1 INTRODUÇÃO
Esta investigação2 toma como base duas premissas políticas. A primeira delas entende que dentre as diversas desigualdades sociais que permeiam as sociedades contemporâneas, a questão do racismo apresenta-se como um elemento fulcral (Maldonado-Torres, 2005). Para tratar das relações constituintes entre diferentes grupos sociais foi utilizada a expressão relações étnico-raciais, como prescritas em legislações brasileiras (Brasil, 2003; 2004). Nesse texto, o uso do termo étnico-racial vem demarcar relações sociais, sobretudo entre brancos e negros, estabelecidas em território português. A segunda premissa entende que as análises e pesquisas que se desenvolvem na área da Educação devem ter em conta múltiplas dinâmicas que sustentam as relações de exploração e dominação em nossas sociedades.
No que se refere às relações de poder que interferem na Educação, por meio das formas de controle do currículo pelo sistema capitalista, Apple (2006; 2011) sublinha a necessidade de destacar as contradições e espaços de ações exequíveis contra a manutenção dessas relações desiguais e aponta a questão da seletividade do conhecimento como fator fundamental na reprodução das desigualdades sociais. Neste sentido, uma análise crítica em Educação, ao propor a problematização de conteúdos, precisa questionar que conhecimentos são esses, porque eles estão sendo apresentados dessa forma e quem se beneficia das abordagens constatadas. Disso decorre afirmar que, do ponto de vista investigativo, é preciso analisar os contextos sócio-históricos que permeiam a seleção de conteúdos curriculares para desajustá-los enquanto mecanismos que mantêm o padrão desigual e deficitário que se estabelece no bojo das relações étnico-raciais.
Uma das maneiras de desajustes refere-se à análise do discurso racialmente crítica (Van Dijk, 2001), a qual reconhece que “[...] especialmente nas sociedades de informação contemporâneas, o discurso está no cerne do racismo" (p. 191). Em outras palavras, Van Dijk afirma que a (re)produção dos prejuízos étnicos que fundamentam práticas verbais e sociais ocorrem, em grande parte, através do texto, da conversa e da comunicação. Sob este prisma, faz-se necessário situar, na contemporaneidade, o contexto histórico e político que, institucionalmente, envolve a dinâmica das relações étnico-raciais entre brancos e negros em Portugal.
Historicamente, a ideia de que as relações entre Portugal e suas antigas colônias de exploração estabelece-se de forma dialógica é pauta do discurso oficial desde a época ditatorial (Castelo, 1998). Durante o governo do Estado Novo de Salazar (1933-1974), a adesão à ideologia lusotropicalista, cunhada pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, ganhou alcance político para promover a manutenção da colonização portuguesa que, em pleno século XX, ainda vigorava sobre territórios africanos. Dentre outras questões, essa ideologia destacava as relações amistosas e positivas decorrentes da soberania colonial portuguesa ao afirmar que sua interpenetração em solos africanos seria fruto de uma integração harmoniosa.
Em dias atuais, o lusotropicalismo não é mais pauta da agenda política. Ainda assim, as colonialidades (Mignolo, 2005) presentes na sociedade portuguesa, como a instauração de uma estátua do Padre Antônio Vieira rodeada por três crianças indígenas, em alusão ao processo de catequização realizado em território brasileiro, que se encontra, desde junho de 2017, instalada no Largo Trindade Coelho, no centro histórico de Lisboa, revelam a potência e permanência dessa ideologia em estruturas políticas lusitanas (Araujo; Maeso, 2011; 2013).
Na Educação, a abordagem político-funcional da perspectiva multiculturalista, em circulação desde o início da década de 1990, acabou por reforçar a colonial ideologia lusotropicalista ao apregoar a ideia de que Portugal foi uma nação benevolente à integração das populações negras de suas ex-colônias e afirmar que a diversidade étnico-racial portuguesa era fruto da abertura democrática, iniciada a partir da década de 1970. No final dos anos 1990, o Estado Português elaborou novas respostas institucionais para esse cenário (Araujo, 2018) e cunhou, funcionalmente, o conceito de interculturalidade. Desde então este conceito têm fundamentado planos educacionais governamentais em Portugal e, por esta razão, torna-se objeto de estudo desta investigação.
1.1 Escopo investigativo
A abordagem qualitativa (Minayo, 2010) dessa investigação esteve sustentada por um procedimento de análise ancorado numa perspectiva de investigação crítica e antirracista (Dei; Johal, 2008). Para analisar os livros de leitura das escolas de Educação Básica, sugeridos pelo Plano Nacional de Leitura da Diretoria Geral da Educação em Portugal, foram realizados três movimentos: (i) o delineamento de aportes teóricos do campo da educação intercultural; (ii) o reconhecimento de políticas curriculares do Estado Português voltados a esta temática e (iii) a seleção dos livros de literatura para infância que, em sua análise dicursiva (Van Dijk, 1993; Apple, 2002) considerou: os sujeitos políticos diretamente envolvidos com os discursos (quem produziu e para quem se dirigiam as narrativas) e as mensagens centrais daquelas narrativas.
É preciso considerar que tal abordagem se organizou como um recorte investigativo para analisar quais concepções de educação intercultural têm sido reveladas por meio de projetos para educação pública portuguesa. Argumento que, embora a estratégia didática dessa investigação tenha sido pensada para ampliar o sentido dado ao currículo, trazendo o diálogo com uma perspectiva política e ética orientada para promover uma reparação histórica aos povos socialmente racializados, tomar o currículo em ação como objeto de pesquisa científica, constitui-se numa proposta ímpar para compreensão de multiplicidades e dinamicidades envolvidas no currículo, dentre elas a paradoxal relação entre autonomia e controle (Apple, 2012).
