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Práxis Educativa

versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.14 no.2 Ponta Grossa maio/ago 2019  Epub 14-Jun-2019

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.14n2.008 

Artigos

A constituição do capital cultural: um estudo das condições socioeconômicas e culturais de estudantes da Pedagogia

The constitution of the cultural capital: a study about the socioeconomic and cultural conditions of Pedagogy students

La constitución del capital cultural: un estudio de las condiciones socioeconómicas y culturales de estudiantes de la Pedagogía

Telmo Marcon* 

*Professor da Universidade de Passo Fundo (UFP). E-mail: <telmomarcon@gmail.com>.


Resumo:

O artigo é resultado de uma pesquisa empírica e de reflexões teóricas baseadas no conceito de capital cultural de Pierre Bourdieu (1966, 1979, 2011), mas dialoga também com outros autores. Objetiva-se aprofundar os elementos constitutivos do capital cultural a partir das condições socioculturais e econômicas de alunos da pedagogia. Empiricamente, o artigo apoia-se em dados de um questionário semiaberto aplicado, em 2015, com 427 estudantes de pedagogia numa instituição de educação superior ao norte do Rio Grande do Sul. O artigo problematiza o conceito capital cultural e as suas relações com o capital econômico e o social; analisa alguns dados empíricos da pesquisa e conclui reafirmando a tese de que predomina entre os alunos um baixo capital cultural que se traduz em dificuldades nos estudos e numa formação cultural capaz de dar conta dos grandes desafios emergentes nos complexos contextos escolares e sociais.

Palavras-chave: Capital cultural; Condições socioculturais; Estudantes de Pedagogia

Abstract:

The paper is the result of an empiric research and of theoretical reflections based on the concept of cultural capital from Pierre Bourdieu (1966, 1979, 2011), but it also dialogs with other authors. The objective is to deepen the constitutive elements of the cultural capital from the sociocultural and economic conditions of pedagogy students. Empirically, the paper is supported in data from a semi-open questionnaire applied, in 2015, with 427 students of pedagogy in an institution of higher education at the north of “Rio Grande do Sul”. The paper problematizes the concept of cultural capital and its relations with the economic and the social capital; analyzes some empirical data of the research and concludes reaffirming the thesis about the low cultural capital predominating among the students, which translates into difficulties in studying and in a limited cultural formation to deal with the emerging challenges in the complex school and social contexts.

Keywords: Cultural capital; Socio-cultural conditions; Pedagogy students

Resumen:

El artículo es resultado de una investigación empírica y de reflexiones teóricas basadas en el concepto de capital cultural de Pierre Bourdieu (1966, 1979, 2011), pero dialoga también con otros autores. Se objetiva profundizar los elementos constitutivos del capital cultural a partir de las condiciones socioculturales y económicas de estudiantes de la pedagogía. Empíricamente, el artículo se apoya en datos de un cuestionario semiabierto aplicado, en 2015, con 427 alumnos de pedagogía en una institución de educación superior al norte de Rio Grande del Sur. El artículo problematiza el concepto capital cultural y sus relaciones con el capital económico y el social; analiza algunos datos empíricos de la investigación y concluye reafirmando la tesis de que predomina entre los alumnos un bajo capital cultural que se traduce en dificultades en los estudios y en una formación cultural limitada para dar cuenta de los grandes desafíos emergentes en los complejos contextos escolares y sociales.

Palabras clave: Capital cultural; Condiciones socioculturales; Estudiantes de Pedagogía

Introdução

As pesquisas no campo educacional são múltiplas, de diversas naturezas e tratam de temas e autores oriundos de diversas tradições. Alguns temas são mais recorrentes enquanto outros ainda não mereceram a devida atenção. Esse parece ser o caso da discussão aqui proposta, qual seja, a realidade sociocultural e econômica de alunos que ingressam em cursos de licenciatura, no caso, a pedagogia. As condições socioeconômicas e culturais dos alunos precisam ser consideradas em qualquer processo formativo, especialmente em cursos que preparam profissionais para atuar, prioritariamente, na educação básica. Diagnosticar as condições socioeconômicas e culturais dos alunos constitui-se, portanto, num desafio tanto para a formação durante a graduação quanto para as perspectivas futuras de atuação profissional em contextos escolares cada vez mais complexos e desafiadores. Não há como prospectar mudanças qualitativas na educação básica sem um envolvimento consistente e qualificado de todos os sujeitos responsáveis pela própria educação, especialmente os professores.

Os indicadores da educação básica brasileira sobre reprovação, analfabetismo funcional, evasão, violência escolar, entre outros, não são nada animadores. Diante disso, crescem discursos de que a educação vai mal, que os nossos indicadores estão muito distantes em comparação com países desenvolvidos, que os investimentos não são suficientes, que os professores estão mal preparados. Todas essas ponderações podem ser justificadas. No entanto, há um problema real que precisa ser encarado, que é a precarização socioeconômica e cultural dos alunos que ingressam em cursos que formam professores.

As exigências postas aos professores da educação básica em todos os níveis e modalidades crescem muito com a complexificação das relações socioculturais e políticas em contextos de profundas desigualdades sociais e econômicas, mas também de expansão crescente de recursos tecnológicos. Essa complexidade traduz-se em novos desafios educativos como apontam os questionamentos de Cenci e Marcon (2016, p. 115):

Como educar crianças e jovens em um mundo que as estimula o tempo todo, sobretudo mediante dispositivos tecnológicos? Como entender as noções de limite e disciplina em um contexto em que o peso da família e da escola mudou? Como educar num contexto em que se torna difícil sincronizar o tempo da escola com o tempo irracionalmente acelerado da sociedade contemporânea? Que tipo de autoridade pedagógico-educativa deve ser sustentada num mundo em que as instituições tradicionais, como a escola e a família, têm de compartilhar a tarefa de socialização com um conjunto de novos agentes socializadores?

Esses questionamentos dimensionam alguns dos desafios que os professores precisam dar conta em suas práticas pedagógicas. Esses desafios, por sua vez, remetem à formação de professores que se encontra diante de um profundo paradoxo: por um lado, as crescentes exigências decorrentes dos complexos contextos educacionais dentro e fora da escola e, por outro, as limitações na formação de professores decorrente de um baixo capital cultural, da precarização da educação básica, das condições de trabalho e de sobrevivência da maioria dos alunos e da falta de condições mínimas para a realização de um curso superior qualificado. Em outras palavras, as condições de formação são cada vez mais precarizadas, ao mesmo tempo em que as exigências do cotidiano escolar crescem. A pesquisa realizada ajuda a problematizar um conjunto de situações de precarização que envolve os alunos e pode ser traduzido, conforme Bourdieu, num baixo capital cultural.

