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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.22  São Paulo  2024  Epub 29-Jul-2024

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2024v22e58762 

Artigos

Desafios e possibilidades na trajetória de uma aluna surda em um curso técnico integrado no Instituto Federal de Rondônia

Challenges and possibilities in the trajectory of a deaf student in a integrated technical course at the federal institute of Rondônia

Desafíos y posibilidades en la trayectoria de una alumna sorda en un curso técnico integrado en el Instituto Federal de Rondônia

João Guilherme Rodrigues Mendonçai 
http://orcid.org/0000-0002-6970-4933

Livia Catarina Matoso dos Santosii 
http://orcid.org/0000-0002-5245-9193

Márcia Cristina Florêncio Fernandes Moretiii 
http://orcid.org/0000-0002-7366-8605

Marlene Rodriguesiv 
http://orcid.org/0000-0002-3030-6057

i Pós-doutor em Educação Sexual pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp); Docente no Mestrado Profissional em Educação Escolar e no Curso de Pós-graduação Lato Sensu em Educação Infantil/Unir. E-mail: jgrmendonca@unir.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-6970-4933.

ii Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Educação Escolar, Mestrado e Doutorado (PPGEEProf) da Universidade Federal de Rondônia (Unir). Pedagoga do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia (Ifro) Campus Porto Velho Calama. E-mail: livia.santos@ifro.edu.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-5245-9193.

iii Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Educação Escolar, Mestrado e Doutorado. (PPGEEProf) da Universidade Federal de Rondônia (Unir). Tradutora Intérprete de Língua de Sinais do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Rondônia - Campus Jaru e Professora na Faculdade de Jaru FIMCA-Unicentro. E-mail: marcia.moret@ifro.edu.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-7366-8605.

iv Doutora em Educação Escolar pela Faculdade de Ciências e Letras - Campus Araraquara (FCLAr) da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp). Professora da Universidade Federal de Rondônia. E-mail: marlene.rodrigues@unir.br - ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-3030-6057.


Resumo

O presente estudo tem por objetivo caracterizar e discutir as demandas e as ações no atendimento à primeira aluna surda em um curso técnico no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia (Ifro), avaliando as conquistas e os desafios vivenciados por ela e pelos profissionais envolvidos no seu percurso formativo na Instituição. A metodologia se configurou em um estudo de caso, com revisão da literatura e análise de documentos legais. Foi realizada escuta sensível dos relatos de experiência, tendo em vista a necessidade de adaptação dos envolvidos no processo educacional. Os resultados apresentaram êxito na trajetória da estudante por meio do atendimento educacional especializado, a partir de adaptações nos formatos das avaliações, no plano de ensino em Libras e nas propostas de acessibilidade desenvolvidas na pandemia da Covid-19.

Palavras-chave: surdez; ensino; aprendizagem; Libras

Abstract

This study aims to characterize and discuss the demands and actions in assisting the first deaf student in a technical course at the Federal Institute of Education, Science and Technology of Rondônia (Ifro), in Brazil, evaluating the achievements and challenges experienced by her and the professionals involved in their training at the Institution. The methodology was configured in a case study, with a literature review and analysis of legal documents. Sensitive listening to experience reports was carried out, in view of the need for adaptation of those involved in the educational process. The results were successful in the student's trajectory through specialized educational service, based on adaptations in the evaluation formats, in the teaching plan in Libras (Brazilian Language Sign) and in the accessibility proposals developed in the Covid-19 pandemic.

Keywords: deafness; teaching; learning; Libras (Brazilian Language Sign)

Resumen

El presente estudio tiene como objetivo caracterizar y discutir las demandas y acciones en la atención de la primera alumna sorda en un curso técnico en el Instituto Federal de Educación, Ciencia y Tecnología de Rondonia (Ifro), evaluando los logros y desafíos experimentados por ella y por los profesionales involucrados en su trayectoria formativa en la institución. La metodología se fundamentó en un estudio de caso, con revisión bibliográfica y análisis de documentos legales. Los informes de la experiencia fueron escuchados atentamente, teniendo en cuenta la necessidad de la adaptación de los involucrados en el proceso educativo. Los resultados presentan suceso durante el trayecto de la estudiante por medio del atendimento educacional especializado, a partir de las adaptaciones del formato de las evaluaciones, en el plano de la enseñanza de la lengua de signos y en las proposiciones de la accesibilidad desarrolladas en la pandemia del Covid-19.

Palabras clave: sordera; enseñanza; aprendizaje; lengua de signos

1 INTRODUÇÃO

É por meio da língua que os seres humanos manifestam suas emoções e pensamentos. Se observarmos qualquer grupo social, veremos como o idioma e a cultura estão interligados. Existem várias Línguas de Sinais em todo o mundo, todas possuem seu próprio léxico e se afirmam enquanto sistemas abstratos com regras gramaticais próprias, como qualquer outra língua.

A Língua Brasileira de Sinais (Libras) é reconhecida como meio legal de comunicação e expressão da comunidade surda brasileira, reconhecida pela Lei n.º 10.436/2022 e regulamentada pelo Decreto 5.626/2005. Trata-se de uma comunicação gestual-visual, autônoma em relação à Língua Portuguesa, que, no lugar de voz, utiliza sinais, gramática e símbolos próprios em sua expressão.

