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Práxis Educativa

versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.14 no.1 Ponta Grossa ene.-abr 2019  Epub 17-Abr-2019

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.14n1.009 

Artigos

Interfaces do herói nos quadrinhos brasileiros: questões didáticas e políticas

Interfaces of the hero in Brazilian comics: didactic and political issues

Interfaces del héroe en las historietas brasileñas: cuestiones didácticas y políticas

Fernando Bagiotto Botton* 

Hector Ribeiro Molina** 

Lareane Lourenço Machado*** 

Douglas Figueira Scirea**** 

Andre Victor Falcalde Pereira***** 

*Bolsista de Pós-Doutorado pelo Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES) junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UNICENTRO-Irati. Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor substituto da mesma instituição. E-mail: <fernandobotton@gmail.com>.

**Graduado em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor de História nas ONGs "Formação Solidária" e "Em ação". E-mail: <hectormolinahistoria@gmail.com>.

***Graduada em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: <lareaneklm@hotmail.com>.

****Graduado em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: <douglasscirea@hotmail.com>.

*****Graduando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: <andre.falcade.pereira@gmail.com>.


Resumo:

No presente artigo, analisam-se três histórias em quadrinhos que se referem a episódios da história do Brasil: Barão do Serro Azul, A Revolta de Canudos e Cumbe. Com isso, pretende-se fornecer instrumental analítico e político para a práxis educativa de professores de História do Ensino Básico. Inicia-se a discussão traçando um apanhado teórico sobre o heroísmo e a história, permitindo, assim, que as obras aqui estudadas possam ser compreendidas de maneira crítica. Preocupa-se com as dinâmicas políticas, didáticas e historiográficas envolvidas na utilização dessas mídias em sala de aula. Nesse sentido, os três quadrinhos estudados apresentam um dégradé em que o primeiro traz uma visão absolutamente estereotipada desses temas; o segundo, uma visão ambígua; e o terceiro, uma perspectiva mais aprofundada e politicamente includente. Conclui-se com a necessidade de pensar-se a história e seu ensino valorizando as experiências coletivas para além das heroicas individualidades.

Palavras-chave: Heroísmo; Escravidão; Quadrinhos

Abstract:

In this paper, three comic strips that refer to episodes from the Brazilian history area analyzed: Barão do Serro Azul, A Revolta de Canudos and Cumbe. With this, it is intended to provide analytical and political instruments for the educational praxis of History teachers of Basic Education The discussion begins by drawing a theoretical account of heroism and history, thus allowing the works studied here to be understood in a critical way. The concern is the political, didactic and historiographic dynamics involved in the use of these media in the classroom. In this sense the three comics studied present a gradient view in which the first contains an absolutely stereotyped view of these themes, the second an ambiguous view and the third a more in-depth and politically inclusive perspective. It concludes with the need to think about history and its teaching by valuing collective experiences beyond the heroic individualities.

Keywords: Heroism; Slavery; Comics

Resumen:

En el presente artículo se analizan tres historietas que se refieren a episodios de la historia de Brasil: Barão do Serro Azul, Revolta de Canudos e Cumbe. Con ello, se intenta proveer instrumental analítico y político para la práxis educativa de docentes de Historia de la Enseñanza Básica. Se iniciará la discusión trazando un levantamiento teórico acerca del heroísmo y la historia, permitiendo que las obras aquí estudiadas puedan ser comprendidas de manera crítica. Se preocupa por las dinámicas políticas, didácticas e historiográficas involucradas en la utilización de tales medios en las clases. Así, las tres historietas investigadas presentan un dégradé en que el primero muestra una visión absolutamente estereotipada de esos temas; el segundo, una visión ambigua; y el tercero, una perspectiva más profundizada y políticamente incluyente. Se concluye con la necesidad de prensar en la historia y su enseñanza valorizando las experiencias colectivas para más allá de las heroicas individualidades.

Palavras chave: Heroísmo; Esclavitud; Historietas

Introdução

A preponderância e o protagonismo da conturbada figura do herói possuem dimensões imemoriais. Ícone emblemático das narrativas epopeicas da antiguidade, o herói ganha novo alento no século XIX por conta do romantismo que o coloca em destaque pelos novos valores morais alçados pela burguesia ascendente das revoluções francesa e industrial.

Exatamente nesse contexto de reascensão do heroísmo e sua mitologia, a Europa passa pela unificação e pela consolidação de Estados Nacionais tais como Itália e Alemanha, não prescindindo de novas ciências para a explicação de suas origens ancestrais e comuns. Não por acaso, a História e suas filosofias englobadoras e unificantes passa a ser tomada como definidora das raízes das nações, permitindo, então, a profissionalização do historiador e da narrativa histórica como vozes autorizadas para falar sobre o passado.

Por outro lado, os antigos historiadores amadores não deixaram de exercer suas influências sobre o novo cânone historiográfico, que assumia muitos dos pressupostos já traçados para a definição de uma história cientificamente comprovável como narrativa da verdade. É nesse sentido que podemos compreender a escrita de grandes teóricos do heroísmo, e talvez o mais influente deles seja o escocês Thomas Carlyle em sua obra Heroes and Hero worship (1897) [1841] quando argumenta que a ação individual é o motor da História. Em outros termos, por sua concepção, a própria História define-se pela atuação privilegiada de "Grandes Homens" que operam no mundo por meio de uma performance mitológica remontada desde os tempos imemoriais representados pelo inquebrantável deus nórdico Odin. Segundo a concepção carlyleana, as massas são meros espectadores da História, dado que os grandes condutores são aqueles que escrevem nas douradas páginas do tempo. Desse panteão de homens importantes, nomeia-se Maomé, Dante, Lutero, Cromwell, Rousseau como alguns daqueles que definiram os contornos de sua época, da mesma forma que conclui com o pretensamente inegável exemplo de heroísmo daquela época contido em Napoleão Bonaparte.

