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Práxis Educativa

versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.14 no.1 Ponta Grossa ene.-abr 2019  Epub 17-Abr-2019

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.14n1.022 

Tradução

As nuances da censura: escritos políticos de Antonio Gramsci de 1916 a 1918

Anita Helena Schlesener* 

*Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estágio em Milão (IT). Pós-doutorado em Educação na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora de filosofia Política e Estética na UFPR de 1976 a 2004. Professora do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Tuiuti do Paraná. E-mail: <anitahelena1917@gmail.com>.


Introdução

Os artigos de Antonio Gramsci aqui apresentados foram traduzidos em 1990 para um curso de Filosofia Política direcionado a alunos do curso de Direito por solicitação de alguns dos participantes. Fizemos uma tradução caseira que, reencontrada agora na visita a antigos arquivos, resolvemos divulgar porque são textos inéditos no Brasil - embora se refiram à realidade italiana de 1916-1918, quando o Estado italiano decretou a censura com o pretexto de proteger internamente o país de influências estrangeiras. Na verdade, tratou-se de um decreto que possibilitou a uma instância da administração pública de vigiar as publicações de esquerda que circulavam no país. São artigos importantes para refletir sobre os embates políticos em uma estrutura autoritária e, ao mesmo tempo, para entender a enorme função política dos que lavam as mãos e se mantêm distantes dos embates, passivos, como se existisse a neutralidade em uma sociedade dividida e desigual. Gramsci salienta que esses cidadãos são o peso morto da história que, por não participarem, também não se sentem responsáveis pelos acontecimentos. Os artigos também demonstram que, em um Estado autoritário, a educação repressiva exercida pela censura semeia o medo e mesmo os que se posicionam se sentem paralisados.

O primeiro artigo aqui apresentado, A Divina língua, acentua que, em tempos obscuros e de repressão política, o assunto passa a ser cultural e artístico. Um texto pleno de ironia que acentua que a censura sempre existiu, principalmente na formação religiosa. Já o Direito Comum fala da vigilância exercida sobre os cidadãos comuns por policiais à paisana. Seguem-se três artigos intitulados: A censura, Se questiona a censura e, novamente, A censura, que apresentam títulos similares, mas escritos em momentos diferentes. Há, ainda: Consciência censora e Verboten (Proibido!), o qual usa o termo alemão para comparação. A reação italiana, que aborda as medidas policiais e judiciárias que podem incorrer em erro, e A senha da liberdade, que trata da necessidade de leis que penalizem tais erros, fecham este conjunto: se um cidadão arbitrariamente privado da liberdade for inocente, merece indenização, devendo os responsáveis serem penalizados. Essa posição alia política e moral, mostrando que as estruturas punitivas da sociedade burguesa podem ocultar interesses escusos. Ao fazermos a releitura desses escritos depois de vinte anos de sua tradução, entendemos que eles ainda têm muito a nos dizer.

A divina língua

Felizes tempos aqueles da Arcádia na Itália! Os jesuítas exerciam um forte controle sobre as inteligências, a congregação do altar riscava dos cérebros e dos livros as ideias perigosas. A atividade intelectual reduzia-se a balidos lacrimosos acerca de cães e de artifícios, a censura eclesiástica tinha reduzido a Itália a um belíssimo canteiro de papoulas soniferantes e de violetas inócuas. A característica dessa idade é a longuíssima discussão sobre a beleza, a pureza, a origem e o futuro da língua. Todos participavam e traziam volumes e ideias para ferozes controvérsias.

A paixão polêmica, comprimida pelas restrições jesuíticas, podia desafogar-se de qualquer modo, sobre qualquer um, contra os puristas conservadores, contra os modernizantes subversivos, etc. A censura é eterna! E viva, portanto, a censura!

Quando não se pode falar e escrever livremente, termina-se por não pensar em outra coisa que não seja a palavra e a língua. A expressão torna-se obsessão. A insinceridade, o subterfúgio estilístico termina inconscientemente por apanhar a mão e falsear o caráter.

A francofilia de qualquer católico, Maria de Borio, por exemplo, romancista tão maçante quanto beata pregadora de virtuosismo, para salvar-se das punições da autoridade eclesiástica, se mascara de admiração pela língua francesa, a qual, entre todas as línguas do mundo, certamente consegue a conexão mais íntima com a verdade, sendo clara, ordenada e eficaz a um só tempo.

