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Práxis Educativa

versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.14 no.2 Ponta Grossa maio/ago 2019  Epub 14-Jun-2019

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.14n2.006 

Artigos

Percepção do segundo professor de turma: limites e contribuições no processo de aprendizagem dos estudantes com deficiência

Perceptions of the assistant teacher: limits and contributions in the learning process of disabled students

Percepción del profesor auxiliar de clase: límites y contribuciones en el proceso de aprendizaje de los estudiantes con discapacidad

Rosilei Gugel Ficagna* 

Tania Mara Zancanaro Pieczkowski** 

*Professora da Universidade Comunitária da região de Chapecó - Unochapecó. E-mail: <rosilei.ficagna@unochapeco.edu.br>.

**Universidade Comunitária da região de Chapecó - Unochapecó. E-mail: <taniazp@unochapeco.edu.br>.


Resumo:

A Política de Educação Especial de Santa Catarina prevê a atuação do segundo professor de turma, como uma possibilidade de inclusão de estudantes com deficiência. Este artigo objetiva analisar como esse profissional percebe os seus limites e as suas contribuições no processo de aprendizagem dos estudantes com deficiência incluídos nas classes regulares nas escolas de ensino fundamental de abrangência da Gerência Regional de Educação (GERED) da Agência de Desenvolvimento Regional (ADR) de Palmitos (SC). Os procedimentos metodológicos adotados foram entrevistas narrativas com oito segundos professores de turma, contemplando oito municípios. As materialidades empíricas foram organizadas em agrupamentos temáticos e examinadas pela perspectiva da análise do discurso. A pesquisa evidencia limites e possibilidades e que as atribuições do segundo professor de turma precisam ficar mais explícitas para esses profissionais, para os demais docentes da escola e para os gestores escolares e das políticas estaduais de educação especial.

Palavras-chaves: Políticas de Educação Especial em Santa Catarina; Segundo professor de turma; Inclusão

Abstract:

The Special Education Policy of Santa Catarina provides the performance of the assistant teacher as a possibility of inclusion of students with disabilities. This article aims to analyze how this professional perceives his/her limits and contributions in the learning process of students with disabilities in regular classes of elementary schools within the scope of Regional Education Management (GERED) of the Regional Development Agency (ADR) of Palmitos (SC). The methodological procedures were narrative interviews with eight assistant teachers, from eight municipalities. The empirical materialities were organized into thematic groupings and examined from the perspective of discourse analysis. The research shows the limits and possibilities, as also as the duties of the assistants need to be more explicit for these professionals, for the school teaching body and for the school and state policies of special education administrators.

Keywords: Special Education Policies in Santa Catarina; Assistant teacher; Inclusion

Resumen:

La Política de Educación Especial de Santa Catarina contempla la actu ación del profesor auxiliar de clase, como una posibilidad de inclusión de estudiantes con discapacidad. Este artículo objetiva analizar como ese profesional percibe sus límites y sus contribuciones en el proceso de aprendizaje de los estudiantes con discapacidad incluidos en las aulas regulares en las escuelas de enseñanza fundamental de alcance de la Gerencia Regional de Educación (GERED) de la Agencia de Desarrollo Regional (ADR) de Palmitos (SC). Los procedimientos metodológicos adoptados fueron entrevistas narrativas con ocho profesores auxiliares de clase, contemplando ocho municipios. Las materialidades empíricas fueron organizadas en agrupamientos temáticos y examinadas por la perspectiva del análisis del discurso. La investigación evidencia límites y posibilidades y que las atribuciones del profesor auxiliar de clase necesitan quedarse más explícitas para esos profesionales, para los demás docentes de la escuela y para los gestores escolares y de las políticas estaduales de educación especial.

Palabras clave: Políticas de Educación Especial en Santa Catarina; Profesor auxiliar de clase; Inclusión

Introdução

Este texto está inspirado na dissertação de Mestrado em Educação da primeira autora, sob orientação da segunda autora, e aborda a atuação do Segundo Professor de Turma em escolas da rede estadual de educação pública de Santa Catarina.

Segundo Professor de Turma é o termo adotado pela Política de Educação Especial de Santa Catarina (2009a), para referir-se ao profissional que atua no atendimento em classe com alunos com deficiências, condutas típicas e altas habilidades, na corregência ou no apoio ao professor de turma. Salientamos que a terminologia segundo professor de turma é específica das políticas estaduais de Educação Especial de Santa Catarina.

O conceito de inclusão, amplamente difundido na contemporaneidade, traz a diversidade como atributo essencial para o desenvolvimento humano, reconhece o outro como sujeito histórico e social e projeta mudanças de concepções e atitudes. No contexto da inclusão de estudantes com deficiência na rede regular de ensino, onde existe matrícula de alunos com deficiência, se insere o trabalho do segundo professor de turma, previsto na Política de Educação Especial de Santa Catarina (SANTA CATARINA, 2009a).

O estudo, do qual resultou este artigo, foi direcionado para responder ao seguinte problema de pesquisa: como o segundo professor de turma percebe o seu trabalho e as suas contribuições na inclusão de estudantes com deficiência? Desta questão, derivaram novas perguntas, quais sejam: Como a escola acolhe o segundo professor de turma e quais os encaminhamentos realizados por ela como suporte para o desenvolvimento do trabalho? Quais as possibilidades de formação continuada na área de educação especial/inclusão da pessoa com deficiência para os segundos professores de turma? Como se estabelece a relação do segundo professor de turma com o professor titular da disciplina/turma, na percepção do segundo professor de turma? Como o segundo professor de turma percebe seus limites e as suas contribuições no processo de aprendizagem e desenvolvimento de estudantes com deficiência? Este artigo se detém sobre a última pergunta de estudo, que resultou no seguinte agrupamento temático e análises decorrentes: “Percepção do segundo professor de turma acerca dos seus limites e das suas contribuições no processo de aprendizagem dos estudantes com deficiência”.

O termo percepção vem do latim perceptio. É o ato de perceber, ação de formar mentalmente representações sobre objetos externos a partir dos dados sensoriais. A sensação é a matéria da percepção. Para os empiristas, a percepção é fonte de todo o conhecimento (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996). Para Merleau-Ponty (1999), o conhecimento está na capacidade de perceber o que nos cerca, o que implica também o processo de dar significado ao que foi assimilado pelos sentidos, para que se possa realizar as necessárias conexões entre os objetos perceptíveis, tornando possível vê-los como um todo.

A mobilização para a realização da pesquisa aconteceu a partir da nossa percepção do desafio cotidiano que os segundos professores de turma enfrentam no ato de incluir e ensinar estudantes com deficiência, condutas típicas e altas habilidades, público da Educação Especial, referenciados na Política de Educação Especial de Santa Catarina (SANTA CATARINA, 2009a).

O termo condutas típicas, presente neste artigo quando faz referência às políticas de Educação Especial de Santa Catarina, atualmente não é utilizado nos documentos que orientam e normatizam a Educação Especial no Brasil. O termo constava na Política Nacional de Educação Especial, na versão de 1994, referindo:

Manifestações de comportamento típicas de portadores de síndromes e quadros neurológicos ou psiquiátricos que ocasionam atrasos no desenvolvimento e prejuízos no relacionamento social, em grau que requeira atendimento educacional especializado. (BRASIL, 1994, p. 13-14).