Nos Institutos Federais (IFs) do Brasil, assim como no Instituto Federal de Rondônia (Ifro), houve um aumento no ingresso de estudantes surdos nos últimos anos, consequentemente passou a existir a necessidade de repensar a educação inclusiva e os métodos de ensino aplicados em sala de aula, bem como de avaliar o percurso das práticas educativas inclusivas que favoreçam a aprendizagem desses estudantes.

De modo geral, os IFs têm oportunizado a entrada de diferentes públicos em seus diversos cursos e níveis de ensino, entre eles pessoas com deficiências. Contudo, alguns IFs, como também o Ifro, encontram dificuldades de ofertar os recursos humanos, materiais e físicos necessários à equiparação de oportunidades aos estudantes público-alvo da educação inclusiva.

Diante desse contexto, o Núcleo de Atendimento às Pessoas com Necessidades Específicas (NAPNE) do Ifro vem atuando e elaborando estratégias para favorecer a formação profissional dos estudantes com deficiência. O propósito principal de tais estratégias é procurar saber dos próprios estudantes e dos profissionais envolvidos na sua formação quais são os principais desafios enfrentados e quais metodologias de ensino podem promover melhor aprendizagem.

Para a elaboração desta pesquisa, foi utilizado o estudo de caso, com o objetivo de discutir as demandas e as ações no atendimento de uma aluna surda em um dos cursos do Ifro, identificando, durante a sua trajetória, os fatores que contribuíram para o seu avanço acadêmico e compreendendo quais os desafios e possibilidades por ela encontrados.

A motivação para a realização do estudo partiu do interesse de tornar conhecida a trajetória dessa aluna na Instituição, de modo a auxiliar outros estudantes surdos a conseguirem concluir um curso na rede federal de educação; a motivação resulta, também, do interesse de descrever as adaptações realizadas pelos professores e pela equipe do NAPNE na referida organização.

2 O BILINGUISMO E A INCLUSÃO ESCOLAR

A inclusão ainda é um desafio para a educação. Quando analisamos a realidade encontrada nas escolas brasileiras, entristecemo-nos ao ver as dificuldades enfrentadas pelos estudantes público-alvo da Educação Especial (EPAEE) e as barreiras impostas para se ter acesso à educação. Essas dificuldades trazem impacto direto ao processo de ensino e aprendizagem, pois limitam a construção da aprendizagem e o desenvolvimento integral desses alunos.

Fernandes e Moreira (2014) consideram que a educação inclusiva para surdos requer uma transformação curricular com a inserção da cultura surda, a presença de professores surdos e a Língua Portuguesa como segunda língua. Essa proposta é pautada no conceito de bilinguismo, que busca respeitar a autonomia da Língua de Sinais e estruturar um plano educacional que favoreça as experiências psicossocial e linguística dos(as) surdos(as).

Desse modo, para termos uma educação de surdos(as) exitosa, são imprescindíveis a valorização de sua língua materna e o fortalecimento dessa relação cultural e identitária, em que sejam priorizadas a Língua de Sinais como L1 e a Língua Portuguesa como L2. Com a concepção de bilinguismo, que prioriza a Língua de Sinais como L1 e a Língua Portuguesa como L2, não se fala mais em limitações, mas em novas possibilidades, sendo a Libras o meio mais eficaz de concretizar a aprendizagem. Portanto, a oferta de oportunidade educacional pensada nessa linha prestará melhorias no desenvolvimento linguístico das pessoas surdas.

Considerar a educação de surdos significa reconhecer as duas línguas, saber que cada uma possui uma gramática, parâmetros e estruturas próprias, e que o ensino desses estudantes deve ser pensado e embasado na ótica bilíngue. De acordo com Pedreira (2011), assumir a perspectiva de educação bilíngue significa dizer que o processo de ensino e aprendizagem não se limita a aspectos linguísticos, psicológicos e pedagógicos apenas, mas também implica questões sociais, políticas e culturais.

Assim, é preciso pensar que a pessoa surda possui uma cultura própria, e nela sua percepção é visual. Possui, ainda, uma língua materna - a Libras (L1), que é reconhecida “como meio legal de comunicação e expressão [...] e outros recursos de expressão a ela associados” pela Lei n.º 10.436/2002 e pelo Decreto 5.626/2005, que a regulamenta. Ao se propor uma educação de qualidade a todos, deve-se assumir a relação intrínseca entre educação e cultura, pois variadas manifestações integram a formação de uma cultura surda - como a construção educacional dos indivíduos, as lutas políticas pela inclusão, a contextualização histórica, a surdez como experiência visual, entre outras.

3 METODOLOGIA

Este é um estudo de caso em que se torna possível chegar à compreensão de uma realidade mais complexa. Sobre esse método, Laville e Dionne (1999, p. 156) consideram que:

Se o estudo de caso incide [...] sobre um caso particular, examinando em profundidade, toda forma de generalização não é por isso excluída. Com efeito, um pesquisador seleciona um caso, na medida em que este lhe pareça típico [...]. As conclusões gerais que ele tirará deverão, contudo, ser marcadas pela prudência, devendo o pesquisador fazer prova de rigor e transparência no momento de enunciá-las.

Nesse sentido, para melhor perceber o processo de ensino e aprendizagem dos estudantes surdos, foi necessário ouvir relatos de experiência de intérpretes de Libras e de uma aluna surda, visto que, para entender corretamente a realidade analisada, é fundamental conhecer narrativas de quem vivenciou a situação. O estudo de caso, portanto, trata-se de um estudo intensivo e sistemático sobre uma instituição, comunidade ou indivíduo que permite examinar fenômenos complexos.

