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Práxis Educativa

versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.14 no.1 Ponta Grossa ene.-abr 2019  Epub 17-Abr-2019

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.14n1.010 

Artigos

Epistemes Indígenas (Guarani e Kaingang) e Universidade: percursos de encontros em ações participantes e colaborativas

Indigenous Epistemes (Guarani and Kaingang) and University: the trajectories of meetings in participatory and collaborative actions

Epistemes Indígenas (Guaraní y Kaingang) y Universidad: trayectos de encuentros en acciones participativas y colaborativas

Ana Luisa Teixeira de Menezes* 

Maria Aparecida Bergamaschi** 

*Professora na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Educação, linha de pesquisa Aprendizagem, Tecnologias e Linguagem na Educação, UNISC, Santa Cruz do Sul, RS, Brasil, vice-líder do Grupo de Pesquisa PEABIRU: Educação Ameríndia e Interculturalidade (CNPq). E-mail: <luisa@unisc.br>.

**Professora Associada na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação, linha de pesquisa Políticas e Gestão de Processos Educacionais, líder do Grupo de Pesquisa PEABIRU: Educação Ameríndia e Interculturalidade (CNPq), (FACED/UFRGS). E-mail: <cida.bergamaschi@gmail.com>.


Resumo:

A experiência de pesquisa com coletivos indígenas (Guarani e Kaingang) em duas universidades no Rio Grande do Sul (Brasil) tem provocado reflexões acerca da interculturalidade e do sentido de ações participantes e colaborativas nesse contexto. Neste artigo, partimos da prática, de encontros sistemáticos com os indígenas por meio do ensino, da pesquisa e da extensão; problematizamos as contribuições destes para as universidades e, ao mesmo tempo, buscamos fazer uma discussão teórica sobre as próprias ações, revendo as trajetórias a partir de diálogos, de teorizações ao longo de vivências contínuas de trabalho colaborativo. Com isso, também nos dispomos a pensar o sentido de teorias e de metodologias que se constroem no diálogo que envolve as investigações e que tem como pressuposto o avançar nas condições de vida dos parceiros indígenas, compreendendo a importância da autoria e do poder pensar a própria realidade.

Palavras-chave: Pesquisa participante; Pesquisa colaborativa; Universidade; Indígenas; Interculturalidade

Abstract:

The experience of research with indigenous groups (Guarani and Kaingang) in two universities of Rio Grande do Sul (Brazil) has provoked reflections about interculturality and the meaning of collaborative and participatory actions in this context. In this paper, we start from the practice, of systematic meetings with indigenous people through education, research and extension; we problematize their contributions to universities and, at the same time, we seek to develop a theoretical discussion on our own actions, reviewing the trajectories based on dialogues and theories developed during the continuous experiences of collaborative work. With this, we are willing to think about the meaning of theories and methodologies that are built in the dialogue that involves our investigations and that entails the advancing of the living conditions of indigenous partners, understanding the importance of authorship and of pondering over one's own reality.

Keywords: Participatory research; Collaborative research; University; Indigenous people; Interculturality

Resumen:

La experiencia de investigación con colectivos indígenas (Guaraní y Kaingang) en dos universidades en Rio Grande do Sul (Brasil), ha provocado reflexiones acerca de la interculturalidad y el sentido de acciones participativas y colaborativas en ese contexto. En este artículo, partimos de la práctica, de encuentros sistemáticos con indígenas por medio de la enseñanza, de la investigación y de la extensión; problematizamos las contribuciones de estos para las universidades y, al mismo tiempo, buscamos realizar una discusión teórica sobre nuestras propias acciones, reviendo las trayectorias a partir de diálogos, de teorizaciones a lo largo de vivencias continuas de trabajo colaborativo. Con ello, también nos disponemos a pensar el sentido de teorías y metodologías que se construyen en el diálogo que involucra nuestras investigaciones y que tiene como presupuesto el avanzar en las condiciones de vida de los compañeros indígenas comprendiendo la importancia de la autoría y del poder pensar su propia realidad.

Palabras clave: Investigación participante; Investigación colaborativa; Universidad; Indígenas; Interculturalidad

Prólogo

El rescate de un pensar indígena es importante porque abre la comprensión de esta América.

(Rodolfo Kusch)

Este texto resulta de uma retomada da trajetória de duas professoras, pesquisadoras de duas universidades brasileiras, uma federal e outra comunitária, em quase duas décadas de trabalho conjunto e sistemático com coletivos indígenas, pertencentes aos povos Guarani1 e Kaingang2, importantes povos originários que vivem no sul da América do Sul e que resistem e re-existem diante da violência colonial. Em nossa trajetória acadêmica, escolhemos dialogar com esses povos, com seus conhecimentos, com seus modos de estar no mundo. A partir de encontros sistemáticos, tecemos uma reflexão desde a academia, de como fomos construindo uma relação participante e colaborativa em nossas ações, conformando um olhar que valoriza o outro na sua dimensão humana e cognoscível.

Na qualidade de pesquisadoras que trabalham com coletivos indígenas, fomos assumindo uma postura metodológica do estar-junto, do conviver. Um estar-junto efetivado e afetivado nas ações de pesquisa, extensão e ensino em espaços universitários e em territórios indígenas e que vai germinando a presença indígena em nossas universidades, ambas situadas no Rio Grande do Sul. Após mais de quinze anos de trabalho conjunto, decidimos fazer uma retrospectiva, significando a experiência de pesquisa, ensino e extensão com os indígenas em nossas universidades e em nossos caminhos como pesquisadoras, de forma a dialogar com a investigação-ação-participante e com a pesquisa colaborativa. O que temos aprendido em termos metodológicos? O que precisamos rever em termos de ações? O que os indígenas têm nos mostrado acerca de nossas parcerias? O que estamos construindo conjuntamente como campos epistemológicos e acadêmicos? Que conceitos emergem dessa relação e como são significados? Que transformações são perceptíveis na universidade? O que pensam os coletivos indígenas sobre essas práticas interculturais?

Assentamos as nossas reflexões no diálogo com autores que desenvolveram teorias a partir de vivências colaborativas e participantes com setores populares da América em situações de luta, de movimentos sociais que promovem transformações necessárias em uma sociedade ainda marcada pela colonialidade. São referências para a Educação Popular, para reconhecer um pensamento originário, para compreender epistemes outras que brotam da América profunda. Aprendemos, nesse diálogo teórico, uma ética e uma estética que nos permitem perscrutar com cuidado a voz de nossos interlocutores e, aos poucos, inserir nos dizeres e nos fazeres acadêmicos a presença indígena. Sabemos também que é uma caminhada e que muito ainda há de se fazer para construir uma relação mais simétrica e, consequentemente, mais respeitosa com os povos originários. Intuímos que a reflexão compartilhada, que transforma o experienciado como material de pesquisa, como corpus empírico para a reflexão, também é um movimento que modifica, que transforma o espaço institucional do qual fazemos parte.

O valor da prática como fundamento teórico: o estar indígena nas universidades

Destacamos a compreensão de Educação Popular de Paulo Freire, nascido no interior de Pernambuco, Brasil, exilado durante a ditadura civil-militar, o que lhe propiciou vivências em muitos países, convivendo com diferentes situações sociais, culturais e educacionais. Sua contribuição privilegia o diálogo como prática, como um ato que produz conhecimento, na perspectiva de um engajamento social desde o contexto comunitário, no exercício de pensar com o outro. De acordo com as ideias de Freire, o conhecimento é pensado como algo que se produz junto, fazendo circular a palavra e, com isso, potencializando a prática de um pensar coletivo. No Brasil, esse educador provocou mudanças profundas na forma de trabalhar a alfabetização, a partir dos círculos de culturas, das palavras geradoras e dos contextos em que as pessoas vivem. Tal proposta, mais do que alfabetizar, almeja fazer com que as pessoas aprendam a ler os seus contextos e suas histórias, a ler o mundo.

