1 INTRODUÇÃO
A formação das/os psicólogas/os no Brasil foi instituída em 1962, através da Lei nº 4.119/62 (Brasil, 1962). No início, a atuação da/o profissional de psicologia estava voltada para três campos: escola, indústria e clínica. Este último ganhou destaque e, por conseguinte, ocupou a maior parte da carga horária dos cursos de psicologia. Por clínica entendemos que são as “atividades de psicoterapia e/ou psicodiagnóstico exercidas em consultórios particulares por profissionais liberais, para uma população que podia pagar por esses serviços, tendo um enfoque teórico-técnico intraindividual” (Ferreira Neto, 2011, p. 25). Essa predominância da área clínica foi reforçada durante o período militar, quando o público atendido por psicólogas/os era a classe média nascida do “milagre econômico” dessa época (Yamamoto; Oliveira, 2010; Ferreira Neto, 2011).
Após anos de governos militares sem investir em políticas públicas sociais, grande parte da população encontrava-se em péssimas condições de vida (Yamamoto; Oliveira, 2010). Mesmo sob repressão, o Movimento da Reforma Sanitária reuniu trabalhadores/as da saúde e usuários/as em defesa de políticas que atendessem às demandas de toda população. A partir da década de 1980, a classe média encontrava-se impossibilitada de manter os custos com psicoterapia, gerando um declínio do mercado de trabalho na clínica individual, o que suscitou mudanças na psicologia (Ferreira Neto, 2011).
Apesar de inicialmente a Psicologia no campo da saúde ficar restrita aos hospitais, principalmente os psiquiátricos, as transformações sociais fizeram emergir demandas para além de hospitais e consultórios particulares (Mello; Teo, 2019). É com a conquista de direitos sociais na Constituição de 1988 que a atuação das/os psicólogas/os no serviço público passa a ser uma realidade. Dessa forma, esta/e profissional de psicologia é convocada/o a compor postos de trabalho nas políticas públicas criadas a partir da chamada constituição cidadã.
No caso do SUS, por exemplo, a/o psicóloga/o que até então estava preparada/o, prioritariamente, para atendimentos individuais como trabalhador/a liberal, lidando com uma subjetividade burguesa (Ferreira Neto, 2011), tem como demanda social o atendimento de grupos socialmente vulnerabilizados em equipe interdisciplinar, como assalariado do Estado brasileiro. A atuação do psicólogo no SUS pode, de fato, oferecer “uma importante contribuição na compreensão contextualizada e integral do indivíduo, das famílias e da comunidade” (Böing; Crepaldi, 2014, p. 756). Mas isso não é tão simples como pode parecer. Por um lado, cabe à psicologia revisitar suas bases teóricas e epistemológicas de modo a traçar referências específicas sobre modos de subjetivação distintos do burguês.
1.2 Desafios à Psicologia
As análises empenhadas por Ferreira e Facci (2020), inspiradas em estudos de Martin-Baró, por exemplo, apontam para uma psicologia brasileira e latino-americana submetida aos interesses de dominação capitalista de países europeus e dos Estados Unidos. Tal filiação distanciou a psicologia da realidade das maiorias populares, suas condições de vida, seus afetos de resignação diante, por exemplo, da condição de pobreza a que estavam/estão imersas. As autoras apontam que trabalhos científicos no campo da psicologia que tematiza a pobreza tendem a não considerá-la “a partir de sua gênese histórica” (p. 72). Como tarefa em curso da psicologia brasileira, seguimos tematizando sobre modos de subjetivação forjados por contextos marcados por pobreza, violência, cidadania fragilizada pela ausência do Estado, além de outros aspectos (Ferreira; Facci, 2020; Silva; Carvalhares, 2016; Carreteiro, 2003).
Por outro lado, a inserção de psicólogas/os nos novos campos de trabalho abertos por políticas públicas sociais tem convivido com tensões em relação ao trabalho executado. Resistência de psicólogas/os diante das novas práticas que os equipamentos emergentes demandam foi identificada por Pitombeira (2016). Tal situação gera insatisfação de trabalhadoras/es psicólogas/os e incompreensão por parte das equipes de trabalhadoras/es da saúde nos serviços públicos, a respeito da sua presença naquele espaço (Pitombeira, 2016). As práticas disponibilizadas pela psicologia eram predominantemente curativas, individuais e ineficientes para o sistema de saúde, visto que a formação era voltada para uma atuação limitada, não se ajustando ao perfil profissional necessário ao Sistema Único de Saúde (SUS) (Böing; Crepaldi, 2014).
