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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.22  São Paulo  2024  Epub 29-Jul-2024

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2024v22e59084 

Artigos

Para além dos silêncios curriculares da colonialidade: o ressoar de currículos decoloniais

Beyond the curricular silences of coloniality: the reverberation of decolonial curricula

Más allá de los silencios curriculares de la colonialidad: el resonar de los planes de estudio decoloniales

i Pós-doutorado em Educação pela UMINHO, Doutorado e Mestrado em Educação pela UNISINOS. Docente do Programa de Pós-Graduação de Mestrado e Doutorado em Educação na Universidade Católica Dom Bosco. Bolsista Produtividade 2 pelo CNPq. E-mail: ruth@ucdb.br - ORCID iD: http://orcid.org/0000-0001-8979-1125.

ii Doutora em Educação pela UCDB e Mestre em Filosofia pela PUCRS. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação - PROFEDUC, na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. E-mail: tedeschi@uems.br - ORCID iD: http://orcid.org/0000-0002-4557-8282.


Resumo

O artigo objetiva mostrar que, apesar de a colonialidade ser forte nos currículos, ela está sendo questionada em diferentes espaços, inclusive nos currículos de formação de professores. Para tal propósito, aproximamo-nos do campo teórico dos estudos decoloniais, que, ao mesmo tempo em que critica o processo de construção e imposição da colonialidade, traz possiblidades de ruptura. A pesquisa foi realizada por meio de entrevistas semiestruturadas com acadêmicos de diferentes licenciaturas de uma universidade da região centro-oeste do país. Pela análise qualitativa efetuada, conclui-se que a presença de sujeitos de diversos movimentos e grupos culturais trouxe, para dentro dos currículos, discussões que vão questionando a colonialidade, com destaque para a lógica da universalidade, o desejo de uniformidade e a lógica da produção dos estereótipos.

Palavras-chave: currículos; epistemologias; decolonialidade

Abstract

The article aims to show that, although coloniality is strong in curricula, it has been questioned in different settings, including teacher education curricula. For this purpose, we have approached the theoretical field of decolonial studies, which, while criticizing the process of construction and imposition of coloniality, bring up possibilities of disruption. The research was carried out through semi-structured interviews with students of different teaching courses in a university in the central-west region of the country. A qualitative analysis has enabled us to conclude that the presence of subjects from different cultural movements and groups has brought into the curricula discussions that question coloniality, with an emphasis on the logic of universality, the desire for uniformity and the logic of production of stereotypes.

Keywords: curricula; epistemologies; decoloniality

Resumen

El artículo pretende mostrar que, a pesar de que la colonialidad es fuerte en los planes de estudio, está siendo cuestionada en diferentes espacios, incluso en los programas de formación docente. Para ello, nos acercamos al campo teórico de los estudios decoloniales que, al mismo tiempo en que critica el proceso de construcción e imposición de la colonialidad, trae posibilidades de ruptura. La investigación fue realizada a través de entrevistas semiestructuradas a académicos de diferentes carreras de una universidad de la región centro-oeste del país. A través del análisis cualitativo realizado, se concluye que la presencia de sujetos de diferentes movimientos y grupos culturales ha traído a los programas de estudio discusiones que cuestionan la colonialidad, con énfasis en la lógica de la universalidad, el deseo de uniformidad y la lógica de producción de estereotipos.

Palabras clave: plan de estudio; Epistemologías; decolonialidad

1 INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, no contexto brasileiro e internacional, o campo do currículo tem incluído em sua agenda a importância de articular os currículos com as diferenças. Outros sujeitos, com suas epistemologias, têm trazido para o campo da educação demandas que por séculos foram negligenciadas, sobretudo, em países colonizados, onde os currículos são espaços privilegiados de imposição da epistemologia ocidental, incluindo sua visão de mundo, de natureza e de ser humano.

Apesar disso, a colonialidade continua marcando os currículos. Como destaca Kilomba (2019), é muito comum que ela, como acadêmica negra, ouça que sua investigação sobre o racismo cotidiano é muito interessante, mas não muito científica, por ser “[...] demasiado subjetiva, ‘muito pessoal’; ‘muito emocional’; ‘muito específica’” (Kilomba, 2019, p. 51). Não é só comum para ela, mas, de modo geral, para todos e todas que buscam pôr em xeque a epistemologia ocidental e sua pretensa universalidade e imparcialidade, principalmente se forem negros e negras ou indígenas. Esses comentários funcionam “como uma máscara que silencia nossas vozes assim que falamos. Eles permitem que o sujeito branco posicione nossos discursos de volta nas margens, como conhecimento desviante, enquanto seus discursos se conservam no centro, como a norma” (Kilomba, 2019, p. 51).

Questões como as apresentadas por Kilomba (2019) impulsionam-nos, neste artigo, a problematizar a epistemologia que sustenta o currículo colonial e a mostrar/reforçar a potência e urgência de outras epistemologias - além daquela eurocentrada - adentrarem nas instituições educacionais para fazerem ressoar currículos decoloniais. Para tal propósito, aproximamo-nos dos estudos decoloniais e mostramos as implicações da epistemologia ocidental/colonial, que se pretende única e universal. Apostamos na diversidade de epistemologias como forma de decolonizar os currículos. As vozes de autores e autoras citados, dentre tantas outras, não cansam de nos lembrar que estar na margem, longe do centro colonial, não representa apenas estar em um espaço periférico de opressão, perda e privação, mas também habitar um espaço de resistência e possibilidades.

