1 INTRODUÇÃO
O TEA foi incorporado à categoria deficiência em 2012, por meio da Lei 12.764 que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, que também reconhece os direitos desse grupo (Silva, 2020). Somado a isso, o transtorno ainda não é plenamente compreendido e, por conseguinte, raros são os estudos que demonstram a sistematização de práticas pedagógicas que atendam às especificidades desse público, especialmente no Ensino Superior (Rosa, 2015; Silva, 2020).
Essa escassez de parâmetros provavelmente se deve ao fato de que grande parte da produção científica se centra na origem do TEA, na intervenção precoce e nos métodos que podem propiciar o desenvolvimento de habilidades requeridas no contexto educacional, mas com um recorte muito mais voltado aos anos iniciais do ensino fundamental (Bosa, 2001; Bosa, 2002; Schimidt e Bosa, 2003; Lampreia, 2007).
O TEA, desde 2014 nomeado como Transtorno do Espectro Autista, traz impactos no comportamento, na linguagem e na interação. A pessoa com esse transtorno tem um padrão de neurodesenvolvimento atípico, ou seja, uma condição neurológica diferente daquela que é a mais frequente na população. Existem muitos tipos de funcionalidade entre as pessoas com TEA, daí o uso do termo espectro - que denota a grande variação no grau e na maneira como o TEA se manifesta em cada pessoa (Mello, 2007).
O DSM-V (APA, 2014) é a versão mais atual (no momento de elaboração do presente artigo) do manual diagnóstico e estatístico elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria. O referido documento é uma das principais bases para o diagnóstico dos transtornos mentais e traz mudanças na definição do autismo em sua quinta edição. Nessa perspectiva, não há mais a divisão que ocorreu em edições anteriores, ou seja, condições como Transtorno de Asperger, Transtorno desintegrativo da infância, Transtorno global ou invasivo do desenvolvimento sem outra especificação, além do autismo. Na atualidade, estão todos englobados na nomenclatura “Transtorno do Espectro do Autismo” (TEA).
Também, a tríade (comunicação, comportamento e sociabilização) que estava presente na edição anterior - DSM-IV (APA, 2002) - foi substituída por dois domínios no DSM-V: um relativo ao déficit de comunicação e interação social e outro que diz respeito aos comportamentos/interesses restritos e repetitivos. Há ainda 3 graus de comprometimentos (necessita suporte, necessita de suporte substancial e necessita de suporte muito substancial). Além disso, o critério que considerava o atraso ou ausência total de linguagem expressiva deixou de constar nessa última edição. Com essa diminuição de critérios e a consideração de diferentes níveis de funcionalidade, o número de pessoas que se enquadra no espectro do autismo aumenta e mostra-se muito variado, isto é, há pessoas que vivenciam impactos sutis, enquanto outras têm comprometimentos substanciais na funcionalidade.
Podemos dizer, portanto, que existem abundantes características no TEA já mapeadas, mas contraditoriamente, uma carência no aprofundamento dos critérios que devem ser utilizados para avaliar a escrita desse grupo na Educação Superior - tanto no ingresso, quanto na permanência. A despeito de muitas vezes as pessoas com TEA serem compreendidas por uma matriz de sentidos que as generalizam como geniais, especialmente aquelas que acessam a Educação Superior, elas vivenciam barreiras. Para transpô-las, é preciso traçar parâmetros objetivos e padronizados na avaliação e na mediação dos estudantes com TEA no Ensino Superior, porque as políticas de ações afirmativas buscam trazer equidade e condições igualitárias - no acesso e na permanência - daí a relevância de um trabalho como esse (Pneepei, 2008).
O artigo em tela faz parte de uma investigação mais ampla, desenvolvida no Estágio Pós-Doutoral, que tem como locais de pesquisa cinco Universidades Federais do Sul do Brasil. O objetivo do mencionado estudo é levantar as particularidades da linguagem escrita de estudantes com TEA, por meio da elaboração de diferentes gêneros do discurso. No entanto, aqui será apresentada uma das etapas do estudo: a análise de um questionário que tem como foco a trajetória de ensino, a produção textual e os aspectos que facilitam a construção da linguagem escrita e do aprendizado. Acreditamos que tais diretrizes podem apontar para práticas educacionais mais sistematizadas e acessíveis.
Isso porque os processos que cercam as iniciativas de inclusão/acessibilidade são recentes e permeados por muitos desafios. Esse empreendimento inclusivo envolve grupos diversos, mobilizando uma maquinaria extensa de saberes e poderes: dentre eles, as formas de avaliar, tanto em exames de ingresso em Instituições de ensino superior, quanto durante o período formativo; o que envolve o redimensionamento das formas de ensinar e de aprender.
2 TEA, APRENDIZAGEM E ESCRITA
De acordo com Mello (2007), há diferentes métodos educacionais utilizados com crianças com TEA. Dentre eles, destaca-se o Tratamento e Educação para Crianças com TEA e com Distúrbios Correlatos da Comunicação (TEACCH), o Análise aplicada ao comportamento (ABA) e o Sistema de Comunicação através de Trocas de Figuras (PECS). O primeiro deles está pautado na organização do ambiente e no estabelecimento de rotinas; e o segundo visa a ensinar à criança algumas ações, que ela ainda não possui, por meio da repetição; o terceiro, PECS, é um sistema de comunicação por meio de cartões com figuras que representam ações. Em suma, existem modelos já bastante estruturados para o TEA, mas sobretudo com foco na infância.