Na esteira dessa definição, o Conselho Estadual de Educação - CEE, em 1996, ao instituir as Diretrizes da Educação Especial no sistema de ensino, mantém a terminologia. Segundo a Política de Educação Especial de Santa Catarina (2009a), nas escolas, a expressão condutas típicas tem sido adotada como sinônimo de transtorno de comportamento, inserindo nesta categoria os estudantes com “dificuldade de aprendizagem, fracasso escolar, transtorno de conduta e uma série de outras manifestações de ordem social e econômica que interferem no comportamento e no processo de ensino e aprendizagem” (p. 26).

Apesar do termo ter gerado polêmicas, a Política de Educação Especial de Santa Catarina (2009a), manteve a nomenclatura condutas típicas, para se referir aos educandos: a) com Transtornos Hipercinéticos ou do Déficit de Atenção com Hiperatividade/Impulsividade, caracterizados “pela combinação de comportamento hiperativo/impulsivo com desatenção marcante” (SANTA CATARINA, 2009a, p. 27) e b) com Transtornos Globais do Desenvolvimento - TGD, incluindo os estudantes “com diagnóstico de autismo, síndrome do espectro do autismo, síndrome de Rett, síndrome de Asperger e os transtornos globais não especificados do desenvolvimento” (SANTA CATARINA, 2009a, p. 27).

Mais recentemente, a Resolução 100/CEE/2016, altera a terminologia relativa ao público da Educação Especial. A expressão condutas típicas deixa de estar presente, e a Educação Especial, no Art. 1º, passa a ser entendida como:

[...] a modalidade de educação escolar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino para o atendimento das necessidades educacionais especiais de alunos com deficiência, transtorno do espectro autista, transtorno de déficit de atenção/hiperatividade e altas habilidades/superdotação. (SANTA CATARINA, 2016).

Investigar a inclusão é uma forma de contribuir para que haja mudanças que ajudem a compreender e reconhecer a diferença1. Romper com as lógicas já instaladas, que naturalizam a inclusão posta como verdade única e imutável e a crença de que o modelo que está posto seja o mais correto, é uma das razões que nos mobilizaram para esta investigação.

Entendemos o conceito de inclusão, como um movimento que acontece na contemporaneidade, no sentido de transformar as estruturas para acolher a diferença. A educação de pessoas com deficiência já aconteceu de outras formas como a institucionalização, a normalização e a integração, e cada conceito abarca em si formas de tratar os sujeitos. Entendemos, também, que se inclusão é um movimento contemporâneo, é possível pensá-lo e repensá-lo a todo o momento e modificar as práticas, as metodologias e os jeitos de fazer.

Caminho metodológico

O estudo partiu de uma busca de trabalhos já publicados acerca da temática no banco de dados das universidades de Santa Catarina, em um recorte temporal de 2010 a 2016. Para a busca nos sites de pesquisa, adotamos, como termos indutores: segundo professor de turma e estudantes com deficiência no ensino fundamental em Santa Catarina. Localizamos produções compatíveis ao nosso interesse de investigação nas bibliotecas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), da Universidade do Vale do Itajai (Univali), da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó) e da Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB). Embora os estudos apresentem aproximações com nosso objetivo, não responderam às especificidades da nossa busca. Nas demais universidades de Santa Catarina não foram localizadas publicações consonantes ao tema da pesquisa.

Nesse sentido, compreendemos a pertinência em realizar a pesquisa sobre o trabalho do segundo professor de turma na inclusão de estudantes com deficiência no ensino fundamental do 1º ao 9º ano e suas contribuições nesse processo, pois existem poucos estudos em relação ao tema, que é relativamente novo e vem sendo discutido e consolidado em Santa Catarina, influenciando, inclusive, as Políticas dos distintos municípios do Estado.

Para delimitar o universo da pesquisa, partimos de uma análise documental na Agência de Desenvolvimento Regional (ADR) de Palmitos, município localizado no oeste de Santa Catarina, campo de atuação profissional da primeira autora deste artigo. Constatamos que a ADR de Palmitos possuía, no momento da pesquisa, vinte (20) escolas que ofertavam ensino fundamental e que no ano do início da investigação (2014), dezesseis (16) escolas ofereceram o serviço de atendimento de segundo professor em classe. De posse dessa informação, foram delimitadas 50% das escolas como campo investigativo, portanto, oito (8) escolas que ofereciam atendimento em classe de segundo professor de turma formaram o lócus de pesquisa. Cada uma das oito (8) escolas localiza-se em um município diferente, ou seja, a pesquisa contemplou a totalidade dos oito (8) municípios pertencentes à ADR de Palmitos. Ainda, utilizamos o critério de entrevistar os docentes que apresentassem o maior tempo na atuação como segundo professor de turma na escola lócus da investigação.

O estado de Santa Catarina, desde o ano de 2003, possui uma organização político administrativa peculiar em relação aos outros Estados do Brasil, pois passou a dividir as regiões por Secretarias de Desenvolvimento Regional. A Lei n. 16.795, de 16 de dezembro de 2015 (SANTA CATARINA, 2015), dispõe sobre a transformação das Secretarias de Estado de Desenvolvimento Regional em Agências de Desenvolvimento Regional. Em decorrência dessa Lei, em 2016, as Secretarias passaram por mudanças regimentais, sendo renomeadas Agências Regionais, uma vez que se levou em conta o conceito de descentralização e a articulação para o desenvolvimento regional. Santa Catarina está dividida em trinta e cinco (35) Agências Regionais, abrangendo as Gerências de educação, saúde, infraestrutura, social, planejamento, administração e agricultura. Neste contexto, está inserida a 28ª Agência de Desenvolvimento Regional de Palmitos, lócus da pesquisa.

Para o estudo, que resultou na Dissertação de Mestrado, foram sujeitos da pesquisa, por meio de entrevistas narrativas, oito (8) docentes atuantes como segundas professoras de turma com estudantes com deficiência em turmas de Ensino Fundamental de escolas de Educação Básica da Agência de desenvolvimento Regional (ADR) de Palmitos (SC). As entrevistas aconteceram após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos (CEP) e com a autorização assinada do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TLCE) pelas professoras envolvidas. Um roteiro com tópicos orientadores foi utilizado durante as entrevistas. As narrativas foram gravadas, transcritas e organizadas em agrupamentos temáticos. O material empírico gerado por meio de entrevistas narrativas foi examinado pela perspectiva da análise do discurso, amparada em referenciais foucaultianos.

No Quadro 1, é possível visualizar, sinteticamente, o perfil das docentes entrevistadas que atuam como segundas professoras de turma na área da Educação Especial na ADR de Palmitos. Cabe ressaltar que 100% dos docentes entrevistados são Admitidas em Caráter Temporário (ACTs), ou seja, não são concursadas e necessitam, periodicamente, concorrer à renovação de suas vagas de trabalho.

Quadro 1 Caracterização das docentes entrevistadas e dos estudantes atendidos. 

Docentes Instituição Formação Tempode atuaçãona docência Tempo de atuação como segundaprofessora de turma Turmas Caraterização dos estudantes
A EEB* A Pedagogia - Habilitação em Educação Especial 11 anos 5 anos 7º ano Deficiência intelectual
B EEB B Pedagogia - Habilitação em Educação Especial 12 anos 8 anos 8º ano Deficiência intelectual
C EEB C Pedagogia 6 anos 4 anos 8º ano Deficiência física
D EEB D Pedagogia - Habilitação em Educação Especial 10 anos 5 anos 4º e 7º ano Deficiência intelectual e TDAH*
E EEB E Pedagogia - Habilitação em Educação Especial 8 anos 7 anos 7º e 9º ano Deficiência intelectual e deficiência física
F EEB F Pedagogia 4 anos 4 anos 1ª e 3ª séries Deficiência intelectual, baixa visão e TDAH
G EEB G Pedagogia - Habilitação em Educação Especial 10 anos 4 anos 7º e 8º anos TDAH e deficiência intelectual leve
H EEB H Pedagogia - Habilitação em Educação Especial 14 anos 10 anos 8º ano Deficiência intelectual

Fonte: Elaborado pelas autoras.

