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Práxis Educativa

versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.14 no.1 Ponta Grossa jan.-abr 2019  Epub 17-Abr-2019

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.14n1.013 

Artigos

Educação Popular e Ciência Pública: discutindo alternativas para o diálogo de saberes

Popular Education and Public Science: discussing alternatives to the dialogue of knowledge

Educación Popular y Ciencia Pública: discutiendo alternativas para el diálogo de saberes

Rodrigo Avila Colla* 

*Professor de Educação Infantil da Secretaria de Educação da Prefeitura Municipal de Esteio - RS e Pesquisador em estágio Pós-doutoral na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: <rodrigo.a.colla@gmail.com>.


Resumo:

O presente ensaio teórico defende um diálogo entre conhecimentos científicos e saberes populares. A acepção de ciência é alargada a fim de aproximá-la do âmbito social e introduz as bases da Ciência Moderna bem como o conceito de paradigma. Adverte para o caráter provisório das verdades científicas e para a necessária abertura da ciência a uma multiplicidade de saberes por ela rechaçados. Com o intuito de dar conta da imbricação temática proposta, o texto recorre a referencial teórico bastante diversificado que une autores que se dedicam à epistemologia, à filosofia da ciência, à sociologia da ciência e à Educação, mais especificamente à Educação Popular. Sugere o diálogo como elemento fundante de uma ciência aberta, pública, inclusiva e que busque, permanentemente, estabelecer conexão entre os conhecimentos que produz e a sociedade.

Palavras-chave: Educação e Ciência; Educação Popular; Epistemologia da Ciência

Abstract:

This theoretical essay defends a dialogue between scientific knowledge and popular knowledge. The meaning of science is broadened in order to bring it closer to the social sphere and it introduces the foundations of Modern Science as well as paradigm concept. It warns to the provisional character of scientific truths and about the necessary opening of science to a multiplicity of knowledge which it rejects. In order to account for the proposed thematic overlap, the text uses a very diversified theoretical reference that links authors who are dedicated to epistemology, philosophy of science, sociology of science and Education, more specifically Popular Education. It suggests the dialogue as the founding element of an open, public, inclusive science that seeks, permanently, to establish a connection between the knowledge it produces and society.

Keywords: Education and Science; Popular Education; Science Epistemology

Resumen:

El presente ensayo teórico defiende un diálogo entre conocimientos científicos y saberes populares. La acepción de ciencia es extendida para acercarla al ámbito social e introduce las bases de la Ciencia Moderna, así como el concepto de paradigma. Advierte para el carácter provisional de las verdades científicas y para la necesaria apertura de la ciencia a una multiplicidad de saberes rechazados por ella. A fin de dar cuenta de la imbricación temática propuesta, el texto recurre a referencial teórico bastante diversificado que une autores que se dedican a la epistemología, a la filosofía de la ciencia, a la sociología de la ciencia y a la Educación, más específicamente a la Educación Popular. Sugiere el diálogo como elemento fundante de una ciencia abierta, pública, inclusiva y que busque, permanentemente, establecer conexión entre los conocimientos que produce y la sociedad.

Palabras clave: Educación y Ciencia; Educación Popular; Epistemología de la Ciencia

Prólogo

[...] não existe rigidez maior do que aquela que empregamos para defender nossa fragilidade não-declarada. Não é dessa indiferença que necessitam os habitantes da complexidade, mas sim de uma capacidade apaixonada de mudar a forma, de redefinir-se no presente ou de tornar reversíveis escolhas e decisões.

(Alberto Melucci)

A disciplina do espírito científico não começa com o não mais se permitir convicções?

(Friedrich W. Nietzsche)

Na humanidade sempre houve ciência1. Sempre houve no homo sapiens sapiens a aptidão do pensamento (razão em cooptação com emoção) para a construção do saber. Afinal, é um ser que sabe que sabe e, assim, sabe-se capaz de pensar e, ao saber-se pensante constrói conhecimentos, adquire ciência.

Entretanto, em dado momento histórico, apregoou-se certo modo de pensar que ainda hoje é tido como uma espécie de panaceia para a obtenção de verdades: a racionalidade científica da ciência moderna. Com isso, o termo ciência tornou-se sinônimo da instituição que visa a produzir conhecimentos sob a égide de alguns preceitos: observação, dedução, indução, comprovação/verificação, determinismo, quantificação, reducionismo, causalidade, dentre outros. Não obstante, toda e qualquer cultura é dotada de alguma forma de ciência, adquirida tanto por experimentação e repetição de determinadas práticas até que se tornem comprovadamente eficazes quanto pela própria experiência de viver no mundo.

Contudo, subjugados às verdades apregoadas por uma ciência hegemônica, saberes tradicionais e populares, mesmo que mostrassem coerência e prudência, e muito embora fossem por vezes impregnados de ciências que a experiência ao longo do tempo comprovou serem procedentes e úteis no mundo da vida, receberiam o estatuto de inculturas, de vulgaridades cotidianas, de superstições ou sortilégios irracionais.

Este texto não pretende ser meramente uma ode aos saberes populares. Também não pretendo, aqui, pois seria algo absurdo, invalidar a importância de descobertas científicas para a humanidade, nem apregoar o abandono completo da Ciência nos moldes em que foi erigida, mas, como ficará mais claro no percurso deste artigo, sugerir uma Ciência mais dialógica e mais comprometida com o público. O que aqui será defendido é que essa proposta depende em grande medida de uma abertura do campo científico aos saberes populares, de uma aliança sua com os interesses sociais, de uma postura mais humilde e maleável dos conhecimentos instituído diante de um mundo imerso em uma espécie de crise da razão em cujos saberes requerem reconexão.

Contudo, para isso, urge que se tomem medidas que hão de ser, ao mesmo tempo:

  • Humanitárias: de toda humanidade e voltadas para o humano.

  • Humanizantes: capazes de repensar o holos humano, ou seja, tudo aquilo que, da natureza, foi humanamente transformado. Esse holos do qual o planeta está impregnado por séculos de aculturação deve ser problematizado. Da imensidão de criações e de invenções, quais delas realmente são humanizadoras? O que em nosso tempo deve ser considerado humanizador? A humanização hoje, ao que parece, deve pressupor, em primeiro lugar, a dimensão terrena de nossa existência, isto é, o fato inarredável de que convivemos em um planeta finito e a ele pertencemos na condição de animais do ecossistema. Repensar esse holos quer dizer, em outras palavras, ressignificá-lo e, assim, buscar na práxis re-humanizarmo-nos.

  • Ecológicas: de toda humanidade e voltadas para a ressignificação e recondução de sua relação com o ambiente a que pertence, resgatando o caráter animal de nossa existência e contemplando outras animalidades e outras formas de vida que conosco coabitam.

  • Comunitárias: de humanos para com humanos, perpassando a valoração do meio que os suporta e os sustêm, pois esse ambiente é comum a todos.

De fato, parece que medidas e pesquisas que carreguem a complexidade desses princípios, ou se orientem por eles, requerem um profundo diálogo e não serão possíveis de serem levadas a cabo por uma instituição isolada. O poder público vem arrogando essa tarefa e comumente busca respaldo na Ciência para diagnosticar as ditas demandas sociais e, por vezes, legitimar suas políticas. No entanto, relações de poder e interesses privados, desgraçadamente, perpassam esses trâmites e, devido a isso, um meio possível para contornar essa conjuntura parece ser uma socialização científica capaz de, pouco a pouco, diminuir o abismo entre a sociedade e o universo científico e político por meio da capacitação gradativa do corpo social para saberes-fazeres tanto deliberativos quanto científicos. Nesse aspecto, a tradição da Educação Popular e as práticas por ela levadas a cabo são de extrema importância e consistem em uma contribuição bastante significativa. Eis que desaguamos no objetivo deste artigo: discutir alternativas para uma aproximação entre Ciência e sociedade com base em práticas e princípios da Educação Popular.