Como enunciado no resumo, o artigo baseia-se numa pesquisa realizada no segundo semestre de 2015, envolvendo com 427 alunos de 16 turmas do curso de pedagogia oriundos de diferentes contextos socioculturais em uma instituição de Educação Superior localizada ao norte do Rio Grande do Sul, incluindo o campus central e mais quatro campi que mantêm o curso de pedagogia. O objetivo da pesquisa foi diagnosticar o perfil dos alunos. Para tanto, foram definidos seis eixos1, com várias questões em cada eixo: Condições socioeconômicas (16 questões); Ensino médio e ingresso no curso de pedagogia (9); Formação cultural-religiosa (14); Condições de estudo no curso de pedagogia (12); alimentação/saúde e estudos (4); futuro profissional (5). Algumas questões eram objetivas e outras eram dissertativas e tinham como objetivo prospectar percepções individuais. Aqui, serão destacadas apenas as questões que têm uma relação mais direta com o conceito de capital cultural.

Capital cultural, econômico e social em Bourdieu

O conceito de capital cultural desenvolvido por Bourdieu ajuda a compreender melhor a problemática aqui enunciada. No entanto, é preciso situar esse conceito no contexto da produção intelectual do autor que é extremamente densa e plural. Pretende-se, aqui, aprofundar o entendimento de Bourdieu sobre o capital cultural e as suas inter-relações com o capital econômico e social. A não separação dessas dimensões justifica-se porque Bourdieu não concebe o capital cultural como um fenômeno metafísico, ao contrário, compreende que ele é perpassado pelas condições e contradições socioeconômicas. Neste sentido, o capital cultural precisa ser pensado na transversalidade das relações socioeconômicas que os sujeitos constroem em suas trajetórias biográficas e sociais. Essa perspectiva é fundamental, como observa Jessé Souza (2012b, p. 52), especialmente dada a existência de vínculos entre o capital cultural e o capital econômico.

A impessoalidade da dominação capitalista pode também ser percebida por meio da teoria dos capitais em Bourdieu. Nas sociedades modernas são os capitais econômico e cultural que assumem o papel estruturante em lugar do capital social, ou seja, o conjunto de relações de conhecimento e reconhecimento que se constituem com base no pertencimento a um grupo específico. Embora o capital social seja também aqui decisivo para a sorte de carreiras individuais, a sociedade moderna não fundamenta mais seu funcionamento a partir dele.

Essa interpretação que Souza faz de Bourdieu é pertinente. Não existem sujeitos isolados das relações socioculturais e econômicas, portanto, os contextos com os quais os sujeitos estabelecem relações são fundamentais para a sua formação cultural, bem como das suas possibilidades sociais. Essa mesma perspectiva é apontada por Nogueira (2017, p. 105) ao destacar as contribuições de Bourdieu. Ao analisar os princípios de diferenciação que estruturam a sociedade atual, afirma que eles “repousam sobre as duas mais importantes formas de capital - o capital econômico e o capital cultural -, as quais se encontram desigualmente distribuídas entre a população e operam em favor da reprodução das estruturas de dominação”. Essa temática da reprodução social transversaliza os textos de Bourdieu (2018) que compõem a obra Las estratégias de la reproducción social, nos quais são problematizadas as dificuldades de mobilidade social devido aos mecanismos que asseguram a reprodução das estruturas socioeconômicas, políticas e culturais existentes.

Bourdieu2, segundo Nogueira (2017, p. 103), inicia a sua trajetória de pesquisador buscando “uma ferramenta conceitual que conseguisse explicar as oportunidades desiguais de sucesso escolar de alunos pertencentes aos diferentes meios sociais”. Essa preocupação tinha como alvo de crítica as explicações essencialistas baseadas na ideologia do dom, muito em voga na França. Essa ideia foi problematizada por Bourdieu em muitas das suas pesquisas, sempre argumentando na defesa da existência de precondições socioeconômicas e culturais a influenciar profundamente o sucesso ou o fracasso escolar, portanto, as carreiras profissionais. Neste sentido, justifica-se a necessidade de aprofundar a compreensão que ele tem sobre capital e suas adjetivações: econômico, cultural e social. Esse esforço justifica-se, segundo Fournier e Lamont (1989, p. 5-8), porque o conceito de capital cultural ganhou centralidade não apenas para Bourdieu, mas também para a sociologia atual. Ao apresentarem o volume 21, número 2, da Revue Sociologie et Sociétés com a temática: La culture comme capital, os dois estudiosos afirmam que “la notion de capital culturel s’est aujourd’hui imposeé en sociologie de la culture” (p. 8)3.

Como o conceito de capital adentra a produção intelectual e investigativa de Bourdieu? Segundo Nogueira (2017, p. 104), ele apropria-se desse conceito da tradição marxiana, ampliando substancialmente a sua compreensão. Referindo-se ao pensamento de Marx sobre o processo de acumulação nas mãos de um determinado grupo social, “Bourdieu toma-lhe de empréstimo o termo capital, acoplando-o ao qualificativo cultural para deixar bem claro que se trata de uma outra dimensão da realidade social” (Grifos da autora). Essa perspectiva amplia substancialmente a compreensão do conceito de capital utilizado por Marx, mas mais ainda daquele utilizado pela tradição marxista estrutural-economicista, como a de Althusser (1985).

A questão de fundo que Bourdieu tenta dar conta é a da desigualdade social e econômica existente na sociedade e reproduzida no âmbito das instituições educativas. Nem todos chegam à escola com as mesmas condições socioeconômicas e culturais. As pesquisas que ele desenvolve no contexto francês e argelino dão conta que essa desigualdade não é, de um modo geral, enfrentada pelas instituições educativas, ao contrário, são reproduzidas. Essa problemática é discutida ainda na década de 1960, especialmente no texto “L’école conservatrice. Les inégalités devant l‘école et la culture” (BOURDEIU, 1966, p. 325-347)4.

A tese básica de Bourdieu é apresentada, nesse texto, de modo claro: “Ora, vê-se nas oportunidades de acesso ao ensino superior o resultado de uma seleção direta ou indireta que, ao longo da escolaridade, pesa com rigor desigual sobre os sujeitos das diferentes classes sociais” (2011b, p. 41). Em outras palavras, sujeitos oriundos de diferentes contextos sociais e econômicos têm desempenhos distintos em instituições de ensino. Mais do que isso, o ponto de partida não é igual mesmo que instituições de ensino pressupunham, por vezes, a existência de uma igualdade. Aliás, esse é o pressuposto do discurso meritocrático, largamente criticado por Bourdieu e tantos outros autores, na medida em que produz um discurso que escamoteia as desigualdades e defende a existência de chances iguais, contanto que haja esforço individual para o sucesso escolar e social.