Pelos mesmos argumentos, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro evocou a figura do herói nacional em seus discursos historiográficos "[...] trazendo para a história a obrigação de oferecer 'as melhores lições que os homens podem receber'" (BARBOSA, 1839, p. 13). O caráter pedagógico dessa proposta pode ser constatado nos esforços de recuperação da biografia dos "Grandes Homens" pelo Instituto, tais como de José Basílio da Gama, Gregório de Matos, Pedro Álvares Cabral e José de Anchieta. Conforme Temístocles Cezar:

Essa proposta parece ser vital aos interesses do IHGB. À primeira vista, porque "na vida dos grandes homens aprende-se a conhecer as applicações da honra, a preciar a gloria e a affrontar os perigos". Portadora de exempla, todos positivos, a biografia dos grandes homens é um projeto de ordem historiográfica muitas vezes provado anteriormente. Não se trata de uma posição irrefletida, mas de um sinônimo aproximado do movimento da história. O mundo se transforma graças aos grandes homens. O projeto tem, portanto, uma verdadeira pertinência histórica. (CEZAR, 2004, p. 24-25).

Essa opção carlyleana e do IHGB por conceber a História como uma sequência de atos de grandes personalidades não foi dissolvida com o advento da história acadêmica, seja pela história metódica, positivista ou historicista, sobrevivendo como tendência historiográfica, até, pelo menos, meados do século XX. A opção pelo protagonismo do Grande Homem serviu para fins políticos muito definidos, seja pelos regimes autoritários/totalitários e ditatoriais, seja por regimes liberais que, em sua maioria, ensejaram o líder político como a imagem mais acabada da condução dos destinos históricos em ambos os lados do oceano Atlântico. Não por acaso Jorge Luís Borges classifica Carlyle como um teórico do nazismo (ANDRADE, 2006). A opção política de compreender a História dos Heróis é bastante clara, dado que define as origens da nação e da pátria como resultado automático e incontestável da ação individual de homens que, por si sós, marcaram os rumos da história, eclipsando, assim, o protagonismo das minorias sociais e econômicas.

De maneira análoga, as narrativas das Histórias em Quadrinhos também se baseiam no protagonismo de um homem superpoderoso, tal como um diferencial (sobre)humano a influenciar nos destinos da História. Por mais que a origem da linguagem da arte sequencial date de meados do século XIX - mesma época da profissionalização da história e nascimento das primeiras imagens de daguerreótipo - sua popularização e consumo em massa inicia-se a partir da Segunda Guerra Mundial, especialmente em solo estadunidense, em que distintos indivíduos trajados com roupas nacionalistas definem a defesa da ordem e da harmonia econômica (capitalista) previamente estabelecida.

Dessa forma, a linguagem historiográfica do grande homem é compatível à imagem do herói dos HQs, em uma fusão que permitiu diversas experiências com a utilização dos quadrinhos para retratar acontecimentos e épocas historicamente definidos. Trata-se da fusão entre a linguagem dos quadrinhos com a narrativa historiográfica que gerou composições em todos os cantos do mundo. Na experiência brasileira, podemos destacar as publicações da editora EBAL que, no período imediatamente anterior e também no decorrer da Ditadura Militar, lançou uma grande série de histórias em quadrinhos para enaltecer os "heróis nacionais" por meio da coleção "Grandes Figuras" que elenca personagens como Getúlio Vargas, Marechal Cândido Rondon e D. Pedro II como próceres e contundentes heróis a reger os destinos nacionais.

Tal concepção histórico-quadrinística prevaleceu como hegemônica nas adaptações quadrinizadas até a década de 1980, em que novas concepções de história (marcadamente de origem social e cultural proveniente de leituras da Nova Esquerda Inglesa e das múltiplas gerações da Escola dos Annale) passaram a tomar lugar das grandes narrativas mitificantes do passado. Na mesma época, a própria linguagem e expressão dos quadrinhos era reinventada por quadrinistas como Art Spiegelman ou Will Eisner, que os aproximavam mais da linguagem artística e escapavam dos grandes clichês hollywoodianos encampados pelos super-heróis a "combater o mal" de maneira violenta, binária e dicotômica.

A junção entre história e quadrinhos manteve uma dimensão didática e pedagógica evidente: desde suas primeiras publicações até as mais recentes, podemos constatar o interesse de seus produtores em aliar o caráter massificado da própria arte sequencial às concepções históricas bastante específicas. A partir disso, ensinar pedagogicamente - literalmente "desenhar" - para que os fatos do passado pudessem ser demonstrados de maneira realista e esquemática, economizando o intelecto e inclusive a imaginação do leitor, já que se supunha que até mesmo um analfabeto poderia ser capaz de acessar tais conhecimentos por meio de suas representações gráficas. Por essa concepção preconceituosa sobre os quadrinhos (que como linguagem não prescindem de alfabetização específica), incorporou-se a noção de que eles poderiam e deveriam ser empregados como recurso didático, não apenas de educação cívico-moral ou memorialista-patriótica junto aos leitores de público amplo, mas também como recurso a ser utilizado em sala de aula para o ensino de humanidades, em especial ênfase à história.