Silva et al. (2019) apontam para o aumento do ingresso de pessoas com TEA no ensino superior, incremento intimamente ligado às políticas públicas voltadas a propiciar equidade aos grupos de pessoas com deficiência. No entanto, o mesmo estudo sugere que é preciso aprofundar em mecanismos que garantam a permanência dos sujeitos com TEA, sobretudo em um momento no qual as iniciativas voltadas à Educação Especial se encontram ameaçadas.
No mesmo sentido, Sales e Viana (2020) discutem a acessibilidade da pessoa com TEA no ensino superior, tomando por base discussões científicas e legislações sobre a temática. Apesar de também reconhecerem o avanço das políticas, bem como o aumento no ingresso de pessoas com TEA, referem que existe a necessidade de aprofundar na compreensão da temática e nos processos psicopedagógicos e de acessibilidade voltados à pessoa com TEA no contexto universitário.
De igual modo, Santos (2019) ressalta a importância do ingresso da pessoa com TEA no ensino superior, não apenas para o desenvolvimento de suas capacidades, mas por promover uma transformação no fazer docente. Aponta, ainda, desde a fase do ingresso, a importância de se levar em conta a forma como a pessoa com TEA se manifesta e se expressa - e isso passa pelo processo de produção escrita. Quanto às ações de permanência de estudantes com TEA na universidade, o núcleo de acessibilidade juntamente com as coordenações de cursos foram, para além das políticas inclusivas institucionalizadas, os grandes eixos de inclusão e de aprendizagem desses estudantes, segundo estudo realizado por Silva (2020).
Já Donati e Capellini (2018) realizaram estudo de caso no qual descrevem a consultoria colaborativa voltada a docentes, tendo como foco um estudante com TEA matriculado no curso de graduação em Matemática. Os resultados da empreitada foram bastante positivos e, ainda que seja uma pesquisa particularizada, as pesquisadoras referem a importância de se adequar as avaliações voltadas aos estudantes com TEA e qualificar as práticas docentes.
Pereira (2014), por sua vez, refere a pouca participação do estudante com TEA em sala de aula e atribui esse fenômeno à formação docente precária, que culmina em poucas estratégias que promovam o acesso desses alunos ao currículo regular - e acredita no Plano Educacional Individualizado como uma forma de promover acessibilidade aos estudantes com TEA.
Na mesma direção, Rocha et al. (2018) apontam para a escassez de investimentos e estudos sobre os estudantes com TEA no nível superior de ensino. Defendem, ainda, a centralidade do docente nesse processo, na consideração das particularidades, mas também referem a possibilidade de adotar algumas medidas gerais que contribuam com a permanência desse grupo no ensino superior.
Isso porque, o ensino superior pode ser um ambiente singular para que a pessoa com TEA desenvolva seus interesses restritos, porém, não significa que não são necessárias adaptações e ou flexibilizações, de acordo com Sales e Viana (2020). Os autores indicam, ainda, a importância de ajustes em avaliações, e no decorrer da formação acadêmica, de caráter individual. O plano de desenvolvimento individual (PEI) também é apontado por esses autores como uma alternativa eficaz no decorrer da trajetória do estudante com TEA no ensino superior. No entanto, há etapas que extrapolam essas medidas. O ingresso via vestibular/Enem, por exemplo, requer parâmetros mais universais/globais de correção.
Aliás, essas constatações nos levam a refletir acerca da dimensão curricular. Se por um lado, alguns estudos aqui mencionados apontam para a elaboração de currículos individualizados aos estudantes com TEA, se pensarmos em uma perspectiva mais global e alinhada ao modelo social da deficiência, é preciso considerar propostas curriculares mais flexíveis, que abarcam diferentes funcionalidades e corporeidades. Pensar na perspectiva do modelo social é entender que a deficiência, e aqui localizamos o TEA, não está encerrada no sujeito, mas é vivenciada na medida em que os ambientes não estão preparados para receber a variação humana. Essa perspectiva, que se contrapõe ao modelo médico - o qual entende a deficiência como sinônimo de lesão ou alteração biológica, e portanto, individual - rompe com a noção de que a pessoa precisa se adequar a um modelo universal e entende que as barreiras existentes no ambiente e nas práticas precisam ser redimensionadas (Oliver, 1983, 1986).
Tais reflexões nos aproximam da noção de desenho universal para aprendizagem. Modelo que põe em xeque a noção de currículo único e pouco flexível. Nessa perspectiva, é preciso considerar três princípios básicos: proporcionar (1) formas variadas de apresentação, (2) diferentes modos de ação e de expressão e (3) maneiras múltiplas de engajamento, envolvimento. Em outras palavras, os currículos devem levar em conta formas diferenciadas de apresentação dos conteúdos, bem como as diversas maneiras como os estudantes respondem e demonstram seus aprendizados, além dos variados modos como são motivados e se engajam nas tarefas (Sebastián-Heredero, 2020).