Também compactuamos com as concepções de Fals Borda, nascido na Colômbia e fundador do curso de sociologia da Universidade Nacional da Colômbia. As ideias do autor provocam o sentido da ciência própria, ao propor a investigação-ação-participante em contextos indígenas e campesinos em seu país. Sua contribuição parte da problematização de como produzir uma investigação que colabore na transformação desses contextos, em uma dimensão política, aprofundando o compromisso dos intelectuais colombianos frente às realidades sociais. O autor desenvolve, a partir de sua prática e de seus estudos, uma noção de conhecimento que aporta o problema entre o fazer e o pensar, e que este só será rompido a partir da prática, da realidade objetiva das coisas e do encontro com a matéria em movimento. Nesse sentido, ele defende a necessidade de construir uma relação entre ciência e realidade a partir da ação concreta e da inserção social do pesquisador no contexto pesquisado.

A ciência é própria quando os investigados tornam-se investigadores, pessoas reconhecidas em suas capacidades de pensar e de sistematizar as realidades. E essas análises passam a ser teorizadas com uma força transformadora, no sentido de que as realidades pesquisadas passam a ocupar um lugar epistêmico, criativo e de produção de sentidos para os investigadores e para a comunidade. Há uma apropriação da história, um pertencimento e um dar-se conta de que, nesse espaço, há ciência, produção de saberes, há teorização, análise, um modo de constituir-se, de existir e de pensar.

Corrobora com esse posicionamento o pensamento de Martin-Baró (2009, p. 183), ao afirmar que "[...] a preocupação do cientista social não deve se centrar tanto em explicar o mundo, mas em transformá-lo", sendo necessário, para isso, a busca de uma epistemologia própria da América, que se dá ao teorizar e ao pensar com o povo. Isso aponta para um modo de pesquisa participante, que visa romper a relação de submissão, da assimetria entre o que sabe e o que não sabe e, em consequência, do que possui e do que não possui ciência. Martin-Baró (2009) afirma que é necessário construir um novo horizonte, uma nova epistemologia, uma nova práxis, que recupere a memória histórica, que avance na desideologização do senso comum, da experiência cotidiana e da potencialização das virtudes populares. Em uma perspectiva latino-americana, o autor faz-nos pensar sobre o predomínio de um mimetismo cientificista, que contribui para tornar ausente uma epistemologia da América, na qual predomina o positivismo, o individualismo, o hedonismo, uma visão homeostática, o a-historicismo. É importante destacar que Martin-Baró nasceu na Espanha e atuou com a vibração da vida na América Central, onde "[...] foi brutalmente assassinado por forças paramilitares em 16 de novembro de 1989. A morte desse jesuíta ocorreu em um país cuja situação histórica resultou na morte de mais de 32 mil pessoas entre 1979 e 1990, em El Salvador" (GUZZO; LACERDA, 2009, p. 20). Tais movimentos de luta e compromisso dialogam com a perspectiva de Rodolfo Kusch, filósofo, que nasceu em Buenos Aires, Argentina, e foi optando por uma epistemologia vinculada às raízes populares e indígenas.

Kusch trabalhou em vários centros educacionais e de pesquisa. Foi demitido da Universidade de Salta por suas ideias revolucionárias e, então, decidiu viver em Maimará, pequeno lugarejo ao norte da Argentina, para fazer um mergulho profundo de convivência com povos originários, o que lhe possibilitou pensar e teorizar, a partir da filosofia, uma América que tem suas raízes indígenas. A partir do convívio comunitário, tendo em vista que passou a morar com os mestiços e indígenas desse lugar, Kusch (2009a) situa-nos a um modo de pesquisar vinculado ao que denominou o "estar sendo", um modo do viver indígena, que vive um tempo contínuo, com fluidez, leveza e determinação, em contraposição à ânsia do ser europeu que exige uma postura de afirmação e fazer, mais do que de contemplação. O "estar sendo" não pode ser confundido com resignação e submissão, mas a um modo de cultivo à semente, a um pensamento germinal, que emerge do centro da mandala3 indígena, do milho, da terra.

Esses autores e essas concepções convergem com um modo próprio de constituir ciência na América, tendo a prática transformadora como uma dimensão central no processo de investigação. Percebemos uma convergência entre as perspectivas de Paulo Freire, Fals Borda, Ignacio Martin-Baró e Rodolfo Kusch, quando falam em diálogo, ciência própria, epistemologia da América e América profunda. Esses autores convocam pesquisadores, educadores, sociólogos, psicólogos e filósofos a emergirem, científica e politicamente, como pensadores de nossa própria história, tendo em vista que esses intelectuais foram marcados pela inserção com as comunidades e pela teoria das universidades e suas concepções de ciência eurocentrada e colonialista.

Fomos sendo inspiradas pelo pensamento desses autores desde as primeiras aproximações com coletivos indígenas. As ações que desenvolvemos, a partir de nosso pertencimento à academia como professoras e pesquisadoras, vão sendo refletidas no processo de olhar para o já vivido como uma forma de compreender a nós mesmas, no diálogo intercultural, conceito este que está sendo cotidianamente ressignificado no encontro com os indígenas. A reflexão acerca da interculturalidade e de sua problematização como conceito está no cerne das questões aqui abordadas. Fals Borda (2009) chama atenção para desvencilharmo-nos da relação dogmática e de fetiche que temos com o conceito, em uma ânsia de interpretar a realidade ou de afirmar convicções. Tal relação impede o aprofundamento com o que não é explicável, em função de compreensões pré-estabelecidas. Esse tem sido um dos aspectos importantes na aprendizagem com os indígenas, ao constatarmos quanto os conceitos são limitados e temporários e quanto não podemos neles nos fixar.

A crítica à interculturalidade, por parte dos indígenas, tem sido um exemplo de que o conceito não dá conta de traduzir a vida e, principalmente, não substitui a experiência do diálogo e da convivência. Ao mesmo tempo que tem uma utilidade política e acadêmica, o conceito vai se tornando vazio. Bruno Ferreira (2014) afirma que entre indígenas e não indígenas não existe interculturalidade, pois, para que isso ocorra de verdade, precisamos ter muito conhecimento e respeito, de ambas as culturas. Tal afirmação nos remete à reflexão de Freire (1997), quando este se dá conta, durante uma palestra que fazia sobre violência, frente a um operário que explicava os sentidos da ação de bater em seus filhos, de que não conseguiu ter o respeito ao que denominou "saber de experiência feito". Paulo Freire, angustiado com o fato de que os operários não o houvessem entendido, conversa com Elza, sua esposa, e ela o faz pensar: "- Não terá sido você, Paulo, quem não os entendeu?, perguntou Elza. E continuou: - Creio que entenderam o fundamental de sua fala. O discurso do operário foi claro sobre isto. Eles entenderam você, mas precisavam de que você os entendesse. Essa é a questão" (FREIRE, 1997, p. 28).