Nessa esteira, portanto, este artigo também intenta propor a discussão de uma ciência pública que dialogue com esses saberes populares/tradicionais e que os insira no seu modo de fazer ciência. Um campo aberto de construção do conhecimento que saiba responder às demandas desses saberes nos seus próprios termos e, na medida do possível, atribuir-lhes rigor e cientificidade sem deles se alhear em pedestais. Uma Ciência que, sem pedantismo, saiba imiscuir-se com o público e fazer ciência "olho no olho", reconhecendo que no que é popular também há ciência. E talvez o mais importante: que os cientistas formais (aqueles com formação científica e legitimados no âmbito da instituição ciência) não saiam obstinadamente a reivindicar suas ciências tão somente para si, mas saibam admitir que ciência se constrói no público, do público, com o público e para o público. E, mesmo se no reduto dos seus laboratórios herméticos estiverem a interagir privadamente apenas com seres inanimados, lembrem-se, esses cientistas, de que no público também se faz ciência e que na socialização que se faz o humano - afinal, o ser para o qual a ciência deve servir. Em suma, este artigo busca defender uma ciência responsável que, respeitando a acepção original do termo, tenha capacidade de responder aos apelos da sociedade reconhecendo-os como saberes legítimos e aprendendo a ver neles seu potencial científico.

Pesquisa participante: fazendo ciência em diálogo com a sociedade

O que está sendo tratado neste artigo se assemelha em grande medida ao que Orlando Fals Borda (2006) propõe em sua concepção de pesquisa participante. A ressalva a ser feita, entretanto, é que aqui busco promover uma abertura de perspectiva de algumas questões epistemológicas que se acredita serem demasiadamente rijas na ciência. Essa abertura talvez possa vir a contribuir para que toda e qualquer pesquisa venha a ser, em dada medida, pesquisa participante.

A pesquisa participante não é propriamente uma metodologia, mas, antes, uma postura metodológica. No que diz respeito a ela, é preciso ressaltar a inspiração gramsciana em que o investigador deve ser considerado um sujeito pertencente (e não neutro) a seu contexto de pesquisa. Trata-se da ideia do intelectual orgânico. Esse aspecto é destacado por Marcela Gajardo (1986) que, além disso, faz um inventário bastante pertinente para se pensar o contexto da pesquisa participante na América Latina. A pesquisa participante reconhece que a realidade pesquisada em Ciências Sociais sofre interferência e influência do pesquisador - e o mesmo ocorre nas Ciências Naturais, ainda que em seu seio haja movimentos que resistem em admitir tais influências. Não há, portanto, nenhuma pretensão de distanciamento ou neutralidade. A inserção em campo - e a atuação nele - pressupõe sempre uma transformação da realidade estudada mesmo que este intuito não seja predefinido pelo pesquisador (como no meu caso).

"A pesquisa participante", escrevem Gabarrón e Landa (2006, p. 93), "[...] é uma proposta metodológica emergente da crise das Ciências Sociais, que se desenvolve durante a década de 1960 na América Latina e, com aspectos semelhantes, também na Europa". Tal crise foi marcada por mudanças drásticas no comportamento da sociedade, como a exacerbação de movimentos sindicais e a difusão dos meios de comunicação, e por eventos que instavam por novas reflexões de cunho histórico-social, como o fatídico episódio de maio de 1968, os regimes militares na América Latina, o acirramento da Guerra Fria, etc. Em um contexto dessa natureza, não há mais como negar a presença de ideologias por trás das investigações e reconhecer esse princípio inalienável é uma atitude que revela transparência por parte do pesquisador.

Embora atualmente no campo das ciências humanas (e, em especial, na Educação) seja comum encontrarmos trabalhos em que autores(as) alegam fazer pesquisas de cunho ou inspiração etnográfica, a pesquisa participante é diferente da etnográfica. Quem atenta para o uso inapropriado do termo "etnografia" em pesquisas que não necessariamente respeitam os princípios etnográficos é o antropólogo Tim Ingold. Em suas palavras:

Tal procedimento no qual "etnográfico" parece ser um substituto da moda para "qualitativo", ofende todos os princípios da investigação antropológica apropriada e criteriosa - incluindo o compromisso em longo prazo e com prazo final em aberto, a atenção generosa, a profundidade relacional e a sensibilidade ao contexto. (INGOLD, 2014, p. 384, tradução nossa).

Após acusar uma relativa banalização do termo "etnográfico" de uns tempos para cá, Ingold esclarece que a "etnograficidade" está muito mais na intencionalidade do julgamento lançado pelo pesquisador sobre o material coletado no encontro dito "etnográfico" do que na natureza do encontro em si. Ele aventa a alternativa de abandonar o uso da palavra "etnográfico" e utilizar o termo "observação participante". Para o autor, "[...] observar significa ver o que está acontecendo em torno de si e sobre si, e, é claro, também ouvir e sentir. Participar significa fazê-lo a partir de dentro da corrente de atividades na qual sua vida transcorre juntamente às pessoas e coisas que capturam a sua atenção" (INGOLD, 2014, p. 387, tradução nossa). Um ponto interessante que a explanação termo a termo de Ingold (2014) revela é a noção de que as coisas, em seu agenciamento com o mundo e conosco, participam da corrente de acontecimentos. Elas, em outras palavras, acontecem. Em texto publicado anteriormente (INGOLD, 2012), o antropólogo rejeita a noção corrente na ciência de que se possa ter objetos e defende que as coisas, ao acontecerem no mundo, se imiscuem com o ambiente vivo de tal forma que seria mais justo dizermos que também estão vivas. Em um ambiente sem objetos, a vida "[...] é inerente às próprias circulações de materiais que continuamente dão origem à forma das coisas ainda que elas anunciem sua dissolução" (INGOLD, 2012, p. 32). Participando dessas circulações, as coisas são trazidas à vida. A anunciação de sua dissolução não as faz menos vivas, bem como a certeza de nossa morte não nos anula enquanto viventes.

Note-se que a crítica estabelecida por Ingold (2012) ao termo "objeto" recai sobre a Ciência Moderna como um todo e dá margem para encetar um diálogo que coloca em primeiro plano saberes da ordem do cotidiano cujo valor reside principalmente na capacidade de criar alternativas para melhorar a vida das pessoas. Nessa lógica, não é a objetificação que predomina, mas o modo como as coisas, em seu acontecer no mundo da vida, influem na vida das pessoas e ganham significados diversos dependendo do contexto.

Críticas à Ciência e notas sobre um paradigma em declínio

É importante, antes de aprofundar um diálogo sobre ciência pública e Educação Popular, problematizar o paradigma da ciência de modo geral e refletir a noção de conhecimento no presente contexto em que se fala em crise da racionalidade da ciência moderna. Em linhas gerais, o que defendo no presente texto é que, mesmo na hipótese da pesquisa científica ser realizada na íntegra de modo alheio à esfera pública, o cientista, no mínimo, terá de cumprir com a exigência de dar um feedback ao público sobre seus estudos - um pressuposto básico da pesquisa participante. Defendo aqui uma ampliação do que comumente se entende por "comunidade científica" - instância em que um estudo obtém aprovação e legitimação. Se o grande público, a sociedade, não será capaz de corroborar resultados ou de reconhecer a coerência científica de um estudo, poderá pelo menos indagar: "E o que nós ganhamos com isso? Quem ganhará com isso?".