Sem ignorar a força que a epistemologia colonial/ocidental ainda tem nos currículos, neste artigo, pretendemos evidenciar que a colonialidade não é algo dado, mas sim cotidianamente posto em xeque nos currículos, especialmente pela presença de outros sujeitos e de suas epistemologias, que há poucos anos lá não estavam ou, pelo menos, não em número tão significativo. Os argumentos são inspirados em uma pesquisa, apoiada pelo CNPq e realizada com acadêmicos de diferentes licenciaturas de uma universidade em uma capital da região centro-oeste do país, em articulação com os teóricos utilizados, todos reconhecidamente críticos da epistemologia moderna/colonial e do eurocentrismo.

2 CURRÍCULOS PARA ALÉM DO EUROCENTRISMO, OU SOBRE OUTRAS EPISTEMOLOGIAS

As disciplinas científicas historicamente produzidas e reproduzidas na academia ocidental e, em decorrência, na educação básica partem da suposição da existência de um metarrelato universal e compreendem as culturas e os povos a partir de estágios de desenvolvimento, ou seja, do primitivo e tradicional até o moderno. Lander (2005) diz que, conforme essa metanarrativa, a sociedade mais avançada nesse processo histórico é a sociedade industrial liberal e que, por isso, é ela que define o modelo de sociedade moderna. A sociedade liberal coloca-se como o único futuro possível para todas as outras culturas e povos. O autor ainda destaca que “aqueles que não conseguirem incorporar-se a esta marcha inexorável da história estão destinados a desaparecer” (Lander, 2005, p. 13).

A narrativa liberal/moderna, segundo Mignolo (2009), com sua força semântica e retórica de progresso, impulsiona o consumo e “se esfuerza por mantener la idea de que la historia es única y desemboca en la ontología de que la idea de modernidad construye, desplaza y complementa la felicidad cristiana con la felicidad terrenal del consumo” (Mignolo, 2014, p. 7). Por isso, um dos propósitos de tal narrativa é a perpetuação de subjetividades modernas devotas à acumulação de riquezas, mercadorias, propriedades. O poder disciplinar exerce, nesse contexto, papel fundamental no controle e normalização das condutas, visto que, como explica Castro-Gómez (2005), o colonizado aparece para o colonizador como o “outro da razão”, cuja marca identitária está relacionada com maldade, barbárie, falta de civilidade - e isso justificaria o exercício de um poder disciplinar sobre as subjetividades dos colonizados.

No entanto, não podemos atribuir ao pensamento neoliberal, nem à conjuntura política atual, a naturalização da sociedade liberal como a forma mais avançada e normal de existência humana. Lander (2005) salienta que ela não é uma construção recente, pois se trata de uma ideia que tem uma longa história no pensamento social ocidental dos últimos séculos. Nas palavras do autor:

O processo que culminou com a consolidação das relações de produção capitalistas e do modo de vida liberal, até que estas adquirissem o caráter de formas naturais de vida social, teve simultaneamente uma dimensão colonial/imperial de conquista e/ou submissão de outros continentes e territórios por parte das potências europeias, e uma encarniçada luta civilizatória no interior do território europeu na qual finalmente acabou-se impondo a hegemonia do projeto liberal (Lander, 2005, p. 12).

A dimensão colonial/imperial que culminou com a hegemonia do projeto liberal desenvolveu, inclusive, formas de conhecimento a partir da perspectiva europeia para compreender/explicar esse modelo de sociedade. Como uma construção eurocêntrica, essas formas de conhecimento, com a proposta de pensar e organizar o tempo e o espaço, não se restringiram à Europa, colocando a perspectiva de sua própria experiência e de sua especificidade histórico-cultural como padrão de referência superior e universal para toda a humanidade.

O caráter universal atribuído à experiência histórica europeia, segundo Lander (2005), converteu-a “nos padrões a partir dos quais se podem analisar e detectar as carências, os atrasos, os freios e impactos perversos que se dão como produto do primitivo ou o tradicional em todas as outras sociedades” (Lander, 2005, p. 13). Com este metarrelato da modernidade, “as outras formas de ser, as outras formas de organização da sociedade, as outras formas de conhecimento, são transformadas não só em diferentes, mas em carentes, arcaicas, primitivas, tradicionais, pré-modernas” (Lander, 2005, p. 13).

Nesse sentido, a conquista espanhola e portuguesa da América Latina e Caribe inaugura a modernidade e a organização colonial do mundo. O ano de 1492 é, segundo Dussel (1993), a data de nascimento da modernidade, “quando a Europa pode se confrontar com o seu ‘outro’ e controlá-lo, vencê-lo, violentá-lo: quando pode se definir como um ‘ego’ descobridor, conquistador, colonizador da Alteridade constitutiva da própria Modernidade” (Dussel, 1993, p. 8). Assim, “a colonialidade é constitutiva da modernidade, e não derivada” (Mignolo, 2005, p. 75). Às custas da colonialidade, a Europa pôde produzir e impor as ciências humanas como modelo único, universal e objetivo na produção de conhecimentos e desautorizar todas as outras epistemologias, empurrando-as para a periferia.