Dessa crítica, resulta a formulação do conceito de capital cultural que está profundamente imbricado, conforme a própria compreensão de Bourdieu, com as condições econômicas e sociais. A constatação, como o próprio autor desenvolve no texto de 1966, é de que “cada família transmite aos seus filhos, mais por vias indiretas do que diretas, um certo capital cultural e um certo ethos, sistema de valores implícitos profundamente interiorizados que contribui para definir, entre outras coisas, as atitudes face ao capital e a instituição escolar” (BOURDIEU, 2011b, p. 41-42). A problemática das diferentes condições de acesso à educação é, também, discutida por Bourdieu nos textos que produziu em parceria com Passeron e compõem a obra Los herederos: estudiantes y la cultura (2013). O problema não é apenas de acesso às instituições de educação superior, mas também se reflete na escolha dos cursos. Quanto mais prestígio tiver um determinado curso, menor a presença de trabalhadores.

O papel do capital cultural na reprodução das desigualdades socioeducacionais é reforçado por Nogueira (2011, p. 80) ao discutir o conceito de “capital cultural”. A autora inicia reconhecendo a amplitude que esse conceito ganhou nas ciências da educação contemporâneas, sendo um dos mais utilizados. Ele tem como pressuposto as evidências de que as crianças oriundas das classes sociais superiores “recebem de suas famílias recursos culturais os mais diversos (estruturas mentais, ferramentas intelectuais, linguagem, cultura geral, posturas corporais, disposições estéticas, bens culturais variados) que se transmutam em vantagem no mercado escolar” (NOGUEIRA, 2011, p. 80).

Pode-se dizer que Bourdieu compreende o capital cultural como um conjunto de informações, conhecimentos, valores e comportamentos adquiridos e desenvolvidos, especialmente, em espaços educativos informais5 que se transformam em habitus que, por sua vez, produz diferenciações e interfere profundamente no desempenho dos alunos em instituições educativas, bem como no desempenho profissional. O acesso de determinados grupos sociais ao mundo letrado e às artes, precocemente, não é resultante de um fenômeno natural, mas de um conjunto de condições socioeconômicas, conforme pesquisas dos autores que participam da obra organizada por Souza (2016): A ralé brasileira: quem é e como vive?

Bourdieu aprofunda como o capital cultural é importante para explicar as diferenças no desempenho escolar de crianças provenientes de diferentes classes sociais, o sucesso escolar, ou seja, “os benefícios específicos que as crianças das diferentes classes e frações de classes podem obter no mercado escolar, à distribuição do capital cultural entre as classes e frações de classe” (2011d, p. 73). Essa tese confronta as duas tradições que Bourdieu considera equivocadas: a primeira que atribuía o sucesso escolar às aptidões individuais (meritocracia) e a segunda, defendida pela teoria do capital humano, focada em investimentos econômicos na educação como condição para a obtenção de resultados positivos. O conceito de capital cultural permite confrontar essas duas tradições que justificam o sucesso ou o fracasso escolar, basicamente, a partir da iniciativa individual ou do investimento de recursos econômicos. Ambas desconsideram o papel que Bourdieu denomina “transmission domestique de capital culturel” (1979, p. 3).

No artigo “Les trois états du capital culturel” (1979, p. 3-6), Bourdieu aborda as três formas do capital cultural: incorporé, objectivé e institutionnalisé. Para fins de fundamentação do presente artigo, o capital incorporado tem maior centralidade. Por ser incorporado, pressupõe um corpo e um processo de incorporação. A acumulação de capital cultural, diz Bourdieu, “exige uma incorporação que, enquanto pressupõe um trabalho de inculcação e de assimilação, custa tempo que deve ser investido pessoalmente pelo investidor. [...] Sendo pessoal, o trabalho de aquisição é um trabalho do sujeito sobre si mesmo” (2011d, p. 74, grifos do autor)6. Os processos de incorporação implicam um movimento do próprio indivíduo independente da condição social, mas não é um processo espontâneo que é naturalmente transmitido. Para que se torne um capital cultural é necessária uma ação do indivíduo e as condições para que isso ocorra não são iguais nos diferentes contextos sociais e familiares e entre os grupos e as classes sociais.

O capital cultural no estado objetivado, por sua vez, pressupõe a existência de bens culturais em forma material (quadros, pinturas, monumentos, livros, instrumentos de trabalho, máquinas, etc.). Esses bens estão disponíveis no mercado e podem ser acessados através da compra, portanto, envolvem um capital econômico, embora seja necessária uma ação do indivíduo para a sua incorporação. É preciso uma ação para que haja a apropriação simbólica. Somente, então, transforma-se num capital cultural. Por fim, o capital no estado institucionalizado que ganha materialidade nos certificados escolares.

Produto da conversão de capital econômico em capital cultural, ele estabelece o valor, no plano do capital cultural, do detentor de determinado diploma em relação aos outros detentores de diplomas e, inseparavelmente, o valor em dinheiro pelo qual poder ser trocado no mercado de trabalho. (BOURDIEU, 2011d, p. 79).

Para Bourdieu, há uma profunda relação entre o capital econômico, que cria condições diferenciadas entre grupos e classes sociais, e o capital cultural, que reproduz formas próprias de incorporação. As desigualdades existentes na sociedade e reproduzidas historicamente precisam aparentar naturalidade, ou seja, produzem-se discursos baseados no mérito individual que legitimam as desigualdades, na medida em que dissimulam relações desiguais, mas tratam todos igualmente como se tivessem as mesmas condições, bastando vontade individual para vencer. Em síntese, para Bourdieu, é necessário compreender que determinadas tradições teóricas fundamentam os seus argumentos em pressupostos meritocráticos tratando as desigualdades como sendo naturais quando elas são, também, resultantes de processos históricos e das contradições sociais e econômicas próprias da sociedade capitalista. A escola atua, neste sentido, na reprodução das contradições sociais, portanto, legitima uma dada ordem social.

Ao apresentar as hierarquias sociais e a reprodução destas hierarquias como se estivessem baseadas na hierarquia de ‘dons’, méritos ou competências que suas sanções estabelecem e consagram, ou melhor, ao converter hierarquias sociais em hierarquias escolares, o sistema escolar cumpre uma função de legitimação cada vez mais necessária à perpetuação da ‘ordem social’ uma vez que a evolução das relações de força entre classes tende a excluir de modo mais completo a imposição de uma hierarquia fundada na afirmação bruta e brutal das relações de força. (BOURDIEU, 2011a, p. 311).