Por outro lado, é também importante que essa ciência comprometida com o público se reconheça provisória e aberta a incertezas, seja passível de re-elaborações, de aprendizados, e, antes de anunciar suas verdades, reconheça a essência imprevisível dos fenômenos e, inclusive, dos próprios rumos humanos. Assim, antes de buscar estabelecer leis gerais, a ciência deve se lembrar dos perigos das absolutizações e ter em mente que a certeza de uma verdade imaleável tende a produzir inverdades. De outra forma, como sonhar com uma humanidade verdadeiramente democrática, se submissa a algumas poucas instituições, em uma lógica obscurantista, detentoras e impositoras de certezas e caminhos intolerantes?

A abertura da ciência à esfera pública pressupõe, assim, a reconsideração de alguns quesitos. Um deles, e talvez o principal, é a questão da subjetividade na ciência. Uma ciência que anula a subjetividade dos indivíduos envolvidos na aventura da "cientificização" e que reconhece como válido somente aquilo que pode ser quantificado e verificado; de um lado, ofusca um elemento constituinte do ambiente empírico de investigação, o cientista2; de outro, desconsidera importantes parcelas do real que resistem à quantificação e, com isso, também exclui sujeitos que fazem ciência e sistematizam seus conhecimentos sem, no entanto, sentir a necessidade de recorrer a mensurações quantitativas.

Em 1637, o matemático e filósofo francês René Descartes (2011) publicou sua obra fundamental, Discurso sobre o Método. Almejava com ela estabelecer as bases do método científico que viria a ser um "método universal para encontrar a verdade". Esse de fato é, desde sempre, o objetivo do que conhecemos por Ciência: o desvelamento da verdade, o conhecimento das "verdadeiras" leis que regem os fenômenos. A palavra deriva do latim scientia, que se traduz por "conhecimento". Em um sentido amplo, logo, ciência significa qualquer prática sistemática que vise à obtenção de algum conhecimento.

A instituição ciência encetou, assim, uma epopeia em busca do "conhecimento puro" pela "autoridade da razão". Nessa aventura, a emoção e os aspectos subjetivos e imensuráveis da realidade foram relegados em prol da objetividade. Os princípios que ajudam a fundamentar essa busca foram erigidos principalmente por Francis Bacon e pelo próprio Descartes e constituem o paradigma da Ciência Moderna. Um paradigma é um modelo aceito universalmente no âmbito da comunidade científica que engloba modos de representação e de interpretação. Dessa maneira, os cientistas que se baseiam em um paradigma comum "[...] estão sujeitos às mesmas regras e normas para a prática científica. Esse compromisso e o consentimento aparente que provoca são requisitos prévios para a ciência normal, ou seja, para a gênese e a continuação de uma tradição particular de investigação científica" (KUHN, 2004, p. 34, tradução nossa).

Thomas S. Kuhn delineou o conceito de paradigma em sua obra intitulada A Estrutura das Revoluções Científicas. As revoluções científicas geralmente ocorrem mediante famosos casos de desenvolvimento científico que implicam uma reformulação da Ciência como um todo e costumam ditar princípios que servem de base para um novo paradigma. A teoria quântica é um bom exemplo disso, pois ela modificou os princípios sob os quais a Ciência se ampara, a contaminando como um todo, bem como demandou uma nova delimitação dos problemas de que o fazer científico deve se ocupar. Isso é importante porque o trabalho científico realizado sob um paradigma não pode ser levado a cabo de nenhuma outra forma a não ser à luz de seus princípios e, como destaca Kuhn (2004, p. 66, tradução nossa), "[...] a deserção do paradigma significa deixar de praticar a ciência tal como ela é definida".

Mencionei há pouco que a Ciência Moderna almejava alcançar um "conhecimento puro" e, para tanto, foi necessária a exclusão dos conhecimentos considerados "impuros" (mas que, nem por isso, deixavam de ser conhecimentos substanciais e úteis para seus detentores) do rol de saberes que seriam, então, considerados científicos. Hoje, a busca por essa "pureza" da razão é improcedente. O raciocínio, o pensamento, a dedução, a indução, são processos que ocorrem simultaneamente e de modo interimplicado, com as emoções e as pulsões. Eles também dependem da sensibilidade e da ontogenia do cientista. De maneira análoga, a Ciência não é só científica, mas também sofre influências éticas, políticas, estéticas, etc.

O fato é que, independentemente dos princípios que a Ciência Moderna apregoava, cientistas marginais (curandeiros, poetas, artesões, cozinheiros e toda sorte de espíritos criativos considerados não-cientistas) continuaram a produzir e multiplicar seus saberes e praticar seus experimentos. Tendo seus conhecimentos tradicionais e empíricos menosprezados e, por vezes, até ridicularizados, muitos sábios e cientistas marginais foram levados a crer que realmente eram espíritos inferiores, pois menos centrados na razão e nos aptos à abstração e, consequentemente, como se cria - e ainda se crê, embora esta concepção venha definhando -, menos hábeis para apreender (d)o real.

O método científico cartesiano, em dado momento, funcionou como um antolho, se mostrando ineficaz como caminho único para todos os segredos da realidade. A redução do todo às suas ínfimas partes, por exemplo, levou a física a observar o átomo que, se descobriu, encerra em si os mistérios da energia, do vácuo e das interações de certo modo imprevisíveis entre as partículas subatômicas. Dito de outra forma, o princípio cartesiano da redução mostrou-se ineficaz e os próprios físicos puseram-se a repensar a concepção de matéria: antes considerado como sendo o menor fragmento material de um determinado elemento, o átomo torna-se incógnita energética. No que concerne a esse problema, por exemplo, a teoria quântica - exemplo de revolução científica -, foi de importância fundamental.

Ademais, mesmo quando aparentemente não recai em incógnitas, a ciência não é capaz de apreender toda complexidade do real. Afinal, como sistematizar todos os mistérios e contingências de algo que está em constante transmutação? Por exemplo, quando se pensa saber os segredos e as leis gerais de um objeto de estudo que, muitas vezes, para ter sua natureza esmiuçada, precisa ser isolado de seu contexto, ele já não possui a mesma essência e já não é regido pelas mesmas leis do objeto que se desejava desvendar, pois já adquiriu uma nova constituição em virtude de sua troca de ambiente, de sua fragmentação, e da consequente mudança em sua dinâmica de interações. Isso se dá pelo fato de esse objeto ter sido isolado de seu contexto, pela sua cisão, pela própria ação do tempo sobre ele, pela mudança na natureza de suas interações com o meio e por uma miríade de outros fatores (internos e externos ao objeto) que nos fogem à compreensão.

O ato de perscrutar dada realidade não independe da influência do investigador, portanto nenhuma ponderação sobre ela pode ser absolutizante. Nenhuma afirmação pode alhear a influência do sujeito que a afirma. Uma visão científica da realidade não é, nesse viés, uma visão universal, mas apenas um ponto de vista particular emitido por certo sujeito. Nas palavras de Edgar Morin (2002),

[...] esta aventura heróica do pensamento, para adquirir e fundamentar a certeza científica, resultou num fracasso total. Pode-se dizer que a epistemologia anglo-saxônica dos anos 50-60 descobriu (redescobriu) que nenhuma teoria científica pode pretender-se absolutamente certa. (MORIN, 2002, p. 14).