A seriedade com que o autor fala desse campo de diálogo, referindo que, por várias vezes, volta a essa cena, como um texto ou algo que continuamente revisita para pensar, faz-nos refletir sobre a fala do indígena como algo que não podemos deixar de ouvir, que trata da nossa limitação e, ao mesmo tempo, da constante busca metodológica para a compreensão "do saber de experiência feito" do indígena, que também chamamos como a interculturalidade que podemos construir. Reportamos a Fals Borda (2008) no sentido de mostrar as aprendizagens conceituais advindas da vivência com as comunidades ribeirinhas com as quais desenvolveu investigação-ação-participativa. O autor relata como foi cunhado o conceito sentipensante por esse coletivo popular, conceito muito adequado para expressar um pensamento próprio da América: "[...] inventaram um conceito tão simples e tão bonito" (FALS BORDA, 2008, n.p.). Reconhece o autor a inteligência desse grupo ribeirinho, que cria conceitos a partir da reflexão acerca do vivenciado: "[...] atuamos com o coração, mas também empregamos a cabeça e quando fazemos isso somos sentipensantes" (FALS BORDA, 2008, n.p.). Situações registradas por Paulo Freire e Orlando Fals Borda, em suas importantes interlocuções com grupos populares da América profunda, mostram a compreensão e o reconhecimento de seus modos de pensar e produzir conhecimento e apontam para uma postura ética nas ações que se pretendam interculturais.

No sentido de aprofundar a compreensão de interculturalidade, Kusch (2012) faz-nos pensar cultura como uma dualidade, de uma parte vivida em uma dimensão consciente e outra de forma inconsciente, destacando a necessidade de se encontrar um símbolo que concilie os opostos. Isso pressupõe compreender cultura como um processo no qual o sujeito vai criando realidades. Estar em convivência nesse processo simbólico, que é cultura, é o que vai conferindo sentido para a vivência intercultural, do que é partilhado como experiência coletiva e individual, subjetiva e objetiva na interface dos interlocutores, em uma preocupação ética de convivência, com o outro corporizado e real. Dessa forma é que falaremos, a partir de nós mesmas, pesquisadoras, com uma forte identificação e compromisso com os indígenas, mas do lugar da universidade, de pesquisadoras, de professoras, de educadoras e de mulheres. De como fomos dialogando e constituindo presença junto aos coletivos indígenas, da atuação protagonista e colaborativa desses atores sociais que, generosamente, escolhem e acolhem a universidade como parceira de suas lutas e de como vão transformando a ambiência acadêmica, abrindo "frestas" nas portas até então fechadas para eles nesses espaços sociais: uma universidade pública federal e uma universidade comunitária. Na sequência, relatamos um processo que mostra como vamos construindo sentidos para as ações participantes e colaborativas que construímos a partir do encontro efetivo e afetivo com os indígenas em seus territórios originários e, principalmente, na academia.4

Convivências e trocas com Guarani e Kaingang em uma universidade pública federal

Como professora de História da Educação, atuando na formação de professores, busquei, desde o início de minha prática docente, organizar o ensino evidenciando a história da educação das mulheres, dos negros, dos indígenas. Contudo, como inserir esses temas no programa de uma disciplina acadêmica, se não há uma produção científica para fundamentar o estudo? Essa foi uma das questões que contribuiu na escolha do tema de Doutorado: a Educação Guarani. Cursado na universidade em que atuava e ainda atuo como docente, o Doutorado proporcionou o encontro com coletivos Guarani e, posteriormente, Kaingang. Estudar os sentidos da educação escolar com os Guarani fez a primeira e radical mudança acerca de uma concepção afirmativa e moderna da "escola para todos", pois a ambiguidade diante dessa instituição predominantemente ocidental, que faz os Guarani oscilarem entre o querer e o não querer a escola, mostrou-me algo que já desconfiava como educadora envolvida em projetos de educação popular: os perigos formatativos e branqueadores que a escola exerce desde uma perspectiva única de conhecimentos, de metodologias, de saberes, de práticas educativas.

No movimento que anunciava um querer escola (nunca desassociado do não querer), coletivos Guarani buscaram apoio na Faculdade de Educação da Universidade Federal, pois diziam que, se a escola adentra em seus territórios, precisa de muito cuidado. Precisam da escrita e da leitura, da língua portuguesa e de outros conhecimentos vinculados pela escola para dialogar com o mundo não indígena; contudo, intuem que, nesse conjunto de conhecimentos, se adensam outras práticas formadoras da pessoa, implicando em formatações de tempo e de espaço até então fluídos e marcados por seus modos de vida, na desvalorização dos conhecimentos e da língua originária. A escola, que começa a ser praticada nas aldeias Guarani do sul do Brasil no final do século XX, é requisitada por algumas lideranças e comunidades, mas querem conhecê-la melhor, querem dialogar com os gestores da educação escolar, querem uma política pública que respeite o Mbyareko, o conjunto de conhecimentos e práticas de vida que compõem a sua cosmologia. A construção da tese teve como base um diálogo construído na com-vivência, em que as aprendizagens acerca dos significados da escola ocorriam, prioritariamente, junto às reflexões e às discussões de comunidades Guarani que estavam em processo de implantação da escola.

Foi nessa escuta sensível, nesse compartilhar de estudos e reflexões em relação à instituição escolar, que foi desenvolvida a ideia de apropriação (CERTEAU, 1994), perscrutando as marcas na forma e no conteúdo que os Guarani imprimem à escola, ao praticá-la em seus territórios e que realizam a partir de seu modo próprio de viver, o Mbyareko. "Se a intenção da pesquisa é compreender os significados atribuídos à escola pelos Guarani, é importante ver como eles a traduzem no cotidiano escolar, observando e registrando, no interior [dela], tempos, espaços e relacionamentos" (BERGAMASCHI, 2005, p. 46), dizia a tese, ao destacar a importância do com-viver no processo da pesquisa, em muitos aspectos compartilhada com atores e autores Guarani. Desde então, pesquisas que abordam a educação indígena junto aos coletivos Guarani e Kaingang seguem na universidade5, em diálogo profundo com o ensino e a extensão, bem como no desenvolvimento de políticas para o acesso e a permanência de estudantes indígenas. A inserção, como docente, no Programa de Pós-Graduação em Educação, ampliou as pesquisas que trazem para dentro da universidade a educação indígena como tema privilegiado de estudos, produzindo dissertações e teses, já como possibilidade concreta de contaminar o conhecimento de cunho eurocêntrico que historicamente se produz na academia. Além das pesquisas que dialogam respeitosamente com epistemologias indígenas na área da educação, o movimento colaborativo com os coletivos Kaingang e Guarani trouxe alguns pesquisadores desses povos para o programa de Pós-Graduação: em 2013, a UFRGS graduou seu primeiro Mestre, que apresentou a dissertação A formação da pessoa nos pressupostos da tradição: educação indígena kaingang (CLAUDINO, 2013), em que um novo modo de pesquisar encontra lugar. Outros pesquisadores indígenas6 estão sendo acolhidos em cursos de Pós-Graduação stricto sensu, em que uma perspectiva intercientífica ou interepistêmica começa a ser praticada, ainda que timidamente, no seio da produção de conhecimento científico e acadêmico. As palavras do pesquisador Kaingang Zaqueu Key Claudino anunciam uma metodologia própria, que valoriza a escuta e a oralidade, transgredindo em relação aos estreitos parâmetros teórico-metodológicos da academia. Fundamentando seu trabalho, diz o pesquisador:

Esta proposta será desenvolvida dentro de uma abordagem metodológica qualitativa, contemplando a metodologia Kaingang que inclui a oralidade, os costumes, a cultura e a tradição. O conhecimento da cultura e da tradição é repassado de geração em geração através da oralidade, assim os mais velhos transmitem os mitos, os modos de vida, a técnica de confeccionar os artesanatos e falar a língua kaingang. Atualmente percebe-se a preocupação dos Kaingang em registrar, através da escrita, a memória ancestral, visto que as pessoas mais velhas estão com seu tempo cada vez mais exíguo, tornando urgente a realização destes registros, para que não se percam as histórias kaingang. Falo aqui da transmissão da sabedoria como prática dos antigos: Kanhgág si ag tỹ kinhra ẽn ti (aquilo que os velhos conhecem e dominam). (CLAUDINO, 2013, p. 27).