Por isso, simultaneamente ao início do colonialismo na América, inicia-se, também, a constituição colonial dos saberes, das linguagens, da memória e do imaginário. Esse processo culmina, nos séculos XVIII e XIX, em uma forma de organização da totalidade do espaço e do tempo, de culturas, povos e territórios do planeta, em uma grande narrativa universal. Desse modo, tem início a “‘massiva formação discursiva’ de construção da Europa/Ocidente e o outro, do europeu e o índio, do lugar privilegiado do lugar de enunciação associado ao poder imperial” (Lander, 2005, p. 10).

As feridas produzidas pela modernidade/colonialidade1 para citar algumas dentre tantas outras, vão desde o patriarcalismo - produção de normas e hierarquias com o objetivo de regular e controlar as diferenças de gênero e sexualidade - até as questões que envolvem racismos - produção de normas e hierarquias com o objetivo de regular e controlar as etnicidades. Santos (2002, p. 239) afirma que “a experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera importante”, salientando que a compreensão ocidental do mundo não é, em hipótese alguma, a única compreensão do mundo.

Em uma importante reflexão, Santos e Meneses (2010) reconhecem a diversidade de formas de conhecer que coexistem e que se confrontam nas sociedades, e apresentam uma epistemologia alternativa ao pensamento ocidental, ou do Norte. Eles denominam esse conhecimento alternativo de epistemologias do Sul. Enfatizam que a epistemologia ocidental dominante foi construída tendo em vista a vontade de dominação colonial e designam-na como pensamento abissal. Entendem por pensamento abissal aquele que “opera pela definição unilateral de linhas que dividem as experiências, os saberes e os atores sociais entre os que são úteis, inteligíveis e visíveis [...] e os que são inúteis ou perigosos, ininteligíveis, objetos de supressão ou esquecimento” (Souza Santos; Meneses, 2010, p. 20).

No campo do conhecimento, o pensamento abissal, da maneira como é entendido por Santos (2010), concede à ciência moderna o monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso. Todas as formas de conhecimento que não se encaixam nos critérios da ciência moderna - ou todos os conhecimentos que se encontram do outro lado da linha - desaparecem como conhecimentos relevantes por se encontrarem além dos critérios já estabelecidos sobre o que é verdadeiro e falso. Nesse campo, o eurocentrismo funciona como “um lócus epistêmico de onde se constrói um modelo de conhecimento que, por um lado, universaliza a experiência local europeia como modelo normativo a seguir e, por outro, designa seus dispositivos de conhecimento como os únicos válidos” (Quintero; Figueira; Elizalde, 2019, p .7).

Santos (2010) argumenta que essa realidade, tão marcante no período colonial, continua presente nos dias atuais. Ele ressalta que “as colônias representam um modelo de exclusão radical que permanece atualmente no pensamento e práticas modernas ocidentais tal como aconteceu no ciclo colonial” (Santos, 2010, p. 39). Reconhecer a insistência/permanência do pensamento abissal no Sul global é condição fundamental para a produção de pensamentos e ações para além dele - ou, como afirma o autor, para a produção de um pensamento pós-abissal.

Tal pensamento é apresentado pelo autor como um pensamento que não deriva da Europa, que provoca uma ruptura com o pensamento ocidental moderno, por encontrar-se do outro lado da linha - lugar do impensável na modernidade ocidental. É um pensamento que pode ser “sumariado como um aprender com o Sul usando uma epistemologia do Sul” (Santos, 2010, p. 53). O autor ainda explica que as epistemologias do Sul partem do pressuposto de que as práticas sociais são também práticas de conhecimento. O fato de essas práticas sociais não se enquadrarem nos critérios da ciência moderna não significa que sejam desprovidas de validade; são, antes, práticas de conhecimento alternativas à ciência hegemônica. Nesse sentido, as práticas de conhecimento alternativas confrontam a monocultura da ciência moderna com uma ecologia de saberes, que se baseia “no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos (sendo um deles a ciência moderna) e interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer a sua autonomia” (Santos, 2010, p. 53).

Em vez de uma soberania epistêmica incapaz de reconhecer outros modos de conhecer, Santos (2018) apresenta a noção de ecologia dos saberes, da qual a ciência moderna faz parte como uma forma de conhecimento, dentre tantas outras. Por isso, buscar credibilidade para os conhecimentos não científicos, na perspectiva da ecologia de saberes, não implica desacreditar o conhecimento científico; pelo contrário, implica utilizá-lo em um contexto mais amplo de diálogo, de copresença e de comunicação mútua com outros conhecimentos. Desse ponto de vista, dizer que é necessário ir além das categorias de análise e das disciplinas modernas

[...] no es porque haya que negarlas, ni porque éstas tengan que se ‘rebasadas’ por algo ‘mejor’. Hablamos, más bien, de una ampliación del campo de visibilidad abierto por la ciencia occidental moderna, dado que ésta fue incapaz de abrirse a dominios prohibidos, como las emociones, la intimidad, el sentido común, los conocimientos ancestrales y la corporalidad (Castro-Gómez, 2015, p. 82).