2 APORTES TEÓRICOS DA INTERCULTURALIDADE
A manipulação de conceitos como diversidade e diferenças por políticas institucionais têm, muitas vezes, se constituído como uma armadilha política porque forja um projeto de sociedade que encobre a circulação de uma pauta progressista acentuando uma pauta conservadora (Pierucci, 1990). O campo das diferenças, por exemplo, atrelado ao sentido das políticas que alicerçam educação e cultura por meio de uma perspectiva neoliberal tem, regularmente, favorecido a manutenção de um conservadorismo que defende as políticas segregacionistas como uma possibilidade de gerenciamento da pluralidade cultural e étnico-racial (Araujo; Maeso, 2014). Tal apropriação abafa fatos e acontecimentos históricos, mascara as desigualdades e despolitiza a questão do racismo.
O surgimento das discussões sobre os conceitos de multi e interculturalidade, bem como suas vertentes críticas e pós-críticas, pode ser concebido no tempo histórico em que a questão da cultura tornou-se área das ciências humanas no espaço da academia, sobretudo a partir da década de 1960 e 1970, com a consolidação dos estudos culturais por parte do intelectual jamaicano Stuart Hall.
O recorrente uso de conceitos como multiculturalismo crítico ou perspectiva intercultural crítica por parte de determinadas políticas públicas tem sido acompanhado de um deslocamento do campo teórico e de uma perspectiva que, em nome da manutenção do privilégio hegemônico branco e europeu, superficializa os discursos da igualdade e da diferença e reafirma um lugar à margem para os grupos sociais não brancos.
Sob o manto da diversidade, o reconhecimento das várias identidades e/ou culturas é atravessado pela questão da tolerância, tão em voga, já que pedir tolerância ainda significa manter intactas as hierarquias do que é considerado hegemônico. Além disso, a diversidade é a palavra-chave da possibilidade de ampliar o campo do capital, que penetra cada vez mais em subjetividades antes intactas. Vendem-se produtos para as diferenças e, nesse sentido, é preciso incentivá-las (Rodrigues; Abramowicz, 2013, p. 18).
O alarde sobre a questão da diversidade, neste sentido, ganha um viés superficial. A transformação da cultura em capital, organizada sob a lógica capitalista, segue distante da intenção de reorganizar estruturas hegemônicas. Essa realidade por exemplo, se repete em espaços escolares que criam eventos para celebração da diversidade sem uma construção metodológica e conceitual que racionalize as desigualdades étnico-raciais que existem entre as diferenças sociais. Nesse sentido, não se alteram os padrões estruturantes eurocêntricos.
No campo curricular, a questão da interculturalidade aparece inserida no seio de uma perspectiva que concebe educação e cultura como eixos estruturantes. Neste contexto, diferentes acepções compreenderam primeiro as perspectivas multiculturalistas (Hall, 1997; Banks; Lyinch, 1986; Mclaren, 2001) e depois as interculturalistas (Stoer; Cortesão, 1996; Walsh, 2009; Candau, 2012). Ambas perspectivas apresentam várias vertentes, admitindo uma pluralidade de significados. “Expressões como multiculturalismo conservador, liberal, celebratório, crítico, emancipador, revolucionário podem ser encontradas na produção sobre o tema e se multiplicam continuamente” (Candau, 2012, p. 242).
A interculturalidade, então, toma lugar no discurso da educação após a popularização dos debates multiculturalistas trazendo a questão do diálogo entre diferentes culturas para o centro do debate curricular. Segundo Candau (2012), essa dialogicidade compreende a construção de sociedades democráticas por meio da articulação de políticas de igualdade com políticas de identidade e reconhecimento dos diferentes grupos culturais. Nesta seara há também a concepção da interculturalidade crítica que, segundo Walsh (2012), além de estabelecer uma imbricação direta com as demandas dos movimentos sociais, nos traz em conta que vivemos uma interculturalidade colonizada, vista e criada de uma lógica ocidental e colonial cujo objetivo é mesmo o de desaprender e/ou reaprender até chegar a reconstituição de outras ordenações sociais.
Ao explicitar o conceito de interculturalidade crítica, Candau (2009) traz a atenção para o uso institucional da perspectiva intercultural, a qual acaba por não pressionar as estruturas de poder já organizadas em nossas sociedades. Assim, afirma a autora que “[…] a interculturalidade é assumida como estratégia para favorecer a coesão social, assimilando os grupos sócio-culturais subalternizados à cultura hegemônica” (Candau, 2009, p. 4).
Essa constatação coaduna-se à defesa de Araujo (2018) para quem o slogan do Portugal Intercultural opera na lógica de esvaziamento das desigualdades e das diferenças, sobretudo na área de Educação. Em Portugal, as práticas políticas movidas neste sentido, têm se traduzido em quatro contextos distintos, porém complementares para a manutenção do racismo como padrão estrutural: a celebração da diversidade por parte de eventos e projetos escolares que festejam as outras culturas; a transformação da diversidade em bens de consumo (com a assunção do multiculturalismo como elemento presente à atual configuração da sociedade portuguesa); a confirmação do mito da benevolência colonial, da convivência inter-racial e da homogeneidade étnica fundacional da nação portuguesa. Por último, mas não menos importante, a visibilização das diferenças sem horizontes emancipatórios que, de forma superficial, inclui as diferenças no campo discursivo, mas mantém a exclusão no campo das práticas, esvaziando a questão das desigualdades raciais. Juntos, esses contextos corroboram a despolitização do racismo, do colonialismo e do pós-colonialismo como ferramentas de combate a desigualdade.
3 A POLÍTICA DO ESTADO PORTUGUÊS
Para o Estado Português, o assunto da interculturalidade é pilar constitucional desde finais do século XX, quando Portugal construiu sua autoimagem calcado numa ideia de país pioneiro no diálogo intercultural (Araujo, 2018), decorrente das relações estabelecidas entre Portugal e seus antigos territórios coloniais.