* EEB - Escola de Educação Básica.* Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade.

Como perspectiva teórica, nos amparamos especialmente em Foucault, cujos escritos nos ensinam a tensionar, a desnaturalizar o que está posto, o que pensamos e fazemos, e criar novas alternativas para a ação. Nos ajuda a compreender a complexidade da tarefa de ser professor e educador numa sociedade complexa. Nos amparamos, também, na afirmação de Meyer e Paraíso (2012), quando anunciam que devemos nos afastar daquilo que é rígido, das verdades absolutas e devemos nos aproximar daquilo que nos move, que coloca em xeque nossas verdades, auxilia a encontrar respostas às nossas indagações. Para tanto, olhar para as narrativas docentes nos pareceu uma das possibilidades para compreender como os discursos da inclusão produzem efeitos de verdades e subjetivação. Isso nos possibilita colocar em suspeição as verdades e as coisas dadas como naturais no processo de educação inclusiva.

Segundo Andrade (2012, p. 175), referindo-se às entrevistas narrativas, as mesmas “não permitem dizer uma ou a verdade sobre as coisas e os fatos, mas pode-se considerá-las como a instância central que, somada a outras, traz informações fundamentais acerca do vivido e possibilita uma interpretação”, mesmo que provisória e parcial, das vivências dos sujeitos. A entrevista narrativa, para Andrade (2012, p. 173), “[...] é uma possibilidade de pesquisa ressignificada no campo de pesquisa pós-estruturalista em uma perspectiva etnográfica”. A autora afirma, ainda, que “[...] as narrativas são constituídas a partir da conexão entre discursos que se articulam, que se sobrepõem, que se somam ou, ainda, que diferem ou contemporizam” (ANDRADE, 2012, p. 179).

Segundo Fischer (2001), o convite de Foucault é que, através da investigação dos discursos, nos defrontemos com nossa história ou nosso passado, aceitando pensar de outra forma o agora que nos é tão evidente. Fischer (2001) ressalta que, para Foucault,

[...] nada há por trás das cortinas, nem sob o chão que pisamos. Há enunciados e relações, que o próprio discurso põe em funcionamento. Analisar o discurso seria dar conta exatamente disso: de relações históricas, de práticas muito concretas, que estão ‘vivas’ nos discursos. (FISCHER, 2001, p. 198-199).

Para Foucault, o discurso é apresentado como “[...] número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência [...]” (FOUCAULT, apud FISCHER, 2001, p. 201). Discursos, segundo Foucault, são condicionados por práticas, sendo necessário tratá-los não como conjunto de signos,

[...] mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos, mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse ‘mais’ que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse mais que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever. (FOUCAULT, 2013, p. 54-55).

Dessa forma, tomamos o discurso como um “conjunto de enunciados (o que pode ser enunciável) que se apoiem na mesma formação discursiva” (FOUCAULT, 2013, p. 131). O enunciado é “uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que [estas] apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço” (FOUCAULT, 2013, p. 143).

Em consonância com a perspectiva foucaultiana, e operando com noções de verdade e subjetivação, não houve a pretensão de tecer juízos de valor ou apontar o caminho verdadeiro, mas evidenciar os efeitos de verdade criados pelas políticas de inclusão.

O serviço de atendimento em classe do segundo professor de turma na Política de Educação Especial do Estado de Santa Catarina

A política de inclusão de estudantes com deficiência, em Santa Catarina, trouxe uma organização bastante peculiar em relação aos demais Estados brasileiros. Um dos aspectos diferenciais, que se mostra bastante polêmico na atualidade, diz respeito ao serviço de atendimento em classe do segundo professor de turma. Salientamos que durante todo o texto utilizamos o mesmo termo referenciado no documento da Política de Educação Especial de Santa Catarina, para denominar este profissional, embora tensionemos esta nomenclatura, porque compreendemos que o termo segundo denota um profissional de menor importância do que o primeiro, ou do professor titular, e, por isso, tenha atribuições que podem diferir das previstas na sua formação profissional e das do professor titular da turma em que atua, o que reverbera em falta de equidade no trabalho docente.

A inclusão do estudante na escola impõe mudanças de atuação que são indissociáveis das mudanças de concepções de todos os atores envolvidos, seja no plano teórico, prático e, principalmente, ideológico. Nesse sentido, conceber a escola, o aluno e o processo de inclusão de outro modo implica em uma prática pedagógica diferenciada. O desafio de ensinar a todos os estudantes na escola remete a indagações sobre o atual contexto do atendimento dos estudantes da educação especial, para que se possa ver além da deficiência e as diferenças possam ser consideradas peculiaridades a serem reconhecidas pela escola.

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva (BRASIL, 2008) prevê, sucintamente ao final do texto, um profissional de apoio ou monitor para apoiar os estudantes com deficiência e a turma na qual esse estudante está inserido, nas questões inerentes aos cuidados e ao ensino e aprendizagem. Embora esteja previsto no texto da Política Nacional este apoio, não estão explícitas as atribuições, ou seja, fica à mercê da interpretação de cada Estado, de cada escola e de cada professor a forma como o atendimento em classe do profissional de apoio ou monitor ocorrerá.

A Política de Educação Especial de Santa Catarina (SANTA CATARINA, 2009a), assegura o acesso de estudantes com deficiência à escola regular mediante a garantia de matrícula e frequência e a disponibilização de um conjunto de recursos educacionais e serviços que possibilitem a permanência, com qualidade, dos estudantes com deficiência na escola. Neste conjunto de recursos, inclui-se o atendimento em classe do segundo professor de turma. Esse atendimento se caracteriza pela atuação de um profissional que poderá ser da área da educação ou da saúde, para atender os estudantes com necessidades especiais. No entanto, a parceria com a área da saúde não chegou a se efetivar, restando para o profissional da área da educação atender todas as demandas dos estudantes com deficiência.

Nas diretrizes do atendimento em classe descritas no Programa Pedagógico (SANTA CATARINA, 2009b), o texto contempla que o segundo professor de turma “[...] deve junto com o professor titular acompanhar o processo de aprendizagem, de todos os estudantes da turma” (p. 16), e não ficar sob a responsabilidade do segundo professor de turma o processo de ensino e aprendizagem do estudante com deficiência, como se esse estudante não integrasse o grupo. Assim, esse aluno é de responsabilidade também do professor titular. No entanto, por mais que esteja explícito no texto, o engajamento de toda a escola na inclusão dos estudantes com deficiência é um aspecto a ser conquistado ou melhorado.

Ao olhar para as atribuições do segundo professor de turma contidas no Programa Pedagógico (SANTA CATARINA, 2009b), percebe-se que recai sobre eles grande parcela de responsabilização pelo êxito do processo de inclusão.

Segundo Pieczkowski (2014), no Estado de Santa Catarina, as iniciativas de integração escolar de estudantes com deficiência ganharam ênfase a partir de 1987, com a reformulação do sistema estadual de ensino e com a deflagração da matrícula compulsória, estabelecida no plano de matrícula escolar 1987-1991. Dessa forma, a partir de 1987, no viés da matrícula compulsória, a Secretaria de Estado da Educação implementou outras diretrizes para dar sustentação a esta nova realidade.