Em suma, o "absolutamente certo" parece de fato não existir. A nova ciência depara-se, assim, com a necessidade de expressar-se por meio de probabilidades, de aproximações, de considerar princípios de incerteza e abdicar da fé cega no quantificável.

Sem deter mais a esse ponto, cabe agora abordar brevemente leituras que ajudam a vislumbrar alternativas para se conceber novos caminhos para a inserção de uma diversidade de saberes no diálogo científico, além de legitimá-los no âmbito de uma comunidade científica mais ampla, a sociedade. Por outras palavras, o intuito será argumentar em favor de uma dinâmica que resgate a responsabilidade social, política e ética da ciência e instigue os cientistas a assumirem o compromisso do diálogo e da legitimação dos saberes populares. Nesse sentido, também será preciso problematizar visões que foram difundidas pela Ciência Moderna. Na hipótese aqui defendida, se essa empresa não permitirá a cada indivíduo se tornar um intelectual ou um erudito, pelo menos dará algum respaldo para o reconhecimento de pessoas comuns e cientistas marginais como sujeitos dotados de certa ciência e capazes de lavrar seu próprio lugar no mundo do saber.

Leituras da realidade: complexidade

Os fenômenos e os objetos de estudos de fato não podem ser entendidos de forma disjuntiva. Eles não podem ser desmistificados se considerados como um bolo a ser devorado, partido em tantas partes quantos forem os sujeitos sentados à mesa - que, por seguirem as regras do jogo, receberam o privilégio de participar da ceia.

Mais do que nunca, a apreensão máxima daquilo que entendemos por realidade só pode se dar na convivência com ela, na compreensão de seu todo, que não constitui só a soma das partes, mas que ganha outra natureza quando íntegro, não fragmentado. Não obstante, talvez o principal aspecto a ser considerado seja a necessidade de buscar-se um entendimento da realidade que vá além da sua natureza material e da sua estrutura, compreendendo as relações que se estabelecem interna (entre as partes) e externamente (de um todo específico para com o todo-maior no qual está inserido que, por sua vez, trará consigo também uma miríade de novas variáveis relacionais).

A realidade é, por assim dizer, complexa e a complexidade só pode ser entendida levando em conta sua tessitura. Em outras palavras, se complexus significa uma ordem de coisas que está tecida conjuntamente, cuja compreensão otimizada requer o reconhecimento dos múltiplos aspectos tecidos juntos desse enredo, não se pode entender a realidade de forma disjuntiva (disciplinar) e reducionista (MORIN, 2000).

Sugiro, em contrapartida, buscar uma costura interdisciplinar que dê coerência-real à construção do saber, uma abordagem que reconecte os saberes com o real-perdido e, assim: com o social-esquecido, com o interesse-público-ofuscado, com o habitat-animal-vegetal-mineral-coisificado, com a humanidade-[do contexto]apartada. Perde-se o real na medida em que se isola elementos do mundo da vida e da natureza a fim de perscrutá-los em um ambiente que já não é o seu.

Na visão de Morin (2010, p. 31), também é preciso ter em mente que "[...] o real se faz no momento em que o dever-ser encontra-se com um real que pode desfazer-se". Nessa perspectiva, investigar uma realidade complexa exige a adoção de uma postura legitimadora do caráter provisório de tudo (da natureza do todo: de todas as coisas naturais e do próprio conhecimento). Isso porque um elemento real (ou simbólico) específico, além de ser complexo pelos motivos já expostos, amplifica e estende sua complexificação pela sua natureza mutável e recriadora. Edgar Morin (2010) explica isso recorrendo à dialética: no momento que uma tese é contraposta por uma antítese, funda-se um novo estado de coisas, constituindo uma síntese que, por seu turno, torna-se uma nova tese, sujeita a uma nova contraposição e assim sucessivamente. Porém, em dado momento, Morin (1997) admite, em lugar da dialética, preferir a adoção da dialógica. Esta não necessariamente requer a síntese, mas reconhece no embate a riqueza imanente dos pontos de vista. A complexidade, pois, nem sempre requer a sintetização, mas é imprescindível que a realidade complexa seja ponderada sob olhares distintos e seja objeto de discussão incessante e infindável. Nesse sentido, "[...] conhecimento complexo não tem término não apenas porque é inacabado e inacabável, mas porque chega por si só no desconhecimento" (MORIN, 1997, p. 260).

Eis que nos deparamos com a natureza provisória de qualquer coisa ou acontecimento que ousemos chamar de realidade: uma espécie de ciclo recriativo infinito, cujas interpretações estão permanentemente abertas ao erro e à incerteza e cujas emergências (e urgências) não podem ser entendidas pela dualidade morte-nascimento, mas pelo primado da transformação ad infinitum.

Essa circularidade recriativa pode apresentar-se também como uma propriedade do conhecimento complexo: no diálogo de saberes, a síntese que compreende um novo saber funda, em lugar do conhecimento enciclopédico, um conhecimento "enciclopedente" que "[...] põe em ciclo os conhecimentos dispersos a fim de que eles façam sentido ligando-se uns aos outros" (MORIN, 1997, p. 43-44). Nesse ponto, o olhar epistemológico de Morin encontra-se com uma modalidade educativa prenhe de inspirações dialógicas a qual buscarei aprofundar no próximo tópico.

Educação Popular: alternativas para uma Ciência dialógica

Quando menciono fenômenos envolvendo seres humanos, o problema da realidade fica ainda mais complicado. Isto é, quando os objetos de estudo são pessoas, o paradigma da Ciência Moderna mostra-se ainda mais inadequado. Este nitidamente privilegiava as ciências naturais e o que se nota ao longo da história da Ciência foram movimentos de transferência de métodos e procedimentos das ciências naturais para as humanas. O que pretendo discutir agora é como certas práticas intersubjetivas focadas na formação humana podem contribuir para uma ciência mais dialógica e comprometida com o público. Para tanto, valer-me-ei de contribuições teóricas de autores que refletem a Educação Popular.

Em nosso país, a Educação Popular, em alguns de seus momentos mais marcantes, esteve associada aos esforços voltados à alfabetização de adultos. Em 1963, o grupo liderado por Paulo Freire alfabetizou 300 adultos em apenas 45 dias na localidade de Angicos-RN. Apesar disso, como explica Inês Barbosa de Oliveira (2010, p. 105), "[...] podemos identificar sua origem, do modo como a compreendemos hoje, nos movimentos sociais nos anos 1950. O movimento estudantil teve ampla contribuição nesse sentido, com seus Círculos Populares de Cultura". Entretanto, a hoje famosa experiência de Paulo Freire em Angicos-RN e seus desdobramentos motivaram a intensificação das discussões que buscavam conceber políticas de Educação Popular.

O Círculo de Cultura, citado pela autora, era a dinâmica priorizada por Freire em suas aulas. Segundo o educador, ele

[...] não é um centro de distribuição de conhecimentos, mas um local em que um grupo de camaradas - numa sala de uma escola, numa salinha de uma casa, à sombra de uma árvore ou numa palhoça construída pela comunidade - se encontra, para, discutindo sobre sua prática no trabalho, sobre a realidade local e nacional, representada nas codificações, aprender a ler e a escrever também, se esse for o caso. (FREIRE, 1980, p. 145-146).