O "Momento" (jornal católico) bate sobre o cão, porque a censura política não permitiria bater sobre o patrão, e recorre até a Benvenuto de Imola para demonstrar que o francês é filho bastardo do latim e que a mais bela, doce, nobre e eficaz língua do mundo é a nossa, chamada, por isso, por Foscolo: divina língua. Todas as censuras podem ser satisfeitas. O "Momento" teria tantas coisas interessantes a escrever. Por exemplo, poderia dar a sua opinião sobre jesuítas que conquistam as igrejas e colocam na rua os párocos, oficiantes há mais de vinte e cinco anos. Entretanto, o arcebispado vetou. Poderia dizer tantas coisas sobre questões do dia, cuja única enumeração é vetada, a censura política o veta. E agora, ao refletir um pouquinho, chega à conclusão de que a língua italiana é, na verdade, uma bela coisa, ainda se a mordaça a comprime. E atribui o artigo para Benvenuto de Imola, para o romantismo de Dante contra o alemão e o francês, para as violetas e as papoulas, contra os cardos e os azevinhos. Não faltam mais do que o referendum e o concurso a prêmio pela melhor poesia sobre o tema.

Também nós necessitamos encontrar a diversão. A "divina língua", o esperanto, ou o modo de purgar-se com um novo citrato, não importa. Porque se a censura nos proíbe de escrever sobre nossas coisas, [seguem duas linhas incompreensíveis] se não quer polêmicas sindicais, nem debates de ideias, é necessário encontrar um sucedâneo. Um bosquezinho arcádico, artificial, os amores dos honestos campesinos, o cólon do cão da polícia militar; a isto deve reduzir-se todo bom italiano, a maior glória do ministério nacional.

GRAMSCI, A. La divina favella, 27.06.1916. In: GRAMSCI, A. Sotto la Mole (1916-1920). Torino: Einaudi, 1975. p. 183-185.

Direito comum

Se um cidadão qualquer, atravessando de noite uma rua, percebe que um desconhecido se arrasta rente a um muro e o segue, ele tem o direito de pedir ajuda à autoridade para ser protegido e de servir-se de sua força física para por término ao jogo perigoso. Se um cidadão qualquer percebe que sob as janelas de sua casa um desconhecido se põe na escuta e observa o funcionamento de seus hábitos, e acompanha toda aquela parte de sua vida que o pudor ou somente o bom gosto o faz querer que seja preservada de toda curiosidade, o cidadão acredita ter o direito de aspergir o curioso com os líquidos mais heterogêneos e de fazê-lo acabar com isso, por bem ou por mal. Enfim, há uma consciência difusa em todo cidadão que sente a sua dignidade de homem, de ter o direito de proteger a sua liberdade de vida, a escolha de seus hábitos, a distribuição de sua atividade, a todo custo, e de ter o direito de proibir aos desconhecidos curiosos de pôr o nariz na sua vida privada.

Tudo isso é simples, plano, e ninguém ousaria opor argumento de contestação. Entretanto, nós somos dos homens que se veem seguidos nas vias públicas às horas mais impossíveis da noite e não podemos protestar. Existem casas privadas que devem suportar a vigilância de desconhecidos que espiam, escutam, pedem informações, sem que determinados inquilinos possam protestar. Há um edifício privado (a Associação geral dos operários), que não pode ser fechado pela lei porque nenhuma autoridade o tem como covil de malfeitores, lugar de reunião de ladrões ou de assassinos, mas os passantes veem sobre a sua calçada desconhecidos acocorados que escutam, fazem apontamentos, sem que ninguém possa saber quem são e sem que ninguém sinta que tem o direito de servir-se do chicote contra eles, como contra os cães vadios.

