1 INTRODUÇÃO
A expansão das iniciativas de formação de professores(as) sobre os temas gênero e sexualidades é uma realidade vivenciada no País fortemente nas duas últimas décadas, com diversas experiências reportadas na literatura (França; Calsa, 2010; Gesser et al., 2012; Rossi et al., 2012; Deslandes, 2015; Soares, 2018; Silva; Brabo, 2020). Essa expansão ocorre a partir do respaldo do gênero e das sexualidades nas políticas públicas educacionais, que começaram a ter espaço pelo menos desde a promulgação da Constituição Federal (Brasil, 1988), da Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996) e, de forma mais explícita, com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) (Brasil, 1997).
Como é mencionado em consenso na literatura consultada (Brabo, 2015; Deslandes, 2015; Silva; Brabo; 2021), isso se tratou de um longo processo que se deu com as atividades de movimentos sociais, em especial os Movimentos Feminista e LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros em geral, queer, intersexuais, assexuais etc.)1, por meio de mobilizações populares, como também pontua Vianna (2012, p. 131), sobre os dois movimentos terem assumido “papel protagonista na proposição de vários projetos e programas federais e estaduais ligados à inclusão da diversidade sexual no contexto escolar”. Não obstante, essa contemplação do gênero e das sexualidades também decorre do compromisso afirmado pelo País em tratados internacionais de direitos humanos, dos quais historicamente sempre foi signatário, em sua maioria emitidos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), como o Programa Mundial para Educação em Direitos Humanos (PMEDH) (Unesco, 2015a).
Dessa forma, para implementação dessas políticas, as referidas iniciativas para capacitação de profissionais na área da Educação cresceram à medida que tais políticas eram promulgadas. Professores e professoras, em especial, assumem posição privilegiada para essa implementação, pois “se colocarão entre o que prevê esse campo normativo (e movimentos sociais que o reivindicam) e a sua realização na escola, [sendo] os(as) principais responsáveis pela abordagem e discussão de gênero e sexualidade com os(as) formandos(as)” (Silva; Brabo, 2021, p. 211), como também consideram Gesser et al. (2012), Ribeiro e Faria (2014) e Soares (2018).
Algumas das primeiras iniciativas em larga escala para esse tipo de formação, especificamente por parte do Governo Federal em parcerias com organizações não governamentais e Universidades, foram o Programa de Formação de Profissionais da Educação para a Cidadania e a Diversidade Sexual, uma articulação que envolveu o Ministério da Educação (MEC), a Secretaria de Políticas para a Igualdade Racial (Seppir), a Secretaria de Política para Mulheres (SPM) e o Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM), o projeto Gênero e Diversidade na Escola (GDE), estabelecido no ano de 2006 pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), vinculada ao MEC, e o projeto Escola sem Homofobia, também estabelecido pela Secad como parte do Programa Brasil sem Homofobia (Brasil, 2004), desenvolvido pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) no âmbito do Programa de Direitos Humanos, Direito de Todos. Tais iniciativas são reconhecidas pela sua importância e citadas em vários trabalhos consultados da literatura especializada (Vianna, 2012; Deslandes, 2015; Soares, 2018).
No caso do Programa de Formação de Profissionais da Educação, Soares (2018) relata que seu objetivo foi apoiar experiências-piloto e adquirir subsídios para a formulação de políticas educacionais de valorização e respeito à diversidade sexual e de combate à homofobia. Por seu turno, o projeto GDE proporcionou cursos de formação continuada na modalidade de Educação a Distância (EaD) para professores(as) da Educação Básica da rede pública sobre respeito e valorização da diversidade, incluindo discussões acerca de gênero, orientação sexual e raça-etnia. O projeto Escola sem Homofobia, por sua vez, buscou implementar ações de promoção dos direitos humanos e do respeito às diferentes orientações sexuais e identidades de gênero no contexto escolar brasileiro.
Entretanto, muitas outras iniciativas, e provenientes de outras fontes, como as desenvolvidas isolada e localmente por organizações sociais e por Universidades, onde o conhecimento científico sobre os temas é produzido, também foram encetadas (Catharino, 2006; França; Calsa, 2010; Silva; Brabo, 2020). Em concomitância a esse quadro, ainda que aos poucos, a legitimidade dos temas foi reconhecida nos cursos de formação inicial de professores(as) - especificamente pelas graduações em Pedagogia e licenciaturas -, os quais incluíram gênero e sexualidades como parte de seu conteúdo curricular programático, embora em boa parte isso tenha acontecido sob muita reivindicação e embate, conforme relatam muitos(as) professores(as) universitários(as) envolvidos(as) nesse processo de inclusão dos temas nos respectivos cursos de graduação em que atuam (Leão, 2009; Rossi et al., 2012; Unesco, 2014; Soares, 2018).
É importante salientar que essa inclusão se dá, na maioria das vezes, a partir da inclusão de uma disciplina específica sobre gênero, sexualidades e temas relacionados na matriz curricular desses cursos, como uma disciplina optativa ou obrigatória, apesar de que em parte dessas experiências também se considere a inclusão da transversalidade dos temas (Ribeiro; Faria, 2014), seja ela prevista em todo o curso, seja em determinadas disciplinas que a princípio aparentam ser específicas a outros temas, mas que são potenciais para a abordagem e a discussão de gênero e sexualidades.
Na identificação e mapeamento dessas experiências de institucionalização de gênero e sexualidades em cursos de formação de professores(as) no contexto da Educação Superior, destacamos a pesquisa As políticas de educação em sexualidade no Brasil - 2003 a 2008, realizada por pesquisadoras(es) brasileiras(os) com o apoio de diversas instituições (Ecos, s.d.). Essa pesquisa, que investigou um universo de mais 2 mil cursos de Pedagogia, revelou a existência de apenas 68 disciplinas, em sua maioria optativas e fora da matriz regular, de 41 Instituições de Ensino Superior (IES) diferentes, sobretudo públicas, que continham alguma referência aos temas ou a questões relacionadas, concluindo que tais iniciativas para inclusão dos temas são frágeis e localizadas.