A pesquisa foi realizada com uma estudante surda do Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia de Rondônia (Ifro), localizado na região norte do Brasil. Para acompanhar de perto a rotina da aluna em sala de aula, foram realizadas visitas mensais à Instituição, período em que foi feita a observação de seu comportamento e desempenho.

A metodologia da pesquisa incluiu a revisão da literatura e análise de documentos legais em vigor. Os resultados alcançados foram baseados nos relatos das colaboradoras à luz das análises documentais e da literatura da área, bem como no conhecimento de que o caso da aluna surda estava registrado no acompanhamento contínuo de profissionais da saúde e educação, presentes no laudo médico, laudo fonoaudiológico, orientações dos pais, orientações pedagógicas, orientações da equipe multidisciplinar do NAPNE e nas seguintes leis: Lei n.º 10.436/2002, que discorre sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras; Decreto n.º 5.626/2005, que regulamenta a Lei n.º 10.436/2002; Lei n.º 12.319/2010, que regulamenta a profissão de Tradutor/Intérprete da Língua Brasileira de Sinais; Lei Brasileira da Inclusão n.º 13.146/2015, e o Código de Ética Profissional dos Tradutores Intérpretes de Língua de Sinais (Quadros, 2004).

4 RESULTADOS DO ESTUDO DE CASO

A Educação Profissional no País foi concebida a partir das Escolas Técnicas Federais, cujo objetivo primordial era atender às necessidades das indústrias do momento, ou seja, ao capital. Segundo Antunes e Alves (2004, p. 337), “com o desenvolvimento da lean productione das formas de horizontalização do capital produtivo [...] tem sido possível constatar uma redução do proletariado estável, herdeiro da fase taylorista/fordista”. Essa realidade brasileira foi concebida a partir da pedagogia tecnicista, que teve seu apogeu no decorrer da Ditadura Militar, entre os anos 1964 e 1985.

Sabe-se que os Institutos Federais são amplamente difundidos no cenário brasileiro, contribuindo na formação dos jovens que precisam estar preparados para se inserirem no mundo do trabalho. Assim, os IFs têm um importante papel de formação, ofertando cursos técnicos juntamente com o Ensino Médio. Pacheco (2010) destaca que os IFs foram criados com a finalidade de oferecer uma educação capaz de formar cidadãos que tenham condições de atravessar obstáculos, pensando e agindo nas transformações tanto políticas como econômicas e sociais.

Os cursos técnicos capacitam o aluno com conhecimentos teóricos e práticos, de forma mais objetiva e breve, para atuação no setor produtivo; buscam formar profissionais para o mercado de trabalho, mas também são capazes de preparar para uma formação mais ampla, permitindo ao aluno prosseguir nos cursos superiores. No caso da modalidade de curso técnico integrado, o aluno faz o curso técnico integrado ao Ensino Médio, ou seja, simultaneamente. Para ingressar nessa modalidade, o candidato deve ter concluído o Ensino Fundamental, ou concluí-lo até a data da matrícula. A forma de ingresso dos candidatos se dá por meio de um processo seletivo, que acontece uma vez ao ano.

A estudante participante da pesquisa é surda profunda. Ingressou no curso técnico de Informática na modalidade integrada ao Ensino Médio no ano de 2019, cheia de expectativas, anseios e medos por estar experienciando um curso novo e uma realidade diferente da habitual para ela. Apesar de ter concluído o Ensino Fundamental no ano de 2018 em uma escola pública, o ingresso no Ifro trazia inseguranças quanto à sua inclusão e êxito na nova fase educacional.

Sua trajetória no Ifro foi acompanhada pela equipe do NAPNE e pelos intérpretes de Libras, promovendo acessibilidade e inclusão. A estudante apresentou o laudo em que consta perda auditiva neurossensorial profunda (CID10 - H 90.3), tendo realizado implante coclear. A surdez neurossensorial é a perda auditiva progressiva e permanente, essa condição também pode ser chamada de perda auditiva do tipo neurossensorial, surdez do nervo auditivo ou mesmo de surdez neurossensorial.

É importante ressaltar que a perda auditiva causada pela surdez neurossensorial é gradual, ou seja, a pessoa vai perdendo cada vez mais suas capacidades auditivas. A surdez neurossensorial pode ser classificada em diferentes graus: leve, moderada, severa e profunda, e também pode acometer ambos os ouvidos (bilateral) ou apenas um (unilateral).

Na surdez neurossensorial, podemos destacar alguns sinais clássicos, como:

  • Dificuldade de entender a fala, especialmente em locais com muito ruído de fundo;

  • Quando os sons estão baixos, a pessoa não consegue ouvir, e, quando estão em um volume adequado, escuta de forma abafada;

  • Ouvir barulhos diversos e que não estão acontecendo, como barulhos de cachoeira, apitos e chiados;

  • Sensação de zumbido nos ouvidos;

  • Necessidade de aumentar os volumes da televisão e do telefone celular.

Segundo Rocha (2019, p. 136):

Os estudantes surdos acessam os conteúdos orais por meio dos serviços de tradução e interpretação, porém, não se trata de apenas de um contato temporário [...], a relação entre TILS e estudantes surdos é prolongada, cotidiana, face-a-face e a ausência desses profissionais pode significar o não acesso aos conteúdos, práticas e serviços institucionais.