Porque se um perseguido pede explicações ao perseguidor, pode ver metido sob seu nariz uma insígnia com um número, ou mais rapidamente pode ser levado em um corpo de guarda, ser carregado e espancado e receber uma condenação por insulto a um agente. Porque, no reino da Itália, há de entender-se que qualquer civil seja um agente, e deixar-se roubar por medo que o suposto ladrão seja, ao invés, um agente e possa fazer prender o assaltado. Porque, no reino da Itália, há uma categoria de pessoas que se vestem em trajes civis, mas têm uma licença no bolso, aos quais é permitido tudo o que é proibido aos demais, e os cidadãos devem saber que esses homens têm uma insígnia no bolso e devem suportar serem maltratados, escarnecidos e espancados, sem ter o direito de protestar. Porque - e esta é a razão do maior peso - os italianos têm, assim, pouca consciência do que é verdadeiramente a liberdade, para permitir que uma restrita categoria de pessoas, na maioria a flor da malandragem e espuma de esgoto, estejam fora do direito comum e possam subtrair-se àquelas sanções punitivas que a consciência universal acredita justificáveis contra todos os malfeitores comuns.

GRAMSCI, A. Diritto comune, 22.08.1916. In: GRAMSCI, A. Sotto la Mole (1916-1920). Torino: Einaudi, 1975. p. 225-226.

A censura

A censura embranqueceu mais de sete colunas do número passado do "Grido". A censura turinense que examina o nosso jornal é composta de indivíduos absolutamente incompetentes a desempenhar o mandato a eles confiado. Nem sequer leem o material que lhes é transmitido; economizam a fadiga de lerem porque estão persuadidos preventivamente de não entender, de não possuir a capacidade cultural necessária para discriminar o censurável e o não censurável. Cortam ao arbítrio, para que no "Grido" apareçam os brancos e seja justificado o seu cargo, o seu salário.

O que publicamos nos custa fadiga e cansaço aos nossos colaboradores, custa dinheiro à administração. O arbítrio dos censores torna-se insuportável. Há algumas semanas foi censurado um artigo (inclusive título e assinatura) que três dias depois apareceu no "Avanti!" somente com cinco linhas censuradas sobre duas densas colunas.1 Entretanto, o "Avanti!" é mais difundido em Turim do que o "Grido" e é difundido em toda a Itália. Os três quartos do material censurado no "Grido" passam sem nem uma linha de censura em outros semanários socialistas, que saem também em zonas declaradas de guerra. Um artigo do nosso colaborador parisiense sobre "Sociedade das Nações", informativo de discussões que na França se faz de propósito, foi inteiramente sequestrado, inclusive o título, em nosso jornal, enquanto, ao mesmo tempo e uma semana depois, passava integralmente no "Corriere Biellese" e em cerca de uma dezena de semanários, incluindo a "Difesa" de Florença, que também é sempre metade branca (censurada).

Não protestamos contra a censura em geral. Temos as provas que os "infortúnios" do "Grido" se devem exclusivamente à insipiência e ao cérebro insensato dos censores especiais do nosso jornal; pobres homens, que sabem de não valer o salário e exageram para demonstrar boa vontade e zelo. Passamos estas provas a um companheiro deputado:2 estamos curiosos em saber se o governo é solidário com a estupidez de seus empregados ou se não crê poder gastar o dinheiro dos contribuintes de outro modo que não seja cuidando da pensão vitalícia de homens incapazes e que não têm tido a prudência de inscrever-se a tempo em uma sociedade de garantia para o marasmo senil.

GRAMSCI, A. La Censura, 01.12.1917. In: GRAMSCI, A. La Città Futura. Torino: Einaudi, 1982. p. 466-467. (Texto atribuído a Gramsci).

Se questiona a censura

Fecharam o café concerto e as variedades. É proibido divertir-se, comprar o divertimento dos cafés concerto e das variedades. A autoridade deve intervir. Haveria ainda uma multidão de pessoas que teria continuado a frequentar os locais do prazer mais banal e vulgar, se a autoridade não interviesse.

Nós compreendemos a intervenção das autoridades. Maravilhamo-nos que não tenham interferido antes. Não porque esteja nos nossos desejos que a autoridade intervenha em todo acontecimento para regular a vontade e a vida dos cidadãos, mas porque queríamos que toda manifestação de vida tivesse uma lógica sua, se enquadrasse em um programa, e tal programa se procurasse realizar. O Estado intervém para regular a manifestação das ideias dos cidadãos: instituiu a censura preventiva, decretou condenações severíssimas para quem expõe alguns modos de ver ou de não ver. Quer que os pensamentos manifestados sejam uniformes, de corte democraticamente uniforme. Toda originalidade lhe parece nociva aos interesses públicos. É proibido o luxo, o divertimento do pensar, do fazer ostentação da própria inteligência, da própria riqueza interior. A censura dessa riqueza tem sido inexorável, sequestrou, queimou, destruiu.