Na prossecução desse tipo de investigação, a realização do I Seminário Educação em Sexualidade e Relações de Gênero na Formação Inicial Docente no Ensino Superior, promovido pela Unesco em 2013 (Unesco, 2014), teve como propósito a discussão de experiências acadêmicas sobre a inserção dos temas gênero e sexualidade nos currículos de formação docente no Ensino Superior. Nele, de modo geral, relatou-se a já aqui referida dificuldade enfrentada por professores(as) universitários(as) para a inclusão dos temas nos cursos em que atuam (Leão, 2009; Rossi et al., 2012; Soares, 2018). Desse primeiro seminário resultou a Pesquisa PNIES (Pesquisa Nacional sobre a inclusão de temas de Educação em Sexualidade e Relações de Gênero nos Currículos de Formação Inicial Docente em Instituições de Ensino Superior), também desenvolvida pela Unesco, que buscou traçar um panorama acerca da incorporação dos temas aos currículos de formação inicial docente das IES brasileiras. Ao final, participaram do estudo 300 IES públicas e privadas de todo o País, entre as 2.276 instituições de Ensino Superior que na época ofereciam cursos na área de formação docente. Um segundo seminário, portanto, foi promovido em 2015 para apresentação dos resultados da pesquisa (Unesco, 2015b; 2017). Considerando que a graduação de Pedagogia respondeu por 66% do total de cursos entre as outras licenciaturas, foi demonstrado que 58,27% das IES brasileiras, entre públicas e privadas, englobam os temas gênero e sexualidades em seu currículo regular, enquanto 11,15% incluem apenas gênero e 5% trabalham somente sexualidade.
Diante desse cenário, torna-se pertinente indagar, na perspectiva dos(as) estudantes, futuros(as) educadores(as), sobre quais as possibilidades que profissionais da Educação dispõem para uma formação em gênero e sexualidades desde a graduação, se essa formação é ofertada para além de uma disciplina específica, se acontece de modo transversal em outras disciplinas e/ou em atividades semi e extracurriculares, além de também questionar se essa formação, de fato, concretiza-se.
Este artigo, portanto, aborda parte dos resultados de uma pesquisa desenvolvida em nível de Mestrado Acadêmico, concluída em 2022 (Silva, 2022)2, que, entre outros objetivos, buscou analisar a percepção de graduandos(as) em Pedagogia sobre as possibilidades de formação em gênero e sexualidades em seu curso. Essa pesquisa foi proposta como continuidade de uma pesquisa anterior de Iniciação Científica (IC), realizada entre 2017 e 2018 (Silva, 2018)3, que investigou a formação em gênero, sexualidades e ética de graduandos(as) em Pedagogia de uma Universidade pública paulista. Visto que nessa pesquisa anterior inferiu-se haver uma fragilidade formativa nesses aspectos investigados, na pesquisa de Mestrado procurou-se verificar se esse resultado condiz com outras realidades e ambientes universitários, expandindo a investigação. Nessa expansão, adicionou-se mais um curso de Pedagogia, considerando a presença de uma disciplina específica sobre gênero e sexualidades em sua matriz comum curricular. Assim, no que tange à Pedagogia, foram dois cursos participantes, um curso que tem gênero e sexualidades como conteúdos curriculares e outro curso que não os tem, ambos localizados no contexto universitário pública paulista.
Dada a impossibilidade de se produzir uma discussão que abrangesse todos os resultados encontrados com ambos os cursos participantes, delimitamos este artigo para abordagem dos resultados obtidos com o curso de Pedagogia que dispõe de uma disciplina específica sobre os dois temas em sua matriz comum curricular.
2 METODOLOGIA
A metodologia consistiu na aplicação de um questionário composto por perguntas abertas e fechadas. Tratou-se do mesmo questionário elaborado e utilizado na pesquisa anterior de IC4, mas que teve de passar por um processo de adaptação na pesquisa de Mestrado, suprimindo determinadas perguntas e acrescentando outras, de modo a fazer com que o instrumento pudesse contemplar de modo mais significativo a percepção dos(as) graduandos(as) sobre os aspectos curriculares de seu curso no que tange às possibilidades de formação em gênero e sexualidades. Ao final, compuseram-no 13 perguntas que questionavam sobre essa formação no curso.
Esse questionário foi aplicado no curso de Pedagogia de uma Universidade pública paulista, curso escolhido pelo critério de os temas gênero e sexualidades estarem previstos como parte de seu conteúdo curricular programático, nomeadamente dispondo de uma disciplina específica sobre os temas em sua matriz comum curricular. Então aplicado em formato eletrônico, em razão da pandemia de Covid-19, responderam ao questionário 105 sujeitos (N=105), contemplando graduandos(as) matriculados(as) nos quatro anos que o curso tem de duração.
Além disso, antes das perguntas que questionavam a percepção dos(as) graduandos(as) sobre os aspectos curriculares, havia ainda algumas perguntas de caráter sociodemográfico para caracterização dos sujeitos, na identificação das variáveis da amostra. Para contabilização dessas variáveis, as respostas dadas a tais perguntas de caracterização foram transcritas para uma planilha gerada pelo software SPSS© (Statistical Package for the Social Sciences, 2021), utilizando-se apenas de análise estatística descritiva, ou seja, o cálculo da frequência e porcentagem.