Vivemos tempos em que discussões e ações com enfoque decolonial visibilizaram a existência de uma pluralidade de sistemas de conhecimentos, mostrando, ao mesmo tempo, a marca da incompletude de todas as formas de conhecer. Reconhecer essa condição é primordial para diálogos e debates epistemológicos entre diferentes conhecimentos. Além do mais, o acesso a essas diversas formas de saber e às diversas relações entre eles, conforme Santos (2018), está aberto “[...] há certo tempo com férteis resultados, sobretudo no Sul global, onde o encontro entre os conhecimentos hegemônicos e não hegemônicos é mais desigual, e são mais evidentes os limites entre ambos” (Santos, 2018, p. 237). O autor salienta que, nessas regiões, os conhecimentos não hegemônicos se movimentam na produção de resistência contra as relações desiguais provocadas pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo patriarcado.

A expressão epistemologias do Sul, cunhada por Santos (2010), nos faz pensar no sofrimento, na exclusão e no silenciamento de povos e culturas que, historicamente, foram controlados pelo capitalismo e colonialismo. Colonialismo que “imprimiu uma dinâmica histórica de dominação política e cultural submetendo à sua visão etnocêntrica o conhecimento do mundo, o sentido da vida e das práticas sociais” (Tavares, 2009, p. 183). Mais que isso, o colonialismo insistiu sempre em afirmar uma única ontologia, uma única epistemologia, um único modelo antropológico, que culminou em um pensamento único e em sua imposição universal.

Considerando que o conhecimento é colonizado e que o colonialismo, segundo Kilomba (2019), não significou apenas “a imposição da autoridade ocidental sobre terras indígenas, modos indígenas de produção, leis e governos indígenas, mas também a imposição da autoridade ocidental sobre todos os aspectos dos saberes, línguas e culturas indígenas” (Kilomba, 2019, p. 53) e de todas as culturas que se diferenciam da cultura europeia, é urgente a tarefa de descolonizar a ordem eurocêntrica do conhecimento, incluindo os currículos das instituições educativas.

Krenak (2020), intelectual e líder indígena, também questiona a narrativa histórica europeia e traz significativas contribuições para o campo educacional e do currículo ao dizer que “adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história” (Krenak, 2020, p. 27). Ele entende que o “fim do mundo” não é uma preocupação exclusiva do Antropoceno , nem é uma preocupação exclusiva da tão pronunciada “sociedade civilizada”. Existem possibilidades múltiplas de “fins do mundo”, assim como são múltiplos os significados que a eles podemos atribuir. O autor diz que, para muitos dos povos que sofreram o processo colonial/civilizatório e que viram seus mundos sucumbir a uma velocidade extrema, o “fim do mundo” foi encontrado naquele momento. Ele apresenta uma reflexão sobre os pressupostos antropológicos da civilização europeia, “que se toma como carro-chefe da ‘humanidade’, e sobre os efeitos que ela está produzindo sobre as condições materiais e espirituais de existência de todos os povos e espécies existentes da terra” (Castro, 2020, p. 76).

Krenak (2020) destaca a separação da presumida “humanidade homogênea”, marcada pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo patriarcado, de uma “sub-humanidade”, composta de grupos que historicamente ficaram à margem da sociedade capitalista e, portanto, da sociedade de consumo. No entanto, ele salienta que esta “sub-humanidade” não só se relaciona de forma orgânica e profunda com a Terra, como também possui uma organicidade coletiva e não individualista que incomoda as grandes corporações.

O autor diz que essa “sub-humanidade” são “os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra [...] aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes - a sub-humanidade” (Krenak, 2019, p. 21). Ele mostra, assim, que o nosso tempo “é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar” (Krenak, 2020, p. 26). Essa separação entre homem e natureza, própria da modernidade ocidental, exclui os múltiplos formatos assumidos por essa “sub-humanidade”, negando a pluralidade de culturas e de modos de vida divergentes da cultura da homogeneidade.

Para “experimentar o prazer de estar vivo, de dançar e cantar”, é importante situar nossas perspectivas de educação e de currículo nas epistemologias dos “sub-humanos” ou, no dizer de Santos (2010), nas epistemologias que se encontram do outro lado da linha abissal, ou seja, no Sul global. Dessa forma, serão ampliadas as possibilidades de fazer ressoarem os currículos decoloniais das instituições educacionais, contribuindo na decolonização dos currículos vigentes.

3 O RESSOAR DE CURRÍCULOS DECOLONIAIS

O campo do currículo é marcado por diversas e heterogêneas concepções, e existe consenso de que se trata de um campo polissêmico. Essa polissemia tem a ver com o fato de o currículo, não sendo um dado da natureza, mas uma construção social, um artefato da cultura, ser um campo sujeito a disputas, onde os diversos grupos buscam estabelecer sua hegemonia, como aponta Silva (2007). Como construção social, segundo o autor, o currículo está implicado em relações de poder que produzem visões sociais particulares e interessadas, assim como identidades individuais e sociais particulares. Nesse sentido, o currículo é sempre disputado e nunca está dado. Portanto, se ele está marcado pela colonialidade e pela epistemologia ocidental que a sustenta, também existem tensões, lutas e resistências, fazendo ressoar currículos decoloniais.

