagem híbrida, combinando elementos da teoria crítica anglo-saxônica com as realidades locais. Essa chegada da teoria crítica do currículo foi marcada por trajetórias divergentes. O processo de hibridização resultou, portanto, no surgimento de novas perspectivas e abordagens críticas, desafiando as concepções tradicionais de currículo.
Por sua vez, as abordagens pós-críticas emergem como um novo capítulo na hibridização curricular da Ibero-América, representando uma continuação da evolução das teorias curriculares na região. Enquanto, no Brasil essa corrente se estabelece de forma consistente e abrangente. Já em países como Argentina e México, sua presença ainda é incipiente, mas promissora. No Brasil, os estudos pós-críticos se destacam pela análise das relações de poder na educação e pela busca de perspectivas que desafiam e questionam as normas estabelecidas, superando as limitações da teoria crítica tradicional e incorporando elementos de outras correntes, como a pós-modernidade, o pós-estruturalismo, os estudos culturais, entre outras.
Embora ainda em desenvolvimento em outros países da Ibero-América, a corrente pós-crítica tem o potencial de enriquecer o debate curricular e contribuir para a construção de uma educação mais justa, democrática e inclusiva. Em suma, essa corrente emerge como um movimento em ascensão na Ibero-América, com o Brasil liderando sua aplicação, abrindo caminho para novas perspectivas e debates sobre o currículo e contribuindo para a evolução contínua dos estudos curriculares.
Nesse contexto, nossas análises revelam características marcantes do processo de hibridização. Uma delas é a notável diversidade e heterogeneidade da região, refletida nas múltiplas concepções curriculares presentes, cada uma influenciada por diferentes culturas, histórias e contextos socioeconômicos. Esse cenário dinâmico e multifacetado evidencia a necessidade de adaptação dos currículos às constantes mudanças sociais e culturais em curso. Diante dessa realidade, a hibridização curricular surge como uma resposta às demandas por uma educação contextualizada, que promove a integração de saberes e experiências variadas, preparando os estudantes para um mundo em constante transformação.
Além disso, é crucial reconhecer que a contextualização das práticas curriculares vai além de simplesmente ajustar o ensino às características locais. Trata-se, na verdade, de um desafio para transformar as estruturas de poder subjacentes. Essa abordagem implica ir além das necessidades e dos interesses individuais dos alunos, buscando compreender e questionar os valores e as tradições arraigados em suas comunidades. O estímulo ao diálogo intercultural e à troca de experiências não se limita a enriquecer o currículo com uma variedade de perspectivas, mas também serve como um espaço para o confronto e a desconstrução das hierarquias culturais, questiona as relações de poder que moldam as práticas educacionais, visando criar espaços mais democráticos e inclusivos de aprendizagem.
Apesar dos avanços realizados, é importante reconhecer que o estudo da hibridização curricular na Ibero-América ainda está em estágios iniciais e necessita de pesquisas mais aprofundadas. Ampliar o conhecimento sobre o tema e compreender melhor suas implicações para a prática docente são passos essenciais para o desenvolvimento de currículos contextualizados. Investir em pesquisas nessa área é fundamental para garantir que a educação na região esteja sempre alinhada com as necessidades e realidades locais.
Em síntese, o hibridismo curricular na Ibero-América se revela como um fenômeno dinâmico e em constante transformação, resultante da interação criativa entre influências globais e contextos locais. Esse contínuo processo de hibridização e reinvenção reflete não apenas a vitalidade, mas também a complexidade do campo curricular, oferecendo oportunidades para o desenvolvimento de abordagens contextualizadas que possam atender aos desafios e às demandas específicas de cada país. A compreensão desses processos de hibridização é de suma importância para orientar políticas curriculares que promovam uma educação centrada na justiça social para todos os estudantes na Ibero-América.