1 PALAVRAS INICIAIS
Este artigo se refere ao recorte de uma pesquisa de doutorado concluída no ano de 2022, realizada pelo PPGED/ICED/UFPA, que teve como objetivo central analisar a contribuição do lúdico no Currículo do Curso de Pedagogia do campus de Caxias-Uema e suas possíveis implicações na formação do professor de Educação Infantil. Para interpretar, compreender e abstrair categorias da pesquisa tais como currículo, ludicidade, educação infantil e pedagogia apoiamo-nos no pressupostos teóricos-metodológicos do Materialismo Histórico-Dialético e na Psicologia Histórico-Cultural.
Desenvolver essa investigação nos mobilizou a perquirir e buscar compreender alguns enfoques curriculares que norteiam a formação inicial do professor, e mais especificamente a formação do professor de educação infantil, tomando como referência as políticas curriculares de formação que se apresentam no contexto brasileiro desde os anos de 1990 até o presente momento. Desse modo, o objetivo deste artigo é apresentar uma discussão teórico-reflexiva acerca da Base Nacional Comum Curricular - BNCC (2017) e da Base Nacional Comum de Formação de Professor - BNC-FP (2019), destacando especialmente as configurações que as referidas Bases trazem para a formação de professores da educação básica, notadamente a formação do professor de educação infantil.
O presente artigo se insere no quadro teórico-metodológico da pesquisa qualitativa, tendo como base a pesquisa bibliográfica (Minayo, 2012; Ludke, André, 1986). Após o desenvolvimento das leituras dos textos escolhidos, seguidas de fichamentos e quadros esquemáticos, foi possível organizar, com um considerado grau de aprofundamento das unidades de sentido que foram previamente selecionadas, a análise do conteúdo que deu materialidade a esta reflexão (Medeiros, Abreu, 2021), situando-nos, especificamente, no campo da formação docente, com enfoque no currículo da formação inicial de professores e professoras da educação infantil.
O referencial teórico que subsidiou essa discussão foi pautado nas legislações que versam sobre a instituição organizacional das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (Resolução CNE/CP Nº 2, de 22 dezembro de 2017), e Diretrizes Curriculares da Formação de Professores (Resolução CNE/CP Nº 2, de 20 de dezembro de 2019). Além disso, pesquisadores e estudiosos tais como Albino e Silva (2019), Teles (2018), Freire, (1987, 2015), Giroux (1997), Manacorda (2010), entre outros que discutem a temática, também formaram o escopo teórico da discussão em tela.
As análises textuais aqui empreendidas nos possibilitaram compreender que toda formação docente, com realce para a formação do professor e da professora de educação infantil, além de ser construída social e historicamente antes e durante o percurso profissional do professor, (Medeiros, Cabral, 2006) também é influenciada por legislações nacionais que a regem e a orientam, e ainda, por organismos multilaterais fortalecidos por acordos bilaterais de uma determinada política de governo.
O texto está organizado, inicialmente, por essa seção introdutória na qual apresentamos uma breve contextualização da temática a ser tratada, demarcando, contudo, o nosso lugar de fala, seguido de duas seções temáticas. Na primeira, discorremos acerca dos currículos de formação de professores regidos pela lógica das competências e seus impactos na prática docente. Na segunda, apresentamos uma discussão acerca das configurações curriculares de formação de professores na perspectiva do que orientam as bases curriculares vigentes, a BNCC e a BNC-FP. Por último, apresentamos, em nossas considerações finais, o que acreditamos ser mais apropriado à formação de professores, considerando a égide curricular que necessariamente permeia essa formação e a direciona.
2 A LÓGICA DAS COMPETÊNCIAS NA FORMAÇÃO DOCENTE: UMA EXIGÊNCIA LEGAL PARA ATENDER ÀS NECESSIDADES DO CAPITAL
Desde a última década do século anterior, mais precisamente a partir da promulgação da atual Ldben (1996), os sistemas de ensino brasileiro têm sido regidos pela lógica das competências. Nesse sentido, o curso de Pedagogia, salvaguardadas as controvérsias e contradições em seu interior, é o responsável pela formação de professores/as da Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental, portanto, organiza-se e se estrutura, em suas bases curriculares, mediante um conjunto de dispositivos legais (Diretrizes, Resoluções, Decretos) que visam “adequar a formação das novas gerações às exigências postas pelas transformações no mundo do trabalho” (Freitas, 2002, p. 150). Nesse cenário, o conteúdo e a organização das instituições de formação de professores/as passam a ter sua centralidade na garantia do desenvolvimento de uma Educação Básica que corresponda a essa necessidade.