Nesse caso, um diploma é expressão de um capital cultural que também é capital econômico. Dessa forma, os resultados obtidos em instituições educacionais não estão, em grande medida, dados pelas próprias instituições, mas pelas condições socioculturais dos alunos que nelas ingressam. Essa é a linha de argumentação que fundamenta o texto de Bertolin e Marcon (2015), amparados nas contribuições teóricas de Bourdieu. Em contextos concorrenciais, há instituições educativas que atribuem o sucesso de seus alunos unicamente ao desempenho de seu trabalho, desconsiderando todos os outros elementos envolvidos e que constituem as precondições socioculturais dos alunos.

A questão do desempenho dos alunos no decorrer da sua permanência nas instituições de ensino superior é muito importante, embora não seja abordada no presente artigo. O foco está em compreender as relações entre as condições sociais, econômicas e culturais dos alunos e a formação do capital cultural. Como isso vai influenciar no sucesso ou no fracasso escolar demandaria outras problematizações, entre as quais, como o capital cultural intervém no sucesso ou no fracasso escolar e social.

Para Bourdieu, o capital cultural tem uma forte incidência nos resultados dos alunos em instituições educativas. No entanto, é preciso ter cuidado para não fazer uma leitura imediatista e simplificadora da sua obra que pode levar à conclusão que os lugares sociais e econômicos determinam o sucesso ou fracasso na escola e, por conseguinte, na sociedade. Uma abordagem mais atenta do autor não permite uma conclusão apressada. É o que afirma Charlot (2000, p. 38) ao destacar a contribuição de Bourdieu, bem como, os seus limites:

A sociologia de Bourdieu é, com certeza, útil para que se compreenda a relação dos alunos com o saber, pois o sujeito ocupa efetivamente uma posição no espaço social. Mas é insuficiente. Enquanto que o sujeito dá um sentido ao mundo, em Bourdieu o sentido não é senão a interiorização de relações entre posições, sob a forma de habitus.

As reflexões de Charlot (2000), bem como as de Setton (2005, p. 77-105), destacam as contribuições de Bourdieu no sentido de ajudar a pensar o desempenho dos sujeitos a partir dos contextos socioculturais e de suas relações econômicas. Neste sentido, há um relativo consenso. No entanto, quando se trata da questão das posições que os sujeitos ocupam na sociedade e as suas possibilidades de mobilidade social, as divergências são mais profundas. Como bem observa Charlot: “A sociologia de Bourdieu é perfeitamente legítima (e muito interessante) nos limites que se fixa” (2000, p. 38).

Feita essa breve análise do conceito de capital cultural, cabe reforçar a ideia de que não serão avaliados os desempenhos dos alunos durante a realização do curso. Neste sentido, serão analisados elementos que contribuem para a formação do capital cultural em alunos da pedagogia.

A constituição do capital cultural nos alunos de pedagogia

Conhecer as condições socioeconômicas e culturais dos alunos de pedagogia é fundamental, entre outras razões, para a organização e o desenvolvimento curricular no âmbito de qualquer instituição educativa qualificada. Mesmo que a realidade do sujeito não seja determinante do sucesso ou fracasso escolar, não dá para desconsiderar o papel do capital cultural no desempenho dos alunos no decorrer da sua formação, acadêmica, especialmente se pensarmos numa perspectiva pedagógica freireana (1981, 1982), segundo a qual é fundamental partir da realidade sociocultural e política dos alunos. Neste sentido, é imprescindível conhecer os alunos, as suas trajetórias biográficas e as condições que dispõem para estudar visando a uma intervenção pedagógica qualificada dentro dos espaços existentes e das possibilidades efetivas, especialmente em sala de aula.

O esforço para construir um diagnóstico do capital cultural dos alunos não tem nenhuma pretensão de universalizar as observações feitas, nem as conclusões. No entanto, observa-se um contexto de precarização socioeconômica e cultural, tanto dos alunos quanto de suas famílias, que também é expressão de tendências mais gerais na sociedade brasileira e estão presentes em outros contextos socioeducacionais. Neste aspecto, as observações, aqui, sistematizadas podem contribuir na atuação de gestores e docentes preocupados com uma formação de professores qualificados e em condições de dar conta de contextos educativos emergentes e extremamente complexos e desafiadores.

O que se observa na pesquisa, de um modo geral, é uma precarização7 que transversaliza a vida da maioria dos alunos, ou seja, a precarização não diz respeito somente aos estudos realizados na educação básica, mas também nas condições atuais de sobrevivência, de emprego e saúde, bem como a falta de condições adequadas para a realização dos estudos no curso de pedagogia. As questões delimitadas para a fundamentação empírica neste artigo tratam de problemas que, de uma forma ou de outra, interferem na configuração do capital cultural, econômico e social, na perspectiva de Bourdieu.

Para dar conta dos objetivos deste artigo serão, aqui, priorizados: elementos socioeconômicos; a formação sociocultural; a qualidade de vida; as condições de estudo e as utopias pessoais e sociais. Essas dimensões ajudam a fundamentar a tese que há uma precarização geral nas condições de vida e traduz-se num baixo capital cultural. Essa observação, no entanto, não é universal. Há exceções.

Indicadores emergentes da pesquisa permitem afirmar que, com raras exceções, os alunos da pedagogia (em torno de 98% são mulheres) provêm e vivem em contextos socioeconômicos precarizados. Uma parcela expressiva (22%) ainda residia no meio rural, trabalhando como empregados ou na agricultura familiar durante o dia e estudando à noite; 63% definiram-se como moradores de centros urbanos e 15% identificaram-se como moradores de periferia.8

A renda (salário) de alunos que trabalham em empregos formais9, que representa 84,30% dos que participaram da pesquisa, acompanha uma tendência nacional. Dos que estão empregados, 60% ganha entre 1 (um) e 2 (dois) salários e 35% recebe menos de um salário. Mais do que isso, 40,80% dos que ganham menos de um salário são os principais provedores da renda familiar. Apenas 1% dos alunos recebe entre 3 (três) e 4 (quatro) salários e 4% entre 2 (três) e 3 (três) salários. Um percentual elevado de alunos (45,90%) ainda vive com os pais e, dessa forma, consegue sobreviver e estudar. Esses dados sobre renda coincidem com os da OXFAM (2017, p. 21): “80% da população brasileira - 165 milhões de brasileiras e brasileiros - vivem com uma renda per capita inferior a dois salários mínimos mensais”.