A Lei Complementar nº 170/98 (SANTA CATARINA, 1998), de âmbito estadual, dispõe sobre o Sistema Estadual Educacional estabelecendo em seu artigo 5º, inciso IV, a responsabilidade do Estado com a educação escolar pública, mediante a garantia do “atendimento educacional especializado aos educandos com necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino”. Definiu também, em seu artigo 63, a Educação Especial como um “processo interativo de educação escolar que visa à prevenção, ao ensino, à reabilitação e à integração social de educandos portadores de necessidades especiais [...]”, instituindo que:

§ 1º Haverá, quando necessário, serviços de apoio especializado na escola regular, para atender as peculiaridades de educandos com necessidades especiais. § 2º O atendimento educacional será feito em classes, escolas ou serviços especializados, sempre que, em função de condições específicas dos alunos, não for possível sua integração nas classes comuns de ensino regular. § 3º A oferta da educação especial é dever constitucional do Estado, tendo início na faixa etária de zero a seis anos, durante a educação infantil, prolongando-se por toda a educação básica. (SANTA CATARINA, 1998, p. 8).

A Lei Complementar 170/98, assegura, no artigo 64, que o Poder Público tem o dever de garantir:

I - espaços adequados e facilitados, currículos próprios, métodos, técnicas e recursos pedagógicos e tecnológicos para atender às necessidades dos educandos com necessidades especiais; II - professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como treinamento permanente a professores do ensino regular, visando à integração dos educandos com necessidades especiais nas classes comuns; III - inclusão de conteúdos sobre educação especial nas disciplinas componentes dos currículos dos cursos de formação de professores de nível médio e superior; VIII - escolas com atendimento em tempo integral para as pessoas portadoras de deficiências, além de equipes especializadas para o atendimento domiciliar, visando à integração com a comunidade e a orientação adequada aos familiares dos educandos com necessidades especiais. (SANTA CATARINA, 1998, p. 8).

No ano de 2001, o Estado de Santa Catarina elaborou o documento Política de Educação Inclusiva (SANTA CATARINA, 2001), fundamentado nos princípios constitucionais da cidadania, democracia e participação social, visando à educação pública, gratuita e de qualidade a todos. Tal Política foi baseada nos princípios constitucionais da cidadania, democracia e participação social, prezando por uma educação pública, gratuita e de qualidade para todos.

De acordo com as políticas consolidadas em âmbito nacional, em 2006, Santa Catarina, por intermédio da Secretaria Estadual de Educação e da Fundação Catarinense de Educação Especial, fundamentada nos preceitos legais, instituiu a Política de Educação Especial do Estado de Santa Catarina (SANTA CATARINA, 2006a), tendo como base a cidadania e a dignidade da pessoa humana, preconizados na Constituição Estadual de 1989. O diferencial da implantação desta política em relação ao período anterior é o fato de que a mesma contempla em sua redação o compartilhamento de responsabilidades entre as diferentes Secretarias de Estado, principalmente com as de Saúde, Infraestrutura, Assistência Social, Trabalho e Habitação.

Em 2006, o Conselho Estadual de Educação dá sustentação legal a esta Política aprovando a Resolução nº 112/CEE/2006, fixando normas para esta modalidade de educação no Estado, definindo em seu Artigo 1º que:

A Educação Especial integra o Sistema Estadual de Educação de Santa Catarina, caracterizada como modalidade que demanda um conjunto de procedimentos e recursos específicos que visam ao ensino, à prevenção, à reabilitação e à profissionalização da pessoa com deficiência, condutas típicas e altas habilidades. (SANTA CATARINA, 2006b).

O Estado de Santa Catarina reformulou a Política de Educação Especial em 2009, três anos após sua primeira edição, considerando que neste período documentos elaborados em âmbito nacional e internacional estabeleceram novas diretrizes à educação especial. A Política garante às pessoas com deficiência, condutas típicas e altas habilidades, o atendimento educacional especializado, contemplando os direitos previstos nas legislações da educação.

A referida Política prevê serviços oferecidos pelo poder público para atender às necessidades das pessoas com deficiências da rede regular de ensino e tem caráter de apoio, suplemento ou complemento, que podem ser

[...] em turmas das séries finais do ensino fundamental, ensino médio, nas modalidades da Serviço de Atendimento Educacional Especializado - SAEDE; Serviço de Atendimento Especializado - SAESP; Turma Bilíngue - LIBRAS/Português, na educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental para educandos com deficiência auditiva; Professor intérprete na Educação Básica e no nível superior; Instrutor de Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS em todos os níveis de ensino, etapas e modalidades da Educação Básica; Professor de educação especial nas turmas de todas as etapas e modalidades da Educação Básica, nas quais estiverem matriculados educandos com diagnóstico de condutas típicas ou com severos comprometimentos motores; Acompanhante terapêutico, da área da saúde, aos educandos que necessitarem de atendimento individualizado em função de necessidades específicas; Técnico da área da saúde, em escolas onde houver matrícula de alunos da educação especial com comprometimento clínico que demandem supervisão constante. (SANTA CATARINA, 2009a, p. 26).

O Programa Pedagógico (SANTA CATARINA, 2009b) traça as diretrizes dos serviços de Educação Especial e, em consonância com o documento da Política de Educação Especial de Santa Catarina (SANTA CATARINA, 2009a), são definidas as atribuições do segundo professor de classe, que são:

Planejar e executar as atividades pedagógicas, em conjunto com o professor titular, quando estiver atuando nas séries iniciais do ensino fundamental; propor adaptações curriculares nas atividades pedagógicas; participar do conselho de classe; tomar conhecimento antecipado do planejamento do professor regente, quando o educando estiver matriculado nas séries finais do ensino fundamental; participar com o professor titular das orientações (assessorias) prestadas pelo SAEDE e/ou SAESP; participar de estudos e pesquisas na sua área de atuação mediante projetos previamente aprovados pela SED e FCEE; sugerir ajudas técnicas que facilitem o processo de aprendizagem do aluno da educação especial; cumprir a carga horária de trabalho na escola, mesmo na eventual ausência do aluno; participar de capacitações na área de educação. (SANTA CATARINA, 2009b, p. 17).

Ainda, observa-se no documento que:

O segundo professor não pode assumir ou ser designado para outra função na escola que não seja aquela para a qual foi contratado. Este professor não deve assumir integralmente o(s) aluno(s) da educação especial, sendo a escola responsável por todos, nos diferentes contextos educacionais: recreio dirigido, troca de fraldas, alimentação, uso do banheiro, segurança etc. (SANTA CATARINA, 2009b, p. 17).