Claudino sustenta os procedimentos metodológicos em uma perspectiva da ciência indígena ou de um espaço cognoscitivo próprio, com técnicas, lugares, referências e atividades próprias. O encontro com os conhecimentos acadêmicos permite-lhe ser um mediador e, talvez, produza um terceiro espaço cognoscivo, de modo a dialogar com os saberes acadêmicos e registrar na escrita um conhecimento que vem da oralidade, mas que servirá para as futuras gerações, indígenas e não indígenas. Pertencente ao povo Kaingang, Zaqueu Key Claudino não abre mão dos conhecimentos e das metodologias próprias, que o formaram como pessoa, como intelectual. A academia é um reconhecimento no mundo não indígena que certamente empodera seu povo, principalmente na relação com o Estado, responsável pela implementação de políticas públicas para coletivos indígenas.

O grupo de pesquisa que coordeno hoje tem também se dedicado a compreender os significados da presença de estudantes indígenas na universidade, na Graduação e no Pós-Graduação. Em um estudo que se debruçou sobre produção acadêmica de cinco pesquisadores Kaingang na área de Educação, três dissertações de Mestrado e dois Trabalhos de Conclusão de Curso, para verificar as possibilidades para outras ciências, Fagundes (2017, p. 6) constata que esses autores constroem o conhecimento, afirmando "[...] metodologias Kaingang próprias, uso de auto-investigação/etnoinvestigação, finalidades políticas de apoio a suas comunidades, bibliografias específicas, presença da língua Kaingang e propostas para o fazer científico e a escola". Diz a autora que os pesquisadores Kaingang se apropriam dos conhecimentos acadêmicos; contudo, mostra que não são suficientes para compreender e traduzir os conhecimentos da oralidade e da tradição de seu povo. Nota-se, igualmente, nas pesquisas dos autores Kaingang, uma intenção política, ao praticarem outros modos de fazer ciência, enfrentando a perspectiva eurocêntrica que predomina na academia. Nesse sentido, a presença de pesquisadores indígenas afirma também a necessidade urgente de descolonizar a universidade, "[...] fazendo desse um espaço plural, tanto no que diz respeito à composição de presenças diversas, quanto de epistemes múltiplas", como afirma Doebber (2017, p. 66), ao estudar os movimentos de re-existência de estudantes indígenas em 26 cursos de Graduação na UFRGS.

Ressaltamos essa perspectiva da pesquisa, que mostra a atuação acadêmica e política de novos atores na universidade, talvez renovando os modos de fazer ciência, tornando esses espaços mais consonantes com os conhecimentos da América profunda7. Retomando as ideias de Kusch (2012), esses pesquisadores indígenas inseridos na academia atuam considerando sua geocultura e contribuem para des-encobrir horizontes menos coloniais e mais americanos e, quiçá, propiciar um encontro com o sentimento do tipicamente humano na América.

Os caminhos que possibilitam a presença indígena na universidade foram construídos de forma colaborativa, com muitos pequenos trabalhos em que a perspectiva participante foi afirmada como crença. A extensão, articulada à pesquisa e ao ensino, é uma prática de encontro, de conflitos, mas também de muito diálogo, como mostra a experiência da elaboração conjunta do livro Ayvu Anhetenguá, publicado na língua Guarani, produzido integralmente por autores pertencentes a esse povo em colaboração com os juruá (pessoas não Guarani) da universidade, como é dito na introdução:

Este livro resulta do trabalho intenso da gente Guarani e dos juruá, convocados para apoiar na tarefa de construir espaços de educação escolar indígena Guarani. [...]. As decisões quanto aos temas, a organização e a própria escritura do livro foram objeto de atenção durante todo o percurso e refletem o trabalho de conjugação de ideias, crenças e desejos de todos, sempre privilegiando a perspectiva sociocultural dos Guarani. (DORNELES et al., 2005, p. 1).

Nove autores Guarani conduziram o processo junto a parceiros da universidade; o trabalho com cinco aldeias durante dois anos; seminários nas comunidades em que todas as pessoas eram convidadas a participar e opinar, decisões, revisões, encaminhamentos e re-encaminhamentos, até o livro pronto ser apresentado aos Guarani, distribuído em suas escolas, para as suas gentes e, posteriormente, autografado na 51ª Feira do Livro de Porto Alegre, em que, pela primeira vez, em meio século de Feira do Livro na cidade, a autoria indígena se fez presente.

Outra menção importante, que marca positivamente a relação que foi sendo construída de forma participante e colaborativa entre a universidade e coletivos Guarani e Kaingang é a Semana Indígena, atividade formativa realizada na Faculdade de Educação sistematicamente entre os anos de 2002 e 2008, em que palestrantes indígenas foram convidados a falar sobre seus conhecimentos, sua educação. A mobilização para concretizar cada encontro ocorreu nos dois grupos envolvidos e o convite da comissão que promoveu os eventos motivou visitas à(s) aldeia(s), evidenciando deslocamentos que também produziam na universidade ao preparar uma atividade dessa natureza. Além da presença de pessoas desses coletivos, tendas para a comercialização de artesanato contribuíram para um quesito importante e necessário: a sustentabilidade econômica das comunidades indígenas, fortemente prejudicadas pelo reduzido espaço territorial que os processos intensos de colonização produzem.

A luta pela terra alia-se aos processos de educação e de escolarização, porém figura sempre em primeiro lugar nas lutas desses povos que têm a terra como a principal educadora. Em um movimento recíproco da presença indígena na universidade, grupos de estudantes visitaram aldeias e escolas indígenas, criando, na Faculdade de Educação em especial e na instituição como um todo, muitos estranhamentos, porém produzindo, igualmente, espaços de escuta, de aprendizado e de efetivos diálogos.

Outra atividade produzida de forma participante e colaborativa com coletivos indígenas no âmbito da educação na universidade foi um curso de Pós-Graduação lato sensu específico. A iniciativa foi gestada a partir da presença de um pequeno grupo de professores e professoras Kaingang no programa de especialização PROEJA8, que abriu vagas para indígenas e certificou como especialistas quatro estudantes, reconhecidos também pela liderança que exercem junto a suas comunidades. Contudo, a distância entre a proposta de formação não indígena e as especificidades da educação escolar indígena intensificou conflitos e incompreensões, mostrando a necessidade de um curso destinado especificamente aos povos originários. Com o apoio do Ministério da Educação (MEC) e a participação efetiva dos professores Kaingang já formados, que apontaram elementos necessários para configurar um curso em que as necessidades do povo poderiam ser mais respeitadas na universidade, foi elaborada a proposta de Especialização em Educação Profissional Integrada à Educação Básica na Modalidade Educação de Jovens e Adultos - Proposta diferenciada para Indígenas, desenvolvida entre os anos de 2010-2012. Destacamos em especial essa experiência, pois, além de um currículo diferenciado, a docência foi exercida de modo compartilhado, tendo em cada componente curricular um professor doutor da universidade e um professor indígena reconhecido por seus conhecimentos tradicionais. Em uma reflexão posterior, Bergamaschi e Pereira (2012) ponderam:

Esse foi um dos aspectos mais importantes do curso, que propiciou de forma mais intensa as interaprendizagens: assim como ocorria a formação dos alunos do curso, formava-se um grupo de professores (da academia e das comunidades indígenas) por meio da docência compartilhada. Em muitas reuniões e encontros de planejamento e avaliação o andamento do curso foi pensado conjuntamente, confluindo e confrontando olhares acadêmicos e olhares da tradição ameríndia. (BERGAMASCHI; PEREIRA, 2012, p. 121-122).