Está ausente a outra censura, a verdadeira tradicional censura, que golpeia o censo, o luxo, o prazer. Nenhuma lei que proíba a ostentação da riqueza inútil, porque transformada em joias e ornamentos, e subtraída ao trabalho, à produção. O censor dos costumes não foi criado assim como aquele das ideias. Único censo a limitar, as ideias, única riqueza a sequestrar, as ideias. O Estado revelou-se sempre melhor como Estado burguês, no significado mais mesquinho. Só as ideias são os inimigos do Estado. Não as ideias que possam surgir em todos os cidadãos ao ver certos espetáculos, mas determinadas ideias, aquelas de determinadas pessoas e de determinados agrupamentos.

(Seis linhas censuradas).

GRAMSCI, A. Si domanda la censura, 16.11.1917. In: GRAMSCI, A. Sotto la Mole (1916-1920). Torino: Einaudi, 1975. p. 342.

A censura

A censura rejeitou inteiramente a nota de ontem. A censura continua a desenvolver a sua tarefa, se bem que o exército inimigo não ameace mais os "ricos campos" e a honra das mulheres; se bem que esteja excluído de modo absoluto, até do ponto de vista do reacionário mais estreito, que a discussão das ideias possa abrir as fronteiras à invasão. A censura continua e nós não nos maravilhamos, porque no nosso país ela nunca representou uma medida provisória e contingente de defesa da "saúde pública", mas tem sido um método de governo, o método necessário do Estado italiano, policialesco, protecionista, antiliberal.

Os italianos têm falta de fantasia (a imaginação e a satisfação dos caprichos não são fantasia); eles chegam a compreender que outros Estados não são democráticos porque o único jornal que leem sublinha os atos e as medidas reacionárias; não concebem que o Estado do qual fazem parte e que, mesmo só constitucionalmente poderiam transformar, é a negação da democracia. Giolitti continua a ser, para muitos, um liberal democrático. Esses italianos têm a imaginação superficial deslumbrada pelas "espirituosas" interrupções do parlamentar esperto e vigarista e não recordam, ao contrário, que Giolitti tirou dos italianos a liberdade de fazer comícios públicos (ou seja, suprimiu a liberdade de palavra e de propaganda oral, com exceção dos tempos de eleição); não pensam que Giolitti representava no poder as camarilhas mais reacionárias dos fazendeiros e da indústria siderúrgica. Orlando e Nitti são, para os italianos, "homens que falam"; os italianos não conseguem ver neles "homens que agem", precisamente porque lhes falta a fantasia, porque são incapazes de recriar "dramaticamente" uma ação permanente, naquilo que tem de essencial, enquanto transforma a realidade e a direciona a fins particulares. Os italianos, o povo italiano pode até chegar, por sugestão do único jornal que lê, a regozijar-se porque uma minoria é perseguida, não pode falar, não pode fazer conhecer as suas ideias e os seus fins; o povo italiano não tem fantasia, porque não concebe que a sua alegria é sobre um mal específico, porque tudo é ignorado daquelas ideias, do conhecimento daqueles fins, porque é, para eles, apresentado como uma reunião de macacos sem critérios, sem controle voluntário e que excluem suas ideias e fins da discussão pública.

A censura é o método de governo do Estado italiano, que permaneceu paterno e despótico sob o verniz superficial da ênfase democrática. Os socialistas devem sempre procurar explicar os acontecimentos e as ações políticas; e devem fazê-lo porque têm uma doutrina e devem difundir as conclusões às quais chegam, porque são os únicos democratas, porque aspiram à instauração da única democracia historicamente necessária e eficiente: a democracia social. O Estado italiano é paterno e despótico porque representa grupos particulares e não uma classe; isto é a negação da democracia liberal porque a vontade dos cidadãos nada conta, porque os cidadãos não podem ter uma vontade concreta, porque o Estado impede que essa vontade surja, inibindo a discussão, impedindo a chegada de jornais estrangeiros, inclusive dos países aliados onde também vigora a censura. A censura continua a prevalecer, e isso acontece porque os grupos que nos governam querem instaurar também explicitamente um governo despótico, querem anular o Estatuto e as outras garantias de liberdade e desenvolvimento das novas forças históricas.