No que diz respeito à linguagem escrita, de acordo com Bernardino (2015), para algumas pessoas com TEA é pela escrita que se dá a comunicação com o outro, em outras palavras, a escrita pode ser o principal meio de expressão da pessoa com TEA. Na mesma seara, Weisheimer (2019), em estudo realizado com estudantes com TEA leve, indica uma relação rígida com a linguagem escrita, assentada no detalhamento excessivo, que pode ser explicada pelas estereotipias que marcam o transtorno. Além disso, ainda no estudo de Weisheimer (2019), as produções escritas que foram sugeridas em sala muitas vezes tinham comandos vagos, no entanto, a autora ressalta:
Ancorados em Bakhtin, entendemos que o ensino da linguagem escrita deve abordar o contexto sócio-histórico do aluno e não deixar de lado a presença de um interlocutor. Para que isso ocorra, é necessária a utilização de comandos de produção concretos, com clareza do gênero discursivo e o interlocutor que interagirá com o texto (Weisheimer, 2019, p. 98).
Ainda no que diz respeito à produção escrita, essa é compreendida como um processo interativo e relacional, ou seja, além da materialidade da língua, do domínio da sintaxe e do vocabulário, é preciso levar em conta a finalidade do texto: quem escreve e para quem se escreve - de modo que se atinjam os efeitos pretendidos. Além disso, é preciso garantir a sequenciação do texto, isto é, estratégias linguísticas que permitem o avanço do texto e a construção dos sentidos (Kock; Elias, 2012; Kock; Elias, 2013).
Ainda, de acordo com as mesmas autoras, de modo mais pormenorizado podemos dizer que a produção de um texto envolve o acionamento de quatro sistemas de conhecimento: linguístico, enciclopédico, textual e interacional. Dito de outro modo, são mobilizados e requeridos quatro (4) conhecimentos para escrever, embora muitas vezes focamos apenas nas questões relativas à língua: (1) linguístico - é impossível negar essa materialidade essencial para a produção textual, (2) enciclopédico - as informações acerca de assuntos e de conhecimentos diversos que acumulamos em nossa memória, (3) de textos - conhecimento de diversos gêneros textuais, suas estruturas e particularidades e (4) interacional - que se refere à expressão e à indicação da intencionalidade do texto.
Já os componentes do contexto são espécies de esquemas que intervém na comunicação. O contexto condiciona o discurso e o transforma, ou seja, ele é construído e reconstruído ao longo da atividade discursiva e, ao escrever, o sujeito faz suposições acerca do leitor, e sobre a forma de “capturá-lo”. Pelo contexto, se avalia aquilo que é adequado ou inadequado, permite colocar em evidência aquilo que é esperado em termos de continuidade temática e progressão textual, explica ou justifica o que foi dito, o que deve e o que não deve ser dito (Kock; Elias, 2012). Em suma, tanto a escrita quanto a leitura envolvem a interação autor- leitor- texto.
A propósito, dentre as características do TEA, destacam-se a dificuldade na leitura do contexto, na interação, na possibilidade de se colocar no lugar do outro e, além disso, a resistência em romper com determinados padrões de ações (APA, 2014; Bosa, 2001; Camargo e Bosa, 2009). O hiperfoco e a literalidade, outras características presentes no espectro, podem dificultar a mobilização e a compreensão de sentidos variados - e a rigidez cognitiva, sobretudo, impacta a consideração de diferentes gêneros textuais.
Em relação à aquisição da escrita pela pessoa com TEA, essa é comumente marcada por dificuldades, seja em relação ao próprio gesto motor (prejuízo na coordenação motora), seja pelo predomínio da atenção ao componente visual ou mesmo pelo pouco engajamento no processo de simbolização/representação (Bialer, 2014; Santos; Chiote, 2016; Sampaio; Oliveira, 2017).
Vygosty (2007) e Luria (2010), ao explorarem a pré-história da escrita, ou seja, processos que antecedem a escrita propriamente dita, apontam a importância do gesto, do desenho, da brincadeira. Para escrever, no entanto, é preciso que a criança passe da representação das coisas, para a representação das palavras e essa ocorre culturalmente, pela mediação.
Em estudo que explora o pensamento dos autores supracitados, Santos e Chiote (2016) admitem que muitos dos ingredientes cruciais para a apropriação da escrita são descritos como prejudicados na criança com TEA, no entanto, seus estudos realizados com crianças da educação infantil e do ensino fundamental indicam que o outro e a oralidade ocupam um papel central no desenvolvimento da escrita de qualquer pessoa.
Aliás, a respeito do outro, os estudos sobre a aquisição da linguagem, especialmente os de caráter dialógico, coadunam com a perspectiva exposta. Os estudos dialógicos entendem que a linguagem se constrói em situação partilhada, na qual o adulto, já submetido aos significados, reveste os comportamentos da criança de sentido. Nesse processo, em princípio assimétrico, o infante passa a se apropriar desses significantes e significados e assume seu papel de falante - e também de escrevente. Além disso, a ideia que o adulto faz da criança enquanto falante (e escrevente) é fundamental para que esse processo se efetive, é fundamental para que as relações entre a criança e o adulto passem a ser recíprocas. Daí a importância da interação, daí a essencial necessidade de que o adulto acredite na potencialidade linguística da criança (De Lemos, 1982; 1995). Essa mediação do adulto, no entanto, não parece se restringir ao início do desenvolvimento e pelos estudos aqui partilhados, as ações docentes são cruciais para maximizar as capacidades de compreensão e produção textual - sobretudo quando voltadas aos estudantes com TEA.