Tal como temos trabalhado sobre os modos de subjetivação distintos do burguês, a psicologia brasileira vem problematizando e formulando novas práticas de trabalho junto às populações beneficiárias de políticas sociais (Ferreira; Facci, 2020; Silva; Carvalhares, 2016; Carreteiro, 2003). O cenário abordado de necessária revisão da psicologia para o trabalho com populações socialmente vulnerabilizadas mobiliza, inevitavelmente, a urgência em rever a formação de psicólogas/os. Diretrizes sobre a formação de psicólogas/os estão em sistemático debate, conforme as próprias demandas que a sociedade dirige à psicologia.
1.3 Desafios na Formação de Psicólogas/os
As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) orientam acerca dos princípios, fundamentos, condições de oferta, planejamento e implementação dos cursos. Estão em vigor as DCN aprovadas em 20041, que alteram o modelo anterior de formação baseado em currículo mínimo cujas características são comentadas por Bernardes (2012, p. 218), dentre as quais destacamos “processos institucionais de transmissão de conhecimentos e inculcação de valores socialmente aceitos”, além de parcelamento de disciplinas e a aprendizagem como acúmulo de informações. O autor analisa que nesta lógica o “estudo é isolado dos problemas e dos processos concretos do contexto social em que se são” (Bernardes, 2012, p. 218). O que as DCN indicam são orientações gerais e fundamentos para que os cursos façam o planejamento da formação sob sua responsabilidade. A expectativa é que sejam formadas/os profissionais de psicologia aptas/os a atuar em diversos contextos, pautadas/os nas necessidades sociais e nos direitos humanos (Brasil, 2011). Em dezembro de 2019, o Conselho Nacional de Educação (CNE) emitiu parecer favorável (1071/2019) a novas DCN para os Cursos de Psicologia, mas, ainda não foram homologadas pelo Ministério da Educação (MEC).
As DCN em vigência (Brasil, 2011) propõem o desenvolvimento de competências e habilidades durante a graduação visando justamente que haja domínio básico dos conhecimentos psicológicos, para que os/as profissionais formados/as sejam capazes de aplicá- los de forma mais adequada ao contexto em que está inserido. De forma geral, as DCN estabelecem as seguintes competências e habilidades: atenção à saúde; tomada de decisões; comunicação; administração e gerenciamento; educação permanente. Para elaboração do projeto do curso, as DCN preconizam que é necessário considerar o contexto, as demandas sociais e as próprias condições da instituição. Tendo isto em vista, as instituições estabelecem as ênfases do currículo e as competências e habilidades que as formam. Os conteúdos e experiências de ensino devem ser pensados para construir competências abrangentes, não caracterizando uma “especialização” em determinado tema.
Dentre as competências que constam nas DCN, evidenciamos algumas que entendemos facilitar a adaptação dos profissionais ao trabalho no SUS, como: capacidade de analisar e compreender o contexto de atuação; atuar em equipes inter e multiprofissionais; estar apto a trabalhar de forma coletiva e individual, considerando sempre os contextos dos usuários; elaborar ações tanto preventivas, quanto terapêuticas.
A partir das DNC, as instituições elaboram/atualizam seus Projetos Pedagógicos de Curso (PPC). No PPC é encontrado todo o planejamento e estrutura do curso, seus objetivos e posicionamento da instituição diante daquela formação. Bernardes (2012) aponta que um dos desafios encontrados na formulação dos PPC é superar a ideia de que o currículo seja apenas a grade de disciplinas, um reprodutor de conteúdo. O autor argumenta que o currículo merece ser entendido de modo mais amplo, como um produtor de subjetividades e concebido em um campo de relações de poder. Dessa forma, concordamos com o autor, a construção do PPC deveria ser um processo coletivo e revisado periodicamente, visando acompanhar a dinamicidade do contexto ao qual a Instituição de Ensino se insere.
Pitombeira (2016) indica que a formação em saúde encontra muitas dificuldades em relação a aproximar-se das reais demandas da população, visto que muitas práticas formativas não alcançam o cotidiano e a realidade da atuação profissional. “A reflexão sobre essa realidade e os processos de trabalho nela engendrados são fundamentais para a consolidação de um novo modelo de formação” (Pitombeira, 2016 p. 281).