Como exemplo de atividades conjuntas que estão sendo desenvolvidas e que propiciam o estar indígena na universidade, citamos o programa Saberes Indígenas na Escola. No final de 2013, a UFRGS foi convidada a aderir a esse programa nacional de formação continuada de professores indígenas do Ensino Fundamental. Instituído a partir da demanda organizada dos povos indígenas do Brasil, que, em 2009, realizaram a I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena, essa ação, desenvolvida como extensão na universidade, agrega, na própria coordenação do curso, integrantes Kaingang e Guarani. A formação propriamente dita é de responsabilidade conjunta (universidade e coletivos Kaingang e Guarani), porém há uma predominância dos conhecimentos indígenas e de seus intelectuais, formados na academia e ou formados na oralidade, junto à tradição de seus povos. Esta, talvez, seja a experiência mais genuína de uma ação participante e colaborativa, que propicia trocas recíprocas, pois há uma postura desse grupo da universidade em reconhecer a simetria entre os conhecimentos indígenas e acadêmicos.

Vale dizer que esse rol de ações, envolvendo ensino, pesquisa e extensão no âmbito educacional, mostrado aqui como exemplo da participação e da colaboração entre a universidade e os coletivos indígenas, especialmente Kaingang e Guarani, embora já propicie mudanças perceptíveis na paisagem monolítica que historicamente a instituição configurou, ainda está longe de uma relação institucional de reciprocidade, em que conhecimentos e organizações políticas, sociais e econômicas dos povos indígenas sejam reconhecidos em pé de igualdade. Também não são relações harmônicas, pois, como em todas as relações interculturais, há conflitos, há incompreensões, há distâncias que talvez sejam próprias de relações que considerem as diferenças.

Pesquisar com os Guarani em uma universidade comunitária: o sentipensar da ação transformadora

A trajetória de pesquisa com os Guarani iniciou-se no Doutorado em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2002, e ganhou um aprofundamento no trabalho de campo relativo à investigação da dança como processo educativo e de aprendizagem Guarani (MENEZES, 2006). Posteriormente, a pesquisa desenvolvida como docente na Universidade de Santa Cruz do Sul, denominada A produção da vivência comunitária através do mito: um estudo a partir da dança Guarani (MENEZES, 2013), potencializou a perspectiva de integração entre ensino, pesquisa e comunidade. Destacamos, aqui, o fortalecimento da aldeia, em seu entorno comunitário, no sentido de uma maior aceitação dos Guarani pela cidade, de colonização predominantemente alemã, que foi diretamente expresso pelo prefeito da cidade, no I Encontro de Medicina Tradicional organizado pela aldeia. Além dos sentidos de empoderamento comunitário, as diversas narrativas em rodas com a presença de alunos do curso de Psicologia e dos Guarani geraram a produção de novos conhecimentos e de cooperação entre aldeias e universidade. No ano de 2010, a partir de uma proposta de formação em extensão universitária para professores, técnicos e estudantes, foi desencadeado o projeto de venda de artesanato Guarani, com apoio financeiro aprovado por uma importante instituição financeira - a Caixa Econômica Federal. Essa ação de extensão possibilitou diálogos interculturais que apontaram alternativas, tanto nas relações econômicas quanto familiares e interpessoais. Os Guarani conquistaram um espaço de venda em uma praça central de Santa Cruz do Sul, cidade situada no interior do estado do Rio Grande do Sul, lugar de forte presença da colonização alemã. Além da sustentabilidade econômica, houve também um empoderamento político a partir da visibilidade e da valorização indígena em um espaço histórico da cidade.

No percurso de estudos do pensamento ameríndio, entre 2012 e 2015, foi realizada a pesquisa Infâncias e Educação Guarani, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) e integrada ao projeto Abya Yala: epistemologias ameríndias em rede9, desenvolvido junto ao Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados (ILEA/UFRGS). O encontro com a cosmologia Guarani, a partir das crianças, tem se revelado um encontro com a palavra antiga que os Guarani não querem esquecer, pois diz respeito ao sentido da casa, da morada de seus saberes (MENEZES; RICHTER, 2014). A Opy (casa de rituais), compreendida como a universidade dos Guarani, e a aldeia, como lugar de educação coletiva na qual cada um pode encontrar o melhor de si mesmo, apontam tanto para valores educacionais sustentados em uma poética e uma ética enraizadas no estar sendo da filosofia ameríndia evidenciada por Kusch (2009a), quanto para fontes de um pensamento que mescla a cotidianidade com o misterioso e o transcendente. O livro bilíngue, denominado Nhandereko Kue Kyringue'í Reko Rã - Nossa História para as Crianças (MENEZES; RICHTER; SILVEIRA, 2015), decorrente da pesquisa anteriormente citada, mostra que a convivência nas escolas de duas aldeias Guarani emerge como disparadora para um diálogo entre velhos, jovens e adultos Guarani e não Guarani, na vivência de aprendizados que pulsam intensamente entre a palavra do "estar sendo" ameríndio e do ser ocidental. A produção do livro gerou também espaços públicos de maior diálogo intercultural, tanto em seu lançamento no II Seminário de Educação e Infância Guarani, na UNISC, com uma ampla presença indígena, ocupando o espaço de palestrantes e debatedores, quanto no lançamento na 61ª Feira do Livro de Porto Alegre.

Na sequência, surge a proposta de pesquisar mais uma vez conjuntamente aos Guarani, para com o intuito de aprofundar os significados da coautoria como uma ação de compromisso político e científico. A elaboração do novo projeto de pesquisa, denominado Aprendizagens interculturais com os Guarani: produção de conhecimentos ameríndios para a educação das infâncias, alcança singularidade na pesquisa educacional a partir de uma caminhada que vem promovendo a perspectiva de ampliar a produção de conhecimentos ameríndios pelas trocas e pelas aprendizagens interculturais, em um intenso diálogo interétnico e intercientífico, no qual destacamos a parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que se potencializa com o projeto Abya Yala: epistemologias ameríndias em rede, já apresentado anteriormente neste texto, e, mais recentemente, com o projeto Povos originários e diaspóricos: epistemologias e territorialidades.