Depois de contabilizadas, pôde-se identificar que a amostra foi composta por 26 graduandos(as) matriculados(as) no primeiro ano (24,8%), 34 matriculados(as) no segundo ano (32,4%), 24 matriculados(as) no terceiro ano (22,9%) e 21 matriculados(as) no quarto ano (20,0%), segundo a variável ano de matrícula, totalizando 105 participantes (N=105): 98 eram mulheres cisgênero (93,3%), 6 homens cisgênero (5,7%) e 1 sujeito não binário (1,0%), segundo a variável gênero; 30 sujeitos indicaram ser bissexuais (28,8%), 65 heterossexuais (62,5%), 6 homossexuais (5,8%), e 3 pansexuais (2,9%), segundo a variável orientação sexual; 10 sujeitos classificaram-se como pretos (9,6%), 14 pardos (13,5%) e 80 brancos (76,9%), segundo a variável raça-etnia; 33 sujeitos indicaram ser agnósticos(as) (31,7%), 3 ateístas (2,9%), 1 budista (1,0%), 31 católicos (29,8%), 5 espíritas (4,8%), 26 evangélicos (25,0%), 1 umbandista (1,0%), 1 cristão (1,0%) e 3 da religião Wicca (2,9%), segundo a variável religião; e 91 sujeitos indicaram a graduação em Pedagogia em andamento ser sua primeira graduação (87,5%) e 13 indicaram já possuir outra graduação (12,5%), segundo a variável nível de formação. Trata-se, portanto, de uma amostra em sua maioria composta por mulheres cisgênero, heterossexuais, brancas, de religião de base cristã (católica e evangélica) e que tinham a Pedagogia em andamento como primeira graduação. Ademais, os(as) graduandos(as) estiveram bem distribuídos(as) entre os anos do curso, com pelo menos mais de 20 participantes em cada ano. Cabe ainda ressaltar que, sendo a disciplina específica sobre os temas ofertada no terceiro ano do curso em questão, os(as) estudantes matriculados(as) no terceiro (24 sujeitos) e quarto (21 sujeitos) anos já haviam passado por ela.
Feita essa caracterização da metodologia, parte-se a seguir para a exposição das análises e dos resultados obtidos dos sujeitos participantes do curso de Pedagogia investigado. As análises respaldaram-se na intersecção da produção da literatura feminista de gênero e sexualidades com a literatura de formação de professores(as), cujas algumas das produções consultadas foram citadas anteriormente neste artigo - e que voltarão a ser referenciadas, assim como novas produções também o serão, à medida que se discutem os resultados encontrados. Em razão do número considerável de participantes, nas análises fez-se o cálculo percentual das respostas dos sujeitos.
Ressalta-se, também, que, embora tenha sido objetivo do estudo analisar a percepção dos(as) graduandos(as), incluiu-se a análise do Projeto Político-Pedagógico (PPP) e da matriz curricular do curso em questão, a partir do procedimento de análise documental por leitura exploratória (Gil, 2010), para uma avaliação pormenorizada do lugar que os temas ocupam no conteúdo curricular programático do curso e posterior comparação com as respostas dos(as) graduandos(as), contrastando o que é previsto formalmente e o que é relatado realmente acontecer no que tange à formação em gênero e sexualidades.
A pesquisa e toda a sua execução receberam a devida autorização pelo Conselho do curso em questão e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unesp de Marília, protocolo CAAE n.º 43237220.6.0000.5406.
3 RESULTADOS
3.1 Análise do Projeto Político-Pedagógico (PPP) e da matriz curricular
De acordo com Deolindo e Caetano (2013), o PPP de uma instituição tem como objetivo expor uma visão de mundo e traçar as diretrizes e métodos que pretende desenvolver na proposta de formação de seu alunado. Logo, a partir da análise desse documento, pôde-se identificar se e quais de seus objetivos, missão e métodos favorecem a abordagem de gênero e sexualidades no processo de formação oferecido.
Para essa análise, algumas categorias foram eleitas como forma de norteá-la, sendo elas: 1) aspectos formais (duração, período e organização); 2) estágios e relação entre teoria e prática; e 3) atividades acadêmico-científicas e culturais.
Consta no texto do PPP, como dois de seus objetivos específicos, que o curso deve “buscar, de forma criativa, inovadora e com responsabilidade social, responder às demandas surgidas em seu tempo de atuação profissional”, assim como deve “comprometer-se com a superação de quaisquer práticas excludentes presentes nos rituais educativos” (Projeto Político-Pedagógico, 2015). Tais objetivos se mostram potenciais para a abordagem de gênero e sexualidades.
Quanto ao primeiro, responder às demandas surgidas espontaneamente na atuação profissional, trazidas pelos(as) alunos(as) e oriundas no próprio cotidiano escolar, tais como questões relacionadas a esses dois temas, é uma das formas de educadores(as) ofertarem uma formação em gênero e sexualidades a seu alunado, como ressaltam Barbosa e Guizzo (2014). Quanto ao segundo objetivo, a superação de práticas excludentes se mostra ainda mais alinhada com a proposta de se abordar e discutir gênero e sexualidades na escola: que é justamente superar um quadro de desigualdades historicamente afirmadas e de opressões de inúmeras naturezas, como a opressão à diversidade sexual e de gênero (sendo homofobia e transfobia alguns exemplos), e, em seu lugar, promover o respeito às diferenças e a igualdade de direitos (Deslandes, 2015; Soares, 2018).
O documento também sumariza algumas das principais características formais do curso: 1) duração, “o curso tem um total de 3.600 horas distribuídas e organizadas em 08 (oito) semestres letivos, perfazendo um total de 04 (quatro) anos”; 2) período, “o curso funciona no período noturno, incluindo-se atividades aos sábados. [...] o desenvolvimento de atividades de Estágios Supervisionados está previsto para o período diurno”; 3) organização,
[...] este curso é constituído [...] por núcleos: um núcleo de estudos básicos, constando as respectivas disciplinas obrigatórias (de formação geral e profissional); um núcleo de aprofundamento e diversificação de estudos, relativos às disciplinas obrigatórias de aprofundamento, disciplinas optativas e o TCC; um núcleo de estudos integradores, relacionados as atividades do PI e atividades acadêmico-científicas e culturais; e, ainda, os Estágios Supervisionados (Projeto Político-Pedagógico, 2015).