GRAMSCI, A. La censura, 04.11.1918. In: GRAMSCI, A. Sotto la Mole (1916-1920). Torino: Einaudi, 1975. p. 453-454.

Consciência censora

Uma das mais graves doenças da sociedade italiana contemporânea é a falta absoluta de consciência dos funcionários incumbidos da administração pública. Noventa por cento das desgraças que se abatem cotidianamente sobre nosso infeliz país devem-se exclusivamente aos funcionários administrativos, que não cumprem o seu dever, que não têm senso de responsabilidade, que fazem do Estado uma espécie de país paradisíaco, onde os grandes salários não custam mais do que um pouco de calo às nádegas e alguma assinatura ao pé de folhas que nem são lidas. Os burocratas têm a mesma mentalidade do camponês que aponta como um dos dias mais belos de sua vida aquele no qual conduziu à cidade uma galinha ou uma peça de salame sem pagar imposto; a mesma mentalidade antissocial de quem procura eximir-se com qualquer meio de pagar o bilhete do trem ou, melhor ainda, o bilhete de uma longa viagem ferroviária.

Mentalidade estritamente antissocial, egoísmo que nada mais é do que pura animalidade que procura evitar todo peso, toda fadiga da cadeia social que deveria ser suportada por todos.

Os funcionários, em sua grande maioria, assumiram seu posto não por mérito intrínseco, por comprovada tecnicidade e inteligência, mas pelo engano, pelo impulso maçônico, pela piedade; certamente, pela piedade: muitos concebem a administração pública não como o mais delicado e, talvez, importante órgão da vida social, mas como um refúgio para os inválidos, os imbecis, os sem energia, que não conseguiriam, na luta pela vida, ganhar um pedaço de pão e um leito limpo e coberto. A vida social os suporta, a convivência civil aguça os seus contrastes, o trabalho útil deve dividir os seus frutos entre um bando de gente sem utilidade que, assim, provoca danos e dispersão de riqueza. Não importa. Os funcionários têm constituído uma espécie de Estado no Estado, oprimem os cidadãos com a tirania da sua incompetência inatingível, impessoal e irresponsável.

Os leitores não se maravilhem se escrevemos esta introdução para chegar a falar da censura. Os funcionários da censura são o tipo dos tipos. Admitidos sem qualquer sombra de uma demonstração de capacidade, com critérios empíricos de beneficência social, tornam-se um monstruoso vampiro da vida nacional, que procura esterilizar as fontes de inteligência, de seriedade, de responsabilidade.

A ação que os censores desenvolvem parece tencionar dar razão aos que defendem a velha máxima dos subversivos republicanos: quanto pior, melhor. Os mais moderados, vendo a que nível de barbárie intelectual conduzem a insipidez, a ausência de qualquer critério, a incultura, a irresponsabilidade estupidamente sorridente dos censores, sentem um frêmito de indignação, um arrepio temeroso pelo futuro do espírito humano, e mais facilmente o seu espírito se abre ao acolhimento das resoluções extremas.

Quem vive e sente o respeito pela produção, pelo trabalho, qualquer que seja e de quem seja, compreende este estado de espírito. É uma sensação de náusea revoltante, um cansaço moral que faz ver tudo perdido e escuro. Se as poucas pessoas da ordem, que têm especificamente o dever da responsabilidade e da seriedade, não sentem o dever e obedecem somente ao capricho, ao desejo de evitar a fadiga, as mais baixas paixões da alma, como se pode ter a força de persuasão para induzir os muitos à disciplina, à calma, à obediência, à razão, e combater as veleidades impulsivas, os caprichos, o senso de irresponsabilidade que qualquer um dos muitos pode manifestar? Aqueles que concebem a vida como serena luta pela verdade e pelo bem universal, como dever imanente em cada ato de dominar as paixões e os impulsos - para que a realidade não efêmera, mas tendo os caracteres eternos e incoercíveis da historicidade, se afirme e flua - estes são sempre presas do desânimo e devem fazer um esforço imenso sobre si próprios para não serem arrastados no vórtice da irritação impulsiva, da passionalidade irresponsável.

