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Práxis Educativa

versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.14 no.1 Ponta Grossa ene.-abr 2019  Epub 17-Abr-2019

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.14n1.019 

Artigos

"Esta mesa redonda é quadrada": a gestão democrática no contexto da democracia burguesa

"This round table is squared": democratic management in the context of bourgeois democracy

"Esta mesa redonda es cuadrada": la gestión democrática en el contexto de la democracia burguesa

Anita Helena Schlesener* 

*Doutora em História. Foi professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e, atualmente, é docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Tuiti do Paraná. Email: <anitahelena1917@gmail.com>.


Resumo:

Este artigo objetiva apresentar algumas observações sobre o conceito de gestão democrática e seu significado no contexto das políticas educacionais. As notas apresentadas implicam esclarecer de qual gestão e de qual democracia se fala, para não correr o risco comum de escrever no vazio. Para tanto, retomam-se os conceitos de hegemonia e democracia dos Cadernos do Cárcere, de Antonio Gramsci, para acentuar que uma democracia efetiva implica a superação da separação milenar entre dirigentes e dirigidos.

Palavras-chave: Democracia; Gestão; Gestão democrática; Gramsci

Abstract:

This paper aims to present some observations about the concept of democratic management and its meaning in the context of education policies. The notes presented imply clarifying which management and which democracy is spoken about, so as not to run the common risk of writing in the void. To that end, the concepts of hegemony and democracy of the Prison Notebooks, by Antonio Gramsci, is recovered, in order to emphasize that an effective democracy implies overcoming the millenarian separation between leaders and led.

Keywords: Democracy; Management; Democratic management; Gramsci

Resumen:

Este artículo tiene como objetivo presentar algunas observaciones sobre el concepto de gestión democrática y su significado en el contexto de las políticas educativas. Las notas presentadas implican aclarar de qué gestión y de qué democracia se habla, para no correr el riesgo común de escribir en el vacío. Para ello, se retoman los conceptos de hegemonía y democracia de los Cuadernos de la Cárcel, de Antonio Gramsci, para acentuar que una democracia efectiva implica la superación de la separación milenar entre dirigentes y dirigidos.

Palabras clave: Democracia; Gestión; Gestión democrática; Gramsci

Introdução

Toda a linguagem é um contínuo processo de metáforas [...] a linguagem é, ao mesmo tempo, uma coisa viva e um museu de fósseis da vida e das civilizações. (GRAMSCI, 1978, Q. 11, p. 1438).

Este artigo pretende apresentar algumas observações sobre o conceito "gestão democrática" e seu significado no contexto da democracia burguesa. O motivo que nos move é constatar os limites desse conceito no âmbito dos debates em torno das políticas educacionais. Salientamos que não pretendemos fazer revisão de literatura, visto que muito já se escreveu sobre esse conceito, embora a maioria das vezes de forma abstrata, pois escreve-se sobre políticas públicas e gestão da educação sem sequer fazer uma referência à situação política real, na qual a democracia tem limites e fragilidades impostos pela estrutura econômica que se expressa em relações sociais desiguais e contraditórias.1 Pretendemos apenas explicitar o significado desses dois termos a partir de uma retomada dos conceitos de hegemonia e democracia presentes nos Cadernos do Cárcere, de modo a salientar que não se trata de uma abordagem utópica, visto que a gestão democrática na perspectiva gramsciana se fundamenta na experiência dos Conselhos de Fábrica, experiência que os trabalhadores italianos viveram em 1920, a partir de sua leitura da Revolução de Outubro de 1917.

Trata-se, ainda, de explicitar que são notas sobre gestão democrática, que implicam partir da diferenciação entre pequena política e grande política:2 a primeira refere-se a políticas de governo, no âmbito das quais se efetiva a gestão; a segunda pressupõe que, na democracia burguesa, a gestão se limita pelo caráter de classe do Estado, dependente da natureza de classe que caracteriza a sociedade moderna. Nesse contexto, governar não significa assumir o pleno exercício do poder, visto que, por meio da estrutura do Estado, na sociedade burguesa, o poder se exerce no sentido de garantir a ordem. A gestão, portanto, não se reduz ao mero exercício do poder estatal, mas implica pressupor que tudo é política, ou seja, que todas as ações se caracterizam, por um lado, em consolidar e reproduzir determinadas relações de poder; e, por outro, em transformar e subverter a ordem, dependendo de nossa posição na luta de classes.3

O problema da gestão não é apenas de diretriz política de governo, da funcionalidade das políticas públicas e sua realização prática, mas de como a gestão expressa um projeto de sociedade e de como reflete as mudanças que ocorrem a partir do modo como os grupos sociais se inserem na vida produtiva da sociedade (GRAMSCI, 1978, Q. 15, p. 1807). Portanto, falar de gestão democrática pressupõe dizer de qual gestão e de qual democracia se fala, visto que a grande política compreende a natureza do Estado e sua tarefa, na sociedade burguesa, de defender e conservar determinadas estruturas econômicas e sociais. Se não se explicita a posição política da qual se parte, se fala sempre em abstrato mistificando a realidade, visto que falar em abstrato significa apoiar-se em uma forma sem conteúdo.

Falar em "gestão democrática" a partir de Gramsci implica, por isso, em explicitar os conceitos de hegemonia e de democracia e mostrar que esta última não tem apenas uma dimensão administrativa ou governamental, visto que a democracia política é mera aparência ilusória se não for acompanhada de democracia social e se não pressupor a superação da desigualdade.4

A metáfora da mesa redonda, que Gramsci pretendia desenvolver como tema de sua Láurea5, sugere-nos uma senda ainda não percorrida nos trabalhos que temos apresentado com base nos escritos do autor sardo. A afirmação de que a mesa redonda é quadrada nos leva a fazer algumas considerações que vão muito além da visão imediata do problema lógico que se evidencia à primeira leitura: porta-nos ao cerne da questão da gestão democrática.