A discussão que se segue no PPP é organizada de acordo com os princípios norteadores, dos quais elenca:
1. A articulação entre teoria e prática; 2. A iniciação às práticas investigativas; 3. A perspectiva interdisciplinar; 4. A flexibilidade na organização curricular, favorecendo ao aluno a opção por temáticas de aprofundamento; 5. A integração da formação exigia para o exercício profissional nos diferentes âmbitos da educação básica; 6. A eleição da escola pública como instância de investigação, de formação e de intervenção (Projeto Político-Pedagógico, 2015).
Desses princípios interessaram-nos principalmente os de articulação entre teoria e prática, de práticas investigativas e de flexibilidade na organização curricular.
Quanto ao primeiro princípio, o documento ressalta que “pensar a articulação teoria e prática, no âmbito da educação, remete à relação entre o conhecimento pedagógico e a prática educacional” (Projeto Político-Pedagógico, 2015). Ainda nesse princípio, o documento faz menção ao Estágio Supervisionado e às atividades práticas, instituindo o cumprimento de 405 horas referentes à Prática como Componente Curricular (PCC) e de 450 horas concernentes ao Estágio Curricular Supervisionado. As 450 horas distribuem-se em Estágios Supervisionados, correspondendo à atuação do(a) estagiário(a) na Educação Infantil, nos anos iniciais do Ensino Fundamental e na Gestão Escolar. Ademais, são previstas três disciplinas respectivas aos estágios para, entre outros objetivos, orientação e acompanhamento das atividades do(a) estagiário(a).
Sobre o princípio norteador de iniciação às práticas investigativas, no documento ressalta-se que “A formação de professores [...] exige que seja inscrita na conduta desses futuros profissionais uma postura investigativa” e, dessa forma, que
[...] a preocupação com o incentivo às práticas investigativas que se materializam, neste projeto, da seguinte forma: 1. Exigência de elaboração de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), e 2. Exigência da participação em eventos de natureza científica e/ou cultural, sob a forma de atividades acadêmico-científicas e culturais (Projeto Político-Pedagógico, 2015).
Além do TCC e participação em atividades acadêmico-científicas e culturais, que foi a última categoria de nossa análise, há a possibilidade do pleito de bolsas de pesquisa e extensão no curso, embora o PPP não seja explícito nesse sentido.
Findadas essas categorias que traçamos para a presente análise, pode-se concluir, em síntese, que o curso de Pedagogia parece, pelo menos na perspectiva burocrática, proporcionar aos discentes uma formação qualificada e integral, na qual se incluem as formações em gênero e sexualidades, em que os(as) alunos(as) têm, no âmbito da pesquisa e extensão, diversas bolsas de apoio para isso, assim como também têm disponíveis grupos de estudos e núcleos integradores. Outros recursos nesse sentido são os eventos acadêmicos, científicos e culturais. Além disso, o texto do PPP é explícito pontualmente e implícito por diversas vezes quanto à preocupação dessa formação nos aspectos formativos que nos interessam: a abordagem de gênero e sexualidades.
Quanto à análise da matriz curricular do curso, são oferecidas: 34 disciplinas obrigatórias, pertencentes ao núcleo de estudos básicos; 11 disciplinas de aprofundamento; e 9 disciplinas optativas, das quais os(as) graduandos(as) devem escolher cursar pelo menos duas. Além dessas, eles(as) têm a opção de cursar como disciplinas optativas outras disciplinas oferecidas em outros cursos de graduação do campus. Cabe ressaltar que esse curso foi escolhido para participar de nossa pesquisa por dispor de uma disciplina específica, pertencente ao núcleo de estudos básicos e, portanto, obrigatória, para abordagem e trabalho com os temas gênero e sexualidades. Essa disciplina conta com a carga horária de 60 horas e é oferecida no quinto semestre (terceiro ano) do curso.
No Plano de Ensino dessa disciplina, em sua ementa consta como objetivo geral:
[...] a mediação da ampliação do conhecimento e a desmistificação de questões e temas relativos à sexualidade humana para fornecer subsídios para a intervenção em sala de aula no que tange a políticas de educação sexual, relações de gênero e diversidade sexual na escola (Plano de Ensino, s./d).
Quanto ao conteúdo programático da disciplina, consta que o curso se divide em cinco unidades, abordando diferentes aspectos dos Estudos de Gênero que se articulam com o campo educacional para subsidiar a formação dos(as) graduandos(as). Nesse sentido, no que se refere à metodologia de ensino, está previsto: “o curso constará de aulas expositivas, estudo dirigido, análise e discussão de textos, análise e discussão de vídeos, pesquisa de campo, visita monitorada, discussão e análise de estudo de casos, leituras e elaboração de textos, trabalhos em grupos” (Plano de Ensino, s./d.). Pensando a formação em gênero e sexualidades, a disciplina - novamente, pelo menos no âmbito burocrático - parece propiciar momentos que possibilitem essa formação.
Além dessa disciplina, como anunciado na análise do PPP, são várias outras disciplinas, obrigatórias, de aprofundamento e optativas, que compõem a matriz curricular do curso. No entanto, não foi encontrada nenhuma outra disciplina que abordasse os temas como seu ponto central ou como um assunto privilegiado em sua proposta. Para saber se os temas são abordados transversalmente ao longo do curso, inclusive nessas outras disciplinas, recorreu-se às perguntas que compuseram o questionário aplicado, parte delas que interrogavam sobre a percepção dos(as) estudantes sobre dados curriculares do curso, como a abordagem transversal dos temas.