Diversos questionamentos são dirigidos aos currículos do ensino superior e da educação básica, alertando sobre o caráter colonial das propostas curriculares e dos conhecimentos, ainda enviesados em favor de uma concepção de currículo eurocêntrico, branco e masculino. É visível a maciça presença das culturas que podemos chamar de hegemônicas quando nos detemos, de forma mais atenta, na análise de conteúdos ensinados nas instituições educacionais e também de questões enfatizadas nas propostas curriculares. Torres Santomé (2012, p. 157) diz que “as culturas ou vozes dos grupos sociais minoritários e/ou marginalizados que não dispõem de estruturas importantes de poder costumam ser silenciadas, quando não estereotipadas e deformadas, para anular suas possibilidades de reação”. Na medida em que o currículo privilegia o conhecimento eurocentrado e o apresenta como especializado, portanto, científico/verdadeiro, invisibiliza outras formas de conhecimento, em especial, as epistemologias do Sul, afirmando/definindo o diferente como alguém que, para tonar-se humano, precisa seguir a lógica ocidental. Imerso no padrão de poder da colonialidade, o currículo vê o colonizado como alguém que deseja falar, vestir-se, agir e até mesmo branquear-se como o colonizador:

[...] começo a sofrer por não ser branco, na medida que o homem branco me impõe uma discriminação, faz de mim um colonizado, me extirpa qualquer valor, qualquer originalidade, pretende que seja um parasita no mundo, que é preciso que eu acompanhe o mais rapidamente possível o mundo branco, “que sou uma besta fera, que meu povo e eu somos um esterco ambulante, repugnantemente fornecedor de cana macia e de algodão sedoso, que não tenho nada a fazer no mundo”. Então tentarei simplesmente fazer-me branco, isto é, obrigarei o branco a reconhecer minha humanidade (Fanon, 2008, p. 94).

Universalizando o conhecimento eurocêntrico/moderno, o currículo silencia histórias, reprime subjetividades, subalterniza linguagens e conhecimentos, exercita uma violência epistêmica ao utilizar conceitos específicos de um contexto cultural - no caso, europeu - para interpretar, nominar outros povos, culturas e saberes. De certo modo, o que ocorre no currículo é uma forma de epistemicídio, isto é, um “[...] proceso político-cultural a través del cual se mata o destruye el conocimiento producido por grupos sociales subordinados, como vía para mantener o profundizar esa subordinación” (Santos, 1998, p. 208).

Porém, movimentos de crítica e resistência contra a lógica colonial emergem de múltiplos lugares, culturas e povos do Sul global, ressoando cada vez mais na sociedade, nas instituições e especialmente nas instituições educacionais e nas propostas curriculares. É nesse contexto que situamos nossa pesquisa, que, mesmo reconhecendo a força da colonialidade, mostra que está sendo questionada em diferentes espaços - aqui, nos currículos de formação de professores.

A pesquisa foi realizada no segundo semestre de 2021, por meio de entrevistas semiestruturadas. Em função da pandemia de Covid-19, as entrevistas ocorreram via Google Meet. Foram entrevistados acadêmicos de diferentes licenciaturas (Ciências Biológicas, Educação Física, Pedagogia, Letras e História) de uma universidade localizada em uma capital da região centro-oeste do país. Seguindo a determinação do Comitê de Ética, não serão indicadas mais informações, garantindo o anonimato dos sujeitos, que serão identificados por pseudônimos.

Entendemos que as entrevistas são um instrumento com um histórico que tem mostrado sua legitimidade no campo da educação, sendo capazes de produzir as informações necessárias para atender aos objetivos da pesquisa. “Especialmente nas entrevistas não totalmente estruturadas, onde não há imposição de uma ordem rígida de questões, o entrevistado discorre sobre o tema proposto com base nas informações que ele detém e que no fundo são a verdadeira razão da entrevista” (Lüdke; André, 2017, p. 39).

Foram feitas várias entrevistas com acadêmicos, porém, neste artigo, considerando-se o objetivo proposto, entende-se que a menção a sete é suficiente. Trata-se de acadêmicos que têm algum tipo de experiência de sala de aula (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, Residência Pedagógica, Estágio, Contrato Empregatício), o que explica a presença de falas relacionadas aos contextos de atuação docente.

Uma das questões recorrentemente apontadas pelo campo das relações étnico-raciais, mostrando a força da colonialidade do currículo, é a negação do racismo, seja ele visto como um problema de classe (discriminado porque é pobre, e não porque é negro), seja considerado como brincadeira ou piada, seja por outras razões: “há professoras e professores não negros que escamoteiam o seu preconceito, adotando diferentes estratégias para negar o racismo e não se posicionar diante de práticas discriminatórias na escola e na universidade” (Gomes, 2021, p. 449).