Como Marjory Palhares ressalta no artigo História em Quadrinhos: uma ferramenta pedagógica para o ensino de História, sobretudo após a Escola dos Annales em meados do século XX, ampliou-se muito o que podem ser consideradas fontes históricas e, também, seus personagens e protagonistas. Segundo a autora: "Na esteira dessas reflexões ampliou-se o arsenal de ferramentas úteis e legítimas ao profissional do ensino de história" (PALHARES, 2008, p. 3). Nesse mesmo sentido, Túlio Vilela destaca que não existe apenas uma metodologia para o uso de quadrinhos no ensino de história, dependendo muito do planejamento e objetivos do professor (VILELA, 2006). É justamente com essa intenção de facilitar no planejamento e na proposição de possibilidades de leituras críticas das histórias em quadrinhos recentemente produzidas sobre os heróis pátrios que propomos as análises a seguir.

Barão do Serro Azul - Herói da Paz

Nossa primeira análise de história em quadrinhos é Barão do Serro Azul - Herói da Paz, um dos produtos resultantes do projeto Barão do Serro Azul: Recomposição Histórica de um Herói, viabilizado por meio da Lei Rouanet de Incentivo à Cultura. Assinada pela roteirista Carol Sakura e pelo ilustrador Marcelo Lopes, a história em quadrinhos foi lançada em outubro de 2015 e distribuída de forma dirigida pelos patrocinadores e apoiadores, além de destinar exemplares para toda a Rede Municipal de Ensino de Curitiba. A segunda fase do projeto está sendo desenvolvida com planejamento até 2019 e já ampliou o alcance público do material, disponibilizando-o para download gratuito em um site específico para tal finalidade1. A brochura física é de material gráfico de alta qualidade e impressão bastante colorida.

Organizada e editada pelo Núcleo de Mídia e Conhecimento e com uma revisão histórica realizada pelo Instituto Histórico e Geográfico do Paraná (IHGPR), a história em quadrinhos foi planejada com claro intuito educativo e memorial. Nesse sentido, os produtores foram bastante detalhistas ao reproduzir diversas fontes históricas como mapas de época, documentos, capas de jornais e selos da erva-mate. Como o próprio título sugere, o fio narrativo da história desenvolve-se por meio de um grande nome, o herói Ildefonso Pereira Correia, Barão do Serro Azul, muito embora não se atenha apenas à sua biografia. Para melhor visualizarmos o caráter histórico, político e biográfico dessa narrativa, reproduziremos as duas primeiras páginas da mídia que apresentam ao leitor a personagem histórica tratada (Figuras 1 e 2), já heroicizada pela constatação de ser o único paranaense incluído no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves2.

Fonte: Lopes e Sakura (2015, p. 1).

Figura 1 Quadrinho Barão do Serro Azul: herói da paz - Primeira página 

Fonte: Lopes e Sakura (2015, p. 2).

Figura 2 Quadrinho Barão do Serro Azul: herói da paz - Apresentação do personagem 

A narrativa do quadrinho realiza um ambicioso apanhado cronológico da história do Paraná, que parte do século XVI com a chegada da expedição do aventureiro espanhol D. Álvar Cabeza de Vaca, e, em quatro páginas, avança até Paranaguá de 1845, local e ano do nascimento do Barão do Serro Azul. Vale destacar que a primeira página dessa história é a única passagem em que um indígena é representado, e, ainda, de maneira bastante caricata, com um cocar colorido e um tucano no ombro (Figura 3). Apenas há menção nominal ao grupo Guarani, ignorando as diferentes etnias que habitavam as terras então retratadas. Mais adiante, eles serão mencionados pela segunda e última vez em um quadrinho sobre os usos da erva-mate que viria a transformar a economia local.

Fonte: Lopes e Sakura (2015, p. 4).

Figura 3 Quadrinho Barão do Serro Azul: herói da paz - Representação dos indígenas 

Constantemente ressaltando valores morais, familiares e cidadãos, a história do Barão descreve a biografia do Barão em paralelo à história do Paraná, ressaltando o caráter histórico-didático da obra. No quadrinho anteriormente apresentado, remonta-se às pretensas raízes de formação do estado, sendo empregada, em diversos trechos, a palavra "evolução" para tratar das mudanças históricas, em uma articulação entre as ideias de "civilização" e "progresso", compondo, assim, uma percepção bastante empobrecida e conservadora da forma de perceber as dinâmicas histórias. Tal constatação pode ser evidenciada em uma passagem que se refere ao movimento abolicionista e à assinatura da Lei Áurea. Para tanto, desenham-se cinco quadrinhos e apenas no último aparecem os escravos (Figura 4). Um homem em maior destaque desenhado à frente dos demais tem, em seus pulsos, algemas com as correntes arrebentadas, em uma imagem simbólica pretensamente impactante e alegre. Ao fundo, representam-se sorridentes homens e mulheres negros, sendo as últimas apresentadas próximas a cestas de comidas, em uma articulação simbólica entre feminilidade e alimentação. A frase narrativa desse quadrinho é: "Em maio de 1888, todos celebravam a lei Áurea, assinada por nossa princesa regente, encerrando, definitivamente, o sombrio capítulo da escravidão."

Fonte: Lopes e Sakura (2015, p. 18).

Figura 4 Quadrinho Barão do Serro Azul: herói da paz - Representações da abolição 

Nessa perspectiva, a abolição da escravidão é compreendida como dádiva bondosa da princesa Isabel e fruto da intercedência do heroico Barão em seus inflamados e excitados discursos abolicionistas que presenteiam a liberdade aos escravos, sem atentar ao protagonismo dos próprios escravos, das rebeliões ocorridas no Paraná ou mesmo ao fato de que, em 1888, o Brasil era o último país do mundo a abolir a escravidão, ainda a contragosto e forçado por pressões internacionais. Nesse sentido, o quadrinho perpetua uma visão preconceituosa, redutora e absolutamente discriminatória com relação à história das populações afrodescendentes e suas lutas de resistência à escravidão, constatadas amiúde por Eduardo Spiller Pena em sua dissertação O jogo da face: A astúcia escrava frente aos senhores e à lei na Curitiba provincial (1990).