A aprendizagem da leitura aqui não deve ser entendida como a mera decifração de códigos escritos da língua, mas como o aprimoramento da leitura de mundo dos sujeitos envolvidos no diálogo. Essa era a premissa defendida por Freire: a aprendizagem da leitura da palavra deve ser atravessada pelo aperfeiçoamento da leitura de mundo, por meio de problematizações que ajudem a superar visões mágicas da realidade. Isso porque, "[...] historicamente, a Educação Popular - em sentido estrito, a educação do povo - foi concebida e praticada em oposição à educação da elite" (OLIVEIRA, 2010, p. 105) e a transformação social que ela almeja passa pela conscientização das classes populares de sua condição de alienação. Segundo o pesquisador Danilo Streck (2006, p. 273), "[...] a maioria dos educadores e das educadoras trabalha hoje com base no axioma de que a educação sozinha não transforma o mundo, mas que sem a educação também não haverá transformação". Esta máxima era repetida amiúde por Freire. A Educação Popular visava, assim, a empoderar os sujeitos das classes populares para transformar suas realidades. Tal como as verdades defendidas pela Ciência, as condições sociais podem e dever ser transformadas.

No entendimento de Brasão (2012), a educação popular pode ser tomada, em primeiro lugar

[...] como uma modalidade, uma extensão dos serviços da escola àquelas pessoas que não tinham acesso à educação ou que estavam à margem dela. Somente depois de algum tempo foi entendida como um conjunto de lutas para que a educação realmente fosse acessível ao povo. Ela não é uma atividade pedagógica para, mas um trabalho coletivo em si mesmo, ou seja, é o momento em que a vivência do saber compartilhado cria a experiência do poder compartilhado. (BRASÃO, 2012, p. 109).

Enquanto luta por democratização e trabalho coletivo que propicia a vivência do saber compartilhado e o empoderamento, a Educação Popular é sustentada pelo diálogo. A teorização de Freire dessa categoria fundamental à prática pedagógica por ele defendida foi feita principalmente em Pedagogia do Oprimido. Segundo Jaime Zitkoski (2015, p. 152, tradução nossa), nessa obra Freire "[...] elabora uma fundamentação teórico-filosófica sobre as condições do diálogo verdadeiro e seu papel central para uma educação liberadora". Trata-se de um "processo dialético problematizador" e é por meio dele que "[...] podemos ver o mundo e nossa existência em sociedade como processo, algo em construção, como realidade inacabada e em constante transformação" (ZITKOSKI, 2015, p. 152, tradução nossa).

O diálogo, portanto, e, sobretudo, a dialogicidade como condição para a transformação social, são elementos fundamentais da Educação Popular e que, no argumento defendido neste artigo, deveriam ser levados a cabo nas mais variadas instâncias da Ciência, propiciando a participação de cientistas em debates públicos tais como Círculos de Cultura. Na contemporaneidade, aliás, qualquer conhecimento produzido sem o mínimo de dialogicidade corre o risco de se tornar uma criação solipsista e inócua que pouco terá de ciência se levarmos em conta as demandas do paradigma emergente. Tento discutir aqui uma proposta de maximização da dialogicidade dos conhecimentos científicos e entre Ciência e sociedade tendo como base os pressupostos da Educação Popular e o ensino, seja ele formal ou não formal, é um processo propício para encetar essa dinâmica.

Os conhecimentos hão de ser colocados em diálogos entre sujeitos e entre conhecimentos. Tudo que se conhece e se quer conhecer há de ser esmiuçado no que diz respeito a seus objetivos humanitários, humanizantes, ecológicos e comunitários - assumindo as definições de cada termo trabalhadas anteriormente.

No que concerne à atmosfera propiciada pelo diálogo, tal como é entendido na Educação Popular, Carlos Rodrigues Brandão e Raiane Assumpção (2009) explicam que ele reduz a relação de alteridade entre educador/animador e educando. Segundo os autores, trata-se de:

Uma alteridade que se dissolve, não porque o educador venha a ser "como o povo", mas porque o seu trabalho tende a se tornar das classes populares e, portanto, não se esgota em uma permanente transferência de conhecimentos, que reproduz a dependência de um lado para com o outro, mas na possibilidade de que o próprio instrumento chamado "educação popular" venha a ser, na passagem de um polo ao outro, uma conquista do povo. Uma reapropriação não apenas de um modo de saber, mas do meio e do movimento que, entre outros, tornam possível a produção autônoma desse saber. (BRANDÃO; ASSSUMPÇÃO, 2009, p. 45-46).

Tal como o trabalho do educador/animador se torna das classes populares, do público a que seus esforços se destinam, o trabalho do cientista deve também ser apropriado pelo público não ficando restrito a uma comunidade científica fechada incapaz de dialogar com a sociedade e de atender às demandas sociais.

O diálogo que horizontaliza o processo de apropriação/instrumentalização do educando para a sua transformação e para a transformação da sociedade é o mesmo que aprimora o educador na qualidade de agente e transformador social. Analogamente, a urgência de dialogicidade do trabalho científico na contemporaneidade o aproxima do campo educacional. Uma ciência aberta ao público, participativa e provedora de instâncias dialógicas, ainda que a necessidade do diálogo estrito entre especialistas em certos casos deva ser respeitada, ao mesmo tempo que assume o compromisso imprescindível de dar feedback à sociedade e contribui com a formação humana, tende a incorporar nuances que a atribuem complexidade ao injetar-lhe o ânimo da socialidade. Ciência deve ser feita, em princípio, com intuitos humanitários, humanizantes, ecológicos e comunitários; deve procurar absorver estímulos que, além de a aproximarem destes, constituem potências para pensar as ciências. A Educação Popular traz consigo a defesa de uma postura que parece poder contribuir para que a Ciência se imbua de mais cientificidade - pois a nova ciência há de saber lidar com relações -, dando vigor aos conhecimentos que produz por meio do diálogo e do pendor para transformação e empoderamento de sujeitos. Para tanto, é importante colocar em jogo, como potências dialógicas, os objetivos formativos de tal prática e os poderes/fazeres/saberes dos diversos sujeitos envolvidos.

É preciso se encetar o diálogo desde os

[...] objetivos da ação formadora e esses poderes/fazeres/saberes, considerando não apenas o que "devemos" ser e fazer, mas, sobretudo, aquilo que "queremos/podemos" fazer, respeitando os limites e as possibilidades de alunos e professores, bem como a pluralidade que lhes é constitutiva, evitando as normatizações destinadas à rejeição pelos praticantes da vida cotidiana. (OLIVEIRA, 2010, p. 109).

Não é, portanto, um viés prescritivo e normativo que deve orientar o diálogo - em que animadores intelectualizados, em uma dinâmica hierárquica, ditam os modos apropriados de fazer leituras científicas -, mas uma disposição para a investigação compartilhada de poderes/fazeres/saberes a fim de produzir diferentes leituras. Nesse processo, os cientistas também aprendem a ler o mundo da vida. Aproximar-se de leituras diversas sobre seus trabalhos, de modo semelhante, tende a lhes ensinar sobre a imbricação complexa de seus poderes/fazeres/saberes.

Assim, é possível que o diálogo se inicie desde questões fundamentais que talvez venham sendo pouco refletidas no âmbito científico: seu compromisso com a sociedade e com a publicização dos conhecimentos que produz para além de um círculo fechado de pesquisadores. Ouso dizer que, se a Ciência faz parte de nossa cultura, Círculos de Cultura hão de ser também Círculos de Ciência e assumir a tarefa de produzir e proliferar ciências.