Entretanto, há neste enredo questões que não podem ser ignoradas: é possível descolar a violência do processo de colonização? É possível fazer referência a este contexto como um cenário de diálogo intercultural, mesmo compreendendo que toda e qualquer relação estabelecida durante a história colonial tem como pano de fundo a violência, a desigualdade e o governo autoritário dos portugueses sobre os não portugueses?
Para a Direção-Geral da Educação (DGE) do Estado Português
A educação intercultural pretende promover o reconhecimento e a valorização da diversidade como oportunidade e como fonte de aprendizagem para todos, no respeito pela multiculturalidade das sociedades atuais, bem como desenvolver a capacidade de comunicar e incentivar a interação social, criadora de identidades e de sentido de pertença comum à humanidade (MEC, 2018; grifos da autora).
Diante de tal assertiva, cabe ressaltar que embora o Estado Português reconheça o espaço da diversidade como potência formativa, encaminha a ação pedagógica no sentido apenas de comunicar e interagir socialmente, despolitizando as relações assimétricas que operam sobre a relações étnico-raciais existentes entre brancos e negros em Portugal.
A educação intercultural se encontra circunscrita ao Governo Constitucional Português, o qual compromete-se em implementar políticas adequadas à integração social da população imigrante (República, 2018). Convém destacar que, se o Estado reconhece a interculturalidade como uma política pública associada, unicamente, a uma política integracionista para o imigrante, ele incorre, minimamente, em três equívocos: não reconhece a pluralidade étnico-racial que há algum tempo constitui a nação portuguesa; culpabiliza o imigrante pelo tensionamento racial do qual é vítima e, finalmente, projeta a integração (e, portanto, a aceitação) do imigrante à ordem vigente, movimento semelhante à política colonial do Estatuto do Indigenato.
No campo da Educação, pesquisas como as de Cristina Roldão (2015) apontam a existência de desigualdades étnico-raciais entre alunos das escolas públicas portuguesas, já desde o primeiro ciclo. Por isso, utilizar o diálogo como cerne da proposta intercultural do Estado Português, olvidando todas as lógicas de desigualdade e opressão que operam sobre as relações étnico-raciais é atitude, pretensamente, falaciosa. Como diria Freire (1987), “O diálogo, na verdade, não pode ser responsabilizado pelo uso distorcido que dele se faça. Por sua pura imitação ou caricatura. O diálogo não pode converter-se num ´bate papo´ desobrigado que marche ao gosto do acaso […]” (p. 118).
A defesa, neste artigo, é de que a assunção engajada de um diálogo intercultural deve implicar revisão de ordenações e estruturas institucionais capazes de construir um outro retrato do sentido de nação e cidadania portuguesa (Afonso, 2007).
Nesta investigação, o acesso aos sítios eletrônicos do Alto Comissariado para Migrações (ACM) e da DGE encontrou dois projetos educacionais referentes à educação intercultural: o primeiro deles dentro do rol de políticas dirigidas aos imigrantes, com todas as implicações que uma abordagem como essa apresenta, conforme observações já abordadas neste artigo. A segunda fonte, refere-se a um projeto de educação, destinado apenas às escolas que demonstrem interesse em dele participar, não se apresentando de forma estrutural ao currículo das escolas portuguesas, o que prejudica, sobremaneira, a implementação da perspectiva da Educação Intercultural como uma política de Estado.
No projeto da Rede de Escolas para a Educação Intercultural (REEI) (MEC, 2017), há uma variedade de ações de formação/sensibilização e seminários sobre temas relacionados com a Educação Intercultural no contexto escolar e dirigidas tanto a alunos/as como ao pessoal docente e não docente. Dentre aqueles projetos, o que estabelece ligação direta com o objeto desta investigação é Aprender com Histórias: primeiros passos para a Interculturalidade que tem como foco a abordagem da interculturalidade por meio da literatura como instrumento pedagógico. A questão que sustenta o projeto REEI e que converge com nossa intenção de pesquisa é: como podemos utilizar a literatura para a infância como um dispositivo pedagógico da educação intercultural?
No caso deste artigo, a pergunta orientadora buscou identificar quais concepções de educação intercultural são reveladas por meio de projetos da área da educação promovidas pelo governo de Portugal?
De diferente natureza dos projetos acima mencionados, na proposta curricular da DGE há um plano pensado para orientar a prática da leitura em escolas portuguesas intitulada Plano Nacional de Leitura (PNL), lançado em 2006. Uma das ações deste Plano consiste em avaliar e certificar institucionalmente livros literários com o selo PNL: Projeto Ler+, para serem utilizados nas escolas portuguesas.
O Projeto Ler+ assume a educação e a cultura como eixos estruturantes à leitura, pensando na aquisição dela como base para acesso plural ao conhecimento e ao enriquecimento cultural. A interculturalidade é, no caso deste documento, uma perspectiva curricular atrelada à compreensão de educação e cultura como eixos da educação, entretanto, o acesso plural ao conhecimento (condição de importância substancial) não representa, necessariamente, o acesso a um conhecimento plural, esse sim, princípio que coadunaria com uma educação intercultural.
A investigação do Projeto Ler+, realizada sobre os livros de leitura para infância referentes a indicações para os anos de 2017 e 2018 - o PNL 2017, revelou que os estudos e formações que o constituem não apresentam a interculturalidade como perspectiva curricular. Já o REEI aponta a leitura como uma base fundamental para favorecer o projeto de Educação Intercultural do Estado Português. Diante desse contraditório cenário é fundamental afirmar que se há intenção política, efetiva, para implementação de ações que favoreçam o viés intercultural é evidente que esses projetos educativos precisam, minimamente, tecer diálogo convergente sobre estes aspectos.