Nessa caminhada, a universidade vem favorecendo aos pesquisadores e aos estudantes um encontro intercultural que contribui para ampliar a concepção de conhecimento e de racionalidade a partir de debates e de concepções de aprendizagem na cosmologia Guarani. É um percurso de estudos e de ações sustentado pela intenção de aprofundar o diálogo com os Guarani no campo educacional, como modo de possibilitar a sua participação efetiva como indígenas intelectuais (BERGAMASCHI, 2014), fortalecendo a problematização do conceito de ciência em uma perspectiva em processo de aprofundamento, de interciência (LITTLE, 2010), que inclui os saberes indígenas no campo científico e acadêmico. Para Bergamaschi (2014), indígenas intelectuais são mediadores comprometidos com processos políticos e culturais de seu povo, que potencializam saberes, tradições e transformações a partir de sua palavra como potência de interlocução comunitária em uma perspectiva intercultural. Não necessariamente, são reconhecidos como intelectuais os indígenas que estudam ou que estão formalmente cursando a universidade, mas também os sábios e as sábias, mestres da e na oralidade, que ofertam seus conhecimentos milenares, produzidos e transmitidos com metodologias próprias. Nessa compreensão, os movimentos de pesquisa em torno da temática indígena Guarani na universidade favorecem a visibilidade da presença dos povos ameríndios no meio acadêmico e empoderam esses coletivos que, ao frequentarem o espaço universitário, provocam diálogos com saberes desconhecidos, mesmo em nossa América.

Os diálogos entre Guarani e não indígenas, no percurso das pesquisas aqui destacadas, vêm revelando a pertinência da circularidade transdisciplinar de conhecimentos, ao expor que a educação acontece por campos teóricos e vivenciais que abrangem todas as ciências, sem fragmentação, em uma visão intercultural como potencial de experiências de pensamento capazes de lidar com conteúdos tradicionais diversos e com a abertura para a incorporação de novos.

O percurso descrito anteriormente tem permeado reflexões e transformações na perspectiva de princípios e metodologias de aprendizagens, tanto no curso de Psicologia, quanto no Programa de Pós-Graduação em Educação. No plano da Psicologia Comunitária, incorporamos discussões acerca da América profunda e das epistemologias do sul, a contribuição do conhecimento indígena para a formação do psicólogo, a afirmação do espaço da aldeia indígena como espaço de aprendizagem e de produção de conhecimento, tendo em vista que os alunos visitam as aldeias e produzem reflexões a partir desses encontros. Dessa maneira, também se evidencia a relação entre ensino, pesquisa e extensão como uma dimensão indissociável na formação do aluno, tanto na perspectiva da integração dessas dimensões, como na visão holística que vai sendo desenvolvida na instituição de Educação Superior, a partir de processos, de sujeitos e de projetos (MENEZES; SÍVERES, 2011).

Na experiência junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação, a presença indígena é afirmada como uma relação intercultural epistêmica necessária à mudança da educação. Além da presença do indígena, como intelectual, vivenciamos outros modos de pesquisa, nos quais este é concebido como um parceiro coautor nas investigações, um pesquisador. Essa perspectiva tem reforçado o princípio de Fals Borda (2009) e de Freire (2011) de que o conhecimento é transformação. Ao adentrarmos nas epistemes indígenas, também revisamos concepções filosóficas de educação e ampliamos nossas percepções sobre temáticas que envolvem o sentipensar (FALS BORDA, 2009) e o coração como uma faculdade psíquica de pensamento, que regula a dimensão intelectual e a fé, como condições que se integram, conforme explica Kusch (2009b), a partir do pensamento quéchua. Frequentemente tais temas são tratados à margem da ciência ocidental ou como sendo de uma natureza mais pueril, pouco valorizada do ponto de vista acadêmico. No entanto, tais reflexões são contribuições que invertem a lógica da educação, pois mobilizam uma dimensão do como se faz junto e não das buscas causais, do viver e do conviver e não somente do interpretar e analisar.

Ao desenvolver o pensamento seminal, Kusch (2009b) faz uma relação entre afetividade e inteligência, diferenciando essas funções e refletindo o quanto vamos desenvolvendo uma neutralidade afetiva nas sociedades industriais, no sentido de que a cultura citadina vai acostumando-se com a explicação diante dos fatos, ainda que sejam pavorosos, a análise reflexiva substitui a relação direta com o afeto. Tais considerações têm trazido implicações em nossas metodologias de pesquisa, nos modos como podemos pensar e produzir juntos ações que nos modificam e fazem avançar os projetos indígenas, em um modo sentipensante acadêmico.

As pesquisas com os indígenas têm provocado uma densidade reflexiva no pensar a metodologia e as teorias de investigação em uma lógica transdisciplinar, na qual o campo indígena ocupa a universidade, quer seja pela corporeidade, pelo pensamento, ou pelo conhecimento, em uma legitimidade do encontro intercultural epistêmico, no qual já não conseguimos pensar pesquisa sem dialogar com os indígenas. Como uma necessária emancipação da própria universidade, nossa prática alia-se a Santos (2009), quando afirma que é necessário atravessar as fronteiras pós-abissais, aprendendo com as outras epistemologias, na ecologia dos saberes.

Reflexões conjuntas sobre uma ação de ensino: o Seminário Educação Guarani

É fundamental ressaltarmos que a intensidade das ações desenvolvidas com os indígenas em nossas universidades também foi alimentando uma fértil parceria entre as duas instituições universitárias, federal e comunitária, desde o período do Doutorado10 até o presente momento, consolidando um convênio sólido e que resulta em importantes transformações institucionais. Uma das atividades que destacamos especialmente neste texto é a disciplina que realizamos conjuntamente, no PPGEDU/UFRGS, no primeiro semestre de 2017, denominado Seminário Especial: Educação Guarani11.

O Seminário inseriu, pela primeira vez, no currículo institucional do Programa de Pós-Graduação, a exclusividade de estudo da educação de um povo indígena, inclusive anunciada em seu título. A educação Guarani, tramada na cosmologia milenar de um povo com presença ainda forte nas terras baixas do sul da América, mesmo diante de mais de cinco séculos de colonização12, apresenta fortes princípios cosmológicos, mitológicos e filosóficos. Diante disso, o Seminário teve como objetivo aprofundar conceitual e metodologicamente os modos de constituir e transmitir conhecimentos próprios e suas implicações para a educação indígena e não indígena, bem como compreender como a escola pode dialogar com as metodologias educativas Guarani.

Os conteúdos desenvolvidos foram: cosmologia e modo de educação xamânica Guarani; escola Guarani e seus modos de re-existências; crianças Guarani e infâncias; interculturalidade a partir de escritas e de falas Guarani; espiritualidade e estética Guarani e sua visão de pobreza. As aulas foram embasadas nas pesquisas já realizadas com os Guarani pelas professoras coordenadoras do Seminário, por leituras de estudos clássicos acerca desse povo e também contou com um convidado, o professor guarani Jerônimo Vera Franco - Vhera Thupã. O Seminário, aberto para estudantes de Mestrado e Doutorado e para alunos do Programa de Educação Continuada (PEC), teve uma surpreendente presença, tanto numérica, que extrapolou as vagas inicialmente ofertadas, bem como por diferentes interesses, que resultou em uma diversidade de conhecimentos, experiências e indagações, constituindo um espaço de aprendizagens interculturais.

As leituras e as reflexões compartilhadas, tanto de pesquisas recentes quanto de etnologias inspiradoras, consideradas clássicas nos estudos junto aos Guarani, bem como a presença de um professor que nos brindou com suas aprendizagens advindas da oralidade e de um modo de vida próprio, possibilitaram aos estudantes vivenciar um tempo que possui uma espiritualidade ou um tempo-ritmo peculiar. Na conceituação de Melucci (2004), uma experiência como esta potencializa a pertença qualificada, a presença relacional em um modo de aprender cooperativo, e impulsiona a construção de sentidos, de sentimentos e de pensamentos vinculados a um projeto educacional. Corroboramos e vivemos o que Síveres e Menezes (2011) afirmam sobre a abertura das universidades, ainda que sutil, à diversidade cultural, criando espaços educativos de ancestralidade e de diálogo intercultural, nos quais os corpos são afetados, a partir das histórias afetivas, pedagógicas, existenciais.