A primeira pessoa

Já venho utilizando a primeira pessoa do singular ao longo deste texto, mas isso talvez venha a se tornar mais patente nas palavras que se seguirão. Por muito tempo se pensou - e ainda se pensa - que o cientista deve manter um distanciamento do seu "objeto" de estudo na busca por certa neutralidade. Sequer creio que qualquer objeto de estudo possa simplesmente ser considerado "objeto". A objetivação pura e simples de algo o torna sem conexão com seu acontecer, tal como adverte Ingold (2012) e, mesmo que se trate do estudo de um mineral, por exemplo, embora este seja um ser inanimado, carrega consigo a essência viva de ser instável, mutável, influenciável, interacional. Ou, mesmo que o tomemos em outra perspectiva, embora não-vivo, no mínimo temos de considerar que ele participa do processo ativo de manutenção de um imenso sistema que se mantém propício para a vida: o planeta. Enfim, o que quero dizer é que "objeto" (seja uma rocha ou uma cultura específica) algum é passível de ser meramente objetificado, tornado asséptico a seu ambiente, reduzido a uma partícula em um sistema adiabático, pois, na natureza, isso simplesmente não existe. Tudo está em inter-retro-relação com todas as coisas e seres e insere-se em um contexto maior: a cultura, a natureza, o planeta, o cosmos. Note-se que a ciência que isola seus objetos se esquece de dialogar com tudo aquilo que estes dialogam.

O fenômeno específico a ser estudado, dessa forma, sempre terá a influência do sujeito que o pesquisa, neste caso, o "eu". Todas as palavras que profiro ou, melhor dizendo, aqui gravo em arquivo digital, são influenciadas por vivências que são minhas, por uma trajetória formativa e emotiva que me tornou pesquisador da Educação. Se utilizo dado adjetivo e não outro é porque eu penso que é mais condizente com aquilo que defendo ou argumento. Pode ser que outro sujeito não pensasse assim e optasse por adjetivo diverso do meu. Como Gérard Fourez (1995, p. 15, grifo do autor) opina em A Construção das Ciências: "De qualquer modo, o que me parece importante é que se esteja consciente de que existem múltiplas maneiras de pensar, de que a minha é particular, assim como a de meu leitor". Para dar conta do objetivo de deslindar o sentido humano da ciência, o autor aponta já no prefácio de sua obra a importância de situar seu leitor no pano de fundo em que pretende desenvolver sua argumentação. Nesse sentido, Fourez (1995) ressalta que todo e qualquer enunciado utilizado em seu texto deve ser entendido como o seu ponto de vista e, portanto, passível de ser confrontado pelo ponto de vista do leitor.

Eu, em síntese, utilizo as palavras do meu vernáculo, as quais eu aprendi, e construo o meu texto ora citando autores que eu li, ora recorrendo a palavras que são minhas e estão marcadas pela minha inserção em uma cultura específica e pelas minhas vivências particulares no âmbito dessa cultura. Assim, posso também dizer que "[...] minha cultura[/ciência] nutriu-se de minha vida e minha vida nutriu-se de minha cultura[/ciência]" (MORIN, 1997, p. 43).

Por outro lado, não há razão (portanto, não há ciência) pura. Toda sistematização racional do pensamento passa por filtros emotivos, por motivações da ordem dos sentimentos. Para Max Scheler (apudBAUMAN, 2009), o humano, antes de ser um indivíduo que sabe ou que deseja, é um ser que ama. O coração "tem suas próprias razões", razões essas que "a compreensão da Razão 'nada sabe e jamais poderá saber'" (SCHELER apudBAUMAN, 2009, p. 53). No entanto, embora a Razão não seja capaz de sistematizar certo amor (um impulso potente e apaixonado em direção a algo) que permeia os pensamentos tidos como puramente racionais, ele não deixa de ali estar, como motor do racionalizável. Indo ao encontro dessa concepção, Pascal Nouvel (2001) considera que o ato em si de dar especial atenção a um determinado tema ou escopo em uma investigação científica já denota um "gosto" por aquilo da parte do cientista.

Em suma, tendo exposto esses argumentos, creio ter ficado claro porque considero imprescindível a autodenominação dos sujeitos da Ciência em suas pesquisas. A produção do conhecimento não deve, a meu ver, falsear subjetividades e dissimular motivações que invariavelmente são pessoais, intersubjetivas ou públicas, mas sempre, de algum modo, motivadas por sujeitos. Ciência se faz entre humanos e para humanos: entre e para eus. Isso, convém prevenir, não deve significar que não-humanos não devam ser considerados e, sobretudo, respeitados e admitidos como outros de direito nesse processo.

A Ciência em primeira pessoa: defendendo o diálogo de eus

A minha ciência advém do encontro de circunstâncias do entrecruzamento de todos meus caminhos. Ela é toda sorte das minhas essências em um borrifar de vida, se é que posso apelar para essa linguagem que transvaza certa emoção, certa paixão. Meu jeito próprio de tentar produzir saberes-fazeres educacionais é forçar diálogos problematizadores e levantar suspeitas sobre qualquer coisa que pareça "natural/normal". E, se pudermos problematizar/suspeitar, também somos capazes de transformar e nos transformarmos nesse processo. A Ciência em primeira pessoa, a meu ver, resgata o desejo de transformação do cientista e o aproxima da emoção que funda o diálogo. Aberta ao público, a Ciência pode ser um convite à transformação. A minha ciência é obviamente minha, mas eu não sou exclusivamente eu, sou em grande parte fruto de tudo aquilo que incide sobre mim em vida e toda minha ciência, por esse motivo, só faz sentido em sociedade.

É no próprio trilhar que se refaz minha ciência de tudo. O método desse fazer científico é "um caminho que se faz ao andar" (MACHADO apudMORIN, 1997), uma ciência que se faz ao conviver com os outros, uma vida que se refaz semanticamente na própria experiência do viver, recientifizando-a no fluir do ato de estar vivo e trilhando as múltiplas vias que propiciam encontros.

Por sua vez, esse ambiente que cientificizo (e todos inarredável e, às vezes, imperceptivelmente, cientifizamos) é o corpo maior no qual me movimento, o qual integro e inevitavelmente me impregna de si em todo e qualquer quefazer meu. A ciência de cada indivíduo advém de uma conjuntura semelhante ao que Karl Mannheim (1982, p. 156) chama de milieu: "[...] uma combinação sui generis de fatores causais típicos". Milieu se traduz por "meio", mas é importante ressalvar que, embora aparentemente ele possa ser comum a todos, representa uma combinação sui generis para cada sujeito que o interpreta. Trata-se de um meio comum, mas que dá margem a um universo semântico bastante abrangente e ao mesmo tempo singular para a percepção de cada indivíduo. Mais do que isso, embora possa estar imerso em um meio comum, cada indivíduo defrontar-se-á com uma combinação sui generis de acontecimentos-subjetivações, ou seja, vivenciará de modo singular toda e qualquer experiência. Os fatores causais da ciência de cada indivíduo serão justamente os que instigarem a sua consciência de inacabamento e o seu desejo de transformação. Esse meio provedor de uma multiplicidade de leituras requer dialogicidade e eus que lêem o mundo sob a influência de sua trajetória. E, mesmo que falte rigor a certas leituras, elas poderão ensinar paixões à Ciência. A ciência de cada indivíduo é fruto do caminho que ele percorre, brota de seu percurso de aprimoramento enquanto sujeito humano e, em certos casos, do desejo de transformação de suas condições de vida. Passa pela faculdade do indivíduo de aperceber-se de que se constitui como sujeito social por meio da busca de certas ciências e de que estas só fazem sentido na práxis social que lhe aufere consciência. Dessa maneira, a Ciência precisa agir para aproximar consciências.