No entanto, o funcionário não se contradiz. Passa sobre tudo e todos, preocupado somente em não obter muitos calos nas nádegas e dispersão de fósforo ao cérebro. É uma espécie de força natural, incoerente e imbecil. O censor justifica o seu emprego anulando, riscando; há um jornal que se diz prejudicado pelo seu programa geral: o censor se diverte a satisfazer seus caprichos de homem rude e traça desenhos, deixa correr a sua mão sobre a página, que custou trabalho e dinheiro, a eliminar o negro, porque o branco constitui um belo quadro. Por necessidade pictórica, cancela aquilo que tinha há quinze dias deixado, cancela aquilo que em outro jornal havia deixado.

(Cinquenta e sete linhas censuradas)

Entretanto, para que continuar? Concluímos com uma indicação às autoridades competentes, a fim de que, obtendo o mesmo serviço, imponham menos encargos aos contribuintes italianos. Há algum tempo, um bando de pintores parisienses ligou um pincel à cauda de um asno e obtiveram, sem esforço, um quadro que foi aceito em uma exposição de vanguarda e louvado como obra insigne do futurismo. Entre os censores do "Grido" há um "ex-pintor" (sistema italiano patenteado para recrutar os funcionários): que seja substituído pela cauda de um asno; os brancos que o lápis azul ligado à mobilidade própria da cauda de um asno poderia infringir-nos não nos irritaria; compreenderíamos que, com isso, se quer obter uma simplificação da burocracia, uma economia para os contribuintes. Teríamos paciência. Coragem, senhores, poucas liras de aveia ao invés de centenas de liras em salários. O mesmo serviço e, talvez, mais inteligente; em vez de nos fazer do mastigar fel, nos faria sorrir; o sorriso é, também ele, afeição da fome e não será mau difundi-lo no mercado como um novo jogo.

GRAMSCI, A. Consapevolezza censora, 06.04.1918. In: GRAMSCI, A. Scritti giovanili (1914-1918). Torino: Einaudi, 1975. p.203-205.

Verboten! (Proibido!)

Queremos dizê-lo em alemão porque só os regimes inimigos que caíram podem ser tomados como termo de comparação do que acontece em nossa casa. O leitor sabe que a censura política foi abolida, e só permanece enquanto diz respeito a notícias militares e a publicações que podem perturbar as relações internacionais.

Assim diz o Decreto3 publicado à véspera da convocação da Câmara; decreto que nós - de ingênuos que somos - comentamos (no "Avanti!" de 20.11.1918) celebrando a morte da odiosa e infame instituição que nos tortura há quatro anos.

Pois bem, aquele decreto era uma mistificação, e nós somos, junto ao público, mistificados. A censura existe sempre. E mais intolerante, sectária e servil do que antes.

Os leitores que seguiram com paixão e interesse a fervorosa luta sustentada pelo "Avanti!" para acelerar a restituição dos prisioneiros às suas famílias e porque, enquanto isso, seja melhorado o tratamento que lhes é infligido nos campos de concentração, devem estar maravilhados e magoados por não terem visto no "Avanti!" de ontem nem uma linha sobre o grave assunto dos prisioneiros.

A explicação é simples, caros leitores e boas leitoras: a censura tirou as mordaças, mas ainda não as jogou ao ferro-velho. Proibido falar dos prisioneiros.

Verboten! Só é permitido dizer que estão bem; que estão cobertos, bem alojados e muitíssimo bem nutridos. Se permite ainda dizer que estão contentes como páscoa (expressão figurada), que bendizem a guerra, o governo e a censura, e que não têm nenhuma pressa de retornar às suas casas. As centenas de leitores e leitoras que nos escrevem cartas e nos mandam descrições da vida dos prisioneiros devem, portanto, nos desculpar se não podemos publicar as suas cartas que não são conformes às "prescrições de serviço". A Câmara está fechada e nem é permitido gritar e protestar.

A Itália é um país livre e constitucional e que não tem medo de alguma novidade, nem das ameaças de Salandra e Pirolini.