Pelo exposto acima, fica evidente que os domínios impactados pelo TEA são cruciais para a produção escrita, uma vez que as dimensões interacionais, a mobilização da linguagem funcional - com propósito comunicativo e que pressupõe a consideração do outro e de suas reações - bem como o abandono de determinados assuntos e acolhimento de outros para garantir a fluidez do texto - são justamente os aspectos historicamente construídos como mais comprometidos no funcionamento da pessoa com TEA. Tais considerações, por conseguinte, justificam o aprofundamento nas características da linguagem escrita de estudantes com TEA no ensino superior e o estabelecimento de critérios diferenciados nos processos avaliativos e ao longo da trajetória acadêmica desse grupo. Como bem reforça Schmidt (2017, p. 229), para quem as pesquisas envolvendo TEA são muito mais numerosas na saúde, se comparadas com a área da educação:
[...] apesar dos avanços no entendimento do TEA e sua utilização para o desenvolvimento de intervenções nos campos clínico e educacional, o panorama nacional ainda mostra demandas pouco atendidas como pesquisas empíricas, de natureza aplicada na geração de resultados, que apoiem o desenvolvimento de políticas públicas para atendimento a essa população.
Nesse sentido, em relação à modalidade escrita da linguagem, ainda que não sejam negadas as idiossincrasias humanas, é preciso atentar para as características gerais do TEA - que devem entrar em jogo quando se avalia um texto. Para o recorte do presente trabalho, é preciso indagar: Por quais caminhos de aprendizagem o sujeito com TEA passou? Quais discursos ele pratica sobre o aprendizado e, mais especificamente, sobre a escrita? O que se atualiza em suas experiências no ensino superior? São essas perguntas que buscaremos responder.
3 METODOLOGIA
O estudo tem caráter qualitativo, uma vez que, de acordo com Godoy (1995, p. 21), a pesquisa dessa natureza apresenta uma reconhecida possibilidade de “estudar os fenômenos que envolvem os seres humanos e suas intrincadas relações sociais, estabelecidas em diversos ambientes”.
Optou-se pelo viés exploratório, tendo em vista que as características da escrita da pessoa com TEA na universidade ainda são pouco abordadas, logo, é preciso, em consonância com a vertente exploratória (Gil, 1999), ampliar os conhecimentos acerca dessa perspectiva, já que as investigações ficam muito mais centradas na aquisição e nas fases iniciais de apropriação da linguagem escrita.
A investigação contou com 13 participantes com Diagnóstico de TEA. Os envolvidos têm idades entre 20 e 47 anos e estudam em uma das cinco Universidades Federais do Sul do Brasil com o maior número de estudantes com TEA em seus quadros de alunos (de acordo com consulta feita com as próprias instituições). Os participantes são provenientes de cursos de graduação diversos - das áreas de Humanas, Exatas e Biológicas - e oito (8) deles são do gênero masculino, portanto nesse recorte particular não houve predominância masculina expressiva, conforme apontam os estudos da área (Reis et al., 2019; Zanon et al., 2017).
A escolha por Universidades Federais se assenta no fato de que existem políticas e iniciativas de inclusão nos referidos espaços, logo, são locais que não apenas recebem estudantes com deficiência, como existe um movimento para incluí-los. O Programa de Acessibilidade na Educação Superior - Incluir (2005), por exemplo, buscou fomentar a criação e a consolidação dos núcleos de acessibilidade - obrigatórios nas universidades federais a partir do Decreto n. 7.611/ 2011. Esses núcleos buscam organizar as ações institucionais e a integração de pessoas com deficiência à vida acadêmica, eliminando barreiras comportamentais, pedagógicas, arquitetônicas e de comunicação (Brasil, 2005; 2011; Santana et al., 2015).
Após as autorizações necessárias, este estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa pela Plataforma Brasil (39829220.6.0000.0102) e foi aprovado pelo parecer (4.522.898). A primeira fase da pesquisa envolveu o contato com as universidades e com os estudantes com TEA.
Os estudantes, que aceitaram voluntariamente participar da pesquisa e assinaram o TCLE, responderam ao questionário elaborado pelas pesquisadoras. Tal procedimento buscou mapear as características da escrita, bem como as barreiras e os gestos acessíveis da trajetória do estudante com TEA.
As respostas dos participantes foram analisadas pela perspectiva discursiva foucaultiana. Os principais textos de Foucault que dão base para sua perspectiva e análise discursivas são: “Arqueologia do Saber” (1969/1997) e “A ordem do discurso” (1970/1996) - portanto, essas foram as principais obras que respaldaram a análise.
Podemos dizer que para a análise discursiva de base foucaultiana é preciso romper com a noção de que haveria um princípio, um enunciado original, já que as dispersões e os deslocamentos atravessam os sentidos. Se não há originalidade, o discurso é, no limite, um retorno, e é sobre as condições de seu reaparecimento que devemos nos voltar - quais condições permitem o reaparecimento desse enunciado? O que já foi dito e aquilo que jamais foi dito, porque, se acabamos de dizer que não há nada inédito no discurso, por outro lado há algo de novo em seu reaparecimento. E esse ressurgimento é marcado por deslocamentos. Se há um cerne que é o mesmo, há, por outro lado, algo extremamente original na forma como é reativado. Aliás, há conjunturas que permitem o reaparecimento de determinados discursos e não de outros. Nas palavras de Foucault (1997, p. 31):
A análise do campo discursivo é orientada de forma inteiramente diferente; trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação excluí.