É conhecida a lenda da "Tavola Rotonda", a história que contam ter ocorrido na Inglaterra, em Camelot, no início do século VI ou VII6, em que o Rei Artur, para bem governar, chamou seus cavaleiros (ou ministros) a ocuparem um lugar ao seu lado na mesa redonda, símbolo da paridade na distribuição do poder. Ao recorrer a essa metáfora, levantando a questão da quadratura da mesa, Gramsci convida-nos a buscar os múltiplos significados que ela pode apresentar, lida por ele na perspectiva da importância da gramática no ensino escolar, mas que nos sugere colocar em discussão a noção moderna de democracia e nos remete a explicitar esse conceito, que aparece em vários momentos dos Cadernos.

Iniciamos com uma citação do Caderno 8, em que Gramsci salienta que existem vários significados de democracia, sendo o mais realista e concreto aquele que se deduz em relação ao conceito de hegemonia. "No sistema hegemônico existe democracia entre o grupo dirigente e os grupos dirigidos na medida em que (o desenvolvimento econômico e, portanto) a legislação (que exprime este desenvolvimento) favorece a passagem (molecular) dos grupos dirigidos ao grupo dirigente" (GRAMSCI, 1978, Q. 8, p. 1056).

O primeiro ponto a esclarecer a partir dessa afirmação é que a política de governo (ou o Estado como legislador) exprime a estrutura econômica e seus interesses de desenvolvimento, ou seja, o elo indissolúvel entre economia e política; segundo, existe democracia quando os grupos dirigidos possuem as condições de se tornarem dirigentes, ou seja, a concretização da democracia implica a participação popular autônoma. Essas questões remetem-nos a outras, como as que se apresentam no Caderno 15, sobre a formação dos dirigentes, na qual há uma premissa fundamental que é: se quer que existam sempre dirigentes e dirigidos ou se deseja criar as condições a partir das quais essa divisão desapareça? Nas relações políticas, tem-se como pressuposto a eterna divisão do gênero humano ou se acredita que essa divisão é um fato histórico e, portanto, pode desaparecer?7 Toda a filosofia e a arte política devem partir dessas premissas e a sua base é a divisão social do trabalho (GRAMSCI, 1978, Q. 15, p. 1752). Aqui Gramsci esclarece que a origem das divisões políticas se encontra na estrutura econômica da sociedade. Esquecer esse pressuposto implica apresentar uma definição abstrata de democracia e, consequentemente, de gestão democrática. A abstração caracteriza-se por uma forma sem conteúdo, ou seja, um discurso vazio.

Desse contexto depreende-se que a leitura da metáfora da mesa redonda quadrada pode ser entendida como a proposta de uma nova prática de governo que tem de estar necessariamente articulada a um novo projeto de sociedade. Dessa perspectiva, a nova gestão implícita na atitude do Rei Artur não pode se fechar na ação dos dirigentes e na paridade de poder entre eles, mas precisa abrir-se a um envolvimento coletivo das massas, que se traduz na ideia de uma verdadeira democracia.

A partir desse esboço inicial, a primeira parte deste artigo traz, da grande obra do político sardo, algumas notas sobre hegemonia e democracia, de forma a acentuar os limites da participação política das massas nas sociedades modernas a partir da extrema desigualdade social instaurada pelo modo de produção capitalista e as novas formas de dominação que implicam a expansão da ideologia como prática de poder. A partir de Dias (2014, p. 28), as novas dimensões da ideologia fortalecem "[...] o domínio de uma classe (e de seu bloco de poder) determinando o que pensar, o que estudar e até mesmo o que e como amar", em um processo ampliado de supressão das diferentes culturas pela implementação de um modo de vida condizente com os interesses do capital.

A segunda parte apresenta algumas notas sobre a democracia burguesa a fim de explicitar seus limites como gestão pública voltada aos interesses de classe que visam a ampliação da exploração e da expropriação do trabalho. Retomamos aqui a leitura de Gramsci e a interpretação de Burgio (2014), para esclarecer como a democracia burguesa, em seus "procedimentos formais funcionais", gera uma prática fictícia da democracia, mascarando as diferenças sociais e ignorando a extrema desigualdade social gerada pelo modo de produção capitalista, de modo que o que se entende por "democracia" não passa de "[...] uma estrutura de poder essencialmente oligárquico e autoritário, resolvendo-se em um sistema de formas públicas de proteção dos poderes essencialmente privados" (BURGIO, 2014, p. 341). A democracia como uma estrutura oligárquica e autoritária, mas que aparece como a política que garante os direitos individuais subjetivos como naturalizados.

A terceira parte aborda a leitura gramsciana das relações de poder entre dirigentes e dirigidos, mostrando como uma gestão democrática não pode ignorar a existência dos dirigidos e nem os excluir do processo de gestão. A proposta de gestão democrática de Gramsci parte da experiência dos Conselhos de Fábrica e nos remete à experiência dos primeiros anos da Revolução Russa, o grande evento que marcou o século XX e que mostrou a possibilidade de uma nova ordem social e política, mudando radicalmente a correlação de forças entre as classes na sociedade capitalista.

Na conclusão, retomamos a metáfora inicial para acentuar que a noção de gestão democrática no contexto da obra de Gramsci vai muito além da paridade de poder no âmbito da estrutura de governo e implica necessariamente a inclusão das classes populares no processo político, de forma ativa e operante, em seus movimentos sociais de origem espontânea, pelos quais se pode construir uma democracia efetiva.

Notas sobre hegemonia e democracia no âmbito da sociedade moderna

A hegemonia traduz a dupla natureza do Centauro: ferina e humana, força e consenso, violência e civilidade... (GRAMSCI, 1978, Q. 13, p. 1576).

O conceito de hegemonia perpassa os Cadernos e apresenta-se como central para entender a noção de democracia que, de forma geral, é utilizada para denominar a democracia burguesa como se esta fosse a única e ideal para todos. Gramsci faz a leitura da história da Revolução francesa e do Risorgimento italiano para mostrar que a democracia burguesa está longe de ser o ideal para as classes trabalhadoras.