Fechamos, portanto, a série de publicações que "dão aos nervos". No entanto, os que têm algo a dizer não cessem, por isso, de informar-nos, porque o material que agora não podemos dar a conhecer ao público, poderá, igualmente, ser utilizado de um outro modo.

Por este momento... proibido! E viva a guerra da democracia e da liberdade!

E sempre a propósito de censura. Na Câmara, discute-se em torno de um projeto de lei para a Constituinte, nos congressos se discute a constituinte, dois ministros falam sobre a Constituinte e toda a imprensa publica grandes artigos sobre a Constituinte: só ao "Avanti!" não é permitido escrever que a Confederação geral do trabalho deliberou pela Constituinte e que o Partido Socialista, desde o ano passado, incluiu no seu programa aquela tal reforma dos ordenamentos constitucionais, cujo anúncio se deixou livremente dar quando... existia a censura na primeira forma. Porque somente agora não se pode dizer que acreditamos nas pressões do proletariado, justo agora quando um recente decreto limita a censura às notícias de guerra e às que podem perturbar as relações internacionais. Quem sabe o que entende por Constituinte o inteligente censor.

GRAMSCI, A. Verboten!, 25.11.1918. In: GRAMSCI, A. Scritti giovanili (1914-1918). Torino: Einaudi, 1975. p. 340-341.

A reação italiana

Um erro da censura romana fez com que finalmente se possa dizer que o companheiro Lazzari foi preso em 25 de janeiro, tendo sido apanhado, como dizem com pouca sinceridade e lealdade os jornais burgueses, nas malhas do decreto Sacchi.

Não tencionamos escrever a crítica semanal, discretamente enfadonha, contra a reação enfurecida. O companheiro Lazzari é um homem acostumado mais à má do que à boa sorte, e o Partido socialista não se esfacelará pela prisão de seu secretário político; o honorável Morgari já assumiu aquela função e o partido continuará seu caminho.

Desejamos somente fazer algumas observações sobre o que está acontecendo na Itália, sobre aquele complexo de medidas policiais e quase judiciárias, ao qual nós estamos habituados a dar o nome de reação. Este é um fenômeno unicamente italiano, (cinco linhas censuradas).

Somente em um país onde não se fazem negócios, onde se trabalha pouco, onde as relações entre cidadão e cidadão são raras e de pouquíssimo valor econômico, é possível um monstro jurídico semelhante àquele gerado pela insipiência democrática do deputado Cremona (decreto Sacchi).

O que é, de fato, a segurança dos cidadãos de não serem continuamente expostos às privações da liberdade pessoal, de estar ao abrigo do arbítrio policialesco e da prepotência judiciária, senão o ambiente necessário para o trabalho, para as trocas, para a produção; enfim, para a explicação de todas as atividades próprias de um regime capitalista? Ora, na Itália, todas as desgraças que afligem as poucas pessoas inteligentes e ativas são uma consequência necessária da incapacidade, das condições de esfacelamento e desmantelamento no qual se encontra uma certa parte da população que nós, fazendo-lhe a honra da linguagem socialista, chamamos classe burguesa. Na Itália, não se é pontual na abertura dos serviços públicos, na chegada dos trens, no comparecer a um encontro, porque o tempo não tem valor, porque o tempo não é um coeficiente econômico de produção. Dez horas antes, dez horas depois: que são dez horas para quem não sabe preenchê-las? Assim é com a liberdade. Que é a liberdade para quem não sabe o que fazer com ela, para quem ela não é um valor econômico, a possibilidade de trabalhar, de produzir, de qualquer modo? A liberdade individual, a segurança contra os abusos de autoridade, é conquista do trabalho, da produção, das sociedades bem organizadas.