Tendo em vista que diversos exemplares dessa História em Quadrinhos foram enviados gratuitamente a muitas das escolas públicas de Curitiba e região metropolitana, consideramos absolutamente necessária a abordagem problematizadora e questionadora desse material por parte dos professores, buscando suprir ou corrigir as deficiências teóricas e políticas contidas nesse material, buscando apresentar narrativas complementares de sujeitos que não receberam destaque na obra analisada.

Nesse sentido, faz-se mister problematizar a questão da abolição escrava no Paraná, relativizando o papel heroico de um homem branco e de elite como o Barão. Vale ressaltar que, no momento que o quadrinho representa o espelhamento de heróis em que o Barão se depara com a estátua de Tiradentes, ele cita Zumbi dos Palmares e, ao fundo do quadrinho, é desenhado um busto localizado na Praça Onze, no Rio de Janeiro. Nessa ocasião, o professor pode perguntar aos alunos os motivos da ausência de representações públicas e monumentos destinados aos afrodescendentes. Isso permite com que se trabalhe a história da presença negra no próprio estado do Paraná, permitindo com que a discussão alcance episódios absolutamente ocultados pelo quadrinho mencionado. Por fim, o professor pode valer-se de uma discussão mais contemporânea sobre a abolição escrava, lembrando aos alunos que, não obstante a promulgação da Lei Áurea, a escravidão foi finalizada como representação jurídica mas, na prática, poucos benefícios representou aos escravos, que não receberam suportes ou meios de sobrevivência e dignidade no país (WISSENBACH, 1998).

Também sugerimos que o professor aborde a história indígena, apresentando fotografias das etnias Kaingang, Xetá e Guarani e suas produções (esculturas, instrumentos, tecelagem e adornos), mostrando como a terra hoje chamada Paraná não era um grande campo desabitado esperando a intervenção dos europeus para se desenvolver, mas abrigava povos culturalmente diversos. Sob essa mesma perspectiva, ressaltar que esses povos não desapareceram, embora em quantidade brutalmente diminuída existem indígenas e reservas no estado do Paraná. Pode-se mencionar, também, povos extintos antes mesmo da chegada dos europeus, como o caso dos sambaquieiros. Nesse sentido, o professor tem a oportunidade de apresentar dissonâncias com relação à narrativa do quadrinho que, sob o discurso da pluralidade de povos (Figura 5), sustenta o tradicional preconceito do Paraná como uma terra de pessoas brancas, a Europa do sul.

Fonte: Lopes e Sakura (2015, p. 32).

Figura 5 Quadrinho Barão do Serro Azul: herói da paz - Delimitação dos herdeiros do Paraná 

Os estereótipos desses imigrantes euro-nipônicos brancos são ampliados quando o quadrinho os representa como trabalhadores, progressistas e imprescindíveis para a história e o desenvolvimento do estado. Pode-se propor que os alunos criem uma versão atualizada ou alternativa desse quadrinho, englobando as novas ondas migratórias que têm impactado o estado, tais como: haitianos, angolanos, chineses, sírios, dentre outros; recuperando, também, a memória dos indígenas e afrodescendentes.

O trabalho com a HQ, portanto, não se detêm no que está contido nela, por vezes justamente o que foi omitido é o que pode ser aprofundado. Podemos propor aos estudantes mais jovens um exercício de redesenhar tais personagens, incluindo aqueles ausentes pelo escopo do quadrinho impresso, revisado pelo Instituto Histórico e Geográfico Paranaense (IHGPR) e distribuído às escolas públicas municipais.

Uma narrativa dicotômica e a dimensão heroica de Antônio Conselheiro na HQ A Revolta de Canudos

Seguindo o mesmo grupo de histórias em quadrinhos criadas para fins didáticos e que atendem ao público escolar, a HQ A Revolta de Canudos, assinada pelo roteirista André Diniz e ilustrada por José Aguiar, publicada em 2008 pela Editora Escala Educacional, reafirma as leituras sobre o heroísmo de Antônio Conselheiro pela mesma dinâmica argumentativa do Barão do Serro Azul. Embora não seja uma mídia de distribuição gratuita, é evidente o intuito pedagógico da obra dado o próprio filão de mercado da editora, que se autointitula "educacional". O quadrinho discute a Guerra de Canudos por meio de um roteiro sintético, prescindindo da presença de um historiador na feitura do roteiro, o que nos permite perceber que se trata de uma obra de cunho não acadêmico destinada a um público igualmente leigo. Como afirma Natânia Aparecida da Silva Nogueira, em seu artigo História em Quadrinhos como ferramenta didática no Ensino de História (NOGUEIRA, 2012), a HQ A Revolta de Canudos (DINIZ; AGUIAR, 2008), mesmo com o caráter amador, representa um grupo de quadrinhos que "[...] por um lado não são quadrinhos produzidos por um historiador profissional, por outro o roteirista [possui] o mérito [de] ter sido minucioso em sua pesquisa" (NOGUEIRA, 2012, p. 15).

Ao trazer conteúdos debatidos pela historiografia do tema, a HQ cumpre seu papel pedagógico dentro e fora da sala de aula. Dentre tais assuntos, sublinha-se a moral da guerra, o massacre do povo de Canudos e a ponte realizada com a literatura, ao resgatar Euclides da Cunha junto a sua clássica narrativa de Os Sertões (CUNHA, 1902). Além da presença de oficiais da República, do escritor Euclides da Cunha, do próprio Antônio Conselheiro e de seus seguidores, pode-se questionar a função das personagens dentro da narrativa apresentada pelo quadrinho.