A precarização do trabalho é expressa pela baixa remuneração e pelo elevado número de horas semanais trabalhadas. São muitas horas diárias dedicadas às múltiplas atividades incluindo os empregos formais, as atividades domésticas ou da agricultura, bem como o deslocamento até os campi da Universidade. Os dados resultantes das respostas dos 283 alunos que responderam a pergunta sobre quantas horas semanais destinam ao emprego permitem construir o seguinte cenário: até 20 horas semanais são 14,84%; de 21 a 30 horas, somam 33,21%; de 31 a 40 horas são 34,63%; acima de 41 horas totalizam 17,31%.

Esses dados evidenciam que 85,16% dos alunos dedicam mais de 20 horas semanais aos seus empregos. As condições de trabalho intenso e precarizado, agravadas pela ausência de um tempo adequado para o descanso, o lazer e uma boa alimentação, trazem como consequência problemas de saúde. Mais da metade dos alunos (54,7%) não consegue alimentar-se adequadamente antes de ir para a Universidade à noite. Alguns dizem que se alimentam bem, mas quando descrevem como se alimentam e o que consomem, o quadro é de precariedade: são lanches rápidos feitos durante a viagem no ônibus ou quando chegam aos campi e, caso isso não seja possível, alimentam-se no intervalo das aulas. Há casos em que somente se alimentam quando retornam para casa, após a aula. Há situações mais dramáticas que é a falta de dinheiro para comprar um lanche como afirma um participante da pesquisa: “quando tem dinheiro, um lanche e, quando não tem, água”.

Esse quadro é agravado com as limitadas condições de estudo que, de um modo geral, são muito precárias, não apenas em relação às condições para chegar à instituição, mas também a permanência em sala de aula, as horas dedicadas ao estudo em casa durante a semana e também nos finais de semana. Os dados a seguir indicam as horas disponíveis para o estudo fora da sala de aula: 78,12% dos que responderam essa questão estudam até 10 horas semanais e apenas 4,70% dispõem mais de 20 horas. Mais crítico ainda é o horário destinado às leituras complementares dos textos indicados em sala. Dos que responderam, 75 alunos estudam pela manhã ou à tarde; 123 estudam a noite após o retorno da aula presencial; 25 alunos estudam durante as viagens; 140 complementam no final de semana; 21 quando sobra tempo no trabalho e 24 estudam durante o intervalo do meio dia. A conclusão é que poucos têm condições efetivas para estudar visto que, no ônibus, no intervalo ao meio dia, quando sobre tempo no trabalho ou mesmo após as aulas a noite, as condições físicas não são adequadas devido ao esgotamento físico. Não é por acaso que 145 alunos ressaltaram que a falta de tempo para a realização das leituras complementares fora da sala de aula é um grande problema. Além disso, destacam o excesso de textos para ler, as dificuldades para acompanhar e compreender os conteúdos e os conceitos teóricos devido à complexidade dos textos.

Esse quadro não é estranho para quem vem investigando as novas relações de trabalho no contexto de crescente flexibilização das relações trabalhistas, que resultam num aumento da carga horária semanal de trabalho, além dos baixos salários, ou seja, há uma progressiva destruição dos direitos sociais. As reflexões de Sennett (2011, p. 32) são, neste sentido, ilustrativas: “As condições de tempo no novo capitalismo criam um conflito entre caráter e experiência, a experiência do tempo desconjuntado ameaçando a capacidade das pessoas transformar seus caracteres em narrativas sustentadas”. Consequentemente, assinala Sennett (2011, p. 9): “É bastante natural que a flexibilidade cause ansiedade: as pessoas não sabem que riscos serão compensados, que caminhos seguir”. Esse mesmo diagnóstico é feito por Antunes (2005, p. 17) ao descrever as novas formas da precarização do trabalho na sociedade capitalista moderna que “vem ampliado enormemente o contingente de homens e mulheres terceirizados, subcontratados, part-time, que exercem trabalhos temporários, entre tantas outras formas assemelhadas de informalização do trabalho, que proliferam em todas as partes do mundo”.

A má alimentação, aqui, incluindo a qualidade do alimento e as condições em que se faz as refeições, tende a agravar os problemas de saúde. Há evidências de uma correlação causal entre a má alimentação, as condições de trabalho e o uso de medicamentos. O quadro de dependência de remédios chama atenção, especialmente em se tratando da idade dos alunos, a maioria com menos de 24 anos. A pergunta se, no último ano, foi feito o uso frequente (uma vez por semana ou mais) de algum tipo de medicação revelou que 48 fizeram uso de medicamento para dormir; 61 para combater a depressão; 164 para dor de cabeça; 67 para dores estomacais e 102 para dores musculares. Alguns alunos fazem uso de medicamentos para mais de um sintoma e apenas 78 responderam que não fizeram uso de medicamentos contínuos. Segundo Camargo (2015, p. 15), com base na auditoria de mercado Pharmaceutical Market Brazil/ IMS Health, “de setembro de 2014 a agosto de 2015, foram vendidas 3,3 bilhões de caixas de medicamentos no país, equivalente a 230 milhões de unidades a mais do que registrado no período anterior”. Na comparação com o acumulado de setembro de 2013 a agosto de 2014 com o mesmo período de 2014/2015, o faturamento do setor de medicamentos cresceu 15,42%, totalizando R$ 72,7 bilhões. “Trata-se de um mercado que cresce acima de 10% ao ano desde 2013, com projeção de se manter dessa forma até 2017”. A obra organizada por Caponi [et al.] (2010), intitulada Medicalização da vida: ética, saúde pública e indústria farmacêutica contém vários artigos que ajudam a compreender mais profundamente o contexto de expansão da indústria farmacêutica, bem como dos protagonistas e dos interesses em jogo.

No contexto de flexibilização e de precarização das relações trabalhistas, a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso no trabalho e na sociedade tende a recair sobre o indivíduo. Dardot e Laval discutem essas questões e identificam a emergência de um novo sujeito que eles denominam ‘homem-empresa’, ‘sujeito empresarial’, ‘sujeito neoliberal ou neossujeito’ (2016, p. 327). Nesse novo contexto, “a gestão neoliberal da empresa, interiorizando a coerção do mercado, introduz a incerteza e a brutalidade da competição e faz os sujeitos assumi-las como um fracasso pessoal, uma vergonha, uma desvalorização” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 363).