Disso decorre, de acordo com Dias (2018), que o enunciado é um acontecimento que não se esgota. Logo, a análise discursiva foucaultiana não se restringe aos sentidos facilmente apreensíveis, superficiais. É nos interstícios que está o sentido, ou seja, essa verdade não explícita também fala. Aliás, uma constatação bastante coerente com a relatividade da autoria, ou seja, se ao tomar a palavra outros discursos pairam sobre o meu, o sentido não está encerrado no meu, outrossim, está atrelado à memória, à minha posição-sujeito, às condições de possibilidade e aos sentidos dos quais não temos consciência. Na análise, será necessário, pois:
[...] definir um conjunto de enunciados no que ele tem de individual consistiria em descrever a dispersão desses objetos, apreender todos os interstícios que os separam, medir as distâncias que reinam entre eles - em outras palavras, formular sua lei de repartição (Foucault, 1997, p. 37).
Na perspectiva foucaultiana, pois, é preciso atentar para o jogo dos aparecimentos e dispersões dos discursos, que permeia um de seus conceitos mais caros para a análise do discurso:
No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva (Foucault, 1997, p. 43).
A análise, em suma, busca alcançar o sistema que torna possível a formação daquele discurso, tendo como focos: a dispersão, as falhas, as incompatibilidades e as condições de possibilidade. Analisar os percursos educacionais - e o encontro com a escrita - desde a aquisição até a elaboração de gêneros requeridos no ensino superior é um meio de acessar a forma pela qual o estudante com TEA tem se constituído. Afinal, aquilo que é dito e praticado em relação ao sujeito que escreve constrói uma imagem do escrevente - daí a escolha por esse método para analisar os questionários dos estudantes com TEA e, por conseguinte, acessar os sentidos que sustentam suas formas de aprender e praticar a escrita.
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
|Além dos dados pessoais de identificação, como idade, curso e universidade na qual o participante estuda, o questionário contou com oito questões que seguem domínios que abarcam a trajetória escolar, o aprendizado da leitura e da escrita, os processos de inclusão desde os anos iniciais da educação fundamental até o ingresso na Universidade e as práticas de escrita e leitura que permeiam essa etapa de ensino.
Os participantes optaram, de maneira quase unânime, por responder ao questionário de forma escrita. Apenas um deles preferiu que as perguntas fossem realizadas verbalmente e, na sequência, transcritas pelas pesquisadoras. Também, somente um participante, dentre os treze, preferiu responder de modo manuscrito. Todos os demais preferem a digitação na construção de seus textos.
Os discursos que sustentam o uso do computador se assentam na letra pouco legível. Aliás, um sentido que está atrelado à descrição do TEA (Catelli et al., 2016). Por outro lado, para o participante que prefere escrever de próprio punho, o gesto motor da escrita cursiva é essencial para a produção de seu texto. Poderia se argumentar que se trata de uma condição muito excepcional, mas esse uso não se assenta em preferência, é atualizado como crucial. Logo, o formato restrito (apenas digitado - recorrente nos trabalhos requeridos no ensino superior ou apenas manuscrito - comum nas redações de vestibulares) é uma barreira ao funcionamento do estudante com TEA enquanto escrevente, e precisa ser deslocado para que práticas inclusivas passem a entrar em jogo no ambiente universitário.
Por fim, no que diz respeito à escrita em si, a objetividade que está atrelada à descrição do TEA é deslocada. O fluxo de sentidos que é suscitado pela questão disposta no questionário é bastante disperso. Escrever e, por conseguinte, colocar-se têm limites fluidos, ou melhor, podem não ter muitos limites para alguns participantes. Isto é, falar das memórias escolares é falar de tudo aquilo que é acessado. Aliás, a excelente capacidade mnemônica que também atravessa o TEA (Lima, 2020) se mistura com a produção textual. Na contramão da objetividade, essa facilidade em acionar eventos - com riqueza de detalhes - emerge no texto e pode ser confundida com fuga ao tema e com respostas vagas.
Retomando os passos metodológicos, para facilitar a análise propriamente dita, dividimos as respostas obtidas em quatro eixos, todos eles atravessados pela temática central do trabalho - a linguagem escrita: (1) memórias escolares, (2) processos de acolhida, (3) barreiras vivenciadas e (4) universidade.
As narrativas obtidas por meio dos questionários respondidos pelos participantes não apontam uma tendência única, mas variados sentidos acerca da trajetória educacional de pessoas com TEA. Ao rememorar os caminhos traçados nos primeiros anos de ensino, “as memórias escolares”, há, no entanto, uma unanimidade, ou melhor, uma repetição, qual seja, todos explicitam, antes mesmo de falar da aprendizagem em si, as dificuldades na interação (APA, 2014). Provavelmente esse discurso aqui ressurge porque é o momento no qual as capacidades de engajamento são mais requeridas, contexto que quebra com o padrão familiar de rotina. Aprender e interagir surgem aqui como categorias extremamente imbricadas.