A formação de professores/as no Brasil, para corresponder à necessidade posta pelas transformações do mundo do trabalho, também tem se fundamentado, historicamente, na lógica das competências. A título disso, notamos que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica em nível Superior, estabelecidas a partir do Parecer do CNE/CP nº 9, de 08 de maio de 2001, que apresenta a proposta de formação referendada na Resolução CNE/CP nº 1, de 18 de fevereiro de 2002, são importantes marcos legais que enquadram a formação de professores/as nessa perspectiva. Conforme esses dispositivos legais, o eixo central da formação de professores/as é norteado pala aquisição de competências e habilidades pedagógicas, sendo, o projeto pedagógico dos cursos de licenciaturas instrumento privilegiado, por sua flexibilidade, para abrigar uma organização curricular capaz de prever e materializar no processo formativo, as competências que se esperam do/a professor/a (Silva, 2006).
É importante destacar que no Art. 6º da Resolução anteriormente mencionada, a ênfase se volta para a importância das competências a serem consideradas na construção dos projetos pedagógicos dos cursos de formação docente, fortalecendo cada vez mais a ideia da formação por competências. Sendo então seis competências que devem ser consideradas quando se pensa em elaboração de projetos pedagógicos de cursos de formação de professores, aquelas referentes: (a) ao comprometimento com os valores inspiradores da sociedade democrática; (b) ao papel social da escola; (c) ao domínio dos conteúdos a serem socializados, aos seus significados em diferentes contextos e sua articulação interdisciplinar; (d) ao domínio do conhecimento pedagógico; (e) ao conhecimento do processo de investigação que possibilitem o aperfeiçoamento da prática pedagógica e (f) as referentes ao gerenciamento do próprio desenvolvimento profissional (Brasil, 2002). Competências essas eminentemente técnicas e pragmáticas para a formação profissional do professorado brasileiro.
Assim, a lógica das competências é fortalecida pela concepção de educação voltada para a mobilização ou transferência de saberes, ou seja, transferência de recursos para o agir imediato, para a resolução de problemas práticos da vida diária dos professores e dos alunos. Nessa mesma direção, Perrenoud (1998) afirma que competência é a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos para solucionar com pertinência e eficácia uma série de situações complexas e inéditas do cotidiano. Para esse autor, a transferência e a mobilização das capacidades não são inatas, é preciso trabalhá-las e treiná-las. Nessa perspectiva, o professor toma a sua ação docente, como treineiro para o aluno.
Para Perrenoud (1998, p. 208), competência se refere a um saber-mobilizar, a um saber como. É vista como a capacidade de mobilizar um conjunto de recursos e conhecimentos, esquemas de avaliação e de ação, ferramentas e atitudes, que possibilitam ao aluno o enfrentamento com eficácia de situações complexas e inéditas do cotidiano, percebemos daí o viés pragmatista e tecnicista dessa abordagem na ação docente. Há que se destacar que essa noção de formação possui três dimensões: os saberes conceituais, procedimentais e atitudinais; os esquemas de ação que mobilizam esses saberes e os esquemas que não mobilizam nenhum saber (Oliveira, Bueno, 2013), as quais serão melhor detalhadas posteriormente.
Oliveira e Bueno (2013) explicam que Perrenoud toma de empréstimo esses esquemas, em Piaget e Bourdieu, para explicar como se processa o domínio das competências no âmbito da formação. Assim, tais esquemas, “[...] são tudo aquilo que, em uma ação, pode ser transposto, generalizado ou diferenciado de uma situação com relação à seguinte, ou seja, tudo o que existe de comum nas diversas repetições ou aplicações da mesma ação. (Piaget, 1973 apud Perrenoud, 2002, p. 38)”, que ao serem considerados em conjunto, formam o habitus, isto é “[...] um pequeno grupo de esquemas que permitem gerar uma infinidade de práticas adaptadas a situações que sempre se renovam sem nunca se constituir em princípios explícitos” (Bourdieu, 1972 apud Perrenoud, 2002, p. 39). Desse modo, esses “esquemas (ou disposições) guiam tanto a ação concreta quanto a do pensamento” (idem, ibidem). No que se refere às competências, essas são vistas como disposições do habitus e a formação profissional, como a do professor, como um processo de socialização. A partir dessa perspectiva, Oliveira e Bueno (2013, p. 881) apoiadas em Perrenoud (2002) afirmam que “não são os saberes que guiam a mobilização de outros saberes, mas aquilo que, de acordo com Piaget e Bourdieu, [denomina-se] esquemas de ação e de pensamento, os quais formam o habitus do sujeito”.