Por caminhos diferentes, mas tratando dessas transformações, Han analisa, em Sociedade do cansaço (2017a); Sociedade da transparência (2017b) e Agonia do eros (2017c) as implicações do excesso de informações e pressões a que os sujeitos ficam submetidos cotidianamente e como tudo isso vai se traduzindo em ansiedade e depressão que são, segundo o seu diagnóstico, os dois grandes problemas do século XXI. O diagnóstico que Han faz da sociedade atual não é nada otimista:

O hipercapitalismo atual dissolve totalmente a existência humana numa rede de relações comerciais. Já não há nenhum âmbito de vida que consiga se eximir da degradação provocada pelo comércio. O hipercapitalismo transforma todas as relações humanas em relações comerciais. Ele arranca a dignidade do ser humano, substituindo-a completamente pelo valor de mercado. (HAN, 2017a, p. 127).

Além da precarização do trabalho, há muitos alunos atuando em áreas totalmente distintas das que estão estudando. Apenas 154 (36%) alunos atuam em atividades que estão vinculadas ao curso de pedagogia: auxiliar de ensino, estágio em escola, monitoria em escola ou professores. Dadas às condições de trabalho e de baixa remuneração, a maioria dos alunos somente permanece cursando pedagogia porque há uma política de bolsas sociais disponibilizada pela própria instituição e também devido aos programas do governo federal: Fies e o Prouni. Dos que participaram da pesquisa, 92 alunos pagavam parte da mensalidade com recursos próprios e o restante era complementado com bolsa social parcial; 184 alunos eram contemplados com bolsa social integral; 82 alunos tinham financiamento estudantil (Fies) e 69 eram bolsistas do Programa Universidade para Todos (Prouni). Os dados de 2015 revelaram que nenhum aluno pagava o curso de pedagogia por conta própria.

Até que ponto os alunos têm consciência das condições socioeconômicas em que se encontram? Uma pergunta do questionário incidia sobre a identificação da classe social a que pertenciam. A ideia era que cada um pudesse expressar a sua autoconsciência de classe. Em nenhum momento, os alunos questionaram que parâmetros deveriam ser usados para classificar uma classe social. Dos 410 que responderam essa questão, cinco identificaram-se com a classe alta; 60 com a classe média alta; 213 com a classe média; 81 com a classe média baixa e 51 com a classe baixa.

O confronto dessa auto-definição de classe com a renda evidencia contradições. No entanto, pode-se compreender essa questão com base no fato de acessar o ensino superior que é, para muitos alunos, um fator diferencial de sucesso, mas que pode criar certa ilusão de ascensão de classe. Para além dessa possibilidade, é possível contextualizar essa discussão como parte de um discurso que se consolidou na primeira década do século XXI relativo à emergência de uma nova classe média no Brasil. Jessé Souza critica esse discurso, especialmente nas obras: Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe média trabalhadora (2012a) e em A classe média no espelho (2018). Ele afirma, nessas obras, que o conceito de classe é muito usado e pouco discutido. “Classes sociais não são definidas pela renda - como para os liberais - nem pelo lugar da produção - como para o marxismo clássico -, mas sim por uma visão de mundo ‘prática’ que se mostra em todos os comportamentos e atitudes”. (SOUZA, 2012a, p. 45, grifos do autor).

A crítica de Souza é que a produção de um discurso sobre a emergência de uma nova classe média esconde problemas mais profundos. A respeito, faz a seguinte análise:

É justamente a legitimação de privilégios inconfessáveis que está em jogo na noção, hoje corrente entre nós, de ‘nova classe média’ para os brasileiros batalhadores que examinamos. Trata-se de uma interpretação triunfalista que pretende esconder contradições e ambivalências importantes da vida desses batalhadores brasileiros e veicular a noção de um capitalismo financeiro apenas ‘bom’ e sem defeitos. (SOUZA, 2012a, p. 45, grifos do autor).

Essa crítica vem sendo feita por outros pesquisadores como Márcio Pochmann, especialmente na obra intitulada: Nova classe média? - O trabalho na base da pirâmide social brasileira (2012), e Ricardo Antunes (2005, 2018). Esses autores contribuem para pensar as metamorfoses que vêm ocorrendo no mundo do trabalho e as aparentes mudanças estruturais. Eles ajudam a problematizar a complexidade que envolve a definição do conceito de classe e de ascensão social. Não é a simples saída da condição de pobreza que permite a passagem para a classe média. Por outro lado, essa crítica não desconhece a importância das mudanças que ocorreram nas últimas décadas e que resultaram na saída de milhões de famílias da condição de extrema pobreza. O problema é tomar esse fenômeno como expressão da emergência de uma nova classe média. A tendência dominante entre os alunos parece refletir a emergência desse discurso de uma nova classe média.

A constituição do capital cultural dos alunos da pedagogia pode ser identificada também com base em outros indicadores que foram aferidos na pesquisa. Um desses indicadores refere-se ao número de livros lidos ao longo da vida e nos últimos três anos. Em relação à primeira questão, os indicadores permitem construir o seguinte quadro: 36 alunos leram de zero a nove livros; 83 alunos, de 10 a 30 livros; 105 alunos, de 31 a 69; 32 alunos, de 100 a 299 livros e cinco alunos, acima de 300 livros. Em relação ao número de livros lidos nos últimos três anos, período que inclui o ensino médio para quem está ingressando no ensino superior e para os demais parte expressiva do tempo no curso, os dados apontam para o seguinte quadro: 10 alunos não leram nenhum livro; 114 alunos leram de um a nove; 139 leram de 10 a 30 livros; sete, de 55 a 100 e cinco alunos, acima de 100 livros. Esses dados revelam que há uma faixa expressiva de alunos que leram muito pouco ou praticamente nada. São poucos os que têm o hábito de ler independente das leituras exigidas pelos professores nas diferentes disciplinas. Essa observação reforça a tese de Bourdieu de que um baixo capital cultural é traduzido, também, pelas precárias condições de acesso ao capital objetivado que inclui livros. São diversos fatores que intervêm nesse processo: os escassos recursos financeiros, as limitações de tempo disponível para leituras, mas também a ausência de uma tradição intelectual. Como veremos adiante, a maioria dos pais sequer concluiu o ensino fundamental.

Para além da pouca leitura de livros, é preciso observar que gênero literário predomina nos últimos três livros lidos e quais foram os mais marcantes. Na primeira questão, destacam-se: Pedagogia do oprimido (43 ocorrências); Pedagogia da autonomia (35); Sociedade dos filhos órfãos (31); A criança e o número (24); A culpa é das estrelas (23); Preconceito linguístico (12); Uma escola para o povo (12); A cabana (10); Cinquenta tons de cinza (8); Violetas na janela (7); Pais brilhantes, professores fascinantes (6); Querido John (5); Pedagogia e pedagogos para quê? (3); Menino de pijama listrado (2); Filosofia da educação (1). Em relação aos mais marcantes, destacam-se: Pedagogia do oprimido (10 ocorrências); A cabana (8); Sociedade dos filhos órfãos (8); Pedagogia da autonomia (7); A culpa é das estrelas (5); Violetas na janela (5); Menino de pijama listrado (3); Querido John (3); Cinquenta tons de cinza (2); Preconceito linguístico (2); Pais brilhantes, professores fascinantes (1).