Em Pernambuco, os cursos de Psicologia começaram a surgir na década de 1960 em instituições de ensino privadas. De acordo com a plataforma do e-MEC2, existem 41 cursos de Psicologia em atividade no estado, estando estes distribuídos em 29 instituições de ensino superior, sendo três delas públicas. Assim, as instituições privadas de ensino são responsáveis por aproximadamente 97% das vagas para formação em Psicologia no Estado.
Lopes, Braga e Galindo (2020, no prelo) analisaram Projetos Pedagógicos dos Cursos de Psicologia (PPC) em universidades públicas de Pernambuco quanto à formação para o SUS. A análise realizada apontou que a formação nas universidades públicas do estado ainda mantém-se distante do que demanda a saúde pública como campo de trabalho. Além disso, os PPC não apresentam especificidades da realidade onde o Curso está situado, o que é sugestivo de pouco diálogo com a comunidade acadêmica e com a comunidade local. Estas questões reforçam uma estrutura hierarquizada do currículo/formação, cujas DCN em vigor tentaram superar o modelo de formação anterior, do Currículo Mínimo (Bernardes, 2012).
Inspiradas na pesquisa de Lopes, Braga e Galindo (2022, no prelo), surge o questionamento de como se comportam as instituições privadas de formação de psicólogas/os em Pernambuco, em relação à formação para o SUS. O discurso que sustenta a formação para o SUS nos seus Projetos Pedagógicos é distinto do que comunicam as instituições públicas? Este trabalho analisa como a formação para o SUS é apresentada em Projetos Pedagógicos de cursos de graduação em Psicologia, de instituições privadas do estado de Pernambuco.
2 MÉTODO
Neste tópico, descrevemos procedimentos de coleta, tratamento e análise de dados. Esta pesquisa tem como perspectiva somar esforços ao trabalho empenhado por Lopes, Braga e Galindo (2022, no prelo), que analisou o discurso de formação para o SUS de PPC de cursos de Psicologia em instituições públicas de Pernambuco. Esperamos participar do debate e contribuir com a compreensão mais ampla sobre a formação em psicologia para o SUS, em cursos de Pernambuco. Para tanto, nos dedicamos a analisar PPC de instituições privadas. Os PPC analisados foram selecionados de acordo com a sua disponibilidade online. Dessa forma, não se fez necessário submeter este trabalho ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).
A análise do material foi orientada pela Análise Crítica do Discurso (ACD). A ACD consiste em um modelo teórico-metodológico que busca identificar como práticas, relacionadas a aspectos sociais e pessoais, são retratadas através de padrões de linguagem (Nogueira, 2001). O Quadro 1 explicita o processo analítico da ACD.
Quadro 1 Critérios e Fases da Análise Crítica de Discurso
CRITÉRIOS | FASES |
---|---|
Textos | 1- tratar objectos de estudo como sendo textos (colocados em palavras) |
2- explorar conotações, associação livre | |
Objectos | 3- procurar objectos nos textos |
4- tratar a fala acerca desses objectos como objecto de estudo | |
Sujeitos | 5- especificar sujeitos (pessoas, assuntos, temas, etc.), como tipos de objectos no texto |
6- especular acerca de como eles podem “falar” | |
Sistema | 7- traçar uma imagem do mundo, redes de relações |
8- indicar as estratégias defensivas desses sistemas contra possíveis ataques | |
Ligações | 9- identificar contrastes entre formas de “falar” |
10- identificar pontos de sobreposição, fala dos mesmos objectos | |
Reflexão | 11- relacionar maneiras de falar para audiências diferentes |
12- escolher rótulos ou designações das formas de falar, os discursos | |
História | 13- analisar com atenção como esses discursos emergem |
14- questionar como os discursos contam a sua história acerca da sua origem | |
Instituições | 15- identificar instituições reforçadas pelos discursos |
16- identificar instituições que são atacadas pelos discursos | |
Poder | 17- analisar que categorias de pessoas ganham e perdem |
18- questionar quem os promoverá e quem se lhes oporá | |
Ideologia | 19- analisar como eles se ligam com outros discursos opressivos |
20- descrever como eles justificam o presente |
Fonte: Nogueira, 2001, p. 34.