Desse modo, no caso aqui relatado, o(a) tradutor(a) intérprete foi o elo de transmissão do conhecimento entre docentes e estudante. Essa transmissão se pauta na tradução da fala de professores e professoras para a língua materna do receptor, isto é, a Libras. Cabe destacar que esse profissional não substitui o(a) docente, mas facilita seu trabalho com o(a) surdo(a), quebrando as barreiras comunicacionais existentes e levando o conhecimento até o (a) estudante.

Os(as) professores(as), por sua vez, não deixaram de ter contato com a estudante surda e não transferiram a responsabilidade do ato de ensinar para os Tradutores Intérpretes de Libras (TILS). Apesar de os professores não terem conhecimento da língua de sinais, trabalharam em parceria com os intérpretes na comunicação, seguindo suas orientações, como, por exemplo, sempre se dirigirem à estudante nos momentos de fala, orientações, elogios etc., e não ao intérprete de Libras - erro geralmente cometido nos diálogos com surdos.

Estabelecendo um diálogo direcionado ao surdo, o professor mantém com ele o contato visual, oportuniza sua inclusão e integração e ainda viabiliza seu protagonismo em todas as narrativas e discussões que ocorrem na sala de aula. Vale ressaltar que o tradutor/intérprete é o canal facilitador de comunicação, não podendo ser o destinatário das narrativas existentes em sala de aula, nem ocupar o lugar do professor. Logo, ele não pode responder por nenhum dos indivíduos do discurso, mantendo, assim, um dos princípios do Código de Ética Profissional dos Tradutores Intérpretes de Língua de Sinais (Quadros, 2004), a fidelidade, que significa: ser fiel, não alterar a informação por querer ajudar ou ter opiniões a respeito de alguma coisa. “De modo geral, aos intérpretes de língua de sinais da área da educação é recomendado redirecionar os questionamentos dos alunos ao professor, pois dessa forma o intérprete caracteriza o seu papel na mediação [...]” (Quadros, 2004, p. 63).

Enfatizamos ainda que essa relação interpessoal entre os indivíduos do discurso faz parte das metafunções da linguagem, em que a língua reflete as “relações sociais (papéis e atitudes entre os participantes do discurso)” (Marques-Santos et al., 2022, p. 58).

Pensando na carga horária de trabalho do intérprete, na qualidade de sua atuação em sala de aula e na transmissão do conhecimento à estudante surda, e ainda na tradução simultânea nas aulas, o IFRO contratou profissionais temporários para atuarem em escalas de revezamento. No cotidiano das aulas, verificamos o quanto é importante ter dois intérpretes para cada estudante surdo, pois, além de interpretarem as aulas, precisaram acompanhar a estudante no contraturno com aulas complementares, atividades extracurriculares, monitoria, projetos de extensão, visitas técnicas, atendimento individualizado e outros.

Os(as) professores(as) construíram um plano individual de atendimento à aluna, comprometendo-se com a mudança da realidade e respeitando sua cultura e identidade surda. Esse plano procurou trabalhar de forma sistemática, proporcionando à aluna melhor participação e integração com os demais estudantes da turma. Além disso, os(as) professores(as) passaram a ceder os cinco minutos finais de cada aula para o ensino de práticas de Libras aos ouvintes, a fim de tornar o ambiente escolar mais inclusivo e bilíngue.

O(a) profissional tradutor(a) intérprete deve traduzir não apenas para alunos surdos, mas também para os professores e professoras que não sabem Libras. Nessa trilha, a correção de tarefas e provas deve ser acompanhada por esse profissional, sabendo que a Língua Portuguesa é um sistema linguístico que geralmente as pessoas surdas não dominam.

Destacamos que ocorreu essa parceria durante todo o processo educacional da estudante, e isso só foi possível porque houve uma mobilidade do campus. Quando nos referimos ao campus, estamos nos reportando a todas as adaptações feitas pelos servidores locais ligados ao ensino, à aceitação do “novo” (pois era a primeira surda matriculada no campus), à escuta sensível das necessidades da aluna, à ressignificação do ensino e, ainda, ao interesse de proporcionar uma educação de qualidade. Quanto à parceria que existiu, destacamos: o acesso do intérprete aos conteúdos do professor com antecedência, discussão e esclarecimentos de dúvidas, apoio na preparação dos materiais das aulas, troca de experiências, feedbacks no processo de ensino e aprendizagem, entre outros.

Além de todo trabalho pedagógico voltado ao atendimento da estudante, um fator de relevância é que a aluna tem domínio básico da Língua Portuguesa e domínio fluente na Língua Brasileira de Sinais, o que lhe garante mais autonomia para realizar os estudos e as leituras complementares. A aluna surda é oriunda de uma família ouvinte. Conforme relatado pela família, a filha usaria somente a Língua Portuguesa para se comunicar, no entanto ela conseguiu mostrar aos pais a importância da sua língua de sinais e como ela é fundamental para seu aprendizado e para construção da sua identidade.

Durante toda trajetória da aluna na Instituição, vimos dificuldades, desafios, adaptações e também novas estratégias criadas não só pelos professores, mas também pela aluna, pois o ensino ainda é pautado em uma língua majoritária, por meio da qual é oferecida a mesma educação a sujeitos com culturas e identidades distintas. Cabe, então, ressaltar a importância de um novo olhar sobre a inclusão, sobre a relevância de um trabalho em equipe entre professores e tradutores intérpretes de Libras, que apoie o desenvolvimento dos(as) alunos(as) e viabilize oportunidades de acesso e êxito educacional. Assim, é fundamental buscar novas estratégias, ferramentas, tecnologias, reestruturação nos currículos e metodologias de ensino que facilitem o desenvolvimento dos(as) surdos(as) e que oportunizem a eles, de fato, a inclusão e a acessibilidade.