Quando percebemos que, para nossos entrevistados, há racismo em diferentes contextos, o que inclui a universidade e as escolas, e que se posicionam contra ele, vemos nessa postura um ressoar decolonial: “alguns com quem eu fico mais tempo, que são o 5º e 6º anos, eles possuem muitas piadas que chegam, sim, ao campo do racismo e de serem preconceituosas. Tanto que eu já chamei a atenção diversas vezes” (Leandro, Letras). Essas piadas geralmente baseiam-se em visões estereotipadas, inventadas no contexto colonial.

Adiche (2019), ao falar sobre a literatura eurocentrada que fez parte de sua formação quando ainda criança na Nigéria, chama a atenção para os estereótipos construídos pelo poder colonial sobre outros povos, culturas, saberes e lugares que não se enquadram no modelo europeu ocidental. Esses estereótipos contribuem para a colonialidade do currículo. Ela destaca que, durante uma fala que realizou em uma universidade, um estudante “[...] disse que era uma grande pena que os homens nigerianos fossem agressivos como a personagem do pai no meu romance” (Adiche, 2019, p. 12). Como ela mesmo escreveu, com certa irritação, retrucou que: “[...] tinha acabado de ler um livro chamado O psicopata americano e que achava que era uma grande pena que os jovens americanos fossem assassinos em série” (Adiche, 2019, p. 12). Como explicou a autora, ela nunca havia imaginado que, pelo fato de ter lido um livro sobre um psicopata americano, chegaria à conclusão de que todos os americanos são psicopatas. Então, por que o aluno chegou à conclusão de que todos os nigerianos eram agressivos? Porque esse aluno só teve acesso a uma história única, a história estereotipada, a história “universal”, inventada pelo colonizador, diferentemente dela, que teve acesso a várias histórias sobre os Estados Unidos. Com isso, ela mostra como os estereótipos, formas de subjetividade muito presentes nos currículos das instituições educacionais, limitam e formatam o pensamento, especialmente quando se trata da África.

Outra entrevistada, uma acadêmica de Pedagogia, traz uma reflexão que coloca em xeque um dos pilares da epistemologia ocidental e da colonialidade, bem como da estereotipificação, ao apontar que a Base Nacional Comum é “muito” universal: “Como a gente olha mais especificamente, dentro da realidade de cada instituição, a Base vai se tornando algo muito universal. Então, a Base acaba tirando um pouco da especificidade de cada criança e da caracterização de cada escola” (Paula, Pedagogia). A fala da acadêmica Mariana remete-nos novamente a Adiche (2019), que, ao contar a história da sua infância, mostra o quanto um currículo dissociado da realidade da criança (um currículo colonial) impactou a vida dela:

Quando comecei a escrever, lá pelos sete anos de idade - textos escritos a lápis com ilustrações feitas com giz de cera que minha pobre mãe era obrigada a ler -, escrevi exatamente o tipo de história que lia: todos os meus personagens eram brancos de olhos azuis, brincavam na neve, comiam maçãs e falavam muito sobre o tempo e sobre como era bom o sol ter saído. Escrevia sobre isso apesar de eu morar na Nigéria. Eu nunca tinha saído do meu país. Lá, não tinha neve, comíamos mangas e nunca falávamos do tempo, porque não havia necessidade. Meus personagens também bebiam muita cerveja de gengibre, porque os personagens dos livros britânicos que eu lia bebiam cerveja de gengibre. Não importava que eu não fizesse ideia do que fosse cerveja de gengibre. Durante muitos anos, tive um desejo imenso de provar cerveja de gengibre. Mas essa é outra história (Adiche, 2019, p.7).

A autora diz que sua história demonstra o quanto o sujeito é vulnerável ao currículo, principalmente na infância. Por isso, quando a acadêmica mostra sua preocupação com a especificidade da criança e do contexto da escola, identificamos isso como um ressoar curricular decolonial.

Kilomba (2019) também faz ressoar sua voz de resistência ao poder colonial e contribui no processo de descolonização do currículo. Dentre tantas questões abordadas pela autora, frisamos a força da reflexão sobre o colonialismo na academia e a urgência em decolonizar o conhecimento. A autora lembra que, quando frequentava a universidade, era a única aluna negra do Departamento de Psicologia. Ela conta:

Nos pediam para ler sobre a época dos “descobrimentos portugueses”, embora não nos lembrássemos de termos sidos descobertas/os. Pediam que escrevêssemos sobre o grande legado da colonização, embora só pudéssemos lembrar do roubo e da humilhação. E nos pediam que não perguntássemos sobre nossos heróis e heroínas de África, porque elas/eles eram terroristas e rebeldes. Que ótima maneira de colonizar, isto é, ensinar colonizadas/os a falar e escrever a partir da perspectiva do colonizador (Kilomba, 2019, p. 65).