O conceito de hegemonia, ancorado na luta de classes, apresenta dois significados principais: do ponto de vista dos grupos dominantes, a partir da estrutura da democracia burguesa, a hegemonia se mantém pela produção de um consenso passivo pela formação da opinião pública como "pensamento autônomo" do indivíduo "cidadão", mascarando as relações de poder que fazem dos subalternos meros assistentes passivos do exercício do poder. O individualismo, conteúdo da democracia parlamentar, tem o "[...] significado preciso de 'apropriação individual' do lucro e da iniciativa econômica para o lucro capitalista individual" (GRAMSCI, 1978, Q. 14, p. 1742). Assim, tem-se de considerar sempre a relação entre econômico, político e ideológico, embora essa relação seja mistificada.

Já da perspectiva dos trabalhadores ou dos grupos subalternos, a luta pela hegemonia significa enfrentar cotidianamente a luta de classes, nas suas múltiplas formas, para superar as ilusões geradas pela ideia burguesa de democracia e de gestão, o que implica empenhar-se na organização política formando um consenso ativo como pensamento autônomo voltado a um outro projeto de sociedade (GRAMSCI, 1978, Q. 13, Q. 15, Q. 25). A unidade das classes subalternas precisa ser construída no interior da sociedade pela organização política e pela formação de um novo modo de pensar autônomo; uma unidade que se produz no processo educativo resultante da organização política.

Conforme Dias (1996, p. 10), a "[...] capacidade que uma classe fundamental (subalterna ou dominante) tenha de construir sua hegemonia decorre da sua possibilidade de elaborar sua visão de mundo própria, autônoma". Essa capacidade permite distinguir-se, firmar uma identidade de classe e contrapor-se às demais classes sociais com um projeto de sociedade.

Essa senda pode ser seguida no curso dos Cadernos: na afirmação do elo entre econômico e político, relação mantida e ampliada pela mediação do Estado e garantida por mecanismos ideológicos de formação do modo de ser e de pensar da sociedade para a adesão passiva ao projeto político dominante (GRAMSCI, 1978, Q. 13). E, ainda, na fragmentariedade e heterogeneidade dos grupos subalternos a serem superadas na luta pela hegemonia.

A importância da ideologia no âmbito da democracia burguesa está na formação do modo de pensar e na manutenção da crença de que o Estado representa toda a sociedade e funciona separadamente da economia. Essa visão de mundo compõe-se do mascaramento da desigualdade social pela naturalização das relações sociais como base do funcionamento da sociedade - um quadro que se completa com o individualismo exacerbado e a crença de que cada um tem uma participação igual no processo de escolha dos dirigentes. Esses pressupostos permitem mostrar o conflito social como um mal gerado por vontades individuais e a luta de classes como uma invenção da classe trabalhadora.

Na realidade, as relações sociais geradas a partir da divisão social do trabalho e do desenvolvimento do modo de produção capitalista impõem às classes trabalhadoras a luta de classes como forma de resistência à dominação e como meio de garantir pequenas conquistas no interior dessa sociedade; uma luta, portanto, que não foi inventada nem escolhida pelos trabalhadores, mas imposta pelo modo de produção capitalista (DIAS, 2014). Da perspectiva dominante, porém, a política é entendida de um ponto de vista moral, que naturaliza as relações sociais, subtrai as ideias de seu contexto histórico e penaliza os subalternos.

Os conceitos de hegemonia e democracia precisam ser entendidos no movimento dialético que forma a totalidade do social na sua formação estrutural. Como acentua Dias (1996, p. 11), a estrutura "[...] jamais pode ser pensada como exterioridade em relação às práticas das classes, que são produtoras e produtos da estrutura e não meramente os seus efeitos". Do mesmo modo, a gestão democrática fica limitada se a pensarmos sem o pressuposto da estrutura material no movimento da divisão social do trabalho e sem explicitar o verdadeiro caráter do Estado no contexto da sociedade moderna.

A democracia burguesa, na sua forma parlamentar, funciona regulamentada por uma estrutura jurídica que, na sociedade capitalista, atua como a "expressão organizada das 'aparências' (do mercado)", cujas categorias abstratas ocultam a desigualdade social e as relações de exploração da força de trabalho na "extorsão do mais-valor" (EDELMAN, 2016, p. 30). Toda a estrutura jurídica, se bem analisada, coloca o homem em segundo plano para a garantia do direito patrimonial. Nesse contexto, os conceitos mais abstratos são os de liberdade e igualdade, a eles se agregando o próprio conceito de democracia.

Gramsci (1978, Q. 13, p. 1625), acentua que, em qualquer pleito, "[...] não é verdade que o peso das opiniões singulares seja 'exatamente' igual. As ideias e as opiniões não 'nascem' espontaneamente no cérebro de um indivíduo singular". As opiniões e ideias "[...] têm um centro de formação, de irradiação, de difusão e de persuasão" a partir de grupos ou mesmo de indivíduos que as elaboram e as apresentam "na forma política da atualidade". A igualdade política não existe se não se tem igualdade econômica, já dizia Marx em A Questão Judaica. Entretanto, a partir de uma abstração das reais relações sociais e de uma naturalização do conceito de democracia, a crença na igualdade dos indivíduos não é posta em questão.

No âmbito da democracia burguesa, a partir dos limites acima explicitados, a cultura, a educação e a religião tornam-se instrumentos de formação da opinião pública e traduzem-se na formação de um consenso passivo. Conforme Dias (2014, p. 20), consenso, para os dominantes, significa "acordo", adesão por meio de alianças que, de um modo ou de outro, diluem e ocultam a luta de classes. Um acordo pressupõe que as partes que o realizam sejam iguais em natureza (como no contrato de trabalho)8, o que não acontece na realidade capitalista, de modo que todo acordo, no fundo, torna-se uma nova forma de subordinação dos subalternos.

Esse mecanismo de manutenção da subalternidade reforça a ideologia que se expande no senso comum, no modo de pensar e de ser das massas. O caráter de classe das relações sociais, mistificado, gera a possibilidade de conservar a hegemonia. O "[...] Estado, quando quer iniciar uma ação pouco popular, cria preventivamente a opinião pública adequada", utilizando, para isso, os novos meios de comunicação de massa (DIAS, 2014, p. 20).