Esses dados permitem algumas observações: quatro livros da área da educação indicados pelos professores e elencados pelos alunos como mais lidos, não aparecem como os mais marcantes. O total de livros mais lidos nos últimos três anos supera 550 títulos envolvendo uma diversidade muito grande de temas, gêneros e autores. Boa parte desses livros é de literatura ou de autoajuda e muitos deles são de autores que estavam em evidência na grande mídia quando da aplicação do questionário. Em relação ao gênero de leitura preferida, os alunos destacaram: Literatura (138 ocorrências); Revistas de variedades - Moda, culinária, beleza (98); Autoajuda (97); Revistas ou livros científicos (94); Livros técnicos da área da pedagogia/educação (63); Livros religiosos (61) e Biografias (50).

O fenômeno da diversidade de gostos e escolhas ocorre também em relação aos filmes. Foram mencionados mais de 350 filmes/documentários como os preferidos, com destaque para dois mais marcantes: A culpa é das estrelas (26 ocorrências) e O Menino de pijama listrado (25). Quanto à leitura de jornais ou revistas/magazines, os dados apontam para o seguinte quadro: 204 leem algum tipo de jornal (alguns deles de tiragem semanal ou mensal) e 137 não leem nenhum jornal; revistas magazines são lidas por 123 alunos e não lidas por 239.

Um fenômeno que chama atenção na pesquisa é o pouco tempo dedicado a programas televisivos. Mesmo tendo acesso à televisão, sendo 154 por assinatura, ela ocupa um lugar secundário em relação ao celular. Assistem à TV menos de cinco horas por semana 178 alunos. O inverso ocorre com o acesso às redes sociais, bem como o tempo destinado para tal fim: dos 373 que acessam às principais redes sociais, 277 participam do Facebook; 17 usam o Twiter, 108 usam o Whatsapp e 35, o Instagram. Em alguns casos, o acesso ocorre em mais de uma rede social. A questão relativa ao tempo dispendido com redes sociais foi respondida por 337 alunos e os dados revelam que 46 acessam menos de uma hora por dia; 207 de uma a três horas; 66, de três a cinco horas e 18 fazem-no acima de seis horas diárias. Esses dados evidenciam que boa parte dos alunos fica mais tempo em conexão com redes sociais do que o tempo diário em sala de aula que é de três horas e quinze minutos.

A análise que Han (2017c, p. 10) faz sobre os impactos das tecnologias e das suas implicações pessoais e sociais começa pela introdução do conceito de “panóptico digital” para traduzir as consequências das tecnologias. Segundo ele o panóptico digital é “aperspectivista” na medida em que “não é mais supervisionado pela onipotência do olhar despótico”. Neste sentido, há uma diferença substancial em relação ao panóptico de Bentham, discutido por Foucault. Para Han:

O panóptico digital surge agora totalmente desprovido de qualquer ótica perspectivista, e isso é que constitui seu fator de eficiência. A permeabilidade transparente aperspectiva é muito mais eficiente do que a supervisão perspectivista, visto que é possível ser iluminado e tornado transparente a partir de todos os lugares, por cada um.

Han analisa a expansão das tecnologias e como elas afetam as pessoas. Além desse ‘aperspectivismo’, o autor trata do excesso de positividade. “O desaparecimento da alteridade significa que vivemos numa época pobre de negatividade”. Han fala dos os adoecimentos neuronais do século XXI que seguem “não a dialética da negatividade, mas a da positividade. São estados patológicos devido a um exagero de positividade” (2017a, p. 14, grifo do autor). Ocorre um envolvimento excessivo com redes que colocam as pessoas em contato diário com centenas e milhares de informações que pouco problematizam tanto as questões existenciais quanto sociais. Na obra En el enjambre,Han (2014, p. 16), problematiza as implicações desse excesso de informações, mas, ao mesmo tempo, falta comunicação, porque “el enjambre digital no es ninguna massa porque no es inherente a ninguna alma, a ningún espíritu. El alma es congregadora y unificante. El enjambre digital consta de indivíduos aislados” (2014, p. 16).

Outro elemento importante para a compreensão da formação cultural dos alunos é o nível de instrução dos pais. Os dados dos que responderam a questão sobre o grau de instrução dos pais revelam que 176 pais (masculino) não completaram o ensino fundamental, sendo que alguns estiveram poucos anos na escola, além de haver o registro de 10 pais analfabetos. Em relação à mãe, 161 delas não concluíram o ensino fundamental e duas eram analfabetas. Apenas 46, incluindo pai e mãe, chegaram ao ensino superior, sendo que nove não concluíram esse nível de ensino e 11 cursaram especialização. Esses indicadores coincidem com uma tendência expressiva da população brasileira que jamais entrou na escola e tantos outros que permaneceram poucos anos. Os textos de Longhi e Dal Moro (2005, p. 25-48) e Ferraro (2005, p. 49-79), entre outros, contextualizam essa problemática ao longo da história brasileira e, mesmo com as políticas de erradicação das últimas décadas, os índices continuam elevadíssimos em determinadas regiões.

O baixo nível de instrução de muitos pais reflete, em parte, na ausência de um habitus, como afirma Bourdieu, de relação com o mundo letrado. Como assinalam Bourdieu (1966, p. 325-347), Charlot (2000) e Freitas (2016, 325-351), há precárias relações com o saber que se refletem num baixo capital cultural. Sem uma experiência de relação com o saber, ou como explica Bourdieu (1979, p. 3-6), com o capital incorporado, objetivado e institucionalizado desde a infância fica muito difícil superar os obstáculos posteriores pelas exigências que o conhecimento acadêmico provoca. Esse é, certamente, um dos grandes desafios da formação de professores. Como conclui Souza (2017, p. 250), baseado na contribuição de Bourdieu:

Outro fator fundamental ligado ao problema discutido anteriormente é o não aprendizado de habilidades e capacidades fundamentais para a apropriação do capital cultural de qualquer tipo. No relato de vários de nossos informantes, não faltou a presença da instituição escola. No entanto, era muito comum a observação de que, quando crianças, eles ficavam fitando o quadro negro durante horas sem nada aprender. Com a repetição desse tipo de relato, que nos desconcertou no começo, aprendemos a perceber que o problema em jogo era a ausência da incorporação afetiva da ‘capacidade de se concentrar’, algo que os indivíduos da classe média tendem a perceber como ‘habilidade natural’, como se simplesmente nascêssemos com ela, como acontece com a capacidade de enxergar ou ouvir.