Destarte, os documentos que orientam os cursos de formação, expressam a ideia de que sua grande tarefa é possibilitar ao/a futuro/a professor/a da Educação Básica o domínio dos conteúdos específicos de suas ciências e repassá-los com competência aos/as alunos/as, garantindo a estes o aprender a aprender, assemelhando-se à perspectiva do modelo de formação docente regido pela simetria invertida (Oliveira; Bueno, 2013), que nas palavras de Mello (2000, p. 102):
É imprescindível que o professor que se prepara para lecionar na educação básica demonstre que desenvolveu ou tenha oportunidade de desenvolver, de modo sólido e pleno, as competências previstas para os egressos da educação básica, tal como estabelecidos nos artigos 22, 27, 32, 35 e 36 da LDB e nas diretrizes curriculares nacionais da educação básica. Isso é condição indispensável para qualificá-lo como capaz de lecionar na educação infantil, no ensino fundamental ou no ensino médio.
Conforme expressa a autora, nesse modelo de formação, as competências não podem ser reduzidas a princípios abstratos nem se restringir apenas a preceitos legais, pois, para que tenham efeito formativo concreto, é preciso que o/a graduando/a domine-as, por conseguinte, exerça-as posteriormente em seu trabalho na escola.
Nesse sentido, Mello (2000, p. 102) ainda afirma:
[...] ninguém facilita o desenvolvimento daquilo que não teve oportunidade de aprimorar em si mesmo. Ninguém promove a aprendizagem de conteúdos que não domina, a constituição de significados que não compreende nem a autonomia que não pôde construir.
De certa forma, até concordamos com a autora de que não se pode ensinar aquilo que não sabemos, porém não podemos esquecer que o processo de ensino e aprendizagem é um processo de mão dupla, em que aprendemos ao ensinar, e que, aquele que aprende também ensina ao aprender, ademais, prescindindo daí um ato político-social, cuja função é libertar pela conscientização (Freire, 2015). Essa é a ideia de processo ensino-aprendizagem que nos referenda, enquanto docentes. Ressaltamos que essa compreensão do ato de ensinar e aprender não se evidencia no domínio de competências e habilidades por si mesmas, para o ser professor ou professora.
É importante que se diga que outras concepções se contrapõem a essa forma de pensar a formação de professor/a pautada nas pedagogias do aprender a aprender, do/a professor/a reflexivo/a, na lógica das competências, enfim, na formação pelo habitus, como por exemplo a Teoria Histórico-Cultural elaborada por Vygotsky, vez que, a formação humana e nessa mesma esteira a formação docente, quando fundamentadas nesta concepção teórica há como possibilidade o desenvolvimento da personalidade consciente (Teixeira, 2022), depreendendo daí uma formação omnilateral de homem, portanto, bem mais completa do que uma formação que priorize apenas o desenvolvimento de competências e habilidades. Há que se notar que nessa perspectiva teórica, competências e habilidades serão também desenvolvidas, mas elas vêm como acréscimo ao desenvolvimento total do ser em formação.
3 A CENTRALIDADE DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA NA BNC-FP E BNCC
Conforme discutimos na seção anterior, a concepção curricular de educação pautada na abordagem da epistemologia da prática e na lógica do ensino instrumental, predominantemente focado no desenvolvimento de competências e habilidades, tem dominado o campo educacional nas mais diversas dimensões desde os anos de 1990, tendo sido influenciado enormemente por políticas internacionais e pelos organismos multilaterais, (Banco Mundial, BIRD, OCDE, entre outro) que buscavam tanto planejar a educação como aplicar investimentos educacionais em países em desenvolvimento, tendo em vista a formação de mão de obra especializada para o mercado de trabalho, que estava em ascensão em nível mundial, e nesse contexto de transformações globalizadas encontrava-se o Brasil, como um dos países em desenvolvimento, portanto, apto aos acordos multilaterais mencionados.