3.2 Sobre as possibilidades de formação em atividades curriculares
Schillinger-Agati (2006) fornece uma das várias classificações disponíveis na literatura sobre as atividades acadêmicas. Com base nessa autora, podemos dividir as atividades acadêmicas em pelo menos três dimensões: em curriculares, sendo essa primeira dimensão referente às atividades obrigatórias para a formação do(a) estudante e desenvolvidas em sala de aula - ambiente tradicional em que acontece o processo formativo; em semicurriculares, concernentes às atividades obrigatórias para a formação, mas que ocorrem para além da sala de aula; e em extracurriculares, relativas às atividades não obrigatórias para a formação, mas que contribuem para essa formação.
As perguntas de nosso questionário foram organizadas de modo a contemplar essas três dimensões no que tange à formação em gênero e sexualidade em Pedagogia. Assim, suas perguntas de número 1 e 2 concerniram à dimensão curricular; as perguntas 3, 4, 5 e 6 disseram respeito à dimensão semicurricular; e as perguntas 7, 8 e 9 relacionaram-se à dimensão extracurricular. Aqui, apresentamos primeiro a análise das respostas dos(as) participantes às perguntas da dimensão curricular, prosseguindo as análises das respostas das demais dimensões em seguida.
O Gráfico 1 representa a pergunta de número 1 do questionário: “No curso de Pedagogia, você se lembra de ter recebido alguma formação em relação aos temas gênero e sexualidade até o momento?”.

Gráfico 1 Respostas dos(as) graduandos(as) sobre se já receberam alguma formação em relação aos temas gênero e sexualidade no curso
Como mostra o Gráfico 1, a maioria dos(as) graduandos(as), 69 sujeitos, afirmou que não recebeu uma formação sobre gênero e sexualidade, embora no curso haja uma disciplina específica sobre os temas. Verificando a progressão das respostas de ano a ano, do primeiro ao quarto, observa-se que a maioria dos(as) graduandos(as) aponta não receber essa formação até o segundo ano, e a partir do terceiro ano há uma mudança nas respostas, pela qual 18 sujeitos afirmaram tê-la recebido em contraponto a 11 sujeitos que sustentam não a ter. No quarto ano, essa mudança é reafirmada com 18 sujeitos que mencionam ter recebido e 3 sujeitos que dizem que não.
Ressalta-se que a disciplina específica aos temas gênero e sexualidades é oferecida no terceiro ano, evidenciando o motivo para essa mudança nas respostas a partir do terceiro ano. Ainda assim, com a afirmação negativa nos anos anteriores, infere-se que os temas não estão sendo trabalhados de forma transversal nas disciplinas não específicas aos temas no curso, visto que a maioria dos(as) graduandos(as) só reconhece ter recebido esse tipo de formação depois de passar pela disciplina específica.
O Gráfico 2 representa a pergunta de número 2: “Você já produziu, apresentou ou assistiu trabalhos ou seminários em classe que abordaram os temas gênero e sexualidade?”.

Gráfico 2 Respostas dos(as) graduandos(as) sobre se já produziram, apresentaram ou assistiram trabalhos ou seminários em classe que abordaram os temas gênero e sexualidade
A maioria dos(as) graduandos(as), 72 sujeitos, assinalou que não desenvolveu/assistiu trabalhos que abordam os temas, em contraponto a 31 sujeitos que indicaram positivamente. Essa maioria prevalece em quase todos os anos do curso, ainda que parte da amostra afirme já ter desenvolvido/assistido esse tipo de atividade. Apenas no quarto ano o número foi maior de sujeitos que responderam ter desenvolvido/assistido trabalhos sobre os temas, 13 sujeitos, em contraponto a 8 sujeitos. Nesse sentido, é importante salientar o quão preocupante é, em um curso que dispõe de uma disciplina específica para a abordagem dos temas, sua maioria apontar não ter participado do desenvolvimento dessas atividades, nem de pelo menos tê-las assistido.
Ainda assim, se se observar a progressão no curso dos 31 sujeitos que assinalaram ter participado dessas atividades, pode-se inferir que, depois da oferta da disciplina específica no terceiro ano, a maioria dos sujeitos passa a ser de quem indica ter participado das atividades, ou seja, a participação dessas atividades apresenta uma aparente dependência da disciplina específica do curso.
3.3 Sobre as possibilidades de formação em atividades semicurriculares
Quanto à dimensão semicurricular das atividades de formação em gênero e sexualidade (Schillinger-Agati, 2006), o Gráfico 3 representa as perguntas de número 3 e 4 do questionário, sendo elas, respectivamente: “Na instituição que você cursa, são realizados eventos científicos sobre os temas gênero e sexualidade?” e “Se sim [há eventos], você os frequenta ou teria interesse em frequentá-los?”.

Gráfico 3 Respostas dos(as) graduandos(as) sobre se são realizados eventos científicos sobre os temas gênero e sexualidade na instituição em que cursa e se os frequenta
Primeiro, cabe ressaltar que atividades acadêmico-científicas e culturais, tais como eventos científicos, caracterizam-se como atividades semicurriculares, pois são requisitos para conclusão do curso. Sendo esses dois tipos de atividade de formação desenvolvidos fora do ambiente tradicional de ensino - em disciplinas, na sala de aula -, como ressalta Schillinger-Agati (2006), a obrigatoriedade é o principal fator que distingue as atividades semicurriculares das extracurriculares.
Assim, voltando-se aos dados, a maioria dos(as) graduandos(as), 66 sujeitos, assinalou que não são realizados eventos sobre os temas e permaneceu como a maioria em quase todos os anos, com exceção do quarto ano, mas em sútil diferença. Cerca de 18 desses 66 sujeitos também responderam à pergunta seguinte, de número 7, com os que assinalaram conhecer a realização desses eventos. Assim, desses 18 sujeitos, com os 39 que responderam conhecer essa realização de eventos, 22 assinalaram que frequentam ou têm interesse em frequentar eventos científicos sobre gênero e sexualidades, ao passo que 35 sujeitos apontaram que não. Quem indicou negativamente permaneceu como maioria em quase todos os anos, também com exceção do quarto ano e em sútil diferença.