Mesmo sem convergência dialógica é prudente analisar os livros indicados pelo Projeto Ler+ porque, dentre outros motivos, trata-se de um programa à escala nacional que atua em diferentes contextos (escolas, bibliotecas, comunidade); está direcionado para diferentes públicos (jovens estudantes, adultos e população em geral); e, engloba uma série de iniciativas políticas e projetos institucionais. A literatura aprovada pelo projeto Ler+ trata-se de uma seleção cultural que, segundo Gimeno Sacristán (2017), é uma forma curricular de conceber e organizar os sujeitos e a distribuição do saber dentro das insituições escolares.
Além desses elementos, para um processo crítico de educação, tal qual postula Freire (1987), a leitura não se refere apenas a um simples processo mecânico e automatizado, quem aprende a ler, aprende a ler o mundo. Nesse sentido, torna-se relevante indagar quais concepções de Educação Intercultural estão sendo promovidas por estas leituras.
4 LITERATURA E INTERCULTURALIDADE
As narrativas literárias indicadas pelo PNL 2017 ao Ciclo I da Educação Básica, não foram tomadas apenas como meros textos. Esses discursos foram compreendidos como um conjunto de ideias que operam mecanismos de produção e/ou reprodução de ordens e processos culturais, que acabam por configurar padrões políticos, sociais e culturais que gerenciam nossas vidas. O campo do discurso é, sob este prisma, um campo de disputa pelo poder da comunicação, elemento caro à sociedade do século XXI. Exemplo disso, segundo Van Dijk (2001), são os discursos sobre as minorias, frequentemente, produzidos pelas elites.
[...] a (re) produção dos preconceitos étnicos que sustentam essas práticas verbais, bem como outras práticas sociais, ocorre em grande parte por meio do texto, da fala e da comunicação. Em suma, especialmente nas sociedades da informação contemporâneas, o discurso está no cerne do racismo (Van Dijk, 2001, p.191).
É neste sentido que este mesmo autor propõe a análise do texto em contexto como ferramenta analítica crítica e combate à discriminação verbal organizada pelas elites. No caso desta investigação, para a análise das obras literárias foram considerados os seguintes aspectos: 1. contexto de produção dos discursos, isto é, implicação dos produtores do discurso com relação à temática abordada; 2. mensagem central da narrativa e sua implicação para a questão da interculturalidade; 3. público destinatário da narrativa.
No conjunto das diferentes identidades políticas que podem ser contempladas por um propósito de educação intercultural, as identidades afrodescendentes foram focalizadas por esta investigação, tanto pela dívida histórica e política que o processo colonial português organizou sobre os territórios e populações africanas, racializando e desconstruindo o valor humano da população negra, quanto pelos atuais compromissos políticos que o Estado Português tem travado para combate ao racismo. O governo reconhece que a assunção da leitura como política pública prioritária refere-se tanto ao histórico português de graves problemas de analfabetismo e iliteracia quanto às atuais demandas da sociedade do século XXI, cada vez mais envolta às tecnologias da informação e comunicação.
Para verificar quais concepções de Educação Intercultural estão sendo promovidas pelo PNL2017, esta investigação procurou identificar quem fala, para quem fala e sobre o que falam os discursos interculturais que circulam nos livros recomendados.
O PNL2027 (2018) está voltado para promoção da leitura nas escolas. Segundo este documento, a leitura é competência básica para o acesso plural ao conhecimento e ao enriquecimento cultural. Tal competência é vista como condição fundamental para a construção e consolidação de uma sociedade livre, com coesão social, acesso democrático à informação, ao conhecimento, à criação e fruição cultural. O projeto está focado na integração social através da leitura, em diferentes suportes: a formação dos diferentes segmentos da população (que aparecem divididos apenas por características geracionais: crianças, jovens e adultos); a inclusão de pessoas com necessidades específicas; o desenvolvimento articulado de uma cultura científica, literária e artística e, também, o acesso ao saber e à cultura com recurso às tecnologias de informação e comunicação.
Dentre os objetivos do PNL2027 (2018), merece destaque a alínea que toma como meta usar a leitura para combater a desinformação, o preconceito e a ignorância. É relevante notar que este poderia ser um objetivo focado em atender uma perspectiva intercultural não fosse a generalização com que a meta aparece descrita, pois na medida em que não se explicita que tipo de desinformação, de preconceito e de ignorância se quer combater, não se identifica, precisamente, o alvo de combate.
Para os objetivos desta investigação e dentre as estratégias de leitura sugeridas pelo PNL2027 (2018) às crianças do ciclo I, destaca-se o incentivo às propostas pedagógicas de contar e ler histórias tradicionais e do cotidiano. Nos vídeos institucionais que acompanham cada uma dessas propostas há referências à questão da infância como tempo fundamental para ouvir e contar histórias. A leitura aparece conceituada como uma prática que permite a interiorização de um mundo de enredos, personagens, situações, problemas e soluções; favorece a formação de estruturas mentais que permite à criança conhecer melhor o seu mundo e o mundo que a cerca. Ao final, a proposta do PNL2027 (2018) afirma que através da mediação do adulto responsável pela leitura é possível contribuir para tornar as crianças mais atentas e tolerantes.
O uso da palavra tolerante em sua conotação substantiva não pede complementação. A proposta, portanto, sugere criar cidadãos dispostos a suportar as diferenças. Convém refletirmos que as diferenças sociais (e, neste caso, as diferenças étnico-raciais entre negros e brancos) não são apenas diferenças. A despolitização do conceito de diferenças entre negros e brancos implica omissão das evidentes desvantagens e prejuízos que operam sobre a população negra e afrodescendente em diferentes âmbitos sociais. Essas evidências foram construídas (e são mantidas) pelas estruturas institucionais do Estado. Sem esse senão, as leituras oferecidas às crianças vão apenas naturalizar as desigualdades e o racismo.