Kilomba (2019) traz à tona a marca colonial da sociedade, das instituições educacionais e do currículo e reforça a não neutralidade desses espaços. Ela diz que tais espaços ainda são, em certa medida, espaços do branco e que, portanto, o privilégio da fala tem sido negado para as pessoas negras. Salienta que, historicamente, entre outros espaços, nas instituições educacionais, “[...] as negras/os têm estado sem voz e onde acadêmicas/os brancas/os têm desenvolvido discursos teóricos que formalmente nos construíram como a/o ‘Outras/os’ inferior, colocando africanas/os em subordinação absoluta ao sujeito branco” (Kilomba, 2019, p. 50). Contudo, a autora explicita que o lugar de objetificação, lugar da outridade, comumente ocupado por negros e negras, não significa falta de resistência, mas sim falta de acesso à representatividade pela comunidade negra. Diz a autora: “não é que nós não tenhamos falado, o fato é que nossas vozes, graças a um sistema racista, têm sido sistematicamente desqualificadas, consideradas conhecimento inválido” (Kilomba, 2019, p. 51). Assim, a autora não nos deixa esquecer como as pessoas negras e suas culturas foram, sistematicamente, representadas na academia pela lógica da colonialidade.

Citamos também a fala do acadêmico de História, que põe em xeque a ideia de uniformidade, também central no processo de construção da colonialidade, e que nos faz lembrar a história de Adiche (2019), de Kilomba (2019) e de tantos alunos e alunas que não veem suas histórias contempladas pelo currículo colonial: “Eu fico pensando na dimensão do nosso país. Quando falam assim: ‘Base Comum Curricular’, é uma coisa uniforme para o nosso país. Eu, pessoalmente, não conheço a minha cidade inteira. Nunca fui a certos bairros. Agora, imagina o Brasil!” (Hélio, História).

Essas falas, que ressoam currículos decoloniais, têm relação com a luta histórica dos movimentos sociais, incluída no Brasil, em parte, como política pública pelo Estado, no período 2003-2015, aumentando significativamente a presença de outros sujeitos nas universidades, favorecendo a presença das epistemologias do Sul e a ecologia de saberes (Santos, 2010, 2018). Como aponta Gomes (2021, p. 449), as ações afirmativas “[...] têm possibilitado a formação intelectual e política de uma parcela de jovens negras e negros que chega ao Ensino Superior, principalmente o público, comprometida com a luta antirracista”.

Além dos negros, ao adentrarem na educação institucionalizada, indígenas, quilombolas, LGBTQIA+, feministas, dentre tantos outros, introduzem também seus conhecimentos, suas epistemologias, suas culturas, seus anseios, e desacomodam as relações de poder/saber colonial. Essa presença, como mostram os entrevistados em nossa pesquisa, tem sido fundamental no processo de formação e tem ressignificado os currículos, o que, segundo nossa argumentação, sinaliza a decolonialidade e a ecologia de saberes: “Tive oportunidade de estudar com vários indígenas. É muito legal esse contato com eles, que a gente aprende muita coisa diferente com eles” (Breno, Biologia); “De acordo com as escolas aonde eu fui até agora, sempre são didáticas diferentes. Sempre são alunos diferentes. Convivências diferentes” (Paulo, Pedagogia). “No curso, a gente tem uma diversidade bem grande até. Tipo, tem bastante indígenas. Negros, nem tanto. Digamos, tem uns três. [...] Acho que é bom a gente ter contato com pessoas de culturas diferentes. Acho que enriquece a gente” (Beatriz, Biologia).

Ao mesmo tempo em que apontam que a presença de sujeitos diferentes enriquece a experiência (o currículo), também indicam que essa experiência é muito importante, já que, nas escolas onde atuam ou vão atuar, as diferenças estão sempre presentes:

A gente também trabalhou sobre as diferenças, as raças, as etnias, e abordamos outras diferenças. E é uma coisa fundamental que, para mim, tem sido muito bom. A gente ter trabalhado esse conteúdo é uma ótima experiência. [...] E é bom esse tipo de experiência porque a gente aproveita para aprender como lidar dentro da sala de aula (Elis, Educação Física).

Fizemos questão de citar várias falas, pois as consideramos fulcrais na luta pelo currículo decolonial. Percebe-se a diferença como algo positivo, que enriquece, que aumenta a aprendizagem, desestabiliza a colonialidade, em que o diferente é inferior, anormal, desviante, atrasado, feio, inadequado. Essas falas ganham mais relevância ainda se considerarmos que:

Os processos educacionais, em geral, reforçam a lógica da colonialidade, promovendo a homogeneização dos sujeitos neles implicados, reconhecendo um único tipo de conhecimento como válido e verdadeiro, aquele produzido a partir do referencial construído pela modernidade europeia (Candau, 2020, p. 681).

Vemos as falas dos alunos como um ressoar significativo de currículos decoloniais. Como Candau (2020) tem há muitos anos trazido em seus artigos, a ideia que os professores têm sobre como lidar com os alunos é na perspectiva da negação das diferenças: “‘aqui são todos iguais’, resposta à pergunta ‘como você lida com as diferenças na sua sala de aula?’, é recorrente e expressão de uma cultura escolar construída sobre a afirmação da igualdade, legado da lógica da modernidade” (Candau, 2012, p. 238).

Por isso, junto com Gomes (2012), enfatizamos a necessidade de ampliar cada vez mais o direito à educação, tendo em vista que, quanto mais se universaliza a educação básica e se democratiza o acesso ao ensino superior, “mais entram para o espaço escolar sujeitos antes invisibilizados ou desconsiderados como sujeitos de conhecimento. Eles chegam com os seus conhecimentos, demandas políticas, valores, corporeidade, condições de vida, sofrimentos e vitórias” (Gomes, 2012, p. 99). A autora salienta que são esses sujeitos que questionam os currículos colonizados e colonizadores, ao mesmo tempo em que exigem propostas decoloniais.