Não significa que os participantes enunciem que não aprendem - já que todos apontam para as dificuldades na interação - mas essas ressurgem de forma bastante explícita quando se fala da escola. A formação discursiva do ambiente escolar abarca interações com professores e com outros alunos, mas é a estreiteza com o professor que aparece como algo que coloca suas capacidades em funcionamento.
Há, além disso, duas tendências na formação discursiva das memórias escolares: o trauma e o bom desempenho, que parecem disjuntivos, mas se tocam. Aqui, não se trata tão somente de experiências dolorosas de um lado e exitosas de outro. Todos os participantes mencionam, de algum modo, as dificuldades notórias na relação com os colegas e na ocupação do ambiente escolar. Também, não estão emergindo sentidos dicotômicos de resultados bons e ruins, afinal, os sentidos não são unívocos e transparentes (Foucault, 1996). Na verdade, é notório o movimento de que as experiências são discursivizadas como mais amenas quando existe um bom desempenho nos estudos, mas, de modo geral, o ambiente escolar é enunciado como um lugar hostil e de incompreensão. Mudanças recorrentes de colégio e fracasso escolar permeiam alguns relatos.
Em outras palavras, a despeito das dificuldades de interação que são acionadas em todos os relatos, as experiências são enunciadas como mais positivas a depender do resultado alcançado nos estudos. E esse resultado é ressignificado por esse grupo. Isto é, não são acionados apenas os sentidos historicamente atrelados ao bom desempenho, como menções honrosas, notas altas, mas sobretudo a capacidade de aprender, de entender. Essa é uma literalidade que põe em dispersão os sentidos legitimados de que o bom aluno é aquele que tira notas altas. Isto é, para a maioria do grupo, ter êxito é aprender.
Nessa direção, importante ressaltar que o desempenho é enunciado como um dispositivo que depende enormemente de outrem. Aliás, ainda que a descrição do TEA tenha sua verdade construída em torno da dificuldade de interação, de engajamento, de consideração do outro, aquele que interage, que media, que ensina, é encarado pelos participantes como central e se subdivide em pelo menos duas categorias: (1) a família é um desses elos, já que em alguns casos toma para si a tarefa de ensinar, ou de reforçar de forma bastante comprometida os conteúdos oferecidos pela escola e (2) outro ponto é o docente ou profissional de apoio (sobretudo do Atendimento Educacional Especializado - AEE), cujas práticas e manejos pessoais impactam diretamente no aprendizado. Interessante aqui registrar que esses últimos marcam a história de alguns participantes de forma muito pontual e profunda. Para esses, houve um único professor que os entendeu, um único evento no qual aprenderam de fato.
A família é enunciada, mesmo quando os discursos pairam sobre a escola, provavelmente porque essa tem um papel bastante ampliado quando há nela um membro com TEA. Obviamente que as funções do sistema parental e escolar são bastante próximas e por vezes se misturam. Não significa que famílias neurotípicas não se envolvam com o aprendizado dos filhos, mas é comum que os familiares tomem para si a tarefa de ensinar ou reforçar de forma bastante nítida, também os conteúdos escolares de seus filhos com TEA.
Tal perspectiva é reforçada por sentidos de que a escola se estrutura para estudantes que apresentam formas de aprender típicas, alunos que têm ritmos semelhantes, logo, ser uma pessoa com TEA pode demandar um acompanhamento bastante próximo dos familiares - aliás, para além dos conteúdos escolares. Inclusive, é comum que membros da família de pessoas com TEA se tornem estudiosos do assunto. No limite, é uma tentativa de compreender aquilo que não é compreendido pelos outros (Moschini; Schmidt, 2019). Aqui, as posições tornam-se intercambiáveis, ou seja, num movimento de dispersão, os pais passam a ensinar os professores sobre características do transtorno.
No que diz respeito aos processos de acolhida, a formação discursiva da mediação abarca diferentes outros, mas esses são apontados como positivos, sobretudo mediante duas tendências principais: (1) aqueles que impõem regras e (2) aqueles que os entendem. A necessidade de imposição de regras possivelmente se alinha com uma das características atreladas ao TEA, ou seja, a inflexibilidade nas rotinas, a rigidez cognitiva (Ramos et al., 2012). Entender, nessa conjuntura, tem uma direção principal: a de deixar o estudante fazer o que ele quer. Importante, no entanto, relativizar esse enunciado.
Nos relatos, “fazer o que se quer” não é construído como sinônimo de não fazer nada, ou mesmo de se engajar em alguma algazarra. Mas é importante analisar a escolha desse sintagma por alguns participantes. Esse discurso reaparece provavelmente por dois motivos: existe uma centralidade no eu, naquilo que esse eu “deseja”, mas há o ressurgimento de um discurso repetido de que a pessoa com TEA tem dificuldades de quebrar padrões, de agir à revelia de sua vontade. Mas é essencial trazer os sentidos que compõem esse enunciado.
Não se trata de fazer aquilo que se deseja, mas levar em conta os aspectos que facilitam o aprendizado, que regulam a pessoa com TEA. Uma participante, em especial, cita a necessidade de que alguém segure sua mão enquanto apresenta um trabalho oral. Por conseguinte, os professores que permitem isso, bem como em outros relatos, aqueles profissionais que respeitam a forma como o estudante com TEA se engaja nos processos de aprendizagem: seja caminhando pela sala, escrevendo na lousa, ou mesmo fazendo desenhos no caderno, são enunciados como bons. “Eles eram bons comigo” são discursos que ressurgem para designar aqueles profissionais que acolhem diferentes formas de aprender, que as colocam em prática. Nessa perspectiva, aquilo que seria um direito - ter suas particularidades respeitadas - é equiparado à bondade pessoal. Não expor o estudante, também é sinônimo de bondade.