Considerando todas as afirmativas, podemos alegar que, durante os 3 (três) anos de curso integrado, o processo de ensino e aprendizagem da aluna foi desafiador, mas exitoso, pois foi possível oportunizar o desenvolvimento e a conclusão do curso. A aluna concluiu, aos 19 anos, o seu Ensino Médio e, no ano de 2022, verticalizou o ensino no Ifro, matriculando-se no curso de graduação de Análise e Desenvolvimento de Sistemas (ADS).

No que diz respeito aos desafios da educação brasileira, especialmente no presente cenário educacional, no qual a educação migrou da modalidade presencial para a modalidade remota, vimos agravarem as diversas barreiras e desafios na trajetória estudantil dos(as) surdos(as) diante da necessidade de novas estratégias e adaptações para esse atendimento.

O uso das tecnologias viabilizou o acesso aos conteúdos disciplinares no momento de grande uso das redes. Foi preciso pensar na educação e aliá-la às tecnologias. Quanto à educação das pessoas surdas, o cuidado com a acessibilidade comunicacional também precisou ser priorizado. Dessa forma, durante todas as aulas assíncronas ou síncronas, em momentos de avaliações, reuniões e palestras contamos com a participação do (a) intérprete de Libras.

Todavia, destacamos que para dar essa acessibilidade à estudante, foi preciso uma ação do Ifro, tendo em vista que a estudante é oriunda de uma família economicamente carente. Foram ofertados, a ela e a outros alunos na mesma situação de vulnerabilidade econômica, auxílios para mediação tecnológica, que deveriam ser utilizados para a aquisição de equipamentos (como computador ou celular), e, assim, terem acesso aos conteúdos e às aulas ministradas. No entanto, sabemos que essa não foi uma realidade de todos os estudantes surdos do Brasil, pois muitos não tiveram esse auxílio ou outras condições para o acesso às tecnologias, o que evidencia a desigualdade social no país.

4.1 O currículo da Educação Profissional e a surdez

A Educação Profissional passou por várias mudanças no decorrer dos anos no Brasil. Um marco na história da Educação Profissional foi a criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, por meio da Lei n.º 11.892/2008. Essas instituições ofertam cursos de qualificação, ensino médio integrado, cursos superiores de tecnologia, licenciaturas, bacharelados e atuam na oferta de pós-graduação, em programas lato e stricto sensu.

Os Institutos Federais nasceram com o objetivo de ampliar as oportunidades de acesso ao Ensino Técnico e Tecnológico aos jovens e adultos, estudantes e trabalhadores. Como instituições pluricurriculares e multicampi, os IFs orientam sua oferta formativa em benefício do fortalecimento dos arranjos produtivos, sendo estes sociais e culturais. Especificamente, o Ifro evidencia seu comprometimento com a educação inclusiva, expresso por meio de suas políticas afirmativas que buscam consolidar os espaços pedagógicos com base no respeito à diversidade, ressignificando e acolhendo as diferenças.

Nesse processo, multiplicam-se as possibilidades de crescimento e de aprendizagem para todos os envolvidos, e em consequência multiplicam-se as possibilidades para o aluno surdo. A educação inclusiva, na perspectiva da Educação Profissional, pretende possibilitar que a pessoa com deficiência auditiva ou surda conquiste a sua autonomia, adquirindo competências para exercer uma profissão. Os currículos dos cursos da Educação Profissional têm papéis importantes nesse processo e devem desenvolver ações que esclareçam, junto às empresas e aos familiares da pessoa com deficiência, as verdadeiras capacidades, potencialidades e oportunidades dessas pessoas.

Ciavatta (2005) reflete sobre a proposta de formação integrada dos cursos técnicos de nível médio, argumentando que:

No caso da formação integrada ou do ensino médio integrado ao ensino técnico, queremos que a educação geral se torne parte inseparável da educação profissional em todos os campos onde se dá a preparação para o trabalho: seja nos processos produtivos, seja nos processos educativos como a formação inicial, como o ensino técnico, tecnológico ou superior (Ciavatta, 2005, p. 84).

O currículo integrado propõe que os estudantes compreendam a realidade em que vivem, usando a tecnologia e a ciência como prática social. O ideal de formação para a etapa do ensino médio seria a educação politécnica, entendida como uma educação voltada para a superação da dicotomia entre trabalho manual e trabalho intelectual, cultura geral e cultura técnica. Para Machado (2010), o currículo integrado pode ser conceituado como o ato de reconhecer o estudante como um ser em constante transformação, e que pressupõe o trabalho como princípio educativo, visando à emancipação e à formação de um cidadão transformador da sociedade.

A inclusão de alunos com deficiência no ambiente escolar colabora com a formação integral desses alunos, capacitando-os para uma melhor interação social, em atendimento à Lei n.º 13.146/2015, Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Brasil, 2015).

O currículo, por sua natureza dialética, não poderia ser politicamente neutro diante da desigualdade, dos preconceitos e da exclusão social. Um professor não pode ter apenas o conhecimento específico da disciplina que leciona, ele precisa conhecer e compreender a realidade de sua escola e de seus alunos, para que consiga promover a interação entre o currículo escolar e o conhecimento empírico dos alunos, de modo a aliar teoria e prática.