Na dimensão formação de professores/as da educação básica, e nessa mesma perspectiva a formação de professores/as da educação infantil, eixos centrais do estudo em tela, apesar de alguns avanços, na luta por uma formação progressista, e por que não dizer, voltada para a formação humana na sua totalidade, (tanto na perspectiva do professor que ensina e aprende quanto do aluno que aprende e ensina), é perceptível que, atualmente, há ainda um constante retrocesso, um olhar para o retrovisor, nessa área.
Esse olhar para o retrovisor é notado quando observamos a atual BNC-FP (2019) que se fundamenta e se organiza a partir da BNCC (2017), ambas, pautadas na epistemologia da prática e na lógica do ensino por competências, não estando voltadas para esse tipo de formação ao qual nos referimos anteriormente, ou seja, a formação omnilateral (Manacorda, 2010). Pois, essas Bases têm uma característica pragmática e instrumental que desconsidera o processo educativo em sua totalidade, não levando em conta as contradições e múltiplas determinações sociais, políticas, econômicas, pessoais, circunstanciais, dentre outras caracterizações que circunscrevem esse contexto de formação.
Albino e Silva (2019) afirmam que a proposta da BNC-FP em uma versão preliminar publicada em dezembro de 2018 traz em suas primeiras páginas a seguinte menção: “[...] a BNCC deverá ser, daqui em diante, uma referência para a formação inicial e continuada dos professores. Abre-se assim uma janela de oportunidade para debater alguns dos entraves e dar qualidade à formação do professor brasileiro”. (Brasil, 2018, p. 7). Esse alinhamento está previsto no Art. 5, § 1º, e no Art. 17, da Resolução do CNE/CP Nº 2, de 22 de dezembro de 2017, que instituiu a BNCC (Brasil, 2017). Na verdade, essas oportunidades para o debate não ocorreram de fato, visto que sua aprovação não ocorreu de forma tão harmoniosa, quanto parece, entre os diversos segmentos do campo educacional, em especial, fez surgir inúmeros questionamentos, sobretudo, das entidades científicas e acadêmicas.
Destarte, a Anped, a Anfope, a Anpae, o Forumdir e o Fórum Nacional em Defesa da Formação do Professor se manifestaram contrariamente à Base e reafirmaram uma base comum nacional para os cursos de formação de professores como garantia de unidade para a multiplicação de experiências curriculares, sem prejuízo do reconhecimento das Instituições de Ensino Superior e dos currículos dos estudantes (Albino, Silva, 2019).
Em manifesto elaborado pela Anfope e pelo Forumdir, essas instituições deixam claro suas posições contrárias a essa proposta de formação expressa na BNC-FP e denunciam seu caráter impositivo e autoritário, uma vez que não se estabeleceu o diálogo necessário com os principais agentes da formação de professores. Indicam, ainda, o retrocesso da proposta, por entendê-la de forma fragmentada com ênfase na retomada de concepções ultrapassadas, assentadas centralmente na noção de competências e habilidades.
Na perspectiva de tal defesa, o manifesto denuncia, ainda, a ausência de dois princípios fundamentais à qualidade da formação docente no texto da BNC-FP,
Cabe destacar dentre os princípios da base comum nacional, dois explicitamente desconsiderados na proposta ora apresentada, e cuja ausência compromete sua qualidade: (1) a sólida formação teórica e interdisciplinar sobre o fenômeno educacional e seus fundamentos históricos, políticos e sociais, que não podem ser dissociados do domínio dos conteúdos da educação básica, se ensejamos criar condições para o exercício da análise crítica da sociedade brasileira e da realidade educacional; e (2) a unidade teoria-prática atravessando todo o curso de modo a garantir o trabalho como princípio educativo na formação profissional (Anfope, 2018, p. 2).
É importante destacar em que contexto e com que intencionalidades são forjados os ideais para a constituição da BNCC (2017) e nessa mesma esteira a BNC-FP (2019). A partir disso, e nos referenciando em Albino e Silva (2019) afirmamos que para as referidas bases a noção de competência tem o sentido de mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), de habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais) e de atitudes e valores que buscam resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho (Brasil, 2017). Acrescentando ainda a esse entendimento a vinculação à preservação da natureza, conforme as demandas da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). Como podemos perceber, a educação brasileira continua a ser ditada e editada por organismos internacionais. Nessa perspectiva, “a formação humana é subalternizada a partir de uma série de condicionantes, sobretudo de ordem internacional” (Albino, Silva, 2019, p. 142). Nesse sentido, o currículo por competências se configura como necessário, mas não por uma necessidade nacional, focada na realidade interna de se pensar a formação humana integralmente, mas como resposta a uma demanda mundial.