O Gráfico 4 abarca as respostas às perguntas de número 5 e 6: “Você já realizou/está realizando estágio em escola?” e “Se sim [exerce estágio], os temas gênero e sexualidade já foram abordados em algum momento?”, respectivamente.

Gráfico 4 Respostas dos(as) graduandos(as) sobre se já realizaram/estão realizando estágio em escola e se os temas gênero e sexualidade foram abordados em algum momento no estágio
A maioria dos(as) graduandos(as), 66 sujeitos, assinalou que exerce a atividade de estágio, enquanto 39 sujeitos apontaram que não exercem. Essa maioria aparece em maior número a partir do segundo ano, uma vez que é desse ano que o estágio obrigatório é ofertado e o estágio remunerado tem seu exercício permitido ao(à) estudante. Conforme a Figura 4, dos 66 sujeitos estagiários, estes foram divididos entre quem assinalou que os temas gênero e sexualidades foram abordados no estágio, 12 sujeitos, e quem assinalou que não houve essa abordagem, 54 sujeitos. Assim, sendo a maioria de quem assinalou não haver a abordagem, a progressão entre os anos do curso mostra que em todos os anos prevalece essa não abordagem dos temas no estágio.
3.4 Sobre as possibilidades de formação em atividades extracurriculares
No que se refere à dimensão extracurricular (Schillinger-Agati, 2006), produziu-se o Gráfico 5 que representa a pergunta 7: “Você exerce atividade de pesquisa de Iniciação Científica, Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e/ou extensão, com ou sem bolsa, sobre os temas gênero e sexualidade?”.

Gráfico 5 Respostas dos(as) graduandos(as) sobre se exercem atividade de pesquisa sobre os temas gênero e sexualidade
Foram poucos(as) os(as) graduandos(as) que passaram por essa experiência de pesquisa e/ou extensão no curso, sendo apenas 4 deles(as) em toda a amostra, e somente a partir dos anos finais no curso, terceiro e quarto anos. Cabe salientar que o desenvolvimento de TCC ocorre no último ano e que a abordagem dos temas nessa atividade depende do interesse do(a) graduando(a) em abordá-los, uma vez que a escolha de seu tema de pesquisa é livre. O mesmo ocorre nas atividades de Iniciação Científica e bolsas de extensão, que geralmente são assumidas pelos(as) graduandos(as) depois de terem concluído alguns semestres no curso, além de depender do escopo de pesquisa de seu(sua) orientador(a) para gênero e sexualidades serem os temas dessas atividades.
O Gráfico 6 caracteriza as perguntas de número 8 e 9: “Na instituição que você cursa, há Grupos de Pesquisa sobre os temas gênero e sexualidade?” e “Você os frequenta ou teria interesse em frequentá-los?”.

Gráfico 6 Respostas dos(as) graduandos(as) sobre se há Grupos de Pesquisa sobre os temas gênero e sexualidade na instituição em que cursa e se teriam interesse em frequentá-los
Do total da amostra (N=105), 75 sujeitos assinalaram que desconhecem se há Grupos de Pesquisa na instituição em que cursam Pedagogia, enquanto 30 sujeitos indicaram que conhecem. Em todos os anos do curso, prevaleceu essa maioria de quem desconhece. No entanto, 69 desses 75 sujeitos também responderam à pergunta seguinte, de número 9, com os que assinalaram saber sobre os Grupos de Pesquisa. Logo, a maioria foi de 84 graduandos(as) que apontou que frequenta ou que teria interesse em frequentá-los, em contraponto a somente 15 sujeitos que assinalaram não frequentar ou ter interesse, prevalecendo como maioria entre todos os anos do curso.
4 DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
Buscamos, neste artigo, analisar a percepção de graduandos(as) em Pedagogia sobre possibilidades de formação em gênero e sexualidades. O curso de graduação escolhido dispunha de uma disciplina específica sobre os dois temas em sua matriz comum curricular, com carga horária semelhante às demais disciplinas. Costa (2009, p. 115) ressalta que a carga horária diz muito sobre o quanto o curso vê os temas como importantes: quando colocados em uma disciplina com carga horária reduzida ou como disciplina optativa, “fica latente é a ideia de que trabalhar com sexualidade e relações de gênero na escola, apesar de importante, não é uma prioridade na formação de um(a) cidadão(ã) [...] o que nos levaria à hipótese de que são pouco enfatizados durante o curso”.
Para Silva (2007, p. 148), o currículo é construído socialmente, é um espaço de disputa de poder, logo, “a pergunta importante não é ‘quais conhecimentos são válidos’, mas sim ‘quais conhecimentos são considerados válidos?” e, nesse caso, se conteúdos sobre gênero e sexualidade, assim como outros conteúdos relacionados à diversidade humana - como raça-etnia, por exemplo -, colocam-se entre os conteúdos considerados válidos e contemplados no currículo oficial.
A análise que fizemos da matriz curricular do curso mostrou que essa disciplina específica, ofertada no terceiro ano, é a única que traz os temas como seu assunto central ou privilegiado. No entanto, como mostrou a análise do PPP, o curso sugere proporcionar aos(às) discentes uma formação em gênero e sexualidades para além da disciplina específica apenas (atividades curriculares), contando com uma série de recursos para isso (como bolsas, Grupos de Pesquisa, eventos acadêmicos, científicos e culturais sobre os temas etc.), ou seja, também em atividades semi e extracurriculares na Universidade - seguindo a classificação fornecida por Schillinger-Agati (2006) sobre as atividades acadêmicas. E isso se confirmou com a análise da percepção dos(as) graduandos(as).