A mudança de uma educação especial institucionalizada para a inserção de estudantes com deficiência em escolas regulares foi (e ainda é) um processo complexo. Muitos temores assombraram professores, famílias, gestores e demais segmentos educacionais. Como estudantes com deficiência seriam recebidos nas escolas? E o “despreparo” docente, muitas vezes apontado como um empecilho? Como trabalhar com turmas de 30 e “mais um”, este com deficiência? Essas manifestações/inquietações muitas vezes foram ouvidas em nossas vivências profissionais. Esses receios podem imobilizar as mudanças sociais necessárias. Isso nos remete a uma citação de Biklen (1985, p. 16 apud STAINBACK; STAINBACK, 1999, p. 433) ao narrar que:

Na época da Guerra Civil Americana, Abraham Lincoln deveria ter pedido para ver a evidência científica dos benefícios de se pôr fim à escravidão? Deveria ter consultado ‘os especialistas’, quem sabe um sociólogo, um economista, um cientista político? Claro que não. A escravidão não é agora, e não era na época, uma questão para a ciência. É uma questão moral. Mas, apenas por um momento, suponha que um economista tivesse sido capaz de demonstrar que os negros - e todo o Sul - sofreriam economicamente com a emancipação. Isso justificaria manter a escravidão? E suponha que um cientista político houvesse argumentado que os negros não tinham experiência com a democracia, não estavam preparados para ela. Isso teria justificado prorrogar a escravidão? Ou imagine que um sociólogo pudesse ter aconselhado Lincoln contra a abolição da escravidão, argumentando que ela destruiria a estrutura social básica das plantações, das aldeias e das cidades do Sul. Todos esses argumentos poderiam ter parecido ‘verdadeiros’. Mas poderiam realmente justificar a escravidão? É claro que não. A escravidão não tem justificativa.

Os argumentos apresentados pelo autor, sobre a escravidão, mostram que algumas coisas são de ordem moral e ética. Da mesma forma que a escravidão não se justifica, defendemos a ideia de que a segregação das pessoas com deficiência também não tem justificativa, razão pela qual acreditamos na construção social de um novo olhar para com as diferenças na escola regular, na vida e em toda sociedade.

Com a implantação da Política de Educação Especial por meio da Resolução 112/CEE/2006, o Estado de Santa Catarina investiu em contratação de segundos professores de turma para atuar com alunos com diagnóstico de deficiências nos diferentes serviços previstos na Política: como o Serviço de Atendimento Educacional Especializado (SAEDE), intérprete de Libras e instrutor de Libras, formação continuada, mobiliário adaptado, tecnologia assistiva e adaptação física nas escolas, visando à acessibilidade.

O atendimento em classe pelo segundo professor de turma foi se configurando como um direito. Assim, todo estudante com diagnóstico de deficiência, comprovada a necessidade do atendimento de um segundo professor de turma, tem seu parecer favorável no processo analisado pela Fundação Catarinense de Educação Especial e pela Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina.

No ano de 2016, o Conselho Estadual de Educação de Santa Catarina aprovou a Resolução 100/CEE/2016, que estabelece normas para a Educação Especial no Sistema Estadual de Educação de Santa Catarina, revogando a Resolução 112/CEE/2006. Dentre as mudanças apresentadas, destacamos a alteração de redação, especialmente no Artigo 2º, inciso IV, no que tange ao segundo professor de turma. Na resolução 112/CEE/2006 estava previsto atendimento em classe de segundo professor de turma para estudantes que apresentassem Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) ou Déficit de Atenção. A Resolução 100/CEE/2016 apresenta a seguinte redação:

Segundo Professor de Turma - disponibilizado nas turmas com matrícula e frequência de alunos com diagnóstico de deficiência intelectual, transtorno do espectro autista e ou deficiência múltipla que apresentem comprometimento significativo nas interações sociais e na funcionalidade acadêmica. Disponibilizado também nos casos de deficiência física que apresentem sérios comprometimentos motores e dependência em atividades de vida prática. (SANTA CATARINA, 2016).

Para os estudantes com diagnóstico de TDAH, pela Resolução n.100/CEE/2016, está previsto o Atendimento Educacional Especializado (AEE) no contraturno da frequência à escola, e não mais o serviço de atendimento em classe de segundo professor de turma.

Em uma busca na Gerência Regional de Educação (GERED), na Agência de Desenvolvimento Regional (ADR) de Palmitos (SC), região onde foi desenvolvido o estudo, constatamos que em 2016, segundo registros no Sistema de Gestão Educacional de Santa Catarina (SISGESC), havia um quadro de 68 docentes contratados temporariamente, que atuavam como segundos professores de turma, atendendo 98 estudantes com deficiência. Após dez anos de implantação da Política de Educação Especial, parece-nos que existem algumas lacunas que merecem ser observadas com as lentes da pesquisa, a exemplo da rotatividade dos segundos professores de turma nessa função e da falta de estabilidade profissional, o que pode gerar desmotivação para investir na carreira.

Percepção dos segundos professores de turma acerca dos seus limites e das suas contribuições no processo de aprendizagem dos estudantes com deficiência

Nesse tópico, procuramos evidenciar, por meio da análise do discurso com base em Foucault, como as entrevistadas percebem seus limites e as suas contribuições como agentes de aprendizagem de estudantes com deficiência. Buscamos compreender também como são subjetivadas pelos discursos da inclusão.

Segundo Fischer (2003),

[...] Foucault afirma que a palavra, o discurso, enfim, as coisas ditas não se confundem com meras designações: palavras e coisas para ele têm uma relação extremamente complexa, justamente porque são históricas, são construções, interpretações; jamais fogem às relações de poder; palavras e coisas produzem sujeitos, subjetividades, modos de subjetivação. (FISCHER, 2003, p. 373).

Salientamos que subjetivação, para Foucault, designa “[...] um processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito, ou, mais exatamente, de uma subjetividade” (REVEL, 2005, p. 82).

Amparada em referenciais foucaultianos, Fischer (2001) afirma que o discurso deve ser pensando enquanto prática discursiva que emerge do cotidiano, nas relações entre os sujeitos, num determinado tempo, espaço e lugar, e que está imerso em relações de poder e saber que se implicam mutuamente. Para Foucault, “o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta” (FOUCAULT, 2005, p. 96).

Ao expor as multiplicidades dos discursos, descrevemos um pouco dos regimes de verdade que foram se constituindo em práticas subjetivas dos docentes em relação ao trabalho deles. Nessa perspectiva, entendemos que, ao falarmos sobre alguma coisa ou alguém, estamos empreendendo um exercício de poder. Quem fala acaba por instituir formas de olhar para aquilo ou aquele sobre quem fala, ou seja, a significação das pessoas e das coisas que constituem a cultura não se dá de forma natural, sendo socialmente produzida.

Nesse sentido, nos sentimos instigadas a evidenciar a “multiplicidade e a complexidade dos fatos e das coisas ditas, que são, por isso mesmo, raros, no sentido de que não são óbvios, não são naturais, não estão imunes a imprevisibilidades” (FISCHER, 2001, p. 103).

Sobre a percepção acerca do trabalho de segundo professor de turma, as narrativas docentes evidenciam aspectos que se configuram como desafios e dificuldades para desenvolver o trabalho e também aspectos positivos, a partir dos quais realizamos a análise discursiva.

Não pretendemos identificar a verdade ou emitir juízo de valor em relação aos sujeitos pesquisados, mas entender o papel do segundo professor de turma no processo de inclusão, a partir da perspectiva desse profissional. Sendo assim, não temos a intenção de dizer o que o sujeito deve fazer, mas a partir das reflexões, contribuir para que o mesmo ressignifique a sua prática.

Com o intuito de acolher a diversidade, que se manifesta no contexto da escola inclusiva, é possível observar uma tendência para que os planejamentos educacionais sejam mais flexíveis. Realizar adequações curriculares é uma das atribuições do segundo professor de turma, o que favorece o acesso de estudantes com necessidades especiais ao conhecimento. Leite e Martins (2010, p. 358) referem que tal situação se ampara em políticas governamentais que sustentam a promoção de práticas pedagógicas centradas nos estudantes, em função de suas necessidades. No entanto, tais práticas nem sempre são proporcionadas porque o currículo das escolas ainda se configura como rígido e excludente, e não favorece a abertura para que as diferenças e peculiaridades dos estudantes sejam reconhecidas.