Ressaltamos que a proposta de formação expressa na BNC-FP retoma, em grande medida, princípios e direcionamentos contidos na Resolução nº 1 de 18 de fevereiro de 2002, a qual nos referimos anteriormente. Por isso afirmamos que essa retomada é um retrocesso, visto que a Resolução em pauta fundamenta a formação de professores, essencialmente, na lógica das competências (art. 6º), portanto, focada na prática imediata. É importante que se diga, ainda, que enquanto sua vigência foi de 13 anos, sendo revogada somente em 2015, pela Resolução do CNE/CP nº 2, de 1º de julho de 2015 (Brasil, 2015), que passou a normatizar as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduandos e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada, essa teve uma curta duração, quatro anos apenas, indo de 2015 a 2019, quando surge a atual BNC-FP e suas Resoluções.
Observamos que entre os dispositivos jurídico-normativos que instituíram ou instituem as políticas de formação de professores, é a Resolução n.º 2 de 2015 que expressa a concepção de docência a qual se aproxima do que pensamos ser a docência, e assim a defendemos, nos nossos campos de atuação docente. Desse modo, em seu Art. 2, § 1º compreende a docência como sendo:
ação educativa e como processo pedagógico intencional e metódico, envolvendo conhecimentos específicos, interdisciplinares e pedagógicos, conceitos, princípios e objetivos da formação que se desenvolvem na construção e apropriação dos valores éticos, linguísticos, estéticos e políticos do conhecimento inerentes à sólida formação científica e cultural do ensinar/aprender, à socialização e construção de conhecimentos e sua inovação, em diálogo constante entre diferentes visões de mundo (Brasil, 2015, p. 03).
No texto da normativa acima, a profissão de professor/a se associa a um processo pedagógico intencional e teórico-metodológico, que envolve conhecimentos específicos que legitimam a especificidade do trabalho docente. Ao tempo em que tais Diretrizes colocam o trabalho docente numa instância de intencionalidades, partem também do pressuposto de que o professor/a reflete e planeja sua ação docente antes de agir (Teles, 2018). Tomando como referência esses pressupostos, entendemos que os/as professores/as não são meros operadores ou executores de técnicas ou receituários pré-estabelecidos, esses profissionais também constroem, são partícipes do seu fazer docente. Notamos, porém, que esse entendimento, no âmbito da concepção de docência, se distancia da formação de professor pautada na lógica por competências como apregoa a BNC-FP.
3.1 A formação de professores da educação infantil: diálogos e reflexões a partir da BNCC e BNC-FP
Diante do que já foi dito até aqui, cabe nos perguntar: o que diz a BNC-FP sobre a formação do/a professor/a de Educação Infantil? Na verdade, sem fugir à regra das legislações anteriores, esta Base, em consonância com a BNCC, define no Art. 2º da Resolução CNE/CP nº 2, de 20 de dezembro de 2019 como pressuposto da formação docente o desenvolvimento das competências gerais previstas na BNCC - Educação Básica, tendo em vista tanto o desenvolvimento das aprendizagens essenciais a serem garantidas aos/as licenciandos/as, quanto aos aspectos intelectual, físico, cultural, social e emocional de sua formação, tendo como perspectiva o desenvolvimento pleno das pessoas, visando uma educação integral (Brasil, 2019).
No âmbito do desenvolvimento das competências gerias previstas na BNCC e sua relação para a formação dos/as professor/es, a Resolução (CNE/CP nº 2/2019) que define a BNC-FP, requer do/a licenciando/a, o desenvolvimento das correspondentes competências gerais docentes. Além das competências gerais docentes, a Base define as competências específicas e as habilidades correspondentes a elas. Desse modo, as competências específicas se organizam em torno de três dimensões fundamentais para a formação docente: o conhecimento profissional, a prática profissional e o engajamento profissional. Com isso, podemos observar que as referidas Bases se fundamentam na noção de competências segundo a ideia de Perrenoud (1998), ou seja, têm o sentido de mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), de habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais) e de atitudes e valores que buscam resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho.