Os conceitos de hegemonia e de democracia, nos seus limites, explicitam-se melhor se esclarecemos a relação entre dirigentes e dirigidos, base para entender-se a questão da gestão democrática. A "mesa redonda", na realidade da sociedade burguesa, não pode deixar de ser "quadrada" - uma ilusão na qual se acredita a partir das abstrações que se fazem no âmbito dos discursos que não explicitam os fundamentos da sociedade burguesa. Abstraídos do contexto e naturalizados, os conceitos permitem manter uma aparência conciliadora e dificultam identificar as contradições e os interesses econômicos e políticos que subjazem a uma realidade desigual e autoritária. Na luta pela hegemonia, as classes subalternas precisam ter clareza de sua situação e de seus objetivos, de modo que a questão do conhecimento e da linguagem se tornam fundamentais para se construir a emancipação política e humana, o que implica em novas experiências de sociabilidade e de democracia.

Notas sobre a democracia burguesa a partir da crítica gramsciana

O poder distorce a visão dos céus impondo seus pesados telescópios sobre certas áreas, de modo que sua importância se amplia, obstruindo outras de forma avassaladora, que ficam completamente invisíveis. (BUCK-MORSS, 2000, p. 51).

Falar em "democracia" implica esclarecer de qual democracia se fala: a única que conhecemos e vivenciamos é a democracia burguesa e, portanto, é dela que devemos partir. Gramsci refere-se ao conceito "democracia" sempre tendo como pressuposto as relações de força que compõem a sociedade burguesa. Acentua-se, assim, o modo como a ideia de democracia se vincula ao modo de organização do Estado moderno, parlamentar, que pressupõe a separação entre economia e política com todos os seus desdobramentos ideológicos que permitem mostrar o Estado como uma instituição superior, neutra e acima da sociedade e reduzir a política à mera função de governo.

Sustentada pela estrutura jurídica, essa ideia reduz-se a um conjunto de práticas meramente formais e abstratas, visto que o direito não expressa os interesses gerais da sociedade, profundamente cindida e desigual: no modo de pensar do senso comum "[...] supõe-se que o direito seja expressão integral de toda a sociedade, o que é falso", visto que, em uma sociedade desigual, o direito expressa os interesses da "classe dirigente, que impõe" para toda a sociedade as normas de conduta que considera importantes para a "sua razão de ser e ao seu desenvolvimento" (GRAMSCI, 1978, Q. 6, p. 773).

O que torna abstratos o direito e a democracia, de forma a fortalecer sua função ideológica, é o pressuposto de que todos são iguais. Ignora-se, por conseguinte, a realidade concreta da desigualdade social implementada pelo modo de produção capitalista. Da perspectiva política, a igualdade formal e o individualismo articulados geram a ilusão de que "todos podem tornar-se elementos da classe dirigente" (GRAMSCI, 1978, Q. 6, p, 773). A base da estrutura democrática burguesa e os interesses individuais subjetivos são ilusórios, na medida em que abstraem das relações sociais nas quais o indivíduo se encontra inserido. Nesse sentido, sem considerar a situação concreta de exploração do trabalho e de extrema desigualdade social em um preciso contexto histórico, qualquer discurso sobre gestão democrática se torna vazio e sem relevância.

Essa concepção de democracia apresenta-se também como um dos fatores que garantem determinadas relações de hegemonia e de aceitação passiva da ordem instituída, funcionando como sustentação ideológica para o domínio e a ampliação da acumulação capitalista.

A ideia mistificada de democracia também permite a apropriação privada da própria estrutura do Estado que, reduzido à ideia abstrata de mero aparato administrativo e burocrático representante de toda a sociedade, esconde a sua real função de garantir os interesses dos grupos dominantes. Conforme Burgio (2014, p. 338-339), Gramsci considerava o aparelho institucional do Estado parlamentar "[...] um bloco funcional para a manipulação da opinião pública e da vontade coletiva, ou seja, para a salvaguarda do aparato do poder instituído", de modo que a democracia burguesa se constituía em uma "estrutura tirânica porque meramente formal", com a tarefa de "mascarar, legitimar e perpetuar" a dominação burguesa.

A separação entre economia e política libera o sistema econômico do controle do Estado e permite aos lobbies de atuarem no interior do sistema político em defesa dos seus interesses de classe. Dessa forma, a separação entre economia e política mascara a realidade e permite a efetiva articulação entre econômico, social e político na prática cotidiana da gestão. Para Gramsci, a própria teoria liberal traduz-se em um modo de "'regulamentação' de caráter estatal introduzida e mantida por via legislativa e coercitiva" (GRAMSCI, 1978, Q. 13, p. 1590).

Para o político sardo, o "[...] Estado é o instrumento para adequar a sociedade civil à estrutura econômica" (GRAMSCI, 1978, Q. 10, p. 1254), ou seja, por "[...] Estado deve entender-se, além do aparato de governo, também o aparato privado de hegemonia ou sociedade civil" (GRAMSCI, 1978, Q. 6, p. 801). A formação do senso comum no sentido de aceitar a separação entre sociedade política e sociedade civil ou a política da economia permite a formação de um consenso passivo de uma ordem político-jurídica formal que tutela a "[...] ordem pública e o respeito às leis" deixando livre o setor econômico e o mercado para atuarem sem qualquer regulamentação (GRAMSCI, 1978, Q. 26, p. 2302). Essa forma ideológica e mistificadora de conceber a ordem social expressa-se na noção abstrata de democracia no âmbito da sociedade capitalista.

A partir desses pressupostos, tem-se uma ordem político-jurídica que se sustenta sobre uma igualdade formal dos indivíduos considerados como sujeitos isolados e que ignora a realidade concreta que se constitui da exploração do trabalho e da geração de uma progressiva desigualdade social. Essa estrutura possibilita a existência de um sistema representativo que se legitima pelo voto popular, mas que não expressa, em momento algum, a vontade popular, a existência de um sistema partidário que se mantém financiado pelo poder econômico, que prioriza o processo eleitoral e o voto singular, deixando em segundo plano o debate sobre um projeto de sociedade. Mantém-se, assim, a separação entre dirigentes e dirigidos como se essa separação fosse natural e não histórica. Acrescenta-se a essa naturalização dos conceitos a ideia liberal de meritocracia, completando-se o quadro da mistificação que se desdobra na ideia de gestão democrática.