Embora não seja a maioria, uma parte significativa dos(as) graduandos(as), aproximadamente 30% dos(as) 105 participantes, mostrou saber da ocorrência de eventos científicos (39 sujeitos) e de Grupos de Pesquisa (30 sujeitos). Além disso, analisando os dados segundo a progressão no curso, viu-se que esses(as) graduandos(as) ou passaram a ter maior incidência em relação aos anos anteriores ou até chegaram a ser a maioria, de modo a inferir que, à medida que progridem no curso, eles(as) passam a ter mais conhecimento sobre a instituição que frequentam, sobre os recursos e atividades de formação oferecidos, inclusive aqueles voltados a gênero e sexualidades. Outra inferência possível é a de que essas atividades são divulgadas durante a disciplina específica, no terceiro ano, e por isso a partir desse ano os dados apresentam essa alteração.
Tal resultado, de mudança dos dados ao longo do curso, repetiu-se quando foram perguntados(as) sobre se têm interesse ou já frequentam os eventos científicos, com a maioria assinalando negativamente, mas, segundo a progressão no curso, com a maioria de sujeitos no quarto ano sendo de quem se interessa ou já frequenta os eventos. No caso dos Grupos de Pesquisa, a maioria dos(as) graduandos(as) assinalou que frequenta ou que teria interesse em frequentá-los, prevalecendo como maioria em todos os anos. Por último, sobre se exercem atividade de pesquisa e/ou de extensão, a maioria assinalou que não, com apenas quatro sujeitos afirmando que passaram por essa experiência no curso, e somente a partir dos anos finais, terceiro e quarto anos.
A partir desses resultados, contrastando-os com o que se constatou com a análise do PPP, pareceu-nos que, apesar de o curso oferecer possibilidades para a formação em questão, inclusive em atividades semi e extracurriculares, a maioria dos(as) graduandos(as) parece desconhecê-las, de modo que sua concretização depende da iniciativa e interesse dos(as) graduandos(as), cabendo a eles(as) procurá-las para além da disciplina específica. No estudo de Costa (2009, p. 116), que entrevistou cerca de sete universitárias de Pedagogia de uma Universidade pública, erigiu-se um resultado semelhante, marcado pelo “desconhecimento e a falta de interesse por parte destas alunas quanto ao estudo da sexualidade e das relações de gênero em grupos de estudos, como também a escassa participação em eventos sobre esses temas (congressos, simpósios, mesas-redondas)”.
Sem querer procurar por explicações reducionistas, uma série de fatores pode ser elencada para justificar esse tipo de resultado, desde o perfil do(a) estudante do curso em questão até a compreensão que os temas gênero e sexualidades dispõem na sociedade brasileira em geral.
Sendo esse curso ofertado no período noturno, Morais et al. (2017) evidenciam que, no contexto universitário, geralmente há menor participação de estudantes do período noturno em atividades semicurriculares e extracurriculares, que em sua maioria ocorrem ao longo do dia (manhã e tarde), uma vez que trabalham e/ou residem em outra cidade, não havendo estratégias institucionais que supram as necessidades desse perfil de alunado. Dessa forma, tais estudantes apresentam poucas possibilidades de participação nessas atividades de formação dispostas durante o período diurno.
Além disso, autores(as) como Rossi et al. (2012), Morais et al. (2014) e Soares (2018) apontam que, na cultura brasileira, determinados temas, como gênero e sexualidades, são permeados por polêmicas e resistências, oscilando em compreensão e sobre fortes referências religiosas. A liberdade sobre o próprio corpo, a igualdade de direitos e a vivência da própria sexualidade são aspectos que variam em compreensões conforme o contexto histórico, social e cultural, “[...] sendo que cada grupo social constrói uma determinada definição”, ou seja, compreensões que “[...] dependerão das crenças compartilhadas nos diferentes grupos, sendo então produzidas práticas, sentimentos e interpretações” (Morais et al., 2014, p. 85). Embora na História recente transformações nas ordens do gênero e das sexualidades tenham sido encetadas, transformações marcadas pelas reivindicações dos Movimentos Feminista e LGBT (Deslandes, 2015; Silva; Brabo; 2021), as significações a respeito das duas temáticas ainda são hegemonicamente influenciadas por posições culturais e religiosas, especialmente provenientes da tradição judaico-cristã (Morais et al., 2014), que condenam tais movimentos, seus sujeitos protagonistas e classifica gênero e sexualidades como temas moralmente indesejáveis. E, sendo o currículo um espaço de poder (Silva, 2007), essa mencionada valorização dos temas, como indesejáveis, desinteressantes ou sem importância, pode nele se refletir.
Todavia, se se viu o interesse em eventos científicos dos(as) graduandos(as) aumentar conforme progrediam no curso; a maior parte deles(as) ter mostrado interesse em Grupos de Pesquisa, interesse que se manteve em todos os anos; e quem exercia pesquisa ou extensão encontrava-se matriculado no terceiro ou quarto ano, pode-se inferir sobre uma possível influência da disciplina específica ofertada no terceiro ano. Se fora da Universidade os(as) alunos(as) têm contato com os temas gênero e sexualidades apenas por meio de artefatos culturais (Ribeiro; Faria, 2014) que reforçam preconceitos e/ou transmitem conhecimentos equivocados a respeito de seus reais significados, dentro da Universidade, e mediante essa disciplina especialmente, eles(as) podem desconstruir tais preconceitos e conhecê-los a partir de referências teórico-científicas e potenciais (Furlani, 2016) para subsidiar sua futura atuação profissional nos temas.
Quando os(as) graduandos(as) foram questionados(as) sobre se receberam alguma formação acerca dos temas, a maioria afirmou que não, mas que, se distribuída entre os quatro anos, manteve-se como maioria somente nos primeiro e segundo anos. Logo, a partir do terceiro ano, os(as) graduandos(as) passaram a assinalar que receberam essa formação, o que coincide com a oferta da disciplina específica e, portanto, indica que gênero e sexualidade não são abordados de modo transversal ao longo do curso, ficando restritos a uma única disciplina.