Em uma aula com o professor Jerônimo, que se estendeu por uma tarde de escuta, algo se instalou como uma tenda fronteiriça quando, após ter compartilhado palavras profundas e vividas, ele questiona: "O que vocês vão fazer com o que escutaram? O que vão fazer a partir de agora?". Pergunta inusitada, simples, complexa, que provoca o despertar da palavra vivida, conforme nos ensina Freire, quando explica de onde surgiu o seu sabor pelas palavras, pela alfabetização e a emergência provocada em sua infância, na relação de aprendizado com seu pai, sua mãe e seu contexto, que o chamava a formar sentenças, a partir de suas próprias palavras. "À sombra das mangueiras, o giz eram os gravetos e o quadro negro era o chão" (FREIRE; GUIMARÃES, 1982, p. 14). Freire vai nos situando sobre o que foi fazendo ao longo de sua vida com a palavra, sua proposta de alfabetização como potência de leitura do mundo, em que a escrita adquire outra dimensão, pois carrega uma relação profunda com o vivido, com o sentido, antes e durante o ato de escrever.

A pergunta do professor guarani teve a potência de fazer os estudantes pensarem, a partir de sua cultura e de sua fala, a si mesmos na relação com seu mundo e com seus contextos pessoais, profissionais, sociais e políticos. Compreendemos que o trabalho final do Seminário conduziu à pergunta que precisou ser pensada, refletida, digerida, como a que cala, provoca, grita e silencia no horizonte do coração, provocando temáticas que problematizaram o ser docente, os sentidos metodológicos do pesquisar, o olhar eurocêntrico para os autores e para as teorias, a legitimidade do conhecimento Guarani como epistemologia, a descolonização dos aprendizados, os encontros interculturais, a emergência de um diálogo epistêmico e afetivo com e a partir dos Guarani. Nesse sentido, os textos produzidos pelas alunas e pelos alunos do curso respondem ao fazer acadêmico de outra forma. O texto escrito, produzido individualmente, vem carregado de emocionalidades, de aprendizagens que envolveram sentimentos profundos de encontro consigo e com uma história e uma memória coletiva negada, apagada dos fazeres acadêmicos e pedagógicos.

Autores foram retomados, mas o que ressoa retumbante são indagações que implicam à vida: "O que me trans(in)formou esse encontro com a educação Guarani? Como adenso em minhas práticas educativas as aprendizagens realizadas?", como estas, anunciadas por Ana Luna. São reflexões que remetem à afetividade profunda de um corpo arrebatado pela aprendizagem com o outro que é também a ancestralidade ameríndia: "Uma pergunta daquelas que sacode o pensamento, movimenta o corpo", diz Bruna Flor. "Uma pergunta que provoca abalos... Abalos necessários para que possamos viver/experienciar de outras formas. [...]. Segue então um registro possível a partir dos afetos... Uma pedagogia do sensível se vislumbra enquanto campo de possibilidades". As ressignificações da prática educativa em uma escola Guarani, como desenvolve Juliana Terra: "Estudar a educação tradicional Guarani trouxe algumas respostas às incompreensões que vivo na interculturalidade da minha sala de aula na escola". A reflexão transformadora faz-se presente no texto desta aluna-professora: "Pude entender o respeito e a delicadeza de cada aluno, tanto na relação comigo como entre eles". Outras reflexões remetem a reflexões existênciais, como as de Maria Palmeira: "O Seminário Especial sobre Educação Guarani inaugurou academicamente um momento no qual, de forma mágica e encantadora, estou sendo recolocada no caminho da reflexão sobre a condição humana", remetendo ao que adverte Kusch (2009b, p. 263): "[...] a busca de um pensamento indígena não se dá apenas com o desejo de exumá-lo cientificamente, senão pela necessidade de resgatar um estilo de pensar", que traz a compreensão do sentido do humano na América.

Dispor pequenos trechos de alguns trabalhos realizados por estudantes que participaram do Seminário Especial Educação Guarani é mostrar a lacuna da universidade brasileira em relação aos povos originários, em geral com programas de ensino eurocentrados e com uma história de ausência dos conhecimentos indígenas em seus currículos. É, também, e, sobretudo, trazer um itinerário de presenças e evidenciar o que provoca nos estudantes um currículo intercultural. Remete ao que Daniel Mato (2017) denomina de "colaboração intercultural", como ações conjuntas, de afirmação, que modificam as relações com os povos indígenas, historicamente marcadas por práticas de dominação e colonização.

De ações colaborativas e participantes a encontros com epistemes e co-autorias indígenas: palavras para concluir

Os processos de trabalho com os indígenas em nossas universidades efetivam um projeto de educação universitária, com muitos conflitos e contradições, mas também com ousadia e transformação. As mudanças são evidenciadas na palavra e na prática dos estudantes e das professoras, tanto na construção de metodologias de aprendizagens como na pesquisa. Estar com os indígenas na universidade provoca-nos a pensar a educação com mais profundidade. O permanente ir e vir que fazemos nas aldeias, propiciando diálogos que ocorrem lá, em seus territórios, tem reforçado ações colaborativas e participantes na universidade, destacando o valor de instituições de Ensino Superior também voltadas ao desenvolvimento comunitário, com a participação ativa e afetiva dos movimentos populares e a descoberta contínua dos significados dos conhecimentos indígenas e das autorias conjuntas.

Os saberes populares, que por muito tempo foram evidenciados nos movimentos de Educação Popular a partir de Paulo Freire e que são base para compreender a proposta de investigação-ação-participante de Fals Borda, vão sendo ressignificados como epistemologias, como ciência própria, com teorias, metodologias e vivências que dialogam igualmente como campo de construção acadêmica e científica. O viés do nosso trabalho vai se constituindo no diálogo intercientífico, como ato cognoscente, conforme nos ensina Freire (1983). É no debate de ideias, de afetos, de relações de aprendizagens no próprio ato de fazer juntos, de pesquisar juntos, de desconstituir conceitos e recriar campos teóricos, como os que citamos, dentro de um estar ameríndio, do sentipensar, de uma palavra que, como diz um sábio Guarani, vai ganhando força quando é sentida "no centro do céu, na vivência". Pensar a partir do soncco, palavra quéchua que significa coração, trazida por Kusch (2009b) como uma ciência indígena que ritualiza o ato educativo, buscando sentidos para o que e o como se faz.

São atravessamentos na linha do invisível, no campo de conflitos e disputas epistemológicas entre as formas ditas científicas e não-científicas, entre as cidades metropolitanas e os territórios coloniais, como explicita Boaventura de Souza Santos (2009). Dessa forma, compactuamos com o autor, quando afirma que os movimentos e as práticas indígenas representam alternativas para um pensamento pós-abissal, que rompe as fronteiras coloniais e convergem para uma força coletiva de afirmação epistemológica simbólica e local e não abstrata e universal. A presença indígena em nossas universidades e todos os conhecimentos compartilhados têm representado o que o autor denomina como ecologia dos saberes:

Uma contra-epistemologia que procura dar consistência epistemológica ao pensamento pluralista e propositivo. Na ecologia dos saberes cruzam-se conhecimentos e, portanto, também ignorâncias. Não existe uma unidade de conhecimento, como não existe unidade de ignorância... a ignorância só é uma forma desqualificada de ser e de fazer quando o que se aprende vale mais do que o que se esquece. A utopia do interconhecimento é aprender outros conhecimentos sem esquecer os próprios. A ecologia dos saberes convida a uma reflexão mais profunda sobre a diferença entre a ciência como conhecimento monopolista e a ciência como parte de uma ecologia de saberes. (SANTOS, 2009, p. 56).