A forma como o educador olha para seus alunos surdos fará toda a diferença no processo de ensino e aprendizagem e na vida desses sujeitos. É preciso compreender o processo de apreensão dos significados, visando ao desenvolvimento das potencialidades. A construção do currículo deve levar em conta a história de vida dos alunos surdos, seus conhecimentos de mundo, seus interesses e necessidades. O surdo precisa se desenvolver social, intelectual e culturalmente, em uma escola democrática e humanizadora que promova a cidadania.

Ao averiguarmos a literatura sobre a inclusão do surdo na Educação Profissional, especificamente no Ensino Médio Técnico, são poucas as experiências bem-sucedidas nas quais o aluno consegue concluir o curso e ingressar no mundo do trabalho. Estudos mostram que o fato de os sujeitos surdos estarem compartilhando o mesmo espaço escolar e terem o mesmo currículo que os ouvintes não lhes garante acesso efetivo às experiências de aprendizagem, pois é grande a dificuldade dos professores de estabelecerem comunicação com esses alunos (Lacerda, 2006).

Um currículo pela formação dos surdos requer apropriação e reconhecimento de sua cultura. Nesse sentido, é possível depreender que é da natureza dos Institutos Federais zelar pela verticalização do ensino e fundamentar sua política de atuação em projetos pedagógicos cujos currículos se caracterizem pela flexibilidade para atender alunos com necessidades educacionais específicas, itinerários de formação, que permitam um diálogo rico e diverso em seu interior, e integração dos diferentes níveis e modalidades de ensino.

Quantitativamente, os Institutos Federais mostraram-se mais representativos e foram geograficamente distribuídos por todas as unidades da federação, estando presentes tanto nos grandes centros urbanos quanto em regiões do campo. Uma característica importante desse processo de expansão foi a opção pelo viés da interiorização, visando alcançar a democratização do acesso à Educação Profissional.

O currículo escolar deve ser revisto para cada aluno que é acolhido na instituição escolar. É viável que o aluno seja acolhido, incluído no contexto, e não que ele tenha, somado a todas as suas dificuldades de integração, de se adaptar àquilo que está sendo proposto. A educação de surdos, a partir da perspectiva de que o currículo dos cursos precisa ser revisto por causa do ingresso de estudantes surdos, busca entender a produção desse currículo, atentando para novas formas de articulação entre saber e poder, presentes na construção do discurso curricular.

Essas ideias compõem uma forma de compreender o termo “currículo” como sendo um espaço, um campo de produção e de criação de significados por meio de relações de poder, produzindo representações das identidades, neste caso, da identidade surda.

4.2 Avaliação da aprendizagem no currículo da Educação Profissional e os desafios para o(a) estudante surdo(a)

A avaliação tem como função garantir o sucesso dos estudantes, devendo ser um elemento de integração e motivação para o processo de ensino e aprendizagem, de modo a criar possibilidades ao professor e aos estudantes de dialogarem e buscarem corrigir os possíveis erros, redirecionando, assim, os caminhos para a aprendizagem.

Diante desse contexto, as avaliações da aluna surda em estudo foram realizadas na forma de vídeo e na forma oral, em momento separado da turma. As traduções das avaliações, assim como as atividades e apresentações de trabalho, contaram com o apoio de intérpretes de Libras.

Para avaliações específicas de Línguas Estrangeiras, as provas foram realizadas na modalidade escrita, priorizando as alternativas de múltipla escolha. As resoluções das avaliações que envolviam cálculo também puderam ser em modalidade escrita; a prova foi disponibilizada com uma semana de antecedência, para que a intérprete traduzisse as perguntas para Libras em arquivo multimídia.

Para as avaliações de Língua Portuguesa, como leitura obrigatória de livros, interpretação de texto e outros, deveriam ser consideradas as especificidades linguísticas da aluna. Os professores puderam elaborar atividades complementares a serem realizadas fora do horário de aula. Esse material poderia ser aceito como complemento avaliativo, caso a aluna não alcançasse uma média em matérias cuja dificuldade fosse comprovada.

As aulas deveriam ser enviadas por e-mail com uma semana de antecedência para a intérprete de Libras. Assim, o profissional teria como estudar os termos específicos de cada área e realizar uma tradução eficiente. Na falta do envio antecipado do material, a transmissão do conteúdo sofreu prejuízo, levando a aluna a um baixo rendimento nas futuras avaliações.

Foi orientado pelo NAPNE que as aulas precisariam ter mais recursos pedagógicos com elementos visuais e práticos, no sentido de facilitar a assimilação e memorização do conteúdo pela aluna, uma vez que ela não consegue anotar aspectos da aula ao mesmo tempo em que presta atenção na explicação em Libras.

Todas as avaliações eram enviadas por e-mail para os tradutores intérpretes de Libras com uma semana de antecedência, para que fosse possível fazer a tradução das perguntas e gravá-las. Foi levado um notebook para a sala, então foram apresentadas perguntas à aluna. Na sua prova física, assim como os outros alunos, ela marcava as respostas. Lembrando que a prova não poderia ter questões dissertativas, a menos que a estudante tivesse a opção de respondê-las em Libras por meio de gravação de vídeo.

A estudante não tinha completa aquisição da Língua Portuguesa e, por direito, precisaria receber todo e qualquer material também em sua L1 (Libras), destacando, assim, o bilinguismo no processo de inclusão. Exemplo disso foram os textos, músicas e vídeos trabalhados em sala de aula que tiveram de ser interpretados e transmitidos para a estudante na sua língua materna.