Logo de início, a HQ resgata como fonte um excerto do jornal "O Rabudo" de 22 de novembro 1874, o qual é claramente contrário ao levante popular que vinha ocorrendo em Canudos: "[...] esse maluco que se intitula conselheiro" (DINIZ; AGUIAR, 2008, p. 4). Levando o leitor para o ano da Lei Áurea, 1888, a figura de Antônio Conselheiro é apresentada conduzindo milhares de pessoas. No andamento da HQ até seu término, o enredo é dividido da seguinte maneira: de um lado, o Conselheiro, seus seguidores e alguns produtores rurais da região e pequenos comerciantes; de outro, a República com seus oficiais pouco carismáticos, sendo apenas alguns poucos nominados. Dentre eles, o juiz Arlindo Leoni, que autoriza o envio de tropas sob o comando do oficial tenente Pires Pereira; em seguida, o comandante da segunda expedição, o coronel Moreira César, e o Coronel Tamarindo, o qual substitui o oficial Moreira César após seu falecimento; e o comandante da quarta e mais violenta expedição, o oficial General Arthur Costa. Contudo, mesmo com essa polarização entre os rebeldes e a república, comum ao conflito de Canudos, observamos que a figura de Antônio Conselheiro recebe atenção primordial com relação aos outros personagens em todo o desenrolar da história.

Mantendo o olhar voltado ao grupo da República, temos mais dois representantes: um grande fazendeiro e um padre católico. No entanto, ambos são personagens estereotipados, não recebem denominação e ganham apenas dois pequenos quadrinhos em toda a HQ. O padre, ao referir-se ao Antônio Conselheiro, profere a seguinte fala: "Cercado de bandidos armados, ele obriga pessoas humildes a ouvirem suas tolices e a segui-lo, distanciando-os da verdadeira Igreja. Clamo ao Presidente da Província e ao chefe da Polícia que tomem uma atitude contra esse herege!" (DINIZ; AGUIAR, 2008, p. 11). Na HQ, o grande proprietário rural define o que está acontecendo da seguinte maneira: "Esse conselheiro é um perturbador da ordem e do trabalho nessa região! Os meus prejuízos foram enormes, pois quase ninguém mais quer trabalhar nas minha terras. Querem seguir esse infeliz, plantar seu próprio alimento e não trabalhar mais para patrão. Pode um absurdo desses?" (DINIZ; AGUIAR, 2008, p. 11).

Ao analisarmos as duas falas, podemos notar claramente o embate político causado pelo florescer do movimento de Canudos, mostra-se ao leitor o desgosto eminente desses personagens para com o Conselheiro. No entanto, durante o conflito que irá se desenrolar pela narrativa da HQ, entre exército e sertanejos, a presença destas duas forças (Igreja e fazendeiros) perde destaque, sendo necessária a presença de um professor ou professora para discorrer sobre esse assunto em sala de aula. Por conseguinte, como mediador, o educador teria o papel de guiar a leitura, introduzindo novas discussões, demonstrando a continuidade dessas forças atuantes no conflito.

Nogueira adverte que, mesmo "[...] apesar de um produto comercial, os quadrinhos da coleção [Escala Educacional] trazem conteúdos básicos que podem ser aprofundados durante as aulas de história" (NOGUEIRA, 2012, p. 15). Isso reforça a ideia de que, mesmo o quadrinho possuindo um caráter didático-educacional, é necessária a mediação de um professor para o estudo da questão, pois, na narrativa, é induzido um cenário dicotômico do conflito, a República de um lado, e Antônio Conselheiro de outro. Assim, o professor cumpriria o papel de demonstrar outras forças de ação e aprofundar a discussão - trazendo o embate entre sertanejos e grandes proprietários de terra, o papel da igreja e seu alinhamento com a república - inclusive evocando como as personagens são apresentadas (Figura 6). Nesse sentido, pode-se questionar se o Conselheiro é representado como herói ou anti-herói.

Fonte: Diniz e Aguiar (2008, p. 9).

Figura 6 Quadrinho A Revolta de Canudos - Apresentação do personagem 

De todas as formas, a personagem figura de maneira exaltada pela narrativa, ainda que demonstre o protagonismo popular. Sendo considerado um peregrino que resgatou "[...] pessoas até então sem esperanças. Homens, mulheres, velhos e crianças famintos", ele "[...] ergue sua voz contra as desigualdades e injustiças" (DINIZ; AGUIAR, 2008, p. 9) da sociedade. Além disso, ao analisarmos graficamente o recorte da HQ, é plausível mencionar a configuração de uma moldura heroica de Antônio Conselheiro: o braço esticado é representado no primeiro plano, como saindo da superfície da página, de mão aberta, parecendo conceder uma bênção ao povo e seus seguidores. Pode-se questionar se essa representação é suficiente para conceder o papel de herói ao personagem? Na narrativa, Antônio Conselheiro é de fato definido como um herói, um personagem que salva da miséria o povo e consegue resgatar a esperança de seus seguidores. Inclusive mantém o caráter conservador de herói, visto que o Conselheiro seria um monarquista em sua concepção política, haja vista o trecho no qual o peregrino desdenha a falar mal da República:

Tenho de falar-vos de um assunto que tem sido o assombro dos fiéis: a República, que é o grande mal para o Brasil. Um novo governo que veio para extermínio da religião, essa obra-prima divina! O presidente da República acha que pode governar o país como um monarca instituído por Deus. (DINIZ; AGUIAR, 2008, p. 8).