A coleta de dados foi iniciada pela consulta à plataforma do e-MEC, na qual foram elencados todos os cursos de Psicologia do estado de Pernambuco, sendo excluídos os cursos de instituições públicas. A partir dessa lista, foram acessados, durante o período de novembro a dezembro de 2019, os PPC que estavam disponíveis online nos sites das instituições, resultando num total de cinco documentos, todos pertencentes a estabelecimentos localizados na Região Metropolitana do Recife.
Cada um dos PPC que compõem o material da pesquisa, passou pelo processo de identificação de conteúdos. Isto é, com a ferramenta de “localização” do editor de textos word, buscamos os seguintes termos: SUS; sistema; saúde e políticas. Uma leitura flutuante (Bardin, 1977) do texto resultante dessa busca contribuiu para a identificação de possíveis sujeitos e objetos presentes no material “localizado”. A configuração final de sujeitos e objetos foi consolidada nas etapas seguintes a este primeiro momento de manejo dos dados.
Cada fragmento do PPC identificado após a busca foi inserido na terceira coluna de uma tabela, nomeada de texto, o primeiro critério elencado no Quadro 1. Cada texto foi identificado (no final dele) com o nome da instituição a que se refere e a página do PPC onde estava originalmente, informações estas, entre parênteses. Todos os textos foram enumerados e tabelados.
Cada texto corresponde a uma unidade discursiva, para a qual foi identificado, em coluna específica, objeto (primeira coluna) e sujeito (segunda coluna) . Como objetos, identificamos: formação, atuação e campo de atuação. Os sujeitos foram: curso, currículo, população, psicólogas/os. Em cada linha da tabela, portanto, cada texto (unidade discursiva) foi antecedido por objeto e sujeito identificados nele.
Este procedimento inaugural no manuseio dos dados possibilitou o acesso à “superfície” do discurso dos projetos pedagógicos. Apreciar as unidades discursivas e classificá-las pela conjunção texto-sujeito-objeto foi estratégico para reunirmos aspectos de uma análise preliminar do discurso dos projetos pedagógicos. A redação desse primeiro processo de análise foi objeto de análises mais profundas, inspiradas nos critérios subsequentes do Quadro 1 (sistema, ligações…). O procedimento analítico neste momento envolveu apreciação individual de cada pesquisadora e reuniões de discussão e análises pela dupla. Os esforços foram na direção de identificar “camadas mais profundas” do que já fora identificado na “superfície” do discurso. Para tanto, movimentos de análises e sínteses antecederam os textos dos tópicos seguintes.
No tópico dos resultados constam características gerais das cinco instituições, que se mantêm no anonimato, pois as características não estão associadas às instituições de ensino específicas. Segue-se à caracterização geral das instituições, uma síntese geral do processo analítico, com ênfase nos “achados”. Isto é, com associações assinaladas entre a análise preliminar ( textos-sujeitos- objetos ) e demais critérios (sistema, ligações…). Estes estão grifados em itálico simples, ao longo do artigo a partir daqui, como esforço em garantir leitura fluida.
No tópico de discussão, apresentamos o aprofundamento da análise, interpretando “achados” e dialogando com literatura científica em torno deles. A exclusividade de cada documento levou-nos à decisão ética de não incluir fragmentos de texto que poderiam ilustrar passagens nos resultados e na discussão. No último tópico, de conclusão, estão sintetizados os achados da investigação. Pontuações gerais sobre o estudo também aparecem neste tópico.
3 RESULTADOS
Os PPC analisados são pertencentes a instituições de ensino superior privadas, localizadas na Região Metropolitana do Recife. Dois desses cursos estão em funcionamento há mais de 40 anos em instituições confessionais. Os demais cursos são mais recentes, tendo menos de 15 anos de funcionamento. Dois dos PPC não têm sua fundação datada e os demais são dos anos de 2016, 2018 e 2020. Quanto ao horário dos cursos, em dois dos PPC não constam os horários das turmas, outros dois informam que há oferta de aulas matutinas e noturnas; e uma das instituições possui turmas nos três turnos. Todas as instituições também contam com cursos de pós-graduação na área.
Destaca-se, nos PPC, a necessidade de profissionais de Psicologia qualificados, comprometidos socialmente e com uma concepção ampliada de sujeito. Justifica-se que a dinamicidade da sociedade faz com que a população busque profissionais que sejam capazes de compreender os contextos históricos, socioeconômicos e culturais nos quais o sujeito e a coletividade se encontram. Nesta direção, a maneira como os discursos falam do contexto social é sugestiva de posturas específicas para cada audiência.