Gramsci (1978, Q. 8, p. 1056) acentua que o significado mais realista e concreto de democracia se encontra em articulação com o conceito de hegemonia. No sistema hegemônico, existe democracia na medida em que há um movimento molecular entre o grupo dirigente e os grupos dirigidos, ou seja, "[...] na medida em que (o desenvolvimento da economia e, portanto) a legislação (que expressa este desenvolvimento) favorece a passagem (molecular) dos grupos dirigidos ao grupo dirigente".

A democracia, portanto, não se conclui na ideia de gestão nascida da paridade de poder entre dirigentes, mas na "passagem molecular" da situação de dirigido para a situação de dirigente, em um processo de construção da hegemonia. Para tanto, o pressuposto é a igualdade social, ou seja, pressupõe a abolição da desigualdade gerada pela exploração do trabalho ou outra forma de exploração e de dominação. Uma democracia concreta implica a existência de uma nova sociedade sem qualquer forma de abstração que oculte ou mascare a dominação. Para tanto, torna-se necessário superar a separação entre forma e conteúdo, dirigentes e dirigidos, própria da democracia burguesa, a fim de criar as bases de uma nova ordem social e política.

Notas sobre relações de poder entre dirigentes e dirigidos

Todos são intelectuais e, portanto, todos têm a capacidade de se tornarem dirigentes. (GRAMSCI, 1979, p. 7).

A partir da historicidade da relação entre dirigentes e dirigidos, retomamos algumas colocações de Gramsci a respeito dessa relação no âmbito de uma democracia concreta. A base de reflexão gramsciana é sempre a realidade italiana do início do século XX, realidade eivada por uma tradição política e intelectual conservadora que se traduz no distanciamento dos intelectuais em relação às classes populares e à sua cultura e na incompreensão, por parte dos intelectuais, das necessidades populares.

O elemento popular "sente", mas nem sempre compreende ou sabe; o elemento intelectual "sabe", mas nem sempre compreende e especialmente "sente". Os dois extremos são, portanto, a falácia e a estreiteza de idéias de uma parte e a paixão cega e o sectarismo de outra. [...]. O erro do intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem compreender e principalmente sem sentir e estar apaixonado [...], ou seja, que o intelectual possa ser tal apenas se distinto e separado do povo-nação, isto é, sem sentir as paixões elementares do povo, compreendendo-as e, portanto, explicando-as e justificando-as numa determinada situação histórica [...]. (GRAMSCI, 1978, Q. 11, p. 1505).

O autor completa acentuando que essa compreensão-paixão somente se concretiza em uma perspectiva dialética, que une política e história em uma concepção de mundo coerentemente elaborada, que caracteriza o "saber" real. "[...] não se faz política-história sem esta paixão, sem este elo sentimental entre intelectuais e povo-nação" (GRAMSCI, 1978, Q. 11, p. 1505). Sem esse elo, sem essa paixão, a relação intelectual-povo torna-se uma mera "[...] relação de ordem puramente burocrática e formal; os intelectuais tornam-se uma casta" (GRAMSCI, 1978, Q. 11, p. 1505).

Essa crítica é dirigida aos intelectuais italianos em geral representantes da hegemonia dominante, mas Gramsci também se dirige criticamente aos dirigentes de partido, tanto no período de militância política quanto nos Cadernos, quando reflete sobre a noção de vanguarda. Dos escritos de 1919 e 1920, a propósito dos Conselhos, pode-se inferir uma nova prática de organização e formação da classe operária, com base na convivência e intercâmbio9 de experiências como nova forma de exercício da democracia a fim de desembocar no autogoverno operário. Trata-se de uma prática que, tendo como princípio o trabalho coletivo e solidário acompanhado pelo debate político, desencadeia um processo de educação mútua no interior das unidades de trabalho, tronando possível romper com relações e valores que sustentam a sociedade capitalista baseada na livre concorrência, na competição, no individualismo.

Os escritos dessa fase de militância política acentuam a originalidade política, cultural e educacional dos Conselhos de Fábrica, que se inspira na organização dos Soviets, no movimento da Revolução de Outubro de 1917. Detalham a organização das assembleias, a discussão aberta dos problemas pelos operários nas fábricas, a tentativa de elaborar um pensamento autônomo e construir a "[...] soberania da república proletária de fábrica", quebrando todas as hierarquias para construir o poder operário sobre novas bases (GRAMSCI, 1975a, p. 166).

Gramsci (1975a, p. 170) salienta a experiência de autogoverno industrial e político que se produziu no conjunto dos Conselhos de Fábrica. Ele acentua a importância e a necessidade das assembleias gerais e analisa sua relação com a vanguarda operária. O autor destaca, em vários momentos, que essa vanguarda não pode destacar-se das massas nem decidir à revelia delas. Em 1926, a propósito da crise interna do Partido comunista russo acentua que um Partido operário tem um movimento interno muitas vezes contraditório que lhe dá vida. Se esse Partido se cristaliza, fechando-se em torno das decisões do grupo dirigente no poder, cuja vontade deve ser aceita sem questionamentos, o Partido condena-se a morrer. Na concepção de Gramsci, o partido precisa ser o ponto de convergência entre o movimento das massas e a ação dos dirigentes, em uma interação dialética que evita a burocratização do partido (GRAMSCI, 1992, p. 473).

Seguindo a senda dos Cadernos, iniciamos no Caderno 6, onde Gramsci acentua que a ideia de vanguarda corresponde, no senso comum, a uma elite separada. Essa noção completa-se no Caderno 11, onde ele acentua que, no senso comum, "[...] a partir das opiniões, das convicções, dos critérios de discriminação e das normas de conduta" que se recebeu do meio social, o intelectual é visto como alguém superior, porque sabe argumentar e defender pontos de vista contrários à opinião comum (GRAMSCI, 1978, Q. 11, p. 1390-1391). No entanto, os intelectuais são necessários, visto que "[...] uma massa não se 'distingue' e não se torna 'independente' sem organizar-se e não existe organização sem intelectuais, isto é, sem organizadores e dirigentes" (GRAMSCI, 1978, Q. 8, p. 1042).