Em nossa prática, temos constatado que a relação entre interconhecimento, que também legitimamos como interculturalidade, provoca um outro lugar para os indígenas e para os não indígenas e, também, para a universidade, no qual nos é possível pensar a descolonização, não como esquecimento de um saber, de uma cultura, mas como estranhamento do que arranca de nós a nossa História. E assim, podermos encontrar e valorizar o nosso jeito próprio de pensar, descobrindo-nos interconectados, enraizados, dialogando com a presença não mais invisível do nosso ser indígena, do outro sujeito diferente e do outro ser que está em nós, também implicadas com o profundo desta América.

O encontro com a episteme indígena na universidade é transformador, por seu caráter descolonizador, pela referência a uma América profunda (KUSCH, 2009a), pelo encontro com o estar sendo indígena, pela desaprendizagem, pela alteridade, pelo conflito ético transparente que, na qualidade de educadoras e pesquisadoras, nos autorizamos. E, também, pela contribuição que os indígenas, em nosso caso os Guarani e os Kaingang, estão generosamente nos ofertando com suas presenças não mais invisíveis em nossos territórios simbólicos, intersubjetivos e físicos.

Evidenciamos em nossas práticas um processo em co-autoria, que implica o desafio de aproximar interesses coletivos diferenciados. A teorização nasce do diálogo que transcende a visão de um conhecimento acadêmico de produção individual, de uma objetividade universalizante. Abraçamos, com uma disposição ético-política transformadora, o movimento histórico, a causa social e longas discussões e construções reflexivas encarnadas, que, conforme Martin-Baró (2009), ultrapassam as dicotomias entre teoria e prática e assumem as raízes epistemológicas da América, em um espaço conflitivo, de rupturas, em uma ênfase coletiva e de construção de identidades interculturais.

1O povo Guarani, organizado em três parcialidades (Mbyá, Nhandeva e Kaiowá), abrange vários países na América do Sul. No Brasil, vivem em tekoá (aldeias), localizadas principalmente nos estados das regiões Sul, Sudeste e Centro- Oeste. Pertencem à família linguística Tupi-Guarani do tronco Tupi. Estruturados a partir de laços de afinidade e de parentesco, assentados sobre terras cultiváveis, os tekoá mantêm entre si fluxos e ritmos sócio-ambientais e culturais, marcados pela itinerância de pessoas, troca de sementes, fluxo de animais, intercâmbio de técnicas, de objetos e de conhecimentos (FREITAS, 2012).

2O povo Kaingang, com uma população aproximada de 40 mil pessoas, atualmente vive em aldeias localizadas nos quatro estados mais ao Sul do Brasil (São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), principalmente em áreas de florestas com pinheiros e de campos do Planalto Sul-brasileiro, mas, também, contíguas ou dentro dos espaços metropolitanos de grandes cidades. Do ponto de vista linguístico, essa sociedade pertence à Família Jê do Troco Macro- Jê, compondo o grupo de sociedades indígenas Jê meridionais (SILVA, 2012).

3 Jung (2014) desenvolveu um estudo aprofundado sobre mandalas em diversas culturas, religiões, artes e arquitetura, ressaltando seu poder organizador e antigo para os povos, tanto do ponto de vista cultural, na afirmação de seus ensinamentos, quanto na integração de aspectos psíquicos. Kusch (2009b) refere-se à mandala para situar o círculo criador, a partir da divindade Viracocha, na cosmologia quéchua, enfatizando o milho como centro estruturador do pensamento indígena.

4Em alguns momentos desses relatos, usaremos a primeira pessoa do singular por terem sido experiências voltadas à vida acadêmica de cada uma das autoras.

5Relação dos principais projetos de pesquisa desenvolvidos no período de 2007-2016: Práticas pedagógicas e cosmologia Guarani nas escolas das aldeias: Tekoá Anhetenguá - Aldeia Lomba do Pinheiro e Tekoá Jataíty - Aldeia Cantagalo (FAPERGS); Memória, tradição e saberes ancestrais nas práticas escolares das aldeias Kaingang e Guarani; Educação Indígena: história, saberes da tradição, ancestralidade e práticas escolares; Educação Ameríndia e Interculturalidade (CNPq); Educação Ameríndia, Interculturalidade e Interaprendizagens; Formação de Intelectuais Indígenas, Educação e Interculturalidade (este último em andamento).

6Até 2017/2, quatro estudantes pertencentes ao povo Kaingang concluíram estudos de Mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, três na área da Educação e um na área de História. Três desses mestres já cursam o Doutorado, nos programas de Pós-Graduação de Educação, Letras e História. No ano de 2016, políticas afirmativas foram criadas em alguns programas, fomentando o ingresso e a permanência de indígenas nos cursos de Mestrado e Doutorado. Em decorrência disso, um grupo significativo de pesquisadores indígenas ingressou nos Mestrados em Antropologia, História e Educação.

7América profunda é título de uma obra de Rodolfo Kusch, que nos fala de uma América que está entranhada na cultura, na terra, no modo de sentir/pensar o mundo, mas que, muitas vezes, é negada.

8Programa de Educação de Jovens e Adultos Integrado à Educação Profissional, instituído pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação do Brasil tem, no bojo de suas ações, cursos de Epecialização - Pós-Graduação lato sensu, visando a formação de professores.

9A proposta dessa Rede contempla práticas que fortaleçam ações e atores acadêmicos e ameríndios, dentro e fora da universidade. Como refere o projeto, a rede objetiva a criação de um espaço institucional de interlocução entre vários especialistas, de diferentes áreas do conhecimento e filiados a diversas instituições de ensino e pesquisa, evidenciando modos de aprendizagem e processos educativos ameríndios e suas correspondentes sócio-mito-cosmo-ontologias.

10É importante dizer que o Doutorado de ambas as pesquisadoras foi realizado em tempos concomitantes, na mesma instituição (PPGEDU/UFRGS). Desde então, compartilhamos muitas ações, desde trabalhos de campo que fortalecem a relação com as comunidades indígenas, até a produção acadêmica, como mostra a publicação do livro Educação Ameríndia: a dança e a escola Guarani, em 2009, reeditado em 2015 (MENEZES; BERGAMASCHI, 2015).

11A disciplina foi compartilhada no período do Pós-doutorado da professora Ana Luísa Teixeira de Menezes, no Programa de Pós-Graduação da UFRGS, com bolsa sênior CNPq, sob a orientação da professora Maria Aparecida Bergamaschi.

12O povo Guarani foi um dos primeiros povos a ser contatado por colonizadores europeus da península Ibérica. Com tecnologias agrícolas avançadas, ainda no início do século XVI, produziam alimentos e, por isso, foram alvo de alianças com os europeus, que viam nesses povos a "divina abundância".

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Recebido: 15 de Maio de 2018; Revisado: 24 de Setembro de 2018; Aceito: 26 de Setembro de 2018

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