À sociedade apresentam-se como instituições atentas ao que ela precisa, tendo cada PPC uma forma de versar acerca dessas necessidades, desde formas mais gerais, como “necessidades sociais”, às formas mais específicas, como a indicação de problemas sociais como a violência, uso de drogas e adoecimentos psíquicos relacionados ao trabalho. Além desses pontos, há o argumento de que o homem contemporâneo demanda um novo olhar sobre ele e, por conseguinte, um profissional com comprometimento social e que a sociedade precisa de ações que promovam qualidade de vida e saúde mental.
Às/aos futuras/os estudantes de Psicologia, os PPC apresentam o campo de trabalho na área como atrativo, destacando o fato da região ser considerada o segundo maior polo médico do país. Além disso, destacam áreas estratégicas dos serviços públicos municipais, como por exemplo, secretaria de saúde, que tem contratado psicólogos/os. Os PPC desenham as/os profissionais de Psicologia formadas/os por esses cursos como aptas/os a trabalhar em diversos campos, analisar vários contextos e munidas/os de uma série de habilitações/competências desenvolvidas através do referido curso.
O que aparece como reflexão é que a população demanda uma/um profissional que esteja afinada/o com seu contexto social, consequentemente, é gerada a necessidade de cursos para formar essa/e psicóloga/o. Identificamos, assim, como sistema que parece sustentar o discurso, uma imagem de mundo na qual a sociedade/população define o perfil do/da profissional de Psicologia e o curso a/o prepara. Este aspecto é sugestivo de que o discurso dos PPC trata futuras/os profissionais formadas/os nas instituições como pessoas que ganham ao aderirem à formação proposta, assim como a sociedade também ganha com uma/um psicóloga/o apta/o a atendê-la. É sobre poder que os PPC abordam, ao organizar o discurso desse modo. As instituições aparecem como promotoras do cenário em questão: formam psicólogas/os para atender às demandas da sociedade.
Atender demandas (seja da população, do SUS, das políticas de saúde, da sociedade, de alguém que procura uma formação) apresenta-se como um rótulo que permeia todos os PPC. Este ponto aparece como a justificativa que estrutura a atual proposta de formação desses cursos. É como se eles existissem diante da necessidade de profissionais que supram as novas questões sociais. Este aspecto parece nos informar sobre ideologia, sobre como as IES justificam o presente.
A noção de competências e habilidades que está na base das DCN é referida exaustivamente pelos PPC. Entretanto, é digno de nota que não há registros de competências e habilidades a serem desenvolvidas para atender aspectos específicos da região/território em que as instituições estão estabelecidas. Assim, habilidades e competências parecem funcionar como “lugar-comum” nos discursos.
Além de ser referido como campo de trabalho em psicologia, o SUS é abordado como norteador da formação, pela formatação de políticas e por receber estagiários/as em seus equipamentos. As políticas públicas de saúde e seus dispositivos são mencionados enquanto parceiras das Instituições na sua tarefa de formação, sendo base teórica e campo para práticas de disciplinas, estágio, pesquisa e extensão. A articulação entre a instituição de ensino e unidades públicas para a realização de atividades é justificada como uma forma de envolver a comunidade na qual o curso está inserido, sendo o serviço público promotor da relação IES- população. O status do SUS como uma instituição reforçada pelo discurso é sugestivo de estratégia defensiva das instituições diante de possíveis ataques. A relação estreita com a população é anunciada como capaz de gerar uma/um profissional comprometida/o com a concepção ampla de sujeito nos diversos contextos de atuação. O “sujeito amplo” mencionado pelos PPC, entretanto, não é explícito, não sendo apresentado, descrito ou definido, nos trechos analisados.
A promoção da saúde, conceito fundamental ao SUS, aparece com várias conotações ao longo dos PPC. Além de ser uma ênfase curricular em dois dos PPC analisados, a promoção da saúde é colocada como tema transversal ao curso, como espaço de trabalho e como fundamento de ênfases que possuem outras denominações nos demais PPC. Entretanto, sua principal aparição é como competência e habilidade a ser desenvolvida. Assim sendo, a promoção da saúde parece ser um ponto de sobreposição que alicerça a formatação dos cursos, garantindo a ligação entre diversos aspectos. Destacamos que um dos PPC ao referir a promoção da saúde cita documentos oficiais, como a Carta de Otawa e o juramento oficial de psicólogas/os, movimento sugestivo de reforçamento destas instituições.