A análise de Araujo (2013) é taxativa sobre esta questão
Os discursos e práticas oficiais têm sido ancorados em uma concepção do racismo como preconceito, ao invés de um processo histórico e político, estruturalmente incorporado nas sociedades modernas. [...] Ao deixar de lado as preocupações com a igualdade estrutural e política, ele apenas fez uma diferença visível, em vez de desafiar as desigualdades de poder.
Este silêncio sobre questões de poder e desigualdade é particularmente evidente no sistema educativo português (Araujo, 2013, p. 39).
Para seleção da literatura a ser investigada entre os anos de 2017 e 2018, foram selecionadas as categorias referentes à faixa etária, de modo a contemplar os estudantes do 1º ao 4º ano do ciclo I; ao nível inicial de leitura; à língua portuguesa para a linguagem operante nos livros; aos gêneros literários, quais sejam: arte, banda desenhada (história em quadrinhos), biografia, ciência e tecnologia, cultura e sociedade, ensaio, literatura, poesia e vida prática.
Especificamente para o 1º semestre de 2018, de acordo às opções acima elencadas, foram encontradas referências literárias para os temas de artes, ciência e tecnologia, ciência e sociedade, literatura e vida prática. Em nenhuma delas há qualquer referência sobre personagens negros, nem como protagonistas nem como coadjuvantes; não existem histórias que tragam visões de mundo de regiões ou grupos sociais afrodescendentes; não há histórias que abordem o preconceito racial contra negros, nem contra qualquer outro grupo étnico-racial; nem histórias que permitam às crianças construírem imagens mentais sobre a população negra como grupo étnico-racial português.
A listagem referente ao ano de 2017 encontra-se disponível em documento que distribuiu os livros recomendados diferenciando-os por ano escolar. No quadro 1, está apresentada a listagem dos quatro livros que apresentam temáticas relacionadas a uma abordagem intercultural para o 1º ano, conforme descrição do parágrafo anterior.
Quadro 1 Abordagem Intercultural para o 1º ano
Série | 1º ano | |||
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Título | Por que somos de cores diferentes? | Se eu fosse... nacionalidades | A menina que voltou a ser menina | A ovelhinha preta |
Autores(as) | Carmen Gil | Francisco José Viegas | César Madureira | Elizabeth Shaw |
Ilustradores (as) | Luis Filella | Rui Penedo | Manel Cruz | Elizabeth Shaw |
Fonte: Elaboração da pesquisadora, PNL 2017 (2018).
Para o 2º ano e 3º ano foi identificado apenas um livro para cada um e, para o 4º ano, nenhum livro foi identificado.
Quadro 2 A interculturalidade em livros para os 2º e 3º anos de acordo ao PNL 2017
Série | 2º ano | 3ºano |
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Título | Ombela: a origem das chuvas | Rãs, Príncipes e Feiticeiros: oito histórias de oito países que falam português |
Autores (as) | Ondjaki | Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada |
Ilustradores(as) | Rachel Caiano | Danuta Wojciechowska |
Fonte: Elaboração da pesquisadora, PNL 2017 (2018).
Os quadros 1 e 2 apresentam também os responsáveis diretos pela produção dos discursos do livro: autores(as) e ilustradores(as), isto porque, para o desenvolvimento da investigação crítica antirracista destas histórias (Van Dijk, 1993; Apple, 2002; Dei; Johal, 2008) importa saber quem constrói e para quem estão dirigidos esses discursos, quais as mensagens centrais dessas narrativas com relação à temática étnico-racial, bem como suas implicações para a questão da interculturalidade.
4.1 Quem fala?
Nesta subseção, foram identificados os contextos de produção dos discursos que acompanham os títulos destacados. Há uma breve descrição profissional dos(as) autores(as) e ilustradores(as), acrescido da identificação de origem, gênero e da heteroidentificação racial de cada um deles(as). Além disso, há também a identificação dos personagens principais dessas narrativas.
Sobre o livro Por que somos de cores diferentes?, de autoria de Carmen Gil e ilustrações de Luis Filella, é relevante apontar que o discurso foi produzido por uma autora espanhola branca, professora de literatura e especializada em literatura infantil. Suas publicações incluem mais de oitenta títulos e este se apresenta como único livro que traz personagens negros. O ilustrador também é branco, espanhol e especialista em livros infantis. Seus desenhos tendem à ilustração da multiplicidade racial apenas como uma composição plural das crianças. No que se refere ao personagem principal da história, a narrativa é guiada por Marta, uma criança branca.
O livro Se eu fosse…nacionalidades é a única produção no campo da literatura infantil de Francisco José Viegas, um homem branco, português, jornalista, editor e escritor de variados gêneros literários, tais como poesia, contos, peças de teatro e relatos de viagens. O ilustrador Rui Penedo, que mistura técnicas de desenhos manuais com ilustração gráfica, é também branco e português. O condutor da narrativa deste livro e também único personagem é Lio, um menino branco e português.
Em A menina que voltou a ser menina, o autor César Madureira é um sociólogo português branco, que produziu a coleção Contos sonhados em português, integrada por dez livros que tem como fio condutor histórias encenadas em diferentes países e locais onde se fala a língua portuguesa. Segundo entrevista do autor à agência Lusa, não se trata “[...] de um compêndio histórico ou étnico para provar que a língua portuguesa é que é boa. É apenas um fio condutor para juntar estas histórias todas que fui escrevendo ao longo dos anos" (Lusa, 2008, s/p.) A ilustração do livro é de Manel Cruz, um designer português branco, autor de ilustrações de diversas capas de livros de leitura. A personagem que conduz a narrativa é Iolanda, uma menina negra de Guiné-Bissau.
O último livro dedicado ao 1º ano é A ovelhinha preta. A autora Elizabeth Shaw, foi uma escritora e ilustradora irlandesa branca que publicou mais de uma dezena de livros infantis. Neste livro, o narrador é indeterminado e o protagonismo da história fica por conta de uma ovelhinha preta.