O Art. 59 da Lei de Diretrizes e Bases Nacionais para a Educação - LDB, 9.394/1996 cita que “[...] os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com necessidades especiais: I - currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos, para atender às suas necessidades.” (BRASIL, 1996, p. 19).

Desta forma, torna-se prática dos segundos professores de turma fazer tentativas de adequar o currículo para que o estudante com deficiência possa participar das atividades propostas, mesmo que em um grau de dificuldade menor.

A pesquisa evidenciou inquietações docentes com referência às adaptações curriculares, referindo dificuldades em realizar esse trabalho, pela pouca articulação com o professor da turma. Os docentes se encontram durante as aulas, mas o planejamento, normalmente, fica a cargo do professor titular. O Programa Pedagógico indica ao segundo professor de turma a atribuição de “[...] propor adaptações curriculares nas atividades pedagógicas” (SANTA CATARINA, 2009b, p. 17), para o trabalho com estudantes com deficiência. Segundo as entrevistadas, adaptações acontecem, mas a ação poderia ser mais qualificada se o planejamento conjunto fosse mais efetivo e apropriado pelo segundo professor de turma com antecipação.

A ausência ou escassez de planejamento conjunto se mostra bastante perversa, o que explicita a Docente A:

A gente procura conversar em sala de aula mesmo. Busco adaptar conforme a necessidade, a possibilidade de se fazer esse trabalho. Alguns professores compreendem melhor o processo da educação especial e da dificuldade dos alunos. Alguns ainda resistem. (DOCENTE A).

[...] não adianta tapar o sol com a peneira! Não é possível sentar com todos e planejar! Até porque os nossos horários não condizem e o tempo do segundo professor é limitado, porque nós trabalhamos 40 horas efetivamente em sala de aula. (DOCENTE A).

Ao mesmo tempo que a Política de Educação Especial prevê que uma das atribuições do segundo professor de turma é “[...] planejar e executar as atividades pedagógicas em conjunto com o professor titular nas séries iniciais [...] e tomar conhecimento antecipado do planejamento do professor regente nas séries finais” (SANTA CATARINA, 2009b p. 17), todas as docentes entrevistadas revelam viver a condição de não planejar com o professor titular da turma. Destacamos a narrativa da Docente A, para apresentar o relato reiterado pelas demais entrevistadas.

Ao relatar que encontram dificuldades para que o aluno consiga elaborar conceitos em relação aos conteúdos trabalhados, e não conseguir realizar as adequações de currículo necessárias para que aconteça a aprendizagem, percebemos por meio da pesquisa que, neste processo, o segundo professor de turma desempenha, em algumas escolas, um papel solitário e deslocado das discussões que seriam essenciais e de responsabilidade de toda a equipe da escola. A Docente C refere que

elaborar conceitos, construir aprendizagem com estes estudantes é muito difícil, porque temos que fazer isso praticamente sozinhas, sem muita discussão e apoio. (DOCENTE C).

Concordamos que propostas curriculares generalistas não são viáveis para atender à demanda da diversidade que se agrupa no ambiente escolar, sendo justificável que haja flexibilização do currículo para cada contexto. Ao realizar as adaptações sem a devida discussão com seus pares, a docente poderá estar, de certa forma, assumindo uma responsabilidade que não é exclusiva do segundo professor. Nesse sentido, entendemos que, sendo o currículo o conjunto de ações e intenções da escola, precisa ser amplamente discutido com toda comunidade escolar, e há a necessidade de planejar conteúdos e estratégias que venham ao encontro da identidade da escola, dos estudantes, dos docentes e de todos os envolvidos, ou seja, é tarefa de todos e não somente responsabilidade do segundo professor de turma. A autorresponsabilização dos segundos professores de turma, segundo os seus relatos, vem gerando desgastes emocionais, como evidenciado no relato da Docente A:

Percebo que na escola ora sou considerada como professora, ora como auxiliar da classe. Parece que não há um entendimento do meu papel enquanto segunda professora. Isso faz com que me sinta mal em relação aos meus colegas. (DOCENTE A).

Compreendemos que, ao escolher uma vaga para atuar com estudantes com deficiência, os segundos professores de turma já estão subjetivados para assumir uma gama de responsabilidades, impostas por discursos normativos e escolares, de que serão os responsáveis, ou os principais responsáveis, por todo o processo de ensino e aprendizagem do estudante com deficiência. Nesse sentido, a Docente C declara:

No início éramos recebidas e diziam: fulano de tal é teu aluno e ponto. Eles eram deixados de lado. Se eu, segunda professora, não colocasse eles em atividade e não adequasse os conteúdos que também é o papel do segundo professor, isso não ocorria pelo titular. (DOCENTE C).

As narrativas docentes evidenciam que o segundo professor de turma pode ser considerado como um “porto seguro” para os sujeitos com deficiência e que este trabalho permite uma proximidade maior com tais estudantes. Revelam, também, a preocupação com o cuidar, com o bem-estar e com a proximidade da vida dos discentes, afirmando que o seu trabalho é fundamental no processo de inclusão e que, ao frequentar a escola, o estudante com deficiência encontra um espaço de socialização.

Vale ressaltar que lidar com a diferença não se revela tarefa simples nas escolas. Percebemos que a diferença ainda não é reconhecida pela instituição escolar, que está estruturada em tempos e espaços iguais para sujeitos diferentes, ou seja, se organiza com base na identidade.

Silva (2014), ao tratar o tema diversidade, nos provoca a refletirmos acerca de identidade e diferença. Define o autor que:

[...] identidade não é uma essência; não é um dado ou um fato - seja da natureza, seja da cultura. A identidade não é fixa, estável, coerente, unificada, permanente. A identidade tampouco é homogênea, definitiva, acabada, idêntica, transcendental. [...] identidade e diferença têm a ver com a atribuição de sentido ao mundo social e com a disputa e luta em torno dessa atribuição. (SILVA, 2014, p. 96).

Acerca da identidade, salientamos afirmações de Moreira e Câmara (2013, p. 42) quando dizem que “nossa identidade vai sendo tecida de modo complexo, em meio às relações estabelecidas que variam conforme as situações em que nos colocamos”. Os autores fazem uma aproximação entre identidade e diferença muito pertinente para entender que as mesmas são inseparáveis. “Associamos diferença ao conjunto de princípios de seleção, inclusão e exclusão que norteiam a forma pela qual os indivíduos marginalizados são situados e constituídos em teorias, políticas e práticas sociais dominantes” (MOREIRA; CÂMARA, 2013, p. 44).

Entendemos que a diferença constitui a identidade de cada sujeito, sujeito, e, como diz Silva (2014), a segunda é inacabada, instável, contraditória, uma construção social permeada por relações de poder. Se assim se entende a questão da identidade e da diferença, é possível desafiá-las, contestá-las e desestabilizar o processo de produção dessas diferenças.

Os elementos evidenciados pelas docentes entrevistadas, como a rotatividade dos professores, o desafio de trabalhar com estudantes das séries finais - que demanda do segundo professor de turma o conhecimento específico de cada disciplina, na perspectiva da depoente - e a falta de tempo para encontros de planejamento com o professor titular da turma, se mostram como dificultadores para o trabalho do segundo professor. É visível a precarização do trabalho docente quando se exige que o mesmo dê conta de tantas tarefas que devem ser pensadas no coletivo da escola.