Ao tratar de promoção da saúde, um dos PPC concentra suas formulações em torno da saúde mental. Apesar de sinalizar os diversos contextos nos quais a/o profissional pode atuar, o PPC afirma que a atuação é sempre em consonância com essa política e coloca o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) como exemplo principal da atuação profissional na área da saúde. A/O psicóloga/o é referida/o enquanto profissional da saúde mental, que atua em equipes multiprofissionais de saúde mental, que promove saúde mental, que atua na área organizacional no âmbito da saúde mental, que pesquisa e produz conhecimento em saúde mental.
4 DISCUSSÃO
A questão de “atender demandas” caracteriza os discursos analisados. Os Cursos se apresentam como capazes de atender demandas da sociedade, da população beneficiária de políticas públicas, das pessoas em busca de formação, de um “homem contemporâneo”. A máxima de atender demandas diz da lógica de mercado orientando a formação de psicólogas/os. Tal postura ideológica dos discursos analisados aparece, inclusive, como estratégia de poder, sugestiva de que a formação está filiada ao mercado, aqui entendido como instituição de referência. Nessa perspectiva, a promessa de emprego ao término da graduação, por exemplo, explicita a íntima relação formação-mercado. Ao preparar psicólogas/os para atender demandas do mercado, a formação garante que o/a egresso/a vai ser capaz de atuar nas novas vagas de trabalho e, por conseguinte, poderá ocupar os espaços disponíveis.
Essa perspectiva mercadológica da formação é orientada pela lógica de oferta-demanda, comum em trocas comerciais. A análise realizada identifica o seguinte cenário: uma instituição produtora, um perfil de egresso como produto e a população/sociedade como consumidora. Dessa forma, as instituições se oferecem para atender ao mercado, formando profissionais de acordo com exigências dele. Outro cenário que o discurso parece também sustentar informa que a instituição disponibiliza a formação, o curso/titulação é o produto e futuras/os psicólogas/os são consumidores. As IES anunciam a formação como uma mercadoria, buscando atenção de “consumidores” (futuras/os psicólogas/os). O sentido de formação-de-psicólogas/os-para- atender-demandas expressa a ideologia neoliberal do discurso dos PPC.
A filiação neoliberal da formação em Psicologia tem sido denunciada em vários estudos. Lisboa e Barbosa (2009) fizeram uma pesquisa envolvendo 396 cursos de Psicologia cadastrados no Ministério da Educação, a maioria deles nas regiões sul e sudeste. Os autores identificaram uma grande e rápida expansão dos cursos a partir de 2001. Recomendaram como necessário e urgente “romper a lógica de mercado que determina a distribuição, a organização e o funcionamento dos cursos de graduação em Psicologia brasileiros” (p. 734). Não é objetivo de nosso estudo refletir sobre distribuição de cursos de Psicologia no Brasil, mas destacamos da referida pesquisa a preocupação com a lógica de mercado na organização e funcionamento dos cursos.
Em análise das DCN, Bernardes (2012, p. 224) argumenta que elas “fazem parte da herança da tendência liberal tecnicista” no processo de formação, cujas habilidades e competências inspiram o processo de aprendizagem durante o Curso. O autor sugere que as antigas noções de matérias e disciplinas (do Currículo Mínimo) orientam as formulações sobre habilidades e competências nas DCN. Ainda que tenha sido feita uma alteração do repertório linguístico em questão, para Bernardes (2012) mantemos técnicas e métodos no processo de aprendizagem como garantia de eficiência. Concordamos com as reflexões do autor e identificamos na análise realizada dos PPC a valorização tecnicista na formação de psicólogas/os.
Ferreira Neto (2004, p.191), no ano de publicação das atuais DCN, já nos lembrava que “uma formação em psicologia que vise o perfil de um profissional técnico, capaz de responder adequadamente a diversos tipos de demanda, (sic) deve ser vista com reservas”. De fato, a formação de psicólogas/os de inspiração liberal, caracterizada pela lógica de mercado não tem compromisso com reflexões críticas dirigidas ao fenômeno e à realidade que a/o profissional tem diante de si. O autor argumenta que uma formação tecnicista pode até garantir bom atendimento por parte da/o psicóloga/o, mas a atuação não é acompanhada da devida reflexão crítica e, por conseguinte, a/o profissional é incapaz de ser criativa/o. É a capacidade crítica que “faculta ao profissional articular o como-fazer ao por que-fazer. Produz um profissional que não apenas responde passivamente, mas pensa, problematiza, debate, inventa; enfim, faz diferença” (Ferreira Neto, 2004, p. 191).