Se a postura erudita calcada em uma série de parâmetros pré-estabelecidos cientificamente é pré-requisito para obtenção do estatuto de cientista, isso se deve, como bem mostra Pierre Bourdieu (2004), ao fato da instituição ciência ser um campo de luta por legitimidade e obtenção de capital científico, sendo esse capital, para o autor, fundado em lutas por conhecimento e reconhecimento que proporcionam autoridade, além de contribuir "[...] para definir não somente as regras do jogo, mas também suas regularidades, as leis segundo as quais vão se distribuir os lucros nesse jogo" (BOURDIEU, 2004, p. 27). Desse modo, para Bourdieu (2004, p. 25), "[...] os agentes [cientistas] fazem os fatos científicos e até mesmo fazem, em parte, o campo científico, mas a partir de uma posição nesse campo". São, em outras palavras, os próprios cientistas que se enclausuram em seus rijos padrões de cientificidade - e, com isso, ilham-se do social. Clamo por uma Ciência menos solipsista que, segundo o argumento que defendo, tenderá inclusive a lucrar em termos de capital científico, ainda que talvez certas fronteiras se esvaeçam.

Cabe esclarecer, em contrapartida, que a referida práxis propiciadora de consciência requer o "[...] confronto de necessidades antagônicas, a criação de uma realidade nova dentro e fora de nós, na qual o imaginário em parte se encarna e se transmuta, na qual o real se dilacera e se entreabre" (MORIN, 2010, p. 39). Sendo a práxis esse processo de reconstrução do real, a erudição sistematizadora apenas encerra conhecimentos potencialmente transformadores.

Como eu, todo sujeito faz, estando no mundo e singrando seus próprios caminhos, sua ciência. Dessa forma, uma deontologia do conhecimento pertinente - reconhecedor da ciência como o conjunto de saberes indiscriminadamente conectados; que assume o enfrentamento de incertezas e provisoriedades - iniciar-se-ia pela máxima: toda ciência deve se capacitar para a apreensão de problemas globais e para o uso de "conhecimentos parciais e locais" em suas resoluções (MORIN, 2000). Logo, os saberes populares e a ciência de cada indivíduo devem ser considerados como elementos potenciais de um conhecimento pertinente e devem ser postos em diálogo com os conhecimentos científicos em prol de ambos.

Ciência aberta ao público: o diálogo e a necessidade de uma postura reconhecedora de múltiplos saberes

A ciência como sistema de conhecimento (que deve estar permanentemente aberto) deve ser convidativa a todo tipo de saberes, os quais devem buscar legitimação e aprovação na esfera social de modo aberto e dialógico e não se restringir a uma comunidade de intelectuais muitas vezes assepticamente alheia aos interesses públicos. Todo e qualquer cientista formal, intelectual, deve estar atento às implicações humanitárias, humanizantes, ecológicas e comunitárias de suas práticas de pesquisa, do contrário, como nos adverte Gérard Fourez (1995), nossa sociedade estará produzindo uma "[...] classe média de cientistas técnicos, apolíticos, incapazes de enfrentar significações humanas de suas vidas profissionais e confinando seus questionamentos éticos a sua vida profissional e privada" (FOUREZ, 1995, p. 24).

Por outro lado, faz-se mister considerar o quesito do improvável, o elemento estranho que, porventura, surge no contexto de uma pesquisa, o método ou resultado incomum e fora da ordem em voga em uma comunidade intelectual rija e herdeira de um paradigma ultrapassado. Esses aspectos excepcionais que comumente vem à tona no próprio processo dialógico, antes de serem rechaçados como absurdos pelo simples fato de não condizerem com as teorias e os métodos em vigor, devem ser acolhidos como possibilidades (desde suas potencialidades científicas), como alternativas para se pensar dado problema de outro modo. São leituras que podem ampliar o repertório científico.

É preciso acolher o pretenso absurdo como um ponto de vista particular dotado de certa cientificidade e que merece avaliação científica. Cabe ressaltar que as grandes descobertas científicas contradisseram verdades tidas como incontestáveis em suas épocas. Das propostas que enfrentaram a incerteza e conviveram com a desconfiança que, na maior parte das vezes, advieram inovações. No entanto, a Ciência Moderna, em sua busca alucinada pela neutralidade legitimadora do real, imergiu em um universo de dogmas e:

Tanto nas ciências naturais como nas ciências humanas, o conhecimento mergulha na ideologia, com ortodoxias, alegações gratuitas e rejeições cruéis logo que marginas e desviantes se exprimem. Ao mesmo tempo, o espírito disciplinar leva a uma compartimentalização da inteligência. Acredita-se que a fronteira da disciplina é a fronteira da realidade, que só e real tudo o que se deixa formalizar ou modelar pelos instrumentos lógico-matemáticos, cortam-se as cabeças, os sexos e os membros á faca, rejeita-se como dejetos e imundície o que é manifestação de vida. (MORIN, 1997, p. 214).

É nessa óptica que os desviantes são tachados de incultos ou loucos e têm suas vontades de vida e de criação ignoradas, sendo marginalizados em periferias científicas ou em campos de refugiados da não-ciência. Todavia, a experienciação inerente ao trabalho e à arte, por exemplo, requer ciência. Ciência de como se faz arte e de como se trabalha. A busca científica, por sua vez, ao mesmo tempo constitui um trabalho e uma arte. Ela é, concomitantemente, o esforço contínuo de sistematizar saberes que envolvem o refazer e o recriar. Nesse viés, o saber adquirido na experienciação também constitui a ciência do indivíduo, seja a partir da arte, seja a partir do trabalho. De certa forma, é espantoso pensar que o empirismo do ser que habita o mundo experimentando-o e, com isso, constrói a sua ciência é, desgraçada e invariavelmente, rotulado de um não-método, de um mero conhecimento menor sem rigor, mesmo que extremamente coerente na sustentação da sua experiência e de saberes-fazeres que propiciam a transformação. É tanto nessa abertura metodológica quanto no convite ao diálogo com os saberes proscritos que reside essa demanda de transmutação da ciência. Não obstante:

Passar de uma forma a outra sem explodir, manter a união entre os fragmentos do imprevisível, requer capacidade de intuição e de imaginação, que sempre estiveram encerradas em áreas segregadas, às quais só ocasional e excepcionalmente acedemos: o sonho, o jogo, a arte e a loucura. (MELUCCI, 2004, p. 73).

É justamente nesse sentido que cabe trazer à tona a importância do diálogo, desta vez, no entanto, com a arte. A instância artística traz consigo a capacidade de ensinar a instituição ciência a incorporar aspectos imaginativos, intuitivos e criativos, potencializando, assim, sua aptidão de apreender a complexidade do real com as incontáveis facetas que ele encerra. A postura científica no diálogo com a arte deve ser a mesma: acolher e proliferar leituras em um círculo dialógico. Por outro lado, a arte em si não existe sem trabalho e sem ciência, bem como o trabalho é em grande medida uma práxis artística, pois consiste também em uma recriação constante, em uma reinvenção da habilidade de colocar o conhecimento em prática.