Cabe, então, explicitar a relação intelectuais-povo, dirigentes-dirigidos, criando as condições sociais de superação desse distanciamento. Essa reflexão aparece no Caderno 14 com a afirmação da necessidade de que as massas populares possam formar "[...] blocos sociais homogêneos e compactos que exprimam um grupo de intelectuais", uma "[...] vanguarda sua própria, que reage no seu bloco para desenvolvê-lo e não queira somente perpetuar o seu domínio errante" (GRAMSCI, 1978, Q. 14, p. 1676). Tem-se clareza que Gramsci procura entender como estabelecer um elo e uma troca permanente entre intelectuais e massas, em um processo contínuo e recíproco de autoeducação. Conforme Dias (2012, p. 92), a questão dos intelectuais, para Gramsci, implicava "[...] compreender porque e como entre as direções e as bases dos subalternos existia um fosso teórico-político" que precisava ser resolvido. Essa questão retorna quando se fala em literatura, história, linguagem, forma popular e forma culta, todos os momentos nos quais a questão da ideologia, implícita ou explicitamente, é tratada.

Já no Caderno 2, Gramsci trata dos limites burocráticos dos partidos políticos nas democracias burguesas. O autor acentua que neles "[...] os dirigentes se distanciam da massa e se percebe a flagrante contradição que, nos partidos avançados, existe entre as declarações e as intenções democráticas". Os partidos populares, por sua vez, precisam incentivar a "[...] participação ativa dos subordinados na vida intelectual - discussões - e organizativa do partido" (GRAMSCI, 1978, Q. 2, p. 236), visando uma nova ordem social e política. Somente quando existe essa articulação dinâmica entre intelectuais e massa, dirigentes e dirigidos, "só então a relação é de representação" (GRAMSCI, 1978, Q. 11, p. 1450).

Em vários outros momentos, esta questão é tratada por Gramsci: na necessidade de elevar o nível intelectual e cultural das massas, de articular intelectuais e massa, de entender a cultura nacional-popular como universal, de defender a educação recíproca, de acentuar a necessidade de os dirigidos controlarem os dirigentes e, o mais definitivo, a afirmação de que todos os homens são intelectuais. A partir desse esboço, que mostra os caminhos de reflexão de Gramsci sobre hegemonia e sobre democracia, retomamos a metáfora da mesa redonda quadrada para tentar explicitar, a partir do autor sardo, a ideia de gestão democrática como algo possível de realizar somente em uma nova ordem social e política.

"Esta mesa redonda é quadrada": redefinindo gestão democrática

Toda a linguagem é um contínuo processo de metáforas [...]; a linguagem é, ao mesmo tempo, uma coisa viva e um museu de fósseis da vida e das civilizações. (GRAMSCI, 1978, Q. 11, p. 1438).

O materialismo histórico pressupõe uma relação privilegiada da filosofia com a história e com a política, de modo que toda a realidade precisa ser abordada do ponto de vista de seu movimento, implicando a historicidade do pensamento e sua interlocução com essa realidade, na relação sujeito-objeto, conhecimento de si e conhecimento do mundo. A linguagem, expressão de uma concepção de mundo, é essencialmente metafórica, tanto "[...] em relação aos significados quanto ao conteúdo ideológico que as palavras tiveram nos períodos precedentes da civilização" (GRAMSCI, 1978, Q. 11, p. 1427).

A metáfora apresenta-se como tradutibilidade, conversibilidade das linguagens ou transferência de significado entre palavras ou entre a palavra e a realidade, em sentido figurado, a partir de uma comparação não explicita.10 Os sentidos entrecruzam-se e possibilitam novas interpretações da realidade social e política. A partir de uma perspectiva dialética, entende-se que a realidade não é translúcida e a metáfora nos possibilita explicitar o que subjaz à aparência e que se esconde por traz do imediatamente dado.

Do ponto de vista da lógica formal, a nossa proposição apresenta-se como uma contradição e, portanto, excluída de qualquer possibilidade de explicação. Coloca em questão a relação entre a estrutura lógica do pensamento que tem fundamentado todas as pesquisas científicas durante séculos e o modo de vida concreto, em sua dimensão ideológica e política. Da perspectiva dialética, porém, essa metáfora tem uma dimensão política que tentamos explicitar, tendo como pressuposto a centralidade da política, nas formas que assume a hegemonia e a democracia na sociedade moderna, nas suas articulações de luta que expressam os conflitos sociais explícitos ou latentes.

Mostrar a quadratura da mesa, no campo da política, pode significar mostrar os nuances do conflito latente nas relações de poder instituídas, simbolizando uma gestão delimitada pela burocracia e pela formalidade, resultante da abstração das contradições que permeiam as relações sociais. Implica também em mostrar que o pensamento burguês, por sua natureza fundada na lógica formal e na separação sujeito-objeto, é incapaz de explicitar as contradições que, pela própria estrutura do modo de produção capitalista, são cotidianamente geradas no âmbito das relações econômicas e sociais. A historicidade da linguagem e sua dimensão política e metafórica permitem ampliar as possibilidades de leitura e interpretação da realidade.

Dessa perspectiva, entende-se que uma teoria e uma prática de gestão precisam ser definidas a partir da noção de democracia e da natureza do Estado. Assim, torna-se importante explicitar a estrutura de poder vigente, seus conflitos internos e os limites das relações políticas. Na sociedade capitalista, o modo de produção e seus desdobramentos políticos, a exploração do trabalho e a ampliação da desigualdade social são pressupostos para entender qualquer experiência de gestão, assim como os limites da democracia no âmbito do Estado moderno.