O 2º ano tem a perspectiva intercultural representada pela obra Ombela: a origem das chuvas, escrita por Ondjaki, um autor angolano e negro, que tem vasta produção literária dedicada inicialmente a adultos e, mais recentemente, também a crianças. Parte considerável de suas obras dialogam com a realidade angolana. A ilustradora e artista plástica branca Rachel Caiano é brasileira e está radicada em Lisboa. Ilustrou diferentes gêneros literários, especialmente obras infantis. Não foram encontradas outras referências à representação feminina negra nos trabalhos publicados pela artista. A deusa Ombela, uma mulher negra, é quem conduz o fio narrativo da história.
A obra Rãs, Príncipes e Feiticeiros: oito histórias de oito países que falam português, sugerida para o 3º ano, foi produzida pelas escritoras portuguesas Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, ambas brancas e professoras de português. Ana M. Magalhães foi professora de história em Moçambique, na década de 1970, e Isabel Alçada integrou o Ministério da Educação, em 1975. Juntas, estas autoras têm outras publicações destinadas ao público infantil e infantojuvenil. Danuta Wojciechowska é uma ilustradora e designer canadense branca que, desde a década de 1980, reside em Lisboa. Suas ilustrações para literaturas infantis têm sido reconhecidas internacionalmente e lhe rendido algumas várias premiações. Ilustrou algumas histórias de literatura infantil escritas por Mia Couto e Ondjaki, o que remete às representações não brancas de suas ilustrações em algumas destas obras. Nesta obra, todos os personagens que conduzem a narrativa das histórias não são brancos, à exceção do conto tradicional de Portugal.
4.2 Sobre o que fala?
Em Por que somos de cores diferentes? Marta, a protagonista branca, é quem assume a narrativa que se põe a desvendar porque sua colega de classe Tenka é negra, enquanto ela é branca. A origem de Tenka é marcada pelo seu nascimento no Brasil e pela emigração de seus pais de Botsuana. A narrativa é conduzida pela diferença fenotípica que caracteriza os diferentes tons de pele entre os seres humanos. Nesse sentido, a melanina e a origem das pessoas são os conceitos centrais para explicação das diferenças que existem entre os seres humanos. Ao final da narrativa, a diversidade de cores e origens das crianças que integram a turma na qual estão Marta e Tenka é saudada e celebrada por todos. As ilustrações não trazem elaborações que marcam as diferenças fenotípicas entre os diferentes padrões étnico-raciais, o traçado dos personagens é o mesmo e a diferença se dá apenas por representações específicas de olhos, cores de pele e cabelos.
Se eu fosse… nacionalidades é um livro de um único personagem, Lio. Um menino branco e português que se dispõe a imaginar como ele seria se tivesse outra nacionalidade. Para a abordagem das nacionalidades, o autor seleciona algumas características internacionalmente reconhecidas como representante da cultura daquele lugar. No caso do Brasil, por exemplo, Lio aparece representado de roupa verde e amarela (em alusão à bandeira brasileira), com um pandeiro na mão (instrumento associado ao samba, genuíno gênero musical brasileiro), em frente ao Morro do Pão de Açúcar e sob as calçadas de pedras desenhadas de Copacabana (marcos turísticos da cidade do Rio de Janeiro), envolto por folhagens e pássaros (um tucano e uma arara), em alusão à fauna e flora brasileira. No segundo plano da imagem, aparece um menino negro fenotipicamente como Lio, mas de pele escura que, por estar segurando um tantan (instrumento musical utilizado no samba), ajuda a compor a imagem que o personagem reforça ao afirmar que se fosse brasileiro, talvez dançasse o samba e também falasse o português. No caso destas ilustrações, as diferenças físicas são inexistentes, o personagem Lio ilustra todas as representações das diferentes nacionalidades que aparecem configuradas pelos elementos espaciais do lugar e pela caracterização das roupas e objetos que ele utiliza.
O livro A menina que voltou a ser menina integra uma coleção de outros nove livros que foram pensados para atender ao Ano Europeu do Diálogo Intercultural. A narrativa de César Madureira trata de uma temática pertinente ao universo infantil: o mundo da fantasia e o da realidade. Nesta história, Iolanda, uma menina negra e pobre da Guiné-Bissau experiencia seus desejos de viver como outros seres: uma flor, um pássaro e uma tartaruga. Cansada de tanto imaginar, a menina se confronta com sua realidade sócio-econômica que, materialmente, a impede de adquirir livros para iniciar-se no universo das letras. Ao final, uma magia materializa a aparição de um livro e torna concreta a possibilidade de Iolanda ir para escola aprender coisas qualificadas como normais. Esta adjetivação marca o mundo português como o mundo real, reforçando o recorrente estereótipo que inferioriza a realidade africana. A ilustração apresenta uma menina negra, séria e triste em todas as representações, com exceção à última, em que Iolanda descobre que irá para escola aprender português. O traçado das personagens negras que acentuam e dão destaque aos lábios, às vestimentas simplórias, à ausência de calçados, mesmo quando a menina está pronta para ir à escola, e aos seios disformes e volumosos, no caso da mãe da menina, marcam a estereotipada representação da população negra nessa história.