Um dos fatores que mais fragiliza os sujeitos da pesquisa diz respeito à rotatividade. Percebemos a falta de valorização profissional quando, ao mesmo tempo que a política prevê o atendimento em classe do segundo professor de turma, não há investimento em propostas que assegurem o trabalho, a exemplo de concurso público. Isso resulta, em muitos casos, em desencanto com o fazer pedagógico, pois o professor não se sente parte integrante daquele espaço, necessitando, anualmente, ou no período definido pelos editais de seleção, adaptar-se a novos contextos profissionais, novos colegas, novos estudantes, novas necessidades de aprendizagens para atender demandas específicas. Conforme o relato da Docente A,

[...] todo ano estou em uma escola diferente, com alunos diferentes. Quando você consegue estabelecer vínculo com o aluno e colegas, já é final de ano e tem que trocar de escola, devido ao processo seletivo. Eu nunca trabalhei dois anos com o mesmo aluno. (Docente A).

Outro desafio apontado é o trabalho nas séries finais, pois, em muitas escolas, há a expectativa de que o segundo professor de turma deva ter conhecimento relativo às disciplinas e conteúdos trabalhados, o que pode ser evidenciado no relato da Docente H:

[...] ser professor de estudantes com deficiência é se desafiar cada momento, exige muito estudo e planejamento, que temos que buscar diariamente, pois não somos professores de disciplina específica e temos que saber de tudo um pouco. (DOCENTE H).

Sobre isso, o Programa Pedagógico (SANTA CATARINA, 2009b) orienta que a função do segundo professor de turma nas séries finais do ensino fundamental é de apoiar, em função do seu conhecimento em Educação Especial, o professor regente no desenvolvimento das atividades. Nesse sentido, evidencia-se que a função do segundo professor não está explícita nem para ele e nem para o professor regente, visto que a Docente H relata que precisa apropriar-se do conhecimento das disciplinas específicas para trabalhar com estudantes com deficiências, ou seja, dominar conhecimentos de matemática, língua portuguesa ou estrangeira, biologia, história, geografia, e etc.

Percebemos a sutileza dos mecanismos de poder que conduzem os sujeitos a tomarem para a si a tarefa de se autogovernar e de conduzir sua vida, seu trabalho. Os docentes, desta forma, são colocados neste jogo pelas políticas públicas instituídas e pelos efeitos de verdade que os discursos vão impondo.

Apesar dos limites apontados pelas docentes, as mesmas apresentam aspectos positivos acerca do trabalho do segundo professor de turma. Evidenciamos, na pesquisa, elementos que contribuem para a compreensão de determinadas posturas assumidas pelas docentes, quando se colocam como necessárias e indispensáveis na vida escolar e particular dos estudantes. Segundo a narrativa da Docente E: “Eu sou tudo na vida desse aluno”.

Sobre este aspecto, salientamos traços do poder pastoral, quando o docente assume a responsabilidade pelas ações do Estado, subjetivando-se como autor do sucesso ou do fracasso do estudante. Segundo Foucault (2004), o que caracteriza um bom pastor é o fato de cuidar bem do rebanho, sendo o pastor o responsável pela manutenção da vida de suas ovelhas. Foucault escreve sobre o Poder Pastoral, que pode ser entendido como arte de governar a população.

A responsabilidade do pastor concerne não só à vida das ovelhas, mas a todas as suas ações; 2) A relação entre o pastor e suas ovelhas é individual e total; 3) O pastor deve conhecer o que se passa no mais íntimo de suas ovelhas; 4) O pastor deve conduzir suas ovelhas pelo caminho da mortificação, uma espécie de morte cotidiana neste mundo. (FOUCAULT, 2004, p. 329).

Segundo Foucault (2004), o exercício do poder pastoral consistia em conduzir um grupo de homens para a sua salvação, na medida em que se interioriza certo modelo por meio de técnicas precisas, como a direção espiritual (hermenêutica de si) e a confissão, pela qual as pessoas são ensinadas que a sua libertação as obriga a dizer sempre a verdade, a confessá-la a alguém que é mais potente (um padre, um psicanalista), o que irá libertá-las de alguma forma.

Para Foucault, “[...] a metáfora do pastor se ocupando das ovelhas é usada quando se trata de caracterizar a atividade do pedagogo, do médico, do mestre de ginástica” (FOUCAULT, 1997, p. 81-82). Ainda, conforme Kohan (2002, p. 65),

[...] nas instituições educacionais a figura privilegiada na adoção do poder pastoral é o professor. O mesmo assume a responsabilidade pelas ações e o destino de sua turma e de cada um de seus alunos. Entre o professor e aluno há uma relação de submissão absoluta; sem o professor os alunos não saberiam o que fazer, como aprender, de qual maneira comportar-se. Para cumprir adequadamente a sua missão o professor necessita conhecer o máximo possível dos alunos, fará diagnósticos de suas emoções, capacidades e inteligências; conversará com seus pais para saber detalhes iluminadores de seu passado e de seu presente; ganhará confiança de cada aluno para que ele lhe confie seus desejos, angústias e ilusões [...].

É possível fazer uma aproximação do conceito foucaultiano de poder pastoral com a narrativa da Docente C, quando diz que “o segundo professor acaba sendo pai e mãe, acaba sendo tudo na vida do aluno. Ele faz coisas que muitas famílias não fazem pelos filhos”, e no relato da docente D, quando diz que “o segundo professor é o pilar para essas crianças porque sem segundo professor eles ficam sem um norte”.

Neste sentido, o que pode acontecer é que aquele que é cuidado o tempo todo perde a capacidade de decidir por si mesmo, ou seja, essa ação não favorece a autonomia de pensar, e até de agir, de um sujeito com suas diferenças, mas que pensa, sente, tem desejos e que também pode se autogovernar.

As narrativas docentes, destacadas no bloco que segue, evidenciam o processo de conquista de espaço profissional do segundo professor de turma, cujo papel, a princípio, era percebido com suspeita pelo professor titular, que se sentia vigiado na sua ação pedagógica. Com o passar do tempo, tal papel foi sendo compreendido e ressignificado.

No início foi um pouco mais difícil em relação aos titulares. Como a gente era estranho na sala, eles achavam que a gente estava lá para observar o trabalho deles. Eu senti um pouco isso no início. Depois com o passar dos dias, a gente foi se conhecendo, se ajudando. (DOCENTE G).

Hoje eu já conquistei a confiança das pessoas na escola. Acreditam no meu trabalho. Graças a Deus! Nessa Escola que estou trabalhando, eles tratam de igual para igual. A gente participa de todas as atividades, dos conselhos de classe, dos planejamentos. Claro que há professores e “professores”. Com uns a gente consegue ter uma dinâmica de trabalho mais produtiva, com outros, nem tanto. Mas isso depende muito também da gente ter compreensão e saber conversar com eles. (DOCENTE A).

Evoluiu. Mudou. A gente hoje é vista como quase se fosse o professor titular. Você é orientado. O professor titular te procura, trabalha numa equipe. É bem diferente. Mas, no início foi difícil. Hoje, eu me sinto muito bem. O professor te chama: vamos juntos ver o que podemos adaptar. (DOCENTE D).

Na argumentação das Docentes, quando relatam credibilidade no trabalho ou ser “tratada de igual para igual” ou “quase como um professor titular”, e de “ter compreensão e saber conversar com os professores titulares”, vê-se a subjetivação que o conceito “segundo professor de turma” impõe: de que este docente seja menos, ou tenha importância inferior aos professores titulares das disciplinas. Isso reforça nossa percepção de que o termo segundo professor de turma deva ser repensado e alterado nos documentos oficiais que embasam legalmente este serviço.