Podemos notar no perfil traçado pela narrativa, a vontade de Antônio Conselheiro em negar a República e, ao seu modo, recorrer ao sistema monárquico de governo. Assim como nas clássicas HQs estadunidenses - Capitão América, Super-Homem, Batman, Homem-Aranha, dentre tantas outras - o caráter de super-herói de Antônio Conselheiro é politicamente conservador, ele não busca uma mudança política radical, mas oferece com a monarquia, de maneira contraditória, um país idealizado, sem problemas sociais. Por via da pregação do nostálgico retorno ao sistema político da monarquia - como se esse retorno trouxesse em si a igualdade social, a distribuição de riquezas, o fim de todo mal -, Conselheiro seria o portador dessa qualidade heroica de evocar uma individualidade no movimento, um portador de uma voz triunfante que unifica as massas e toma para si a frente de um movimento no combate do mal, ou se preferir, do combate à República e à manutenção do sistema político vigente anteriormente.

Ao adentrarmos o ambiente didático da obra, notamos o desenrolar de uma narrativa de maneira a conceder um lugar prestigiado aos oficiais da República, de um lado e, do extremo oposto, a Antônio Conselheiro. Em toda a narrativa, não ocorre a denominação dos "pequenos" personagens seguidores do peregrino, peças integrantes da revolta, pois de fato foram eles que pegaram em armas durante os conflitos com o exército. Esses personagens seguem como meros figurantes em todo o decorrer da história, assim como o baixo escalão do exército. Desse modo, o que temos na HQ é uma ferramenta didática não tradicional a serviço de uma narrativa conservadora - visto que os "grandes" personagens da história recebem uma maior ênfase no desenrolar dos acontecimentos. No entanto, não podemos tratar do assunto de maneira generalizada, em alguns pequenos excertos de A Revolta de Canudos, temos a curta presença da trajetória dos sertanejos, mas toda sua história levando até ao encontro de Antônio Conselheiro. Outrossim, a ausência de nomes acaba, por sua vez, reduzindo a importância desses personagens.

A HQ cumpre sua função de mediadora de ensino histórico a leitores leigos por meio de boas ilustrações: as cores e a ação presentes no desenrolar da história são favoráveis ao atrair a atenção dos estudantes, fugindo da abordagem tradicional de giz, quadro e material didático. Contudo, é conservadora ao seguir a mesma narrativa presente na grande maioria dos discursos historiográficos sobre os "grandes homens" que ainda persistem em obras clássicas e materiais didáticos politicamente conservadores. De todas as formas, podemos perceber no quadrinho A Revolta de Canudos um protagonismo ambíguo e menos heroicizado do personagem retratado, demonstrando maior complexidade na trama histórica, se comparada ao Barão do Serro Azul. Por outro lado, temos de levar em consideração a HQ Cumbe para, nesse sentido, percebermos uma perspectiva radicalmente inovadora e progressista da abordagem do protagonismo histórico e da presença dos populares e dos escravos no desenrolar das tramas do passado.

O cotidiano frente ao heroísmo: escravidão e resistência na HQ Cumbe

As possibilidades que acompanham as mídias não tradicionais como as HQs são múltiplas, algumas delas já pontuadas e desenvolvidas neste artigo. Além de figurarem uma dupla posição como instrumentos didáticos e fontes históricas, os quadrinhos possuem a potencialidade de revisitar temas canônicos da historiografia, atualizando-os e transformando as perspectivas perante tais temas. Para que se possa explorar o caráter polivalente dessa linguagem, é fundamental que professores se preocupem em realizar o que Roberto Elísio dos Santos aponta como uma "[...] leitura analítica das histórias em quadrinhos" (SANTOS, 2003, p. 7). Trata-se de perceber e avaliar elementos que são próprios desse tipo de mídia, de que forma incorporam e expressam a pesquisa histórica.

Um dos temas que tradicionalmente recebeu atenção tanto dos quadrinhos quanto dos historiadores é a já debatida questão da escravidão. Desde o final dos anos de 1980, a historiografia sobre a escravidão no Brasil vem se modificando (LIMA, 2016), assimilando novas abordagens, ampliando e contrapondo alguns entendimentos cunhados anteriormente. Dentro dessa renovação historiográfica, algumas produções de filmes e quadrinhos são expressões das novas maneiras de se tratar a questão, ao mesmo tempo que influenciam e ajudam a forjar novas percepções a respeito. Nesse sentido, podemos estudar a HQ Cumbe como um claro exemplo dessa proposta de renovação das concepções sobre a escravidão no Brasil. Publicado em 2014, Cumbe é resultado do trabalho de Marcelo D'Salete, graduado em Artes Plásticas e mestre em História da Arte pela USP. Em que pese o caráter ficcional da HQ, as quatro histórias que a compõem assimilam e interagem com a produção historiográfica, sendo material muito rico para análise da posição ocupada pelos escravizados como sujeitos históricos e centro da narrativa.

Uma das transformações fundamentais dentro da historiografia sobre escravidão no Brasil faz referência à composição epistemológica das análises. De cativos subjugados e quase sem possibilidades de resistência frente a um sistema escravista austero, os escravizados passam a ocupar uma posição de sujeitos participantes do processo histórico, em interação de conflito e dinamismo com as estruturas sociais. Trata-se de um decurso no qual "[...] há esforços em destacar as vivências, os significados, as estratégias e a lógica das ações de mulheres e homens escravizados no cotidiano, como também se destacam as diversas formas de resistência escrava, que vão além do conflito direto com o sistema" (ROCHA, 2009, p. 25-26). Essa essência permeia a construção da narrativa de Cumbe. A composição da HQ busca evidenciar em cada história as resistências cotidianas de escravizados, abordando estratégias utilizadas por eles, como fugas individuais, motins organizados por grupos e até mesmo assassinatos de senhores promovidos pelos negros. Todo em preto e branco, o quadrinho é rico em elementos gráficos que expressam as inúmeras emoções dos agentes históricos em questão, afastando-se da maneira impessoal de apresentação dos sujeitos, notadamente das abordagens que relegam aos sentimentos e às vivências dos escravizados uma posição marcadamente secundária em detrimento da valorização das dinâmicas econômicas e estruturais. Ao contrário de meros números estatísticos, as personagens retratadas pelo quadrinho sentem, amam, choram e sonham (Figura 7). O desfecho de uma das histórias é inequívoco em relação a isso, pois tem como mote o assassinato de um senhor de engenho perpetrado por uma escrava após sua filha ter sido morta pelo mesmo senhor.