Em 1996, Martín-Baró, refletindo sobre a atuação de psicólogos/as nos países da América Central, já escrevia a respeito da necessidade de uma prática psicológica orientada pela conscientização, de forma que a/o profissional de Psicologia possa auxiliar as pessoas a desenvolver “um saber crítico sobre si próprias e sobre sua realidade” (p.17). O autor já discutia a importância de que o sujeito, mesmo colocado em evidência, fosse considerado não somente pela dimensão individual, mas pelos fatores sociais presentes em sua realidade.
A defesa de Martín-Baró (1996, p. 22) para que a/o profissional de Psicologia compreenda a realidade em que vivem os indivíduos sob seus cuidados é consonante com a perspectiva de que a Psicologia seria um instrumento de promoção de mudanças na realidade, “pois se o psicólogo, por um lado, não é chamado a intervir nos mecanismos sócio-econômicas (sic) que articulam as estruturas de injustiça, por outro é chamado a intervir nos processos subjetivos que sustentam e viabilizam essas estruturas injustas”.
As ideias de Martín-Baró (1996) animam o debate em curso sobre como psicólogas/os em formação merecem se posicionar diante da realidade social, marcada por desigualdade social. A formação tecnicista formulada para atender demandas, conforme identificamos na análise dos PPC, não comporta a necessária análise da complexa realidade que, inclusive, produz as demandas. Isto é, psicólogas/os em formação deveriam desenvolver capacidade de análise crítica da realidade em seus diversos aspectos.
A análise da realidade (ou, pelo menos, a realidade da saúde da população), na qual estão inscritos os cursos, parece não ocupar significativo espaço nos PPC. A noção de demandas no discurso dos PPC sugere o não aprofundamento de como vive a população, de como ocorre a atenção à sua saúde. Ao contrário, a análise dos PPC é sugestiva de um acesso superficial da realidade, marcado pela ideologia liberal, cuja tendência é reduzir a complexidade social à responsabilidade dos indivíduos. A análise crítica das condições que possibilitam (ou não) o acesso das pessoas aos serviços de saúde, por exemplo, não ocupa espaço de debate. Um dos aspectos de destaque da abordagem superficial da realidade é o modo como o
SUS é referido. Lembramos que o SUS é utilizado no discurso dos PPC como justificativa para a estratégia formativa adotada pelos Cursos. Entendemos como uso instrumental do SUS para atender à lógica de mercado que sustenta a formação. É assim que a noção de “promoção da saúde” aparece reduzida à habilidade a ser desenvolvida por psicólogas/os em formação. Eis mais uma indicação de ausência de referências críticas sobre a produção de saúde na nossa sociedade. Concordamos com Ferreira Neto (2004, p. 191) de que o compromisso dos PPC em atender todas as demandas pode levar ao risco de uma “indesejável dissociação entre clínica e política”. O fazer em Psicologia parece conviver com esse risco, dada sua história marcada pela atuação liberal em consultório privado e atenção a uma “interioridade psíquica” para lidar com os sujeitos.
Benevides (2005) ao analisar a relação da Psicologia com o SUS discute que aquela tende a operar em um movimento de cisão, em que o sujeito fica restrito ao subjetivo e o político ao social. Essa divisão gera o que a autora chama de “efeito-despolitização”. Apesar do sujeito ser o foco da atuação, ele é isolado de seus aspectos sociais. Nessa perspectiva, “as práticas psi passam a se ocupar de sujeitos abstratos, abstraídos/alienados de seus contextos e tomam suas expressões existenciais como produtos/dados a serem reconhecidos em universais apriorísticos” (Benevides, 2005, p. 22). Entendemos que a formação tecnicista marcada pela despolitização termina por contribuir para a perpetuação do sistema social vigente, reforçando os princípios neoliberais.
A título de ilustração de aspectos indispensáveis na formação de psicólogas/os para atuar no SUS, referimos os esforços de Morais e Oliveira (2020) no debate sobre a situação do SUS frente à pandemia da covid-19. As autoras lançam mão dos aspectos históricos, econômicos, sociais e políticos, da história recente do Brasil, para argumentar sobre a constituição da situação atual. Atores sociais, decisões políticas, conquistas de movimentos sociais, além da própria experiência democrática brasileira são aspectos abordados.