Recordo um episódio. Um professor de universidade me contava uma aventura no Hyde Park de Londres e ao relatá-la ainda fremia de nobre indignação. Ele viu cidadãos plantarem uma bandeira por terra, subir em uma cadeira, chamar a si atenção dos passantes e depois começar a pregar. Viu, assim, uma vintena, cada um dos quais sustentava suas ideias, procurando fazer proselitismo: seguidores de seitas particulares, protestantes, socialistas, anarquistas, teósofos. Parou diante de um anarquista e se impressionou com as coisas que ouviu que, subitamente, dirigiu-se a um policial próximo perguntando-lhe assustado: "Mas o senhor, o que está fazendo aqui, porque não faz calar este homem?". E o policial, fleumaticamente: "Estou aqui para fazer calar os homens como o senhor, que desejariam tirar dos outros a liberdade de falar". Um policial inglês que dá uma lição de liberalismo a um professor de universidade italiano. Nesse episódio, autêntico, documenta-se a mentalidade da burguesia italiana, assim como no decreto Sacchi se documenta a sua inferioridade. Na verdade, não se tem prazer em ser vítimas de uma estirpe semelhante e, somente nesse sentido, nos desgosta a situação do companheiro Lazzari.

GRAMSCI, A. La reazione italiana, 09.02.1918. In: GRAMSCI, A. Scritti giovanili (1914-1918). Torino: Einaudi, 1975. p. 171-172.

A senha da liberdade

A senha (carteirinha de racionamento) para o pão não basta - afirma o "Corriere della Sera" - é necessário introduzir também a senha da liberdade. É genial, não é verdade? Tão genial que nos tornamos subitamente solidários com a proposta, tornando-a imediatamente concreta. A senha poderia consistir em uma lei que afirmasse:

1. Um cidadão italiano que seja detido não pode ser mantido, por mais de dez dias, na ignorância sobre as causas de sua prisão, mas deve, em dez dias, ser conduzido diante de seu juiz natural e obter novamente a sua liberdade ainda que provisória.

2. A prisão preventiva é mantida somente para os acusados de culpas gravíssimas - quando os indícios de culpabilidade sejam tais que façam parecer probabilíssima a condenação - e não deve ser prolongada por um período superior ao limite mínimo da condenação.

3. Os agentes, juízes, carcereiros, por culpa dos quais um cidadão seja arbitrariamente privado da liberdade, são obrigados a pagar ao desventurado uma indenização substancial, cada dez mil liras a abater em tantos dias de prisão em caso de insolvência, com inscrição na folha corrida penal, remoção do emprego e perda dos direitos civis por cinco anos.

A senha implica uma limitação, mas deve também significar uma garantia segura e concreta do mínimo de liberdade pactuado. A senha não deve existir somente para os cidadãos comuns, deve também existir para os cidadãos guardiões. É rigorosa para os primeiros, mas principalmente para os segundos. Não deve ocorrer como para o açúcar. A liberdade, como o pão, deve ser garantida: a senha da liberdade, como esta por nós invocada, existe há quase três séculos na Inglaterra, país aliado, que a combate também, a guerra pela liberdade e pela justiça. Que a introduza também o governo italiano, ainda que seja por decreto presidencial. No entanto, a Itália do "Corriere della Sera", que admira a Inglaterra pelos seus bilhões, tenciona uma senha... italiana: pelo açúcar, sem açúcar; pelo pão, sem o pão; pela liberdade, com Bava-Beccaris4 e com o estado de exceção.

GRAMSCI, A. La tessera della libertà, 10.09.1917. In: GRAMSCI, A. Scritti giovanili (1914-1918). Torino: Einaudi, 1975. p. 129-130.

1Gramsci refere-se ao artigo "O canto das sereias", censurado no "Grido del Popolo" no dia 6 de outubro de 1917 e liberado no "Avanti!" de 10 de outubro de 1917.

2Provavelmente Gramsci se refere a Giulio Casalini, que já havia se manifestado anteriormente junto ao Ministério do Interior para protestar contra os abusos da censura.

3Decreto que revogava o anterior, denominado Decreto Sacchi, promulgado em 4 de outubro de 1917, que havia instaurado a censura à imprensa, à palavra e às reuniões.

4Bava Beccaris era um general, designado comissário extraordinário na província de Milão, com plenos poderes para reprimir os movimentos populares que reivindicavam pão, em maio de 1898.

Referências

GRAMSCI, A. La Città Futura. Torino: Einaudi, 1982. [ Links ]

GRAMSCI, A. Scritti giovanili (1914-1918). Torino: Einaudi, 1975. [ Links ]

GRAMSCI, A. Sotto la Mole (1916-1920). Torino: Einaudi, 1975. [ Links ]

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