No caso de disciplinas da grade técnica, por possuírem termos muito específicos, foi necessário que os professores enviassem o conteúdo da aula com uma semana de antecedência, para que a intérprete pudesse se familiarizar com os sinais necessários e, assim, ensiná-los.

Além das atividades em sala, havia atividades disponibilizadas no Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA). A estudante teve a opção de enviar suas respostas em Libras por meio de vídeos em algumas atividades, como resumos, sínteses, análises e questões dissertativas, em geral. Mesmo com o pouco domínio da Língua Portuguesa, vídeos, filmes e outras mídias que envolviam áudio foram disponibilizados para a turma com legenda. Os intérpretes realizaram atendimentos individualizados, via Google Meet, para fornecer explicações à aluna e sanar suas dúvidas.

Diante do cenário de isolamento social, causado pela Covid-19, uma doença infecciosa causada pelo coronavírus, percebemos a necessidade de novos olhares a esses estudantes, sob a perspectiva inclusiva, com novas práticas, novos conhecimentos e, ainda, sobre o nosso papel social enquanto educadores. Desse modo, entendemos que a escola precisa repensar a perspectiva inclusiva, embasar-se nos percursos já enfrentados no processo de inclusão e se preparar para o presente, podendo, assim, mudar o futuro desses estudantes.

Tomando por base esses princípios, desenvolver a inclusão significa dar equidade ao processo educacional, adaptando as regras existentes às necessidades específicas, de forma a validar o direito e a justiça aos diversos grupos e comunidades minoritários. Desse modo, a escola tem a responsabilidade de se adaptar à nova realidade, de repensar suas práticas e de levar o conhecimento a todos os seus estudantes, independentemente de suas deficiências ou limitações.

Partindo da premissa de que “[...] todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza e que será garantido aos brasileiros e estrangeiros a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (Brasil, 1988), façamos uma reflexão sobre a responsabilidade do ato de educar e sobre como ofertar educação de qualidade em tempos de pandemia, de modo a obter melhorias na formação docente e na prática educativa.

Neste estudo, consideramos a Declaração de Salamanca (1994), que traz como princípios norteadores as políticas e práticas para educação especial. Esse documento firma o compromisso em estabelecer a inclusão, e compreende a necessidade e a urgência de uma educação inclusiva no sistema regular de ensino, conforme apresentado a seguir:

a) Toda criança tem direito fundamental à educação, e deve ser dada a oportunidade de atingir e manter o nível adequado de aprendizagem,

b) Toda criança possui características, interesses, habilidades e necessidades de aprendizagem que são únicas,

c) Sistemas educacionais deveriam ser designados e programas educacionais

deveriam ser implementados no sentido de se levar em conta a vasta diversidade de tais características e necessidades,

d) Aqueles com necessidades educacionais especiais devem ter acesso à escola regular, que deveria acomodá-los dentro de uma Pedagogia centrada na criança, capaz de satisfazer a tais necessidades,

e) Escolas regulares que possuam tal orientação inclusiva constituem os meios mais eficazes de combater atitudes discriminatórias criando-se comunidades acolhedoras, construindo uma sociedade inclusiva e alcançando educação para todos; além disso, tais escolas proveem uma educação efetiva à maioria das crianças e aprimoram a eficiência e, em última instância, o custo da eficácia de todo o sistema educacional (Declaração de Salamanca, 1994, p. 1).

Diante de uma proposta de educação de qualidade, analisando o presente cenário educacional, é importante destacar que não haverá qualidade no processo de ensino e aprendizagem se a educação não for repensada, se não houver empatia e um novo olhar sob a perspectiva inclusiva.

Nesse sentido, Severino (2006, p. 621) alega que “[...] ninguém nasce pronto, é preciso adaptações rotineiras no ambiente e condições para sua formação”. Assim, pode-se dizer que, para que haja a inclusão, são necessárias estratégias facilitadoras, como incentivo, interação entre alunos(as) e professores(as), aceitação, materiais didáticos e, principalmente, colaboração mútua.

Também são necessárias mudanças e adaptações no contexto das escolas e dos(as) professores(as), como, por exemplo: preparação de recursos humanos, adaptações curriculares, recursos e pesquisas, complementações curriculares, entre outros. Diante de cenários de isolamento social causados pela pandemia, torna-se necessário, ainda, pensar na educação multicultural, conforme elucidado por Kelman (2015, p. 94):

O multiculturalismo dentro da educação, vem como decorrência de se ter alunos pertencentes a diferentes universos nas salas de aula, do ponto de vista cultural, social, linguístico e religioso e de ser ter o desafio de transformar o espaço escolar em um espaço democrático, que possa oferecer igualdade de oportunidades, dando por isso mesmas condições de atendimento educacional diferente a alunos diferentes.

Durante a pandemia, vimos o aumento significativo de lives, palestras, fóruns, seminários e outros eventos acadêmicos que demandaram muito do trabalho dos TILS. Pensando na acessibilidade comunicacional desses sujeitos, notamos como esses eventos são relevantes ao processo formativo de alunos; todavia, é necessário refletir se foi possível, de fato, atender a todas as demandas de acessibilidade nesse contexto, e pensar que esses eventos só teriam sentido para alunos surdos se houvesse o acesso aos conteúdos por meio da tradução/interpretação.