A ciência individual do sujeito que, trabalhando, recria pelo seu trabalho o mundo da vida, interliga esses saberes-fazeres artístico-laborais e os torna possíveis enquanto estes últimos retroagem sobre a ciência de cada um, recientifizando-a. A par disso, a ciência na qualidade de instituição não deve se fechar ao que é tido como improvável, não-comprovável ou que seja expresso por uma linguagem alheia a sua. Relegar saberes não objetiváveis, que sustentam meios legítimos de habitar o mundo, ao rol de saberes infrutíferos é cientificamente improdutivo do ponto de vista ecológico e, consequentemente, em termos humanizantes, humanitários e comunitários. Em todo saber reside ciência e todos os conhecimentos são passíveis de sistematização coerente (isso quando já não são sistematizados coerentemente), desde que se lancem, os sujeitos ditos cientistas e os não formalmente assim reconhecidos, à ágora a fim de recientifizar-se, recientifizando a própria Ciência e as ciências marginalizadas.

Cabe, neste ponto, destacar alguns argumentos de Richard Rorty (1997) que parecem ir nessa direção e contribuir profundamente na construção de uma ciência pública, ou, como ele prefere chamar: solidária. De acordo com o autor, a própria noção de racionalidade deve ser repensada. A razão enquanto atitude sadia e razoável, que implica a tolerância e promove a civilidade, deve estar à frente da razão entendida sob o ponto de vista metódico e instaurador de critérios de validade rijos. Nesse sentido, Rorty (1997) defende uma racionalidade que zele pela preservação e pelo aprimoramento da civilização em que "[...] a lealdade final de cada uma [das disciplinas científicas] seria para com a comunidade mais ampla" (RORTY, 1997, p. 67), comunidade esta encorajadora do borramento das fronteiras disciplinares em prol de uma sociedade democrática e de uma ciência solidária. A nova racionalidade, em lugar do desejo por objetividade, deve ser entendida como o esforço para o estabelecimento máximo de civilidade e tolerância onde não haveria "[...] necessidade de uma fundamentação mais sólida do que a lealdade recíproca" (RORTY, 1997, p. 68).

Nessa perspectiva, Rorty (1997, p. 56) defende a ideia de que "[...] nós precisamos parar de pensar na ciência [enquanto instituição formal] como o lugar onde a mente humana enfrenta o mundo". Em vez disso, ela deve ser tomada como uma esfera de pesquisa ampliada que desbrava os caminhos do conhecimento a partir de múltiplos pontos de vista e com finalidades bem definidas de obter benefícios sociais pragmáticos.

No que concerne à contemplação de uma pluralidade de perspectivas e da promoção de uma cultura de tolerância, há de considerar-se o diálogo como recurso crucial. Os diálogos de saberes, nesse viés, respaldados pelas propriedades requeridas para que sejam de fato producentes de uma ciência democrática, podem fundar uma ciência aberta que seja intersubjetiva, intercultural e social. A dialogicidade, assim, deve pressupor: a recursividade, o reconhecimento da historicidade, a rotatividade, a retroatividade, a diversidade e a flexibilidade (em um sentido que abrange o respeito à diferença e a capacidade de fletir-se ao diverso e ao ainda-não-pensado). Nessa óptica, transcende a própria dialética e, além de pressupor o irremediável, a transformação e a oposição, reconhece a realidade como indicotomizável, promovendo a partilha de uma multiplicidade de caminhos que se ressignificam em seus entrecruzamentos.

A dialogicidade da nova ciência pressupõe, assim, uma dialógica a priori, no sentido de considerar a oposição-para-transformação/reflexão sempre bem-vinda e, a posteriori, a admissão de uma metodologia científica líquida, isto é, agregadora de vias metodológicas múltiplas que escoem de forma que conhecimentos encontrem seus caminhos nas torrentes, abrindo novos leitos, imiscuindo-se com outros saberes, desviando-se, dissolvendo-se em terra-firme ou nela se infiltrando, desaguando no oceano de incertezas (em uma abertura epistemológica), represando-se em algum lugar específico da orla, ora evaporando para novamente precipitar-se, ora solidificando-se muito ao sul ou ao norte dos territórios de embates de conhecimentos liquefeitos, mas sempre voltando a se liquefazer de tempos em tempos.

A dialogicidade funda uma ciência que assume compromisso com o social e que não há de recair em excessos dogmáticos de objetivação, mas que, como afirma Edgar Morin, tende a reconhecer que se "[...] a objetividade corre o risco de romper com o contato vital que nos liga ao real", é preciso estarmos permanentemente vigilantes, pois também "[...] a subjetividade corre o risco de voltar-se sobre si e fazer-se quimera, outro desligamento do real" (MORIN, 2010, p. 35).

Desse modo, reconhecendo que o isolamento para objetificação faz pouco sentido, pois a ciência é feita por sujeitos e sujeitos se constituem intersubjetivamente, deve-se ter em conta que o outro excesso, o da subjetivação, pode ser igualmente iludível. Nesse viés que aqui é colocada a importância de se encetar a discussão sobre uma ciência pública que dialogue com o âmbito social, reconhecedora e aberta à subjetividade, mas pragmaticamente voltada à cientificização do público. Como já mencionado, não se trata de rechaçar a objetivação muitas vezes pertinente e necessária nem, no polo oposto, de elevar a subjetividade a uma espécie de Olimpo científico, mas de debater sobre as possibilidades de se promover uma abertura científica que dialogue com uma comunidade mais ampla (RORTY, 1997) - a sociedade - a fim de aglutinar em uma mesma ágora a diversidade de agentes envolvidos no saber-fazer-usufruir-poder científico. As experiências da Educação Popular e os pressupostos que a orientam podem servir de fulcros à dinâmica aqui proposta que possui, a um só tempo, caráter pedagógico e científico.

1Propositalmente, neste artigo, todo conhecimento alheio aos moldes da instituição ciência e construído com métodos distintos desta será também chamado de "ciência". O objetivo não é colapsar a ciência e defender a ideia de um "saber geral" (uma espécie de nova ciência onde tudo valha), mas lançar uma provocação no sentido de que talvez a reconexão da ciência com o social passe pelo ato de repensar a forma de ver e de considerar os saberes que dali advém e ali são nutridos.

2O cientista, invariavelmente, constituirá direta ou indiretamente o seu próprio ambiente de observação. Em alguns tipos de pesquisa, isso se torna mais patente como aquelas que requerem entrevistas com atores sociais e pesquisas etnográficas de modo geral. A simples presença do pesquisador, nesse caso, influencia o modo de agir/depor dos sujeitos pesquisados. Essa distorção pode se tornar ainda maior quando são utilizadas algumas ferramentas de registro tais como gravadores, câmeras fotográficas e filmadoras. Não raro, os depoentes se sentem ainda mais coagidos frente a esse tipo de aparato. Já em pesquisas de laboratório, por exemplo, essa influência é mais oculta. Tenta-se, de todo modo, neutralizar o fator humano (e ambiental): isola-se o "objeto" do seu ambiente e se instrui o "sujeito" ao posicionamento imparcial, cético, que visará a descrever tão somente o verificável. No entanto, não há imparcialidade no agir humano bem como a simples opção [humana] pelo isolamento do objeto constitui uma intervenção já em si parcial que, em muitos casos, distorce a verdadeira natureza ou comportamento do "objeto" pesquisado, pois o próprio isolamento rouba-lhe aspectos muitas vezes relevantes do seu modo de ser-estar quando em relação.

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Recebido: 29 de Maio de 2018; Revisado: 09 de Outubro de 2018; Aceito: 12 de Outubro de 2018

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