A exposição aqui não se refere apenas ao sigilo quanto ao diagnóstico, aliás, a maioria absoluta deles não teve esse sentido suscitado na infância, uma vez que o diagnóstico tardio, já na fase adulta, inclusive após o ingresso na universidade, é quase uma regra. Aliás, manter a condição velada não é um discurso que aparece. A exposição é referida em muitos casos como enunciados que ressoam e mostram o desconforto de muitos docentes com funcionalidades que fogem à regra: “estranha/o”, “lerda”, “lesma”, “a moça autista” são sintagmas que circularam nas vivências de alguns dos participantes.
A violência simbólica, inclusive, muitas vezes não era percebida pelo participante, mas denunciada por colegas que percebiam ironias e duplos sentidos que não foram captados pelo estudante com TEA. Estamos aqui no terreno das barreiras vivenciadas, que falam mais das reações do outro do que daquilo que foge às habilidades do sujeito com TEA, como são a dificuldade em lidar com quebras de rotina, imprevisibilidade e figuras de linguagem. Sobre isso é importante ressaltar que nessas conjunturas os docentes tomam as características da pessoa com TEA como pessoais e independentes do contexto e, aqueles que não consideram suas particularidades estão barrando a prática de um poder que não é menor que o legitimado, ou seja, os discursos das pessoas que vivem a condição e que sabem melhor do que ninguém:
[...] existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade (Foucault, 1979, p.71).
Em relação à última dimensão, nomeada como Universidade, que abrange o ingresso no ensino superior e o percurso no ambiente universitário propriamente dito, a dificuldade com o manejo da linguagem escrita é um discurso recorrente - tanto no processo vestibular, quanto nos trabalhos e nas provas requeridos durante o percurso universitário. Existem, aliás, alguns pontos importantes acerca disso: o formato dos trabalhos requeridos (cursivo X digitado), o tempo destinado para as tarefas (que de modo geral precisa ser ampliado), a falta de clareza dos enunciados e a carência de parâmetros para escrever.
Barulhos no ambiente, excesso de luminosidade e instruções ambíguas constituem o conjunto de aspectos que influenciam a escrita, a leitura e a aprendizagem como um todo, aliás, sentidos já sabidos, legitimados e que coadunam com aqueles veiculados pela literatura (Mattos, 2019). Porém, além da dificuldade em compreender sentidos não literais - outra verdade que circula sobre o transtorno - os estudantes com TEA necessitam de orientações muito claras, em diferentes formatos, sobre aquilo que se quer em uma atividade. Tal clareza, pelos relatos aqui abordados, necessita de aspectos muito bem conduzidos, como definição da quantidade de linhas, delimitação do tema e o caminho que se deve percorrer. E as explicações meramente orais, ainda que sejam claras e sem ambiguidades, não parecem suficientes. Esquemas, instruções escritas e mediações durante o processo são apontados como frutíferos.
No entanto, não significa que escrever seja, necessariamente, uma tarefa árdua para todos os participantes. Há aqui dois sentidos disjuntivos de facilidade X dificuldade. Existem estudantes que apontam o escrever como algo muito confortável, aliás, a forma preferida de comunicação, e aqueles que referem fuga ao tema, dificuldade na formulação, o que culmina em ver na escrita uma tarefa enfadonha, complexa e sob a qual não se tem domínio. Não conseguir escrever com facilidade culmina em não gostar de realizar tal atividade, aliás, um sentido bastante comum, que circula entre grupos neurotípicos (pessoas sem TEA) e neurodiversos (pessoas com TEA).
Porém, em alguns momentos, a leitura e a escrita podem ser identificadas como o mero manejo de uma tecnologia. Um enunciado como o produzido por uma praticante: “Aprender a ler foi muito simples. As letras tinham sons, era só juntá-los e falar em voz alta”, talvez sustentem as experiências de hiperlexia, ou seja, de crianças com TEA que aprendem a ler com pouca idade e sem instrução formal (Baldaçara et al., 2006), e que muitas vezes decodificam, mas não necessariamente acessam o significado. Inclusive, um dos participantes acredita que aprendeu a ler pelos desenhos infantis legendados que assistia.
Ademais, enquanto alguns não se sentiam preparados para os textos requeridos na universidade, outros não encontraram dificuldades em compreendê-los e produzi-los. Interessante aqui que essa incapacidade é enunciada como não atrelada às características clássicas do estudante com TEA. Dito de outro modo, ainda que as dificuldades no manejo do duplo sentido, a fuga ao tema, ou a própria elaboração escrita sejam referidas em outros momentos do questionário, quando a investigação recai nos textos requeridos no ensino superior, tanto o preparo, quanto o despreparo por parte do estudante, estão relacionados às experiências prévias (bons cursinhos, ensino básico de qualidade). Em suma, mais uma vez aqui as barreiras enfrentadas não se relacionam a uma funcionalidade particular, mas às estruturas externas que (in)viabilizam o domínio da linguagem.