Diante desses movimentos, demandas e resistências, aprofunda-se cada vez mais a necessidade de os currículos considerarem, em suas propostas, as complexas relações de poder/saber que se instituíram e se mantêm com a “[...] centralidade da Europa (assumida como epicentro da história do mundo e gênesis da História do Brasil), calcada no protagonismo de grandes personagens - brancos, via de regra - em eventos nos quais as elites definiam os rumos da vida brasileira” (Coelho; Coelho, 2021, p. 5).

Nossa pesquisa indica que a entrada de outros sujeitos na universidade contribui para que a diferença seja vista como possibilidade de aprender mais, de ter mais experiências, de combater a lógica do racismo, eixo estruturante da colonialidade. A presença de outros sujeitos na universidade colabora para que os efeitos da invasão colonial europeia sejam considerados nos currículos e colocados em discussão. Os diferentes sujeitos, portanto, fazem ressoar currículos decoloniais, que tensionam a narrativa hegemônica do currículo ao incluírem suas narrativas e as dos diversos grupos presentes na sociedade.

4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Ao finalizarmos o artigo, reafirmamos a relevância de falar dos silêncios curriculares - seja dos cursos universitários e/ou das instituições escolares - que ainda persistem nos dias de hoje e da urgência em intensificar o ressoar de outros currículos e outras epistemologias, que, como vimos, existem mesmo diante da colonialidade do currículo.

Os silêncios curriculares, provocados pelo conhecimento hegemônico/colonial, posicionam os demais sujeitos e conhecimentos nas margens, como desviantes, sem qualidade e validade. Ao mesmo tempo, os silêncios curriculares intentam conservar no centro o discurso hegemônico/colonial e confirmá-lo, cada vez mais, como único, como norma, porque científico: “[...] quando elas/eles falam é científico, quando nós falamos é acientífico” (Kilomba, 2019, p. 52). Essa hierarquia pretende definir/determinar quem são os sujeitos que podem falar.

Lembramos que nossa pesquisa, de forma alguma, ignora que nas universidades e nas escolas ainda predominam pensamentos coloniais, que reforçam e legitimam a hegemonia de um modelo epistêmico ocidental denominado por Castro-Gomes (2015) de ponto zero. Este seria um modelo epistêmico baseado na ideia de que a ciência moderna ocidental se situa fora do mundo, para analisar esse mundo de forma isenta, sendo somente ela capaz de produzir o conhecimento verdadeiro e com validade universal.

Diante disso, grandes desafios são colocados para o campo educacional e curricular, entre os quais, salientamos: cada vez mais, fazer circular, coexistir, diferentes epistemes, diferentes formas de conhecimento, deslocando do centro o saber/poder colonial; priorizar mais os enfoques epistemológicos sobre as subjetividades subalternizadas e excluídas, para possibilitar a produção de conhecimentos distintos daqueles da modernidade ocidental; desenvolver um trabalho que busque, ainda mais, “desafiar e derrubar as estruturas sociais, políticas e epistêmicas da colonialidade” (Walsh, 2009, p. 24). Assim como Kilomba (2019, p. 12), discordamos veementemente da “glorificação da história colonial” e buscamos outras linguagens, histórias, conhecimentos e currículos, fazendo ressoar currículos decoloniais.

Como vimos, para esse ressoar, a presença de sujeitos de diversos movimentos e grupos culturais, com suas vozes, tem sido central. Eles trouxeram, para dentro dos currículos, discussões que vão questionando a colonialidade, sua suposta universalidade e desejo de uniformidade, bem como a lógica da produção dos estereótipos. Essa presença vai também fazendo com que a diferença deixe de ser vista sistematicamente como algo negativo, que atrapalha, para ser considerada como algo que enriquece as experiências, os conhecimentos, os currículos. Assim, para além dos silêncios curriculares da colonialidade, há o ressoar de currículos decoloniais.

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NOTAS:

1 Com a expressão modernidade/colonialidade, estamos nos referindo à colonialidade do poder, que, conforme Quijano (2005), produziu inúmeros efeitos para a constituição das sociedades latino-americanas, pois foi modelando suas instituições e reproduzindo, dessa forma, a dependência histórico-estrutural. A colonialidade do poder dificultou, historicamente, uma democratização de fato nessas nações; a colonialidade do saber, que, conforme Lander (2005), representa o caráter eurocêntrico do conhecimento moderno e, portanto, envolvido com as formas de dominação colonial/imperial; e a colonialidade do ser, que, segundo Maldonado-Torres (2007), entende a modernidade como uma conquista permanente que permite o avassalamento da humanidade do outro.

NOTAS:

2 Conforme colocado por Krenak (2020), entendemos Antropoceno como a atual era dos humanos, cujo impacto das atividades humanas é extremamente significativo, a ponto de criar crescentes desajustes/incertezas ambientais, colocando em risco a continuidade da vida humana no planeta.

Recebido: 19 de Agosto de 2022; Aceito: 10 de Agosto de 2023; Publicado: 29 de Março de 2024

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