A experiência dos Conselhos de Fábrica certamente foi a primeira experiência de organização de uma nova hegemonia como efetiva gestão democrática. Uma organização política dos trabalhadores que envolvia a todos no debate da gestão e se produzia como processo educativo de emancipação política, de difusão do saber para uma efetiva autonomia do pensamento, independentemente dos grupos intelectuais, isto é, da educação tradicional que pressupõe a separação e a hierarquia entre dirigentes e dirigidos.

Na preparação do projeto de uma nova gestão social, no período que antecedeu a ocupação das fábricas, Gramsci acentuava em seus escritos a necessidade de "libertar-se do despotismo dos intelectuais de carreira" e "intensificar a cultura para aprofundar a consciência crítica" (GRAMSCI, 1975b, p. 301). Os escritos de Gramsci acentuavam que a ordem burguesa, hierárquica, mantida por uma disciplina mecânica e autoritária, excluía a crítica, o compromisso e a responsabilidade do indivíduo com a coletividade. No âmbito político-jurídico formal, basta obedecer à lei e à ordem e deixar que as ambições e as paixões pessoais dos pequenos grupos ativos decidam os destinos da sociedade.

Para os trabalhadores, ao contrário, somente a união e a solidariedade no trabalho coletivo em torno de um projeto político poderiam construir a liberdade individual, a identidade de classe. Para alcançar esse objetivo, era preciso criar órgãos independentes de formação política e cultural, formando um hábito intelectual necessário para superar os limites das lutas corporativas. Nesse período de militância política, Gramsci empenhou-se em realizar esse trabalho de formação por meio dos jornais que dirigia e nos quais escrevia cotidianamente. Salientava a importância de aliar os sindicatos e o partido na nova forma de gestão que se efetivava nos Conselhos. O jornal L'Ordine Nuovo, de cultura socialista, publicado a partir de janeiro de 1919, foi fundamental na consolidação dos Conselhos e na formação política dos trabalhadores. O jornal abriu a discussão sobre a ação dos conselhos como uma nova experiência de gestão política; divulgava os encaminhamentos e as práticas que aconteciam no interior dos Conselhos com o objetivo de viabilizar uma nova estrutura de poder democrático, nascido de uma experiência inovadora de gestão da produção e de criação de uma gestão política visando a construir o novo Estado operário.

O Conselho de Fábrica é o modelo do Estado operário. Todos os problemas que são inerentes à organização do Estado proletário são inerentes à organização dos Conselhos. Tanto num quanto no outro acaba o conceito de cidadão, que é substituído pelo conceito de companheiro: a colaboração para uma boa e útil produção desenvolve a solidariedade, multiplica os laços de afeto e fraternidade. Cada um é indispensável, cada um está em seu lugar e cada um tem uma função e um lugar. [...]. O conselho é o órgão mais idôneo de educação recíproca e de desenvolvimento do novo espírito social, que o proletariado conseguiu exprimir da experiência viva e fecunda da comunidade de trabalho. (GRAMSCI, 1975a, p. 37).

Os conselhos definem, portanto, a natureza das relações políticas e as características de uma concreta gestão democrática. A experiência deste período de militância política marca sensivelmente a posição política de Gramsci nos Cadernos do Cárcere. A noção de democracia como participação efetiva dos trabalhadores no exercício do poder, tanto na geração das leis quanto na avaliação do processo de sua aplicação, também está implícita nos Cadernos do Cárcere, com raízes claras na experiência do jornal L'Ordine Nuovo e dos Conselhos de Fábrica. Uma prática que se funda em um novo projeto político e social que pressupõe superar a separação milenar existente entre dirigentes e dirigidos.

Se quer que existam sempre governados e governantes ou se deseja criar as condições em que a necessidade da existência dessa divisão desapareça? Ou seja, se parte da premissa da perpétua divisão do gênero humano ou se acredita que a divisão seja apenas um fato histórico, correspondente a certas condições? (GRAMSCI, 1978, Q. 15, p. 1752).

Uma outra experiência de gestão democrática, diversa dessa vivenciada na sociedade burguesa, implica condições efetivas de participação ativa das massas, com programas claros, objetivos definidos e transparentes, bem como mecanismos idôneos de escolha e controle dos representantes de modo a impedir qualquer possibilidade de cristalização burocrática. Tal democracia deve ser entendida como um processo político, econômico e cultural que implique "[...] uma unidade não servil, devida à obediência passiva, mas uma unidade ativa, vivente, qualquer que seja o conteúdo dessa vida" (GRAMSCI, 1978, Q. 14, p. 1740). Reafirmamos, a partir desse contexto, que a gestão democrática, da perspectiva de Gramsci, implica a participação efetiva das massas, a sua autonomia construída a partir de um trabalho coletivo e a possibilidade de acesso dos dirigidos a dirigentes. A lógica do desenvolvimento capitalista, que necessariamente gera e amplia a desigualdade e a exclusão, nega a possibilidade de uma democracia efetiva. As teorias neoliberais assumem claramente uma posição antidemocrática como base política para a expansão da acumulação do capital. Remar contra essa corrente implica vivenciar cotidianamente o debate crítico, construir as condições do trabalho coletivo como um processo educativo continuado, como base de uma política inovadora, que permita efetivamente a participação popular.

Considerações finais

Assim como os demais funcionários públicos, os magistrados e juízes deviam ser funcionários eletivos, responsáveis e demissíveis (MARX, s/d, p. 81).

Explicitar o significado de "gestão democrática" a partir de uma retomada dos conceitos de hegemonia e democracia presentes nos Cadernos do Cárcere implica, da perspectiva dialética, questionar a noção de natureza humana fixa e imutável, implícita nas noções de gestão e de democracia fundadas no liberalismo, explicitar os conceitos na sua historicidade, na mudança de significado a partir do ponto de vista de classe. Para Gramsci, a gestão democrática como exercício do poder ou relação de forças no âmbito da luta de classes pressupõe esclarecer de qual gestão e de qual democracia se fala: sem esse pressuposto qualquer abordagem se apresenta como abstrata e vazia de conteúdo.