Mais especificamente, sobre a formação inicial do/as professor/as de Educação Infantil inserida no curso de Pedagogia, a referida Resolução define no seu § 2º do Art. 13 parâmetros e aspectos específicos a essa área, com vista à organização curricular dos Projetos Pedagógicos de Curso das instituições de Ensino Superior. A partir disso, e nos termos da Resolução, fica definido para os cursos de licenciatura, no que se refere à formação de professores da Educação Infantil, uma carga horária de 1600 horas a ser integralizada à carga horária total do curso (3.200h) conforme definido na mesma Resolução em seu Art. 10. Sendo que na totalidade dos cursos de licenciatura deve ser considerado o desenvolvimento das competências profissionais (gerais e específicas) explicitadas no Capítulo I da BNC-FP. (Brasil, 2019).
No tocante às 1.600h destinadas aos estudos sobre Educação Infantil, no contexto da formação inicial do professor, essas devem contemplar três eixos: (i) as especificidades das escolas de Educação Infantil (creche ou pré-escola), no que se refere à organização, gestão e rotinas; (ii) as particularidades do processo de aprendizagem das crianças nas faixas etárias da creche e da pré-escola; (iii) os princípios didáticos de planejamento, encaminhamento e avaliação de propostas pedagógicas que tenham como referência os eixos estruturantes de brincadeiras e interações.
Conforme dito, a BNC-FP é essencialmente alinhada à BNCC. Nesses termos, ela considera importante os campos de experiência da Educação Infantil definidos na BNCC, para compor a formação do/a licenciando/a em Pedagogia. Vale destacar que a BNCC organizou esses campos de experiências em cinco grupos: o eu, o outro e o nós; corpo, gestos e movimentos; traços, sons, cores e formas; escuta, fala, pensamento e imaginação; espaços, tempos, quantidades, relações e transformações e que a cada campo de experiência são delimitados objetivos de aprendizagem e desenvolvimento, que contemplam comportamentos, habilidades e conhecimentos a serem construídos pelas crianças a partir de interações e brincadeiras (Pasqualini; Martins, 2020).
Na perspectiva das referidas Bases, é na Educação Infantil que ocorrem as aprendizagens mais significativas da criança, bem como seu desenvolvimento, e nesse ponto concordamos com o que preconizam tais documentos. Assim, os objetivos de aprendizagem e o desenvolvimento que contemplam comportamentos, habilidades e conhecimentos a serem construídos pelas crianças a partir de interações e brincadeiras ao estarem vinculados aos campos de experiências (Pasqualini; Martins, 2020), asseguram às crianças os direitos de conviver, brincar, participar, explorar, expressar-se e conhecer-se, conforme preconizado nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2010). Desse modo, os campos de experiência da Educação Infantil são considerados arranjos curriculares que acolhem as situações e as experiências concretas da vida cotidiana das crianças e seus saberes, entrelaçando-os aos conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural (Brasil, 2019).
Pasqualini e Martins (2020), reconhecem o mérito e a amplitude da abrangência da Educação Infantil na BNCC e sua equivalente importância para a composição dos currículos de formação de professores/as da Educação Infantil, uma vez que os campos de experiência deram ênfase a aspectos como, a atitude de cuidado, acolhimento e respeito dos adultos para com as crianças; o posicionamento de combate às desigualdades sociais (gênero, raça, etnia, linguagem e outras) típicas da nossa sociedade e reproduzidas no contexto escolar; a definição da inclusão de crianças com diversas deficiências nos múltiplos momentos da rotina escolar; indicativos de ética, estética, zelo, cuidados em ações como a escuta e o olhar atentos às crianças; a sensibilidade para identificar e acolher suas demandas e necessidades; dentre tantos outros aspectos.
Porém, é importante ressaltarmos que é preciso se ter um olhar mais cuidadoso à diversidade de carências, de diversas ordens, da realidade das escolas (públicas e privadas) da educação infantil brasileira, pois, é comum ainda encontrarmos em seu interior condutas de subjugamento à criança pelo medo, ou seja, controle comportamental por ameaças, broncas ou punições; escolas que alimentam e reproduzem desigualdades de várias ordens, e impõem às crianças rotinas esvaziadas de conteúdo cultural e tarefas sem sentido, resultando daí uma experiência escolar empobrecida (Pasqualini; Martins, 2020). Conforme já falamos anteriormente, a Teoria Histórico-Cultural preconiza a educação como um projeto para a formação plena da humanização de toda criança. Entendemos que essa teoria, eminentemente, conclama e exige do/a professor/a superação e combate de tais práticas que produzem e reproduzem o tempo todo o fracasso da Educação Infantil.