Fonte: D'Salete (2012, p. 82).

Figura 7 Quadrinho Cumbe - Traços e dramaticidade 

O autor promove uma relação entre a humanização dos escravizados e o caráter violento da escravidão. Em algumas leituras, a importância atribuída à atrocidade do sistema escravista fez com que os elementos do comportamento humano se perdessem nos estudos: "A partir do final dos anos 1960 e início dos anos 1970, [...] a análise estava pautada no caráter violento da escravidão. Porém, essa mudança paradigmática transformou os escravos em 'coisas'" (LIMA, 2016, p. 185). Em Cumbe, a humanização dos sujeitos históricos não acompanha um arrefecimento da percepção da brutalidade das estruturas escravistas. Trata-se, antes, de perceber a violência como movimento que não existe sem seu oposto dinâmico, a resistência, sobretudo em sua modalidade cotidiana. Os escravizados são apresentados, portanto, não como vítimas apassivadas.

A utilização de várias personagens, todas elas em tensão com o sistema, afasta Cumbe da construção individualizada de um pretenso herói negro, escravizado, redentor de toda essa camada social. Enfatizando a dimensão cotidiana, coletiva e difusa da resistência à escravidão, Marcelo D'Salete distancia sua narrativa do binarismo herói/vítima, ou do mero protagonismo individual de uma racionalidade englobadora. Antes, pelo contrário, posiciona os diversos sujeitos históricos no centro de atividades polissêmicas e plurivalentes, em constante interação com o meio social. Essa característica é fundamental para a coerência interna da HQ e a diferencia dos elementos encontrados nos quadrinhos analisados anteriormente neste artigo. A construção de um herói dentro de Cumbe é impossível se considerada a ideia de que o heroísmo presume, em alguma medida, a existência das vítimas ou oprimidos inertes, para os quais o herói se apresentaria como guia, salvador e exemplo. Como foi apontado anteriormente, parte-se de uma ideia cambiante, segundo a qual os escravizados não podem ser ordenados como vítimas ou heróis.

Nesse sentido, a resistência e a subversão do arranjo social tal como é forjado são representadas em sua dimensão coletiva, como se a substância heroica presente em um superindivíduo se encontrasse difusa entre muitos escravizados. É importante que se aponte, contudo, que o coletivo em Cumbe não se apresenta como uma massa indiferenciada, um grupo movido por objetivos exatamente iguais, com o mesmo ímpeto e coragem. Há a preocupação em detalhar os agentes dessas resistências cotidianas, explorar as profundidades e as contradições dos personagens, legando contornos mais nítidos ao sujeito histórico. Mesmo quando aborda um levante em grupo (Figura 8), D'Salete tem a preocupação de delinear as individualidades dos escravizados, inclusive a partir de conflitos e de tensões entre eles próprios. Em uma das passagens, alguns escravizados organizam-se em rebelião, juntando facas e adagas para o combate. Mesmo nos quadrinhos em que o grupo é retratado, o leitor não deixa de perceber as diferenças entre cada escravizado, uma vez que suas trajetórias são trabalhadas em páginas anteriores. Trata-se de um retrato que assume a relação dialética entre indivíduo e coletivo, a individualidade que se diferencia de um todo homogêneo, mas que é, em alguma medida, informada e influenciada pelo caráter coletivo.

Fonte: D'Salete (2012, p. 114).

Figura 8 Quadrinho Cumbe - Apresentação dos personagens em coletividade 

Essas características fazem de Cumbe um excelente material para ser utilizado como instrumento didático, uma vez que acompanha uma viragem de paradigmas dentro da própria historiografia sobre a escravidão no Brasil. As potencialidades desse tipo de mídia são vastas e devem ter a sua exploração incentivada. Indo além do que apenas funcionar como ilustração de um conteúdo, "[...] as histórias em quadrinhos podem ser utilizadas para introduzir um tema, para aprofundar um conceito já apresentado, para gerar discussão a respeito de um assunto, para ilustrar uma ideia" (PALHARES, 2008, p. 4). A HQ Cumbe pode ser levada à sala de aula a partir dessas chaves, no sentido tanto de dar suporte a explicações e conteúdos já trabalhados, quanto de poder ser abordada antes do conteúdo, servindo de elemento propulsor de debates. Além da preocupação epistemológica que faz desses quadrinhos um trabalho rico, há também a bela e notável construção dos enredos, que prende a atenção do leitor.

Diferentemente dos quadrinhos do Barão do Serro Azul e do Antônio Conselheiro, Cumbe tem como característica fundamental: o afastamento das formas tradicionais de pensar-se eventos históricos. Não busca construir a imagem de um herói, pautar seu desenvolvimento a partir de um eixo no indivíduo. A concepção de história está relacionada ao entendimento de que sua dinâmica não é responsabilidade de grandes homens, figuras excepcionais. Trata-se, de outro modo, de contribuir para uma complexificação dos sujeitos e dos acontecimentos históricos, observar a relação que possuem com o todo, posicionar o elemento cotidiano no centro da narrativa, sem, com isso, reificar personagens ou "vilanizar" outras.