Fica a cargo da GERED/ADR organizar e implementar as formações continuadas para os segundos professores de turma, as quais, segundo relato das docentes, acontecem anualmente e com frequência razoável. Tais cursos fornecem elementos teóricos e práticos que dão suporte para o fazer pedagógico no atendimento em classe. Contudo, considerando o cenário de competição criado para assegurar o acesso à vaga de segundo professor de turma, a carga horária dos cursos proporcionados é insuficiente. Outro agravante que cabe ressaltar é que, a cada dois ou três anos, dependendo do previsto nos Editais, a carga horária de formação continuada que o docente acumula no decorrer de sua careira, prescreve, e não tem mais validade, ou seja, não é computada. Isso requer buscas individuais, como destaca a Docente H: “Além dos cursos oferecidos pela GERED, busco cursos a distância, porque o processo seletivo exige mais carga horária”.

Cabe ressaltar que 100% dos docentes entrevistados são Admitidos em Caráter Temporário (ACTs). Tais docentes têm passado todos os anos pelo processo seletivo, o que não garante a continuidade do trabalho desenvolvido, pois não se sabe em qual escola esse profissional estará no ano seguinte, se estará e nem com que público irá atuar.

Considerações finais

Acerca da percepção do próprio trabalho, os segundos professores de turma entrevistados apresentaram elementos importantes que se caracterizam como limitadores e como possibilidades. Ao mesmo tempo em que estes profissionais percebem a sua importância no cenário da inclusão dos estudantes com deficiência na escola, das narrativas emergiram fatores que evidenciam limites e dificuldades no fazer pedagógico. Tais fatores, sinalizados no decorrer deste texto, merecem ser considerados numa possível reformulação do Programa Pedagógico e da Política de Educação Especial de Santa Catarina, pois retratam um cenário que pode ser comum em todo o Estado.

Algumas entrevistadas manifestaram receio em perder seus postos de trabalho, especialmente em razão da aprovação da Resolução 100/CEE/2016, que estabelece algumas alterações em relação à disponibilização de segundos professores de turma, gerando o receio de redução de vagas. Mais do que avaliar a efetividade da Política Estadual de Educação Especial, a manutenção do emprego pareceu ser prioridade.

O estudo nos direciona a concluir que é positiva a presença de um profissional habilitado para atuar com estudantes com deficiência incluídos nas classes regulares. Mesmo assim, a Política Estadual de Educação Especial, na forma como está organizada, possui limitações para atender à complexidade que a proposta representa, e o papel do segundo professor de turma necessita ficar mais explícito na própria política, ao próprio segundo professor, ao professor titular, às escolas e à toda comunidade escolar. Pensamos ser necessário que haja, por parte da FCEE, SED/GERED, formações continuadas para todos os professores e gestores das escolas, para que cada um se aproprie do conhecimento e das responsabilidades inerentes à inclusão.

Das oito docentes entrevistadas, todas pedagogas, seis são habilitadas em Educação Especial e duas possuem formação geral. No quadro geral de docentes segundos professores de turma que atuaram no ano de 2016 nas escolas da GERED de Palmitos, constatamos que o percentual de docentes não habilitados se mostrava maior do que o percentual de docentes habilitados em Educação Especial. Contudo, dentre os sujeitos da pesquisa predominou a habilitação. Esse fato demonstra que os docentes que possuem habilitação para atuar na área da Educação Especial permanecem mais tempo, em relação aos docentes não habilitados, atuando como segundos professores, criado melhores condições para concorrer aos editais de vagas e obter êxito.

Em alguns relatos das docentes, percebemos que ao se colocarem como segundas professoras de turma, se sentem inferiorizadas em relação ao professor titular, ressaltando a subjetividade que o conceito de “segundo professor” impõe, no sentido desse docente sentir que tenha importância inferior aos professores titulares. Reforçamos aqui o que já foi mencionado ao longo do texto: o termo segundo professor de turma pode ser repensado e alterado nos documentos oficiais que embasam legalmente este serviço. Sendo assim, propomos que o termo “segundo professor de turma” seja subtraído na Política de Educação Especial e no Programa Pedagógico, e seja adotada a terminologia “turma com bidocência”, onde, como já previsto nas políticas estaduais, atuem dois docentes que tenham as mesmas competências nas séries iniciais, e que, nas séries finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, haja a atribuição de apoio.

Assim como as docentes entrevistadas narram, que a GERED/ADR oferece oportunidades de formação continuada todos os anos, aparecem também relatos de que as mesmas buscam cursos externos de maior carga horária. Tais cursos são exigidos quando participam do processo seletivo de professores para contratação em caráter temporário para atuar como segundos professores de turma. Isso conduz os professores a se tornarem empreendedores de si, pois, para concorrer à vaga nos editais seguintes, necessitam competir com outros docentes. Ao assumir a vaga para atuar como segundo professor de turma, os mesmos já introjetam a responsabilidade de que a inclusão ou não do estudante com deficiência irá depender de sua atuação capacitada.

Neste sentido, o docente assume uma posição por si mesmo e pelos outros, de um sujeito que tem condições de atuar com os estudantes com deficiências e busca investir em formação continuada, o que faz manter-se no jogo econômico, servindo assim como um sujeito produtivo à lógica neoliberal.

Conforme o relato das docentes, mesmo as que acompanham o movimento de inclusão desde a implantação da Política de Educação Especial, nenhuma delas participou de formação continuada na área de atuação promovidos pela FCEE, o que leva a observar que, em consonância com o estatuto da FCEE, a instituição deixa lacunas no cumprimento do que está previsto, que é oferecer formação continuada para os docentes que atuam com estudantes com deficiência, na abordagem deste estudo, para os segundos professores de turma.

A pesquisa revela que o segundo professor de turma tem que ser polivalente, isto é, ser ao mesmo tempo generalista e especialista, conhecer os assuntos tratados e as especificidades para realizar adaptações para ensinar, por exemplo, um estudante surdo, cego, com baixa visão, com deficiência intelectual, com deficiência física, com deficiência múltipla, com Transtorno do Espectro Autista (TEA), dentre outras especificidades. A articulação com o professor titular da turma e demais sujeitos da comunidade escolar é essencial para que a responsabilidade pelo estudante com deficiência não seja, simplesmente, transferida para o segundo professor de turma. Quer dizer, trata-se de um trabalho complexo e desafiador.

Salientamos que as noções foucaultianas utilizadas neste estudo, subjetividade e verdade, serviram de subsídio, base ou andaime para que pudéssemos perceber como os segundos professores de turma foram subjetivados pela Política de Educação Especial para desempenhar a função e como os mesmos se percebem, agem e conduzem a sua prática docente.

Nosso estudo não se encerra aqui, pois abre para novas pesquisas quanto à complexidade do processo de inclusão escolar de estudantes com deficiência e os movimentos criados no sentido de construir uma escola para todos.

1“Entendida como aquilo que, sendo desviante e instável, estranho e efêmero, não se submete à repetição mas recoloca, a todo instante, o risco do caos, o perigo da queda, impedindo que o sujeito moderno se apazigúe no refúgio da prometida maioridade.” (VEIGA-NETO, 2001, p. 107-108).

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Recebido: 22 de Janeiro de 2019; Revisado: 15 de Fevereiro de 2019; Aceito: 17 de Fevereiro de 2019; Publicado: 27 de Fevereiro de 2019

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