Não significa, com isso, que não exista um movimento individual para atingir um melhor domínio e manejo das habilidades requeridas no ensino superior. De modo geral, os participantes se engajam em atividades extraclasse, seja no atendimento educacional especializado, seja em monitorias. Em outras palavras, a esfera individual (empenho do estudante) - aliás, para alguns participantes a ausência de barreiras no ensino superior não se deve à estrutura e às práticas adotadas, mas são justificadas por suas habilidades pessoais - e a esfera coletiva (ambiente, professores) entram em tensão - no entanto, há um polo que se destaca.
O outro - que abrange o ambiente, os professores, os colegas (já que a falta de interação acompanha grande parte dos participantes também no ensino superior) - e as metodologias de aprendizagem condicionam funcionamentos. Na perspectiva foucaultiana, mesmo aqueles enunciados canônicos são dispersos, logo, aquilo que circula sobre o TEA não tem um sentido imutável e unívoco, porque mesmo os discursos legitimados como o livro e a obra devem ter sua unidade questionada (Foucault, 1996).
Além disso, não existe apenas um poder macro, legítimo, vinculado às instituições, mas há micropoderes cotidianos que também são praticados e que produzem saberes e identidades. No limite, os desvios do estudante com TEA, pelos próprios discursos praticados, não são provenientes de “disfunções pessoais e individuais”, mas são reflexos de práticas que não acolhem e que não colocam em ação aquilo que os contemplam.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentre os aspectos que acionam a funcionalidade dos estudantes com TEA, há dois principais sentidos disjuntivos: rigidez e flexibilidade. Dito de outro modo, assim como alguns sujeitos são contemplados com prazos muito rígidos, interpretados como molas propulsoras para a produtividade, outros evoluem a partir de práticas mais livres e flexíveis. Ademais, ainda que o TEA seja identificado com a falta de consideração do outro e com processos de introspecção, ao enunciar suas vivências, os participantes acionam prioritariamente significantes externos, alheios a eles: familiares rígidos, professores que não os compreendem, ajustes que não são feitos em provas, ou mesmo a ausência de qualquer medida, são enunciados que aparecem. Emblemática a resposta de um dos participantes - quando questionado sobre práticas que o auxiliavam, ele respondeu que nada era feito.
Há, ainda, participantes que mencionam como aspectos que acionam suas potencialidades, aqueles sentidos legitimados, como são as iniciativas de acessibilidade e as políticas públicas que as respaldam, mas a maioria desloca esses sentidos ao acionar aqueles micropoderes engendrados nas relações mais corriqueiras, como são as atitudes de alguns professores, as pequenas mudanças no ambiente e a aceitação de suas demandas.
Por ser o TEA um espectro, e um espectro descrito em pessoas, já esperávamos que não existiriam padrões únicos, mas, com certeza, o estudo aqui apresentado nos indica que é preciso levar em conta aquilo que contempla as particularidades do estudante com TEA. É preciso ouvi-lo, é preciso romper com os sentidos que circulam dentre muitos docentes, de que “fazer diferente é prejudicar os demais”, que “oferecer certos ajustes é permissivo demais”, ou “delimitar demais as tarefas é podar a criatividade”.
Estabelecer parâmetros para ensinar, a partir da perspectiva inclusiva, consiste em considerarmos, por princípio, a diversidade. Portanto, se tomarmos o funcionamento neurodiverso do sujeito com TEA, práticas diferenciadas jamais serão privilégios, mas ajustes necessários a um grupo que rompe com os limites das padronizações. Afinal, nas palavras de Foucault (1984, p. 13), “existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou refletir”.
Para Foucault, o discurso é, ao mesmo tempo, objeto de desejo e aquilo pelo que se luta, que se quer apoderar. Tomar a palavra é algo que nos move a todos (Foucault, 1996). Aliás, ao mesmo tempo em que elaboramos, construímos essas mesmas coisas; dito de outro modo, para Foucault (1997, p. 55), os discursos são práticas que “formam sistematicamente o objeto de que falam”. Como é trazido por Foucault (1996), praticar o discurso, além de ser um desejo e uma forma de exercício do poder, é de algum modo uma maneira de se subjetivar. Somos cooptados pela palavra já dita, mas ela não é a mesma depois que a fazemos circular. Assim como também já não somos quem éramos.
Do mesmo modo como os discursos constroem os sujeitos com TEA, especialmente as questões que envolvem o aprendizado e a educação superior que são o recorte deste estudo, eles também nos apontam para novas práticas. Levar em conta as particularidades do estudante com TEA, que emergiram dos discursos aqui analisados, não deve conduzir à construção de um currículo em separado, mas propiciar movimentos para torná-lo mais universal, mais flexível - o que não impacta apenas o sujeito com TEA, mas todos os estudantes, sem distinção - aliás, são fazeres como esses que coadunam com os sentidos da diversidade, na medida em que acolhem diferentes formas de relacionamento com os saberes.
Por fim, esse olhar para fora, que ressurge nos discursos dos participantes, constrói sujeitos com TEA que se constituem como seres relacionais e que, por conseguinte, não têm apenas as dificuldades na interação como uma característica, mas mostram como essas mesmas interações são construtoras de suas identidades e funcionalidades.