Na mesma linha, Cumbe também se distancia do cunho heroicizante recorrentemente construído nas narrativas históricas quadrinizadas, enquanto essa mesma mídia já possuía inicialmente certa alegorização da realidade ao tradicionalmente ilustrar ficções centralizadas em personagens específicos e de características sobre-humanas. Gradualmente, assim como a ciência História passou a buscar compreender mais os indivíduos do que as massas para se aproximar das complexas especificidades do processo histórico, as HQs foram tentando cada vez mais se aproximar dos leitores ao retratar - qualitativa e quantitativamente - o lado coletivo da participação de seus protagonistas.

Considerações finais

A soma entre a mídia das histórias em quadrinhos e um tema de história resultou em produções que demonstram diferentemente as possibilidades de resultados dessa fórmula, com variado grau de continuidades e rupturas: a obra Barão do Serro Azul - Herói da Paz traz um acentuado legado tradicional - tanto em relação à sua estrutura baseada no herói, quanto à narrativa historiográfica de exaltação aos Grandes Homens; já, em A Revolta de Canudos, remete-se a uma situação mais dicotômica e menos determinista, mas ainda muito ligada a abordagens tradicionais dos eventos. Por sua vez, Cumbe rompe de maneira contundente com os paradigmas de sua forma e conteúdo.

As três HQs citadas possuem perfis cambiantes a respeito de sua produção, o que lhes confere diferentes possibilidades de utilização como material didático. O papel do historiador licenciado é coordenar essa leitura para proporcionar um aprendizado mais amplo aos alunos, explorando conjuntamente as fontes em um diálogo entre os documentos e os indivíduos, como já desenvolvido anteriormente.

Na narrativa Barão do Serro Azul - Herói da Paz, a retratação de estereótipos preconceituosos e a omissão intencional de uma pluralidade saliente abre espaço para debates acerca das representações imagéticas de negros e índios. Tais retratos, em prol da construção de uma imagem euro-nipônica para os paranaenses, denotam o posicionamento de instituições tradicionais (como o IHGPR) a respeito da imigração no Paraná. Com esse apagamento da história de etnias específicas na região, abordar minorias torna-se um meio viável para entender como seus protagonismos são potencialmente omitidos com o intuito de reduzir seu significado e deslegitimar sua presença.

Já no quadrinho A Revolta de Canudos, as discussões podem ser aprofundadas para além da figura centralizada e heroica de Antônio Conselheiro, voltando-se para as retratações estereotipadas de grandes grupos de pessoas. Tanto soldados da República quanto sertanejos do povoado, assim como aparições individuais representando grandes fazendeiros e padres da Igreja Católica, em boa parte da obra, cumprem um papel generalista, podendo impulsionar debates a respeito da função de cada um desses grupos dentro da HQ e o motivo pelos quais essas representações lhe foram atribuídas. É importante destacar, por exemplo, o quanto os sertanejos massacrados possuem pouco protagonismo como grupo e ainda menos como indivíduos.

Em Cumbe as potencialidades da HQ como recurso didático são amplas: o processo de escravidão é apresentado a partir do ponto de vista dos escravizados, por sua vez representados como sujeitos dotados de particularidades em vez de uma massa amorfa e homogênea, reagindo a um sistema desumano e organizando sua resistência a partir do próprio contexto. Essa leitura a contrapelo do modelo tradicional de estudar o Brasil escravagista - que desconsidera o lugar de fala dos negros, suas individualidades e tentativas de reagir ao sistema - é tão rica que é possível para o professor empregar o quadrinho inclusive antes das aulas expositivas sobre escravidão, usando a extensa e multifacetada gama de características visuais e narrativas dessa HQ para já construir uma base de conhecimento que não descaracteriza nem ignora os indivíduos das massas oprimidas pelas classes dominantes.

Questionar a história dos grandes homens permite debates em torno de construções de pesquisa e ensino dessa disciplina. O retrato heroico dessas figuras sobrepõe-se ao protagonismo e particularidades dos indivíduos dentro de grupos massificados, anulando de cada um sua participação no processo histórico como sujeitos e distanciando seu contexto de uma realidade histórica. As ações de indivíduos que são retratados com uma moldura sobrenatural - como é o caso de muitas HQs de cunho didático -, quando presentes em relatos históricos, são o contraponto necessário para compreender que, antes de se tornar herói, todo indivíduo era um ser humano com suas próprias características, assim como os interlocutores da reprodução desses relatos. Quando o professor de história busca transmitir essa dinâmica - além de trazer um recurso diferente para a sala de aula -, torna visceral o processo de aprendizado para seus alunos por meio da relação entre os sujeitos históricos presentes no material estudado e o próprio estudante, criando conexões passado-presente que se retroestimulam. Aí também está o papel do professor: reaproximar o aluno e os personagens históricos por intermédio de sua notável característica de ser um sujeito com a capacidade não só de compreender e interpretar a história, mas especialmente transformá-la em seu próprio contexto.

1Disponível em: <http://www.heroidapaz.com.br/oprojeto>. Acesso em: 20 set. 2018.

2Memorial fúnebre inaugurado em 1986 e tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2007. Sua principal característica consiste na exaltação de grandes nomes da política nacional. O quadrinho assume a tonalidade laudatória do monumento que possui o Barão do Serro Azul como o único personagem paranaense a integrar o seleto grupo de homenageados.

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Recebido: 23 de Março de 2018; Revisado: 17 de Setembro de 2018; Aceito: 22 de Setembro de 2018

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