As questões pontuadas pelas autoras são de grande importância para a compreensão do funcionamento do SUS diante da covid-19. Para uma/um profissional psicóloga/o, por exemplo, não cabe apenas saber como evitar a transmissão do novo coronavírus, conhecer o cronograma de vacinação, além de outros aspectos técnicos em torno da situação. Ao acolher uma pessoa, no contexto da pandemia, que sente forte angústia por medo de morrer e/ou com necessidade de apoio diante de morte de pessoas próximas (para citar as motivações comuns para se buscar apoio psicológico), a/o psicóloga/o precisará saber como/porque/para quem/com quais condições realiza seu trabalho.
Na formação de psicólogas/os para o SUS é fundamental investimentos no desenvolvimento de análise crítica da realidade, para que as/os futuras/os profissionais consigam se posicionar devidamente nas situações. O andamento dos programas de saúde, no Brasil, só ocorre devido à “atuação de milhares de trabalhadores de saúde que, por uma cultura institucional baseada no compromisso com as finalidades de um setor público universal, têm papel nuclear na estruturação e no fortalecimento do SUS” (Morais; Oliveira, 2020, p. 23). Que profissionais de Psicologia colaborem com este legado histórico do SUS que considera a saúde como um direito e não como uma mercadoria.
5 CONCLUSÃO
A despeito das demandas dirigidas a profissionais de Psicologia a partir da Constituição de 1988 - de trabalho em equipe, de intervenção em coletivos, dentre outras - os PPC analisados parecem investir na formação de um profissional liberal tecnicista, cujo compromisso é com o atendimento de demandas do mercado.
O discurso de formação para atender demandas forma psicólogos-técnicos certamente com habilidades de “como fazer” no campo do SUS. Entendemos que essa formação parece não dar conta de uma análise crítica da realidade da população e do próprio SUS. Formar para o SUS envolve considerar sua construção e seu histórico através do tempo. Bem como, estar atenta/o para as disputas sociais nas quais está inscrito, por recursos e a própria disputa da saúde como um direito e não como uma mercadoria. A ausência de referências à Reforma Sanitária, por exemplo, corrobora com o discurso neoliberal. O mercado de trabalho encontra mais espaço que o direito à saúde.
É digno de nota que ao passo que identificamos na presente pesquisa a formação em Psicologia articulada à lógica de mercado, de atender demandas, a pesquisa de Lopes, Braga e Galindo (2022, no prelo) identificou outra filiação dos discursos dos PPC de instituições públicas. O compromisso dos PPC nestas instituições parece associado ao cumprimento de leis, regulamentações institucionais (como do Conselho Federal de Psicologia) e da própria literatura científica. Estudos futuros sobre os discursos de instituições públicas e privadas na formação de psicólogos, inclusive na filiação ideológica dos discursos, são importantes para aprofundar o debate sobre a formação de psicólogos/as para o trabalho no SUS e em outras políticas públicas sociais.
Entendemos que a estratégia analítica aqui utilizada pode inspirar outras/os pesquisadoras/es em trabalhos semelhantes. Inclusive, pode inspirar cursos de Psicologia para revisão de seus projetos pedagógicos em processos de reforma curricular.
Além disso, estudos que analisem os discursos em torno da formação de psicólogas/os são fundamentais para explicitar elementos envolvidos na tarefa em curso, da Psicologia, de fazer-se presente na realidade de grupos populacionais que só recentemente tiveram acesso a profissionais deste campo de intervenção. Filiamo-nos a Silva e Carvalhares (2016, p. 253) ao postularem:
defendemos a necessidade do(a) psicólogo(a) reconhecer-se como agente político capaz de contribuir para as construções coletivas das mudanças na realidade das comunidades onde atua, como também contribuir para que os moradores destas localidades se reconheçam como sujeitos de direitos.
Encorajamos que outros estudos sejam realizados buscando os PPC que não estavam disponíveis online, expandindo também para instituições localizadas fora da Região Metropolitana do Recife, para que assim possam ser aprimoradas as informações sobre o cenário pernambucano da formação de psicólogas/os e fomentados debates acerca da construção conjunta dos projetos pedagógicos.