Segundo Leão (2009, p. 35), a transversalidade diz respeito à “possibilidade de se estabelecer relação entre os conhecimentos tradicionalmente abordados pela escola e as questões do cotidiano dos alunos. Assim, eles dão espaço para tratar de aspectos presentes na realidade dos alunos”. Em síntese, abordar transversalmente um conteúdo é articulá-lo aos conteúdos instituídos em disciplinas como, na Educação Básica, Matemática, Biologia, Geografia etc. Na Educação Superior, abordar gênero e sexualidades transversalmente seria trabalhá-los com temas, por exemplo, História da infância, da família, da profissão docente etc., como também ressaltam Costa (2009) e Leão (2009), que são assuntos recorrentes nas disciplinas do curso de Pedagogia.
No Brasil, a proposta de transversalidade ganhou espaço com os PCNs (Brasil, 1997, p. 26), a partir dos Temas Transversais, sob a justificativa de serem temas “intensamente vividos pela sociedade, pelas comunidades, pelas famílias, pelos alunos e educadores em seu cotidiano [...] são questões urgentes que interrogam sobre a vida humana, sobre a realidade que está sendo construída e que demandam transformações”. E, desde os PCNs, gênero e sexualidades já tiveram sua necessidade de abordagem transversal evidenciada, por meio de seu caderno de volume 10, intitulado “Pluralidade cultural e Orientação sexual” - embora a proposta dos PCNs tenha suas críticas e limitações para essa empreitada (Costa, 2009; Rabello, 2012; Rossi et al., 2012).
Quanto a terem produzido, apresentado ou assistido trabalhos ou seminários em classe sobre os temas, a maioria afirmou não ter passado por essa experiência, porém que, novamente, a partir dos anos finais do curso, e especificamente no quarto ano, a maioria se torna de quem passou por ela, coincidindo com a oferta da disciplina específica. Esse resultado reitera a importância da disciplinaridade na abordagem dos temas, principalmente quando não é garantida a transversalidade, tal como mostraram os dados anteriores. Conforme ressalta Soares (2018, p. 49), “por essa razão”, uma transversalidade que deveria ocorrer, mas não ocorre, “as disciplinas [específicas] ofertadas no curso de Pedagogia exercem papel relevante como formadoras de profissionais da Educação”.
Costa (2009, p. 106 - grifo nosso) também defende a necessidade de a disciplinaridade estar atrelada à transversalidade para a abordagem de gênero e sexualidades, combinando-as, e, no caso da primeira, visando “uma formação acadêmica que abarque o trabalho destes temas como disciplinas obrigatórias”. Nesse sentido, talvez a principal vantagem da disciplinaridade é garantir a presença dos temas gênero e sexualidades, considerando que nem os(as) próprios(as) alunos(as), que poderiam demandar sua abordagem nas aulas, ou mesmo os(as) docentes em suas respectivas disciplinas não específicas, podem se interessar ou estar dispostos a abordá-los.
Por último, no que se refere à atividade de estágio, a maioria dos participantes era de estagiários(as) em escolas e quase sua totalidade nos últimos anos do curso. No entanto, ao serem questionados se gênero e sexualidades foram abordados no estágio, apenas 14 sujeitos assinalaram positivamente.
Todos esses resultados aqui apresentados demonstram que, no caso do curso investigado, embora gênero e sexualidades estejam aparentemente incluídos como parte de seu conteúdo curricular programático - e inclusão prevista nas modalidades disciplinar e transversal, como informa seu PPP -, eles se restringem à disciplina específica que o curso dispõe para sua abordagem. Desse modo, infere-se sobre a dependência com a disciplinaridade que os temas são submetidos para fazerem parte da formação dos(as) seus(suas) graduandos(as). Em outras palavras, mesmo que garantidos pela disciplina específica obrigatória, não parece haver articulação desse conteúdo com os demais conteúdos abordados ao longo do curso, o que enriqueceria, caso essa articulação acontecesse, a formação em gênero e sexualidades que nele é ofertada.
É importante relembrar que “as/os profissionais habilitadas/os em Pedagogia atuarão basicamente na Educação Infantil e nas séries iniciais do Ensino Fundamental”, conforme expõe Soares (2018, p. 49), “devendo ter tido uma formação que lhes possibilite trabalhar no ambiente escolar no enfrentamento às discriminações e na promoção da igualdade e reconhecimento da diversidade”. É diante dessa responsabilidade que a profissão carrega que foram erigidas as iniciativas para capacitação desses(as) profissionais desde a graduação, de estratégias como cursos de formação de curta duração (Vianna, 2012; Deslandes, 2015; Catharino, 2006; França; Calsa, 2010; Silva; Brabo, 2020) até a inclusão de disciplinas específicas aos temas nos cursos de licenciatura (Leão, 2009; Rossi et al., 2012; Unesco, 2014; Soares, 2018).
Para Furlani (2016, p. 40), educadores(as) comprometidos(as) com uma Educação que promove o respeito às diferenças e a igualdade de direitos, “devem procurar perturbar, sacudir as formas de se posicionarem” perante as discussões de gênero e sexualidade que, “tradicionalmente, vêm sendo realizadas no Brasil. No entanto, fazer essa problematização requer referenciais, no mínimo críticos”. E, muitas vezes, só encontrarão esses referenciais na Universidade, tendo essa oportunidade de formação potencializada nesse momento de formação inicial.
Diante disso, cabe continuar a defender a importância de incluir uma disciplina específica na matriz comum dos cursos de graduação, mas sabendo que essa não deve ser a única iniciativa para se alcançar a desejada formação em gênero e sexualidades de qualidade necessária aos(às) futuros(as) educadores(as). Uma abordagem mista, disciplinar e transversal, e em atividades curriculares, semicurriculares e extracurriculares, parece-nos a melhor alternativa nessa empreitada.