Desde a inclusão de alunos com deficiência nas escolas regulares, ter um intérprete de Libras na sala de aula é essencial para o processo de inclusão e de ensino-aprendizagem, pois esse profissional atua como canal comunicativo entre o aluno surdo, o professor e os colegas. Sobre a conversão da Língua Portuguesa para a Libras, Rosa (2005) observa que o intérprete se coloca entre a comunidade ouvinte e a comunidade surda, criando um “(des)entendimento” entre os dois grupos:

O Intérprete de Língua de Sinais está entre a comunidade ouvinte e a comunidade surda, proporcionando um (des)entendimento entre esses dois grupos linguísticos, e ao realizar seu trabalho, é essencial que este converta para a língua de sinais a mensagem dita em português, buscando a “fidelidade”, concebida neste trabalho como equivalência de mensagens. O ILS produzirá outro mesmo discurso: outro, porque o fato de buscar um sinal/ palavra equivalente já é um movimento diferente; e mesmo, pelo fato de o discurso ser correspondente ao discurso de português (Rosa, 2005, p. 106-107).

Quando nos referimos, neste trabalho, à tradução de uma língua majoritária para uma minoritária, sabemos que muitas vezes se cobra dos estudantes surdos a mesma competência e destreza em Língua Portuguesa que possuem os estudantes ouvintes. Porém, deve-se ressaltar que o(a) aluno(a) surdo(a) não domina a Língua Portuguesa, uma vez que essa é sua segunda língua (L2). Por isso, deve-se priorizar o acesso aos conteúdos e sua forma de transmissão na sua língua materna, a Libras (L1), já reconhecida pela Lei n.º 10.436/2002. A referida Lei destaca que a Libras não substitui a modalidade escrita da Língua Portuguesa. Todavia, a Língua Portuguesa deve ser ensinada em momentos específicos e com metodologia de ensino de segunda língua, o que geralmente não vemos ocorrer nas escolas.

Cabe ainda um adendo quanto às diferenças linguísticas e culturais das pessoas surdas, pois divergem do modelo homogêneo das práticas e discursos geralmente valorizados. Portanto, “[...] o diálogo e uma postura receptiva aos conhecimentos tradicionais desse grupo poderia ser o primeiro passo para efetivar o processo de interculturalidade e valorização da diversidade” (Rocha, 2019, p. 135).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O artigo tratou de um estudo de caso, de cunho qualitativo, com o objetivo de caracterizar e discutir as demandas e as ações no atendimento ao estudante surdo, público-alvo da Educação Especial. Para isso, refletimos sobre as urgências nas demandas de Atendimentos Especializados na Educação Profissional e apresentamos as estratégias utilizadas no atendimento a uma estudante com surdez, destacando as metodologias, as tecnologias assistivas, a utilização e confecção de materiais pedagógicos adaptados durante o contexto da pandemia.

Diante das reflexões trazidas a partir do referencial teórico e do relato de experiência, depreendemos que só é possível pensarmos em uma escola inclusiva para o aluno surdo se considerarmos o sentido ético, político e social da educação, por meio da perspectiva de uma formação humana e emancipatória, na qual a formação profissional desse estudante com deficiência seja viabilizada.

A análise realizada evidencia a necessidade da ampliação das discussões, já que existem poucos trabalhos publicados com essa temática. O interesse nesta pesquisa pode ser justificado também pelo pequeno número de trabalhos que tratam da inclusão de alunos surdos na rede federal de ensino e pelo fato de que o acesso aos Institutos Federais por esses alunos tende a crescer.

O esforço empreendido neste estudo se apoia na relevância que ele representa no cenário nacional, com o delineamento de um caminho para a construção de uma política inclusiva nos Institutos Federais para estudantes surdos que cursam o Ensino Médio Técnico e Ensino Superior.

Mesmo decorridos mais de 20 anos da lei que reconhece a Libras como a língua oficial dos surdos, ainda é perceptível, por parte dos professores e da comunidade escolar, que estranhamentos persistem quando se trata de trabalhar com o surdo a Língua Portuguesa como segunda língua (L2) na modalidade escrita. Garantir a inclusão dos estudantes surdos perpassa pela compreensão de que todos os envolvidos na comunidade escolar fazem parte do processo. Ações isoladas de alguns professores e da gestão escolar podem contribuir em alguma medida, mas não são garantias de uma real inclusão.

No que concerne ao desenvolvimento desta pesquisa, vimos diversas dificuldades, barreiras e insegurança por parte dos profissionais que buscaram a inclusão da estudante surda. Além disso, muitos foram os desafios enfrentados pela estudante por estar cursando o ensino médio integrado, que exige uma dedicação ainda maior.

Todavia, a estudante conseguiu superar as barreiras e verticalizar sua educação, sentindo-se realizada pela oportunidade de ingressar no Instituto Federal, e orgulhosa pela conquista tornar-se uma estudante de nível superior no mesmo campus onde cursou o ensino médio integrado.

O estudo revelou, ainda, que há um longo caminho a ser trilhado nas discussões sobre currículo integrado na Educação Profissional, principalmente como forma de resistir aos ataques que ele vem sofrendo ultimamente com relação à inclusão de pessoas com deficiência.

O currículo da Educação Profissional deve se apropriar do conceito de currículo integrado e promover discussões em espaços formativos, como as reuniões pedagógicas, nas quais o assunto seja abordado para a conscientização, principalmente dos professores, sobre a necessidade de buscar meios viáveis de implementar a integração curricular e a perspectiva da inclusão.

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Recebido: 19 de Julho de 2022; Aceito: 21 de Abril de 2023; Publicado: 02 de Abril de 2024

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