A prática pedagógica de orientação histórico-cultural e histórico-crítica comunga plenamente com o que está identificado na BNCC como direito a conviver, brincar, participar, explorar, conhecer-se e se expressar, porém a divergência, segundo Pasqualini e Martins (2020, p. 431), no que também concordamos, consiste no aspecto “assistemático e minimalista do arranjo curricular por campos de experiência”, especificamente no que se refere aos conteúdos, “[...] derivando daí diferenças em termos do horizonte de formação [...]” esperada para as crianças, e “[...] da própria compreensão do que seja a experiência humana no mundo”.
A partir do destaque acima, é questionável que entre o rol de direitos de aprendizagem da criança expressos na BNCC, não tenha o direito a conhecer o mundo. A nosso ver, esse direito deveria estar explicitado entre os demais direitos, pois, o conhecimento do mundo, da cultura historicamente produzida e acumulada nesse mundo, precisa estar presente desde muito cedo no processo de formação do indivíduo, especialmente quando se trata da formação omnilateral de homem. Conclamamos, que a Educação Infantil se configura como o primeiro momento de sistematização e possibilidades de acesso do conhecimento de mundo à criança.
Segundo os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, um currículo, notadamente o currículo de Educação Infantil, voltado para a formação omnilateral da criança, precisa que na sua formulação sejam levados em consideração objetivos de ensino relevantes à promoção de desenvolvimento em suas máximas possibilidades contemplados por todo o período de vivências múltiplas da criança na Educação Infantil (Pasqualini; Martins, 2020), permitindo amplamente a efetivação de seus direitos (direito a conviver, brincar, participar, explorar, conhecer-se, se expressar e conhecer o mundo) de aprendizagem.
Entendemos, contudo, que a concepção neoliberal de sociedade se articula ao projeto educativo subjacente à BNCC e à BNC-Formação de Professores, e no que tange ao contexto da Educação Infantil, expressa-se como uma cortina de fumaça, a partir do ideário antiescolar, nem sempre percebido. Nesse sentido, Pasqualini e Martins (2020) afirmam que é nítida, nos atuais documentos de orientação curricular para a Educação Infantil, a opção por não se utilizar termos como escola, ensino, aula, aluno. “Não se trata de pensar em aulas de educação física na educação infantil” (Brasil, 2018, p. 34), alerta o capítulo dedicado ao campo de experiência denominado “corpo, gestos e movimento”. E ainda: “Atitudes como a de transmissão de conhecimentos já sistematizados na cultura que deverão ser aprendidos pelas crianças também precisam ser superadas” (p. 8). No nosso entendimento, os conteúdos expressam a cultura humana que deve ser apropriada pelo/a aluno/a na escola, com a mediação do professor, desde a educação infantil.
Tomando como referência Pasqualini e Martins (2020), afirmamos que no contexto das Bases (BNCC e BNC-formação) o trabalho pedagógico e o conteúdo escolar ficam em segundo plano, sobrepondo-se, as experiências espontâneas infantis. É nesse contexto que podemos compreender a proposição do currículo por campos de experiência, em detrimento das áreas do conhecimento. No entanto, é importante que expressemos nossa compreensão e até mesmo defesa, qual seja, que não existe atividade humana isenta de conteúdo, inclusive as atividades escolares da criança (Pasqualini; Martins, 2020).
Desse modo, é imprescindível garantir como direito à criança, o acesso aos conteúdos da cultura, que deverão ser o esteio de suas experiências e atividade de primeira ordem na Educação Infantil, o que significa dizer, de acordo com Pasqualini e Martins (2020, p. 441) que: “Quando se trata de elaborar e implementar propostas curriculares, não basta levantar a bandeira do lúdico se não se explicitar quais os conteúdos com os quais a criança poderá se relacionar de forma lúdica”.
Nessa mesma propositura, considerando os conteúdos histórico-culturais a serem definidos no currículo de Educação Infantil como direito da criança, e como elementos significativos ao seu desenvolvimento, é preciso que se pense a elaboração desse currículo a partir da compreensão de que é pela atividade lúdica, pelo brincar, entendendo o brincar como a atividade principal da criança (Leontiev, 2001), que é dado a ela a oportunidade de explorar um ambiente relacionando a vida real ao seu imaginário infantil no contexto escolar, possibilitando e potencializando a criação e a transformação das formas de ser, agir e pensar situações reais e cotidianas.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme afirmamos no decorrer dessa discussão, tanto a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da educação básica quanto a Base Nacional Comum de Formação de professores (BNC-FP) representam um retrocesso para à Educação na sua totalidade. Embora seja o que se tem, isso não significa inércia dos professores e das professoras, pelo contrário, é cada vez mais urgente a necessidade de professores/as crítico-reflexivos e autônomos no/do seu fazer docente, eminentemente isso requer uma formação docente, tanto a inicial quanto a continuada, que corresponda a um projeto voltado para a formação de uma sociedade cidadã, justa e democrática, em suma, uma formação docente voltada para a formação omnilateral1 (Manacorda, 2010; Marques, 2020) do homem e da mulher enquanto sujeitos ativos e participativos de uma sociedade em constante transformação.