A abordagem do tema implicou apresentar algumas notas sobre a noção de hegemonia e seu elo com o conceito de democracia, a crítica gramsciana à democracia burguesa e a noção de democracia que se propunha construir a classe trabalhadora de Turim na experiência dos Conselhos de Fábrica. As notas sobre a relação dirigentes-dirigidos tiveram o objetivo de mostrar que esse movimento molecular no contexto das relações de hegemonia é fundamental para a participação efetiva das massas no processo político, que implica ainda a proposição de um projeto político inovador. Sem a irrupção das classes populares no âmbito da política, de modo ativo e operante, não se constrói uma efetiva democracia.

Essa participação não é utópica, como afirmamos inicialmente, mas baseada em experiências concretas como a Comuna de Paris, a tomada do poder pelos trabalhadores na França, em 1871, assim como a Revolução Russa de 1917. A Comuna de Paris foi uma experiência de gestão democrática que durou em torno de 70 dias, com escolha dos representantes políticos, por sua vez responsabilizáveis e destituíveis a qualquer momento se necessário - uma experiência fortemente reprimida pela burguesia, com um banho de sangue que deixou um saldo de 40.000 mortos, demonstrando que a burguesia não tolera qualquer tipo de política (e de gestão) que não seja aquela que a beneficie diretamente.

Embora os Cadernos do Cárcere tenham sido redigidos em um momento de refluxo do movimento operário italiano, a experiência dos Conselhos de Fábrica e do jornal L'Ordine Nuovo foram uma experiência concreta que retira nosso tema do âmbito da utopia e permite entender os conceitos gramscianos de gestão e de democracia como profundamente viáveis como projeto que se propõe a construir uma nova ordem social e política.

Dessa perspectiva, a gestão não pode ser apenas administrativa ou uma forma de paridade de poder no âmbito da estrutura de governo. Falar de gestão implica esclarecer os pressupostos da democracia burguesa e entender que tal democracia é apenas uma forma de exercício do poder que se consolidou porque mistificou a realidade, de forma a mascarar ou ocultar os conflitos sociais e a luta de classes. Uma democracia que é a máscara das reais relações oligárquicas e autoritárias, o branco da censura e da tirania dissimulada. Contudo, guardamo-nos para o carnaval, um dia quando, no "[...] lugar da rosa desabrochada, aparentemente plena de vitalidade encontraremos, repentinamente, um cravo vermelho, que até então não tinha dado sinais de vitalidade assim prodigiosamente fulminante" (GRAMSCI, 1975a, p. 281).11

1Como diz Adorno (1986, p. 193), a propósito da filosofia, somente "[...] quando os filósofos se profissionalizaram reunindo-se num estamento, é que eles se desacostumaram ao pensamento próprio, e cada um passou a acreditar que precisava legitimar-se começando antes da criação do mundo ou, se possível, tomando conta dele". Essa forma de abordagem do conhecimento em um encadeamento linear de fatos históricos é mais uma forma de abstração que não deixa reconhecer os nuances e as contradições que caracterizam a democracia burguesa, entendendo-se que basta falar de "gestão democrática" que se está explicando tudo.

2"A grande política compreende as questões ligadas com a fundação de novos Estados, com a luta pela destruição, a defesa, a conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais. A pequena política, as questões parciais e cotidianas que se colocam no interior de uma estrutura já estabelecida por lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política" (GRAMSCI, 1978, Q. 13, p. 1564).

3"É estranho como a identidade 'Estado-classe', não sendo de fácil compreensão, ocorra que um governo (Estado) possa fazer convergir sobre a classe representada como um mérito e uma razão de prestígio o haver finalmente feito aquilo que há mais de cinquenta anos devia ser feito e, portanto, deveria ser um demérito e uma razão de infâmia" (GRAMSCI, 1978, Q. 15, p. 1751).

4Pode-se dizer, aqui, que a ideia gramsciana de democracia se identifica com sua ideia de socialismo, a ser construído com a participação efetiva das massas na vida pública, não apenas pelo voto, como na democracia burguesa, transferindo o poder decisório para os representantes políticos, mas com a participação efetiva, que supõe um processo continuado de auto-organização e de autoeducação das massas. E essa posição não é utópica, porque tem como base as experiências da Comuna de Paris, que Marx explicita em A Guerra Civil na França em 1871 (MARX, s/d, p. 39-103), bem como a dos Soviets de 1905-1917.

5"Abandonei a ideia de escrever (por força maior, dado a impossibilidade de conseguir o material necessário) uma dissertação com o título: "Esta mesa redonda é quadrada" que, penso, tornar-se-ia um modelo para os trabalhos intelectuais carcerários presentes e futuros" (GRAMSCI, 1978, p. 157).

6A lenda foi narrada pela primeira vez por Geoffrey de Monmouth, monge que viveu entre 1100-1155; trata-se de uma lenda ou um mito, cuja veracidade não se pode constatar historicamente.

7Essa questão pressupõe entender que não existe uma natureza humana fixa e imutável, mas a natureza humana é construída historicamente pelo conjunto das relações sociais historicamente determinadas.

8No contrato de trabalho, os contratantes são considerados iguais porque ambos são proprietários; oculta-se o fato de que a natureza da propriedade é profundamente diferente: um é proprietário dos meios de produção e, portanto, pode comprar o que quiser e quando quiser; outro é proprietário da força de trabalho, que precisa vender para poder sobreviver.

9Os dicionários burgueses definem intercâmbio como troca entre indivíduos, instituições, etc. Da perspectiva dialética, porém, intercâmbio refere-se ao trabalho coletivo de formação de uma identidade de classe, de solidariedade entre indivíduos que se unem para criar um projeto comum. "Toda a linguagem é um contínuo processo de metáforas [...] a linguagem é, ao mesmo tempo, uma coisa viva e um museu de fósseis da vida e das civilizações" (Q 11, p. 1438).

10Essa definição encontra-se em todos os dicionários comuns e, no contexto da leitura gramsciana, podemos referir ao conceito de tradutibilidade, que recebe novas significações.

11Uma nova metáfora, a ser explicitada.

Referências

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Recebido: 01 de Setembro de 2018; Aceito: 11 de Dezembro de 2018

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