Em A ovelhinha preta, Elizabeth Shaw inicia a narrativa contado a história de Piloto, um cão pastor que sentia sua liderança desafiada pelas atitudes de uma ovelhinha preta e, por isso, a repreendia continuamente e desejava a sua exclusão do rebanho. A ovelhinha preta, personagem sem nome, desejava tornar-se branca para ficar igual às outras e passar despercebida pelo cão pastor. “O Piloto repara quando eu faço asneira porque eu sou preta” e “Talvez um dia eu também seja uma nuvem branca” são afirmações expressas pela ovelhinha preta que reforçam o lugar subalterno da condição de ser preta. A trama se desenrola quando, em meio a um nevoeiro, a ovelhinha preta assume a liderança e salva o rebanho de ovelhas brancas. Piloto, o cão, continua a proferir comentários sarcásticos e racistas afirmando que talvez aquela ovelha fosse útil como um sinal, em alusão à sua cor preta. O pastor, por sua vez, reconhece os méritos da ovelha preta ao mesmo tempo em que desvia o foco da atitude racista do cão ao festejar a diversidade de seu rebanho já que, depois da ovelhinha preta ter provado seu valor sobre as outras, poderá integrar o rebanho e colaborar com a produção das lãs, agora pretas e brancas. A celebração e a moralidade associados à diversidade funcional não escapam à narrativa ao afirmar que no princípio eram todos diferentes mas, agora eram todos iguais. A ilustração que acompanha a narrativa apresenta, em muitas figuras, a interpelação negativa do cão Piloto com a ovelhinha preta. No mais, a única figura humana representada é a do pastor, um homem branco.
Ombela: A origem das chuvas é o livro em que Ondjaki, ao recuperar cosmovisões constituintes da tradição africana, conta ao leitor como as águas, por meio das lágrimas da deusa Ombela, chegaram aos rios e mares. No diálogo com o mundo espiritual há espaço para expressão de sentimentalidades que explicam a aparição das lágrimas nos seres humanos. As ilustrações de Rachel Caiano configuram-se como uma espécie de fotografia das principais mensagens do texto.
Em Rãs, Príncipes e Feiticeiros: oito histórias de oito países que falam português, as autoras narram lendas e mitologias de Angola, Brasil, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e Timor-Leste. As cosmovisões selecionadas acentuam a narrativa dos contos tradicionais como herdeiros de crenças e valores constituintes a cada uma das culturas representadas. Nas ilustrações, os personagens negros e indígenas encontram-se seminus ou descalços e a única ilustração branca da obra fica por conta dos personagens portugueses.
4.3 Para quem fala?
Todos os livros têm suas narrativas e ilustrações voltados para despertar o interesse leitor do público infantil. Entretanto, a depender de quem é a voz narrativa do texto, ou mesmo do contexto de produção desta narrativa, o destinatário é sujeito que se torna mais evidente.
Por que somos de cores diferentes? é uma história que se propõe a explicar porque as outras pessoas têm cores de pele e outras características físicas distintas das brancas. Como a personagem principal da obra é branca, a ideia do outro se constrói como o não branco. Tenka é a personagem negra coadjuvante que desperta a possibilidade do questionamento para a diferença, o que sugere que, entre os brancos, não há diferenças. Os brancos, portanto, aparecem identificados como um grupo homogêneo. Embora o título da história esteja no plural, prevalece a narrativa da criança branca para explicar as diferenças que estão nas não brancas. As crianças são os interlocutores com quem a obra dialoga.
Se eu fosse…nacionalidades fala com as crianças portuguesas, personificadas no personagem Lio. Ao final, as crianças portuguesas são convidadas a elaborar um texto identitário sobre sua própria nacionalidade, partindo do pressuposto que o(a) leitor(a) é sempre alguém português(a).
A menina que voltou a ser menina é uma narrativa protagonizada por uma personagem negra e guineense que relata suas experiências infantis que variam entre a imaginação e a realidade. A obra retrata o universo infantil e acaba por caracterizar, de forma estereotipada a vida em Guiné-Bissau. O projeto europeu que subsidia a produção do livro indica que este livro foi produzido para contar aos europeus como é a vida em outras localidades, no caso, em Guiné-Bissau.
A ovelhinha preta trata-se de uma fábula na qual as ovelhas pretas e brancas são, evidentemente, a representação das pessoas negras e brancas. Nesse sentido, a narrativa valoriza a integração dos negros no mundo dos brancos por meio do mérito pessoal. Na contemporaneidade, a fábula é bastante utilizada como gênero literário voltado para o diálogo com um público infantil.
Ombela: a origem das chuvas é uma narrativa mitológica que apresenta uma cosmovisão angolana sobre a constituição dos rios e dos mares por meio de um diálogo travado entre uma deusa e o mundo espiritual. As narrativas mitológicas dirigem-se a todos os interessados em conhecer princípios e valores da cultura representada.
Rãs, Príncipes e Feiticeiros: oito histórias de oito países que falam português trata-se de uma compilação de oito histórias tradicionais (lendas e contos). O livro dirige-se aos falantes da língua portuguesa, entretanto, é fundamental observar que a obra não traz nenhuma reflexão sobre o porquê de todos esses países terem, em comum, o reconhecimento do português como língua oficial.
5 DO DIÁLOGO INTERCULTURAL AO MONÓLOGO RACIAL
Para os anos escolares correspondentes ao ciclo I, o PNL 2017 (PNL2027, 2018) oferece uma extensa lista com mais de mil títulos de obras de literatura infantil. As escolas públicas têm autonomia para escolher, dentre esses livros, aqueles que serão selecionados como seus livros de leitura.
Nesse universo, apenas seis obras, explicitamente, abordam temáticas do âmbito do diálogo intercultural, objeto desta investigação. Nota-se que, quantitativamente, a atenção dada a esses assuntos não apresenta resultados significativamente positivos.
É possível construir também uma análise qualitativa, pautada no reforço da identidade social branca apresentada como padrão étnico-racial único, constituinte das crianças que frequentam as escolas portuguesas. A identidade pessoal e familiar, por exemplo, é tema muito pertinente aos primeiros anos de escolarização das crianças. O reconhecimento de si e de seus próximos é conteúdo transversal às diferentes disciplinas abordadas neste ciclo. Dessa forma, títulos que falam sobre mamães, papais, tias, tios, amigos, amigas, avôs, avós e sobre a própria criança são representados por personagens brancos(as) e ilustrados(as) para dialogar diretamente com crianças brancas. Contudo, para a DGE, que gerencia o Projeto de Educação Intercultural nas Escolas, a questão da interculturalidade
[...] consiste numa nova expressão dentro do pluralismo cultural que, afirmando não apenas o diferente, mas também o comum, promove práticas geradoras de igualdade, liberdade e interação positiva na relação entre sujeitos individuais ou coletivos culturalmente distintos (MEC, 2017, p.14).