Esse é o perfil de formação que nos define enquanto professoras do curso de Pedagogia e, nessa perspectiva, entendemos e defendemos que o currículo para a Educação Infantil, em sua acepção mais ampla de formação, desenvolvida tanto nos espaços escolares (creches e pré-escolas) quanto nas instituições de Ensino Superior, notadamente o curso de Pedagogia, sem desconsiderar as especificidades de cada um desses espaços, precisa contemplar um arcabouço teórico e prático que subsidie a formação omnilateral desde a mais tenra idade do ser humano, portanto, capaz de formar homens e mulheres preparados/as para conviver e usufruir de forma crítica, dos bens sociais, culturais, individuais e coletivos produzidos pela sociedade. Nessa mesma direção, os cursos de formação de professores/as para a Educação Infantil precisam estar alinhados curricularmente com os pressupostos de uma formação pautada na omnilataralidade da criança.
Acreditamos que esse tipo de formação exige de nós, os profissionais da educação, o entendimento de que é preciso que o professor e a professora se portem como intelectuais (Giroux, 1997) críticos e reflexivos dos seus fazeres docentes, entendendo-os como elementos circunscritos e marcados historicamente por múltiplas relações e determinações diversas. A partir desse ponto de vista, os/as professores/as como intelectuais podem articular a conceitualização, o planejamento e a organização curricular com os processos de implementação e execução da ação docente. Assim, o professor e a professora, na sua prática, assumem responsabilidades, levantam questionamentos acerca do que ensinam, do como ensinam e do para que ensinam, tendo em vista uma educação de qualidade, comprometida com o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e menos desigual.
Compreendemos que uma formação de professores/as desenhada nesses termos, depreende eminentemente da materialização de uma formação inicial voltada para a perspectiva crítico e reflexiva, pois, é a partir daí que o/a professor/a desde muito cedo, ainda no seu processo formativo, é capaz de perceber as contradições e nuances que engendram o processo educativo em sua totalidade. Ademais, em uma perspectiva crítica, defendemos que os programas de formação de professores/as sejam intransigentemente comprometidos com questões de emancipação e transformação, questões essas, que na visão de Giroux e Mclaren, (2013) e Freire, (1987, 2015), possibilitem a combinação do conhecimento e da crítica, de um lado, e um apelo à transformação da realidade em benefício de comunidades democráticas, de outro (Teles, 2018).
A educação para o magistério concebida a partir dessa ótica possibilitará a revogação de práticas docentes retrógradas que limitam os/as futuros/as professores/as à situação de meros técnicos, aplicadores de competências e habilidades previamente estabelecidas. Com isso, não queremos desdenhar da importância do desenvolvimento de competências e habilidades para a formação, elas são importantes sim, o que questionamos é a forma técnico operacional e pragmática como elas são tratadas tanto no contexto da escola quanto nas instituições de Ensino Superior, em seus cursos de formação de professores/as, com destaque para a formação do/a professor/a de Educação Infantil no curso de Pedagogia.
Em síntese, ao reconhecermos a importância do papel do/a professor/a na tomada de decisões, nas escolhas e mobilizações das práticas de ensino na escola, isso nos leva a pensar na elaboração de um programa de formação de professores/as pautado em um currículo que possibilite ao futuro docente uma formação crítica apoiada no inter-relacionamento de vozes, construídas tanto no contexto da formação docente quanto no chão da escola, bem como, a compreensão de que a realidade é multideterminada e situada em um dado contexto social, econômico e histórico, rico de contradições que em seu conjunto, perfazem a dialética do ser professor/a em formação. Desse modo, é imprescindível que a formação inicial do/a professor/a no campo da Educação Infantil fuja de modelos tradicionais, outrossim, contribua para a constituição de outros modos do agir, pensado a partir do enfoque pautado na práxis da formação humana.