Neste sentido, as mensagens das obras analisadas indicam que os brancos são homogêneos, que as diferenças se encontram apenas na população não branca e que o comum é um padrão estabelecido a partir dos valores e lógicas brancas/europeias, mas que podem ser atingidos pelos negros a partir de um processo de integração. A referência aos princípios de liberdade, igualdade e interação positiva (num sentido bem aproximado à fraternidade) indicam que os ideais moderno-ocidentais da revolução francesa, em sua interpretação hegemônica e eurocêntrica, são falaciosos. Eles estão presentes nos discursos políticos, mas continuam ausentes das práticas institucionais.
Na contemporaneidade, o diálogo intercultural que pauta as relações étnico-raciais entre negros e brancos apontadas por esta análise reforçam que a liberdade, a igualdade e a interação positiva continuam a beneficiar apenas o grupo branco.
Em determinada cena do documentário Eu não sou seu negro (PECK, 2017), James Baldwin afirma que branco é uma metáfora para o poder. A frase é proferida num contexto de confirmação da hegemonia racial branca que se impõe sobre populações, histórias e culturas negras há séculos.
Os dados apresentados revelam que os livros de leitura do PNL 2017 (PNL2027, 2018) apresentam a construção de um diálogo intercultural baseado num discurso liderado e elaborado por representantes das elites portuguesas. Entende-se por elite não apenas o grupo com poderes econômicos mas, sobretudo, com poderes políticos (jornalistas, representantes governamentais, escritores, professores e cientistas políticos, dentre outros) autorizados a proferir discursos sobre os outros, construídos sob a ótica da racialização de pessoas não brancas (Van Dijk, 2001). Esse discurso, portanto, esteve caracterizado pela predominância de autores brancos e europeus que se comunicam sobre ou em nome de personagens não brancas e em contextos que, não por coincidência, são territórios que foram antigas colônias portuguesas.
O discurso sobre diferenças em Por que somos de cores diferentes? e A menina que voltou a ser menina, está localizado em personagens que não são os portugueses brancos. A exceção aponta Ondjaki como o único autor não branco e politicamente engajado em discursos e reflexões sobre seu local de origem (Angola).
Nos discursos sobre a diversidade em Por que somos de cores diferentes?; A ovelhinha preta e Rãs, Príncipes e Feiticeiros predomina a despolitização do racismo e do colonialismo enquanto marcador estrutural das diferenças socialmente construídas pelo processo colonial europeu. Ao fim dessas narrativas, as desigualdades, travestidas de simples diferenças, são legitimadas e celebradas. Conforme afirmam Araujo e Maeso (2013), a despolitização deste debate tem impedido uma discussão significativa e acaba por reforçar narrativas exotizantes, sintetizadas pelo festival multicultural.
A Educação intercultural é, maciçamente, produzida por europeus brancos(as) e, em muitos casos é também a eles endereçada. Além disso, a identidade portuguesa segue caracterizada por um falso padrão hegemônico branco. As ilustrações são também produzidas por profissionais brancos sem envolvimento com reflexões de ordem étnico-racial. Pessoas e lugares aparecem estereotipamente representados, como em Se eu fosse…nacionalidades; em Rãs, Príncipes e Feiticeiros e A menina que voltou a ser menina; construídos a partir de um traçado que aplica outras tonalidades a fenótipos brancos como em Ombela e Por que somos de cores diferentes?
Diante desses resultados, fica a indagação: é possível construir um diálogo sem voz ativa de uma das partes envolvidas?
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na listagem do PNL 2017 (PNL2027, 2018), o 1º semestre de 2018 não apresentou nenhum livro que pudesse se encaixar nos objetivos desta pesquisa. Esta ausência é um ponto forte na legitimação do panorama racista que a listagem do ano de 2017 também confirmou.
Embora mais de mil títulos tenham sido sugeridos à leitura das crianças do ciclo I, apenas seis apresentaram elementos para a análise desta investigação, que se utilizou de uma investigação crítica antirracista (Van Dijk, 1993; Apple, 2002; Dei; Johal, 2008) para estruturar a metodologia desses seis títulos literários.
O discurso literário não se revelou dialógico nem intercultural, ao contrário, os resultados evidenciaram um monólogo culturalmente branco.
A falaciosa diversidade revelada nas literaturas analisadas tem estreita ligação com a relação colonial portuguesa, embora esse assunto seja absolutamente ignorado. As diferenças socialmente produzidas que racializaram e identificaram grupos sociais como negros e indígenas e que são base fundamental para as desigualdades que operam na lógica das relações étnico-raciais é temática despolitizada por meio da celebração da diversidade, defendida pelos autores.
As teorizações sobre o conceito de interculturalidade demonstram que não é possível transformar relações de poder se optarmos por uma abordagem que se paute num diálogo despretensioso e funcionalista entre diferentes grupos étnico-raciais.
O racismo anti-negro, trata-se de um fenômeno social construído, legitimado e iniciado por meio do projeto colonial de exploração de povos e territórios americanos e africanos, liderado pelos descobrimentos portugueses. As consequências deste processo perduram até os dias de hoje e os projetos de institucionalização do racismo adquirem apenas novas roupagens, como é o caso do projeto de educação intercultural.
Ou se assume o racismo como fenômeno institucionalizado em nossas estruturas de governo e relações sociais e se desorganizam essas relações de poder que legitimam as práticas racistas, ou se continuam a produzir medidas travestidas de ideais humanitaristas que apenas legitimam as relações de opressão racial.