Essa reflexão de Souza permite problematizar um conjunto de questões, entre as quais, a de que a construção do conhecimento não é uma mera apropriação de informações. A capacidade de concentração e, por conseguinte, de abstração, é decisiva para um bom desempenho em várias áreas do conhecimento. Mais do que isso, a capacidade de abstração é fundamental para que o aluno possa estabelecer relações entre os fenômenos sociais, econômicos e políticos e poder compreender suas estruturas que não são imediatas nem evidentes. A esse respeito inúmeros autores chamam atenção para o desafio de ir além das evidências imediatas. Esse esforço intelectual não é automático ou natural, como aborda Souza, mas resultante de processos educativos que são desenvolvidos no espaço familiar, bem como na convivência do sujeito nos demais espaços.

Outra pergunta do questionário que ajuda a colocar em pauta a formação cultural dos alunos diz respeito aos personagens brasileiros (cinco) que são mais inspiradores. Dos que responderam, nove disseram não ter nenhuma referência e um número expressivo deixou a questão em branco. Os demais destacaram: Paulo Freire (47 ocorrências); Monteiro Lobato (19); Ayrton Senna (12); Chico Xavier (9); Fernanda Montenegro (8); Rubem Alves (8); Lula (7); Paulo Coelho (7), pai e mãe (7), Fátima Bernardes (5); Xuxa (4); Augusto Cury (4), Tony Ramos (3); Regina Duarte (3); Içami Tiba (3); FHC (3); Mônica e Cebolinha; Emília (do sítio do pica-pau amarelo). Entre os indicados, há personagem que nem são brasileiros como a Madre Teresa de Calcutá e também personagens da TV como Chaves (Chapolin Colorado) com duas indicações e uma indicação para Bob Esponja.

A precarização da vida que se faz presente em praticamente todas as dimensões não permite projetar, de um modo geral, grandes utopias. Entre os alunos, há uma perspectiva mais tópica (imediata) do que utópica. Para muitos deles, o horizonte é a formatura, fato que representa uma grande conquista. As pesquisas desenvolvidas por Mattos (2016, p. 203-235) revelam como é difícil para os membros da ralé ascender socialmente. As suas reflexões evidenciam o quanto é difícil sair dessa condição e conquistar cidadania.

No caso dos alunos pesquisados, a maioria pode ser enquadrada na categoria de batalhadores, como define Souza (2012a). Vivem numa condição social e econômica melhor do que os da ralé, o que permite estabelecer como horizonte a chegada ao ensino superior e a formatura, possibilidade impensável para os seus pais. Nesse contexto, a formatura passa a representar o auge das conquistas. Boa parte das respostas à pergunta sobre as principais utopias centra-se em desejos pessoais: casar, ter filhos, estabilidade no emprego, concurso, ter uma casa, um carro e viajar. Apenas 15 disseram ter transformado suas visões de mundo no decorrer do curso.

Como observa Charlot (2000), há uma fraca relação com o saber no âmbito cultural desses sujeitos, pelo menos até o ingresso no ensino superior. Para uma parcela significativa, essa relação continua muito fraca mesmo para quem está realizando o curso. “A relação dos alunos com o(s) saber(es) e com a escola não é a mesma nas diferentes classes sociais” (CHARLOT, 2001, p. 16). Ainda, segundo o autor, “só aprende quem encontra alguma forma de prazer no fato de aprender. Quando digo prazer, não estou opondo prazer e esforço. Não se pode aprender sem esforço; não se pode educar uma criança sem lhe fazer exigências. Não há contradição entre prazer e esforço” (2009, p. 83). Charlot insiste na dimensão do sentido para estudar e aprender. Sendo, historicamente, uma relação fraca não é fácil produzir uma ruptura.

A pulverização de leituras mais marcantes ao longo da vida, a diversidade de filmes preferidos, bem como a pluralidade de utopias pessoais e sociais evidenciam a ausência de horizontes e preocupações comuns. Esse fenômeno traduz-se numa limitada compreensão dos problemas estruturantes da sociedade e das instituições sociais, comuns tanto em relação ao curso (formação de professor) quanto aos problemas básicos da sociedade. Casar e ter uma família feliz são dois sonhos destacados por 86 alunos; na sequência vem concluir o curso (82); ter uma casa própria (72); realizar-se profissionalmente e ser bom profissional (74); ser mãe (ter filhos) que inclui as que desejam ter um primeiro, mas também aquelas que querem ter mais um (48); viajar para o exterior (35); viajar pelo Brasil (28); conseguir emprego na área, estabilidade no emprego e boas condições financeiras, incluindo as que desejam ficar ricas (49); comprar um carro (25); fazer especialização (30); fazer mestrado (38); fazer doutorado (21); continuar estudando (10); fazer concurso público (21); ter qualidade de vida e saúde (18); atuar na pedagogia, na educação infantil, mas também no ensino fundamental (20); fazer outra graduação, em parte, pela insatisfação com a pedagogia (14); reconhecimento pela profissão, o que inclui a valorização e sucesso profissional e financeiro (23); abrir uma escola de educação infantil (10); ser professora universitária (12). Boa parte desses desejos aponta para horizontes pessoais, familiares e de consumo. Poucos alunos pretendem continuar estudando. Em geral, os que propõem fazer especialização, mestrado e doutorado são os mesmos. Concluir o curso é, para a maioria, o ponto de chegada.

A multiplicidade de horizontes e de experiências poderia constituir-se num grande potencial enquanto coletivo. No entanto, o que se evidencia é que essa diversidade dificulta a construção de uma identidade como aluno de pedagogia, mas também como curso. No elenco de utopias, praticamente não há referência às históricas reivindicações dos professores por salário e melhores condições de trabalho, mudanças sociais e econômicas, educação de qualidade, defesa de uma educação republicana e formadora para a democracia e (DEWEY, 1979; BENEVIDES, 1996), a participação social e política, cidadania, luta na defesa de direitos humanos. Essas pautas poderiam aglutinar os alunos, mobilizando-os em torno de identidades comuns. Ao contrário, as experiências em sala de aula reforçam as resistências em pautar questões sociais e políticas, desigualdade econômica, defesa da democracia. São extremamente raras as iniciativas de alunos em provocar discussões e questionamentos dessa natureza, principalmente discussões políticas.

Considerações finais

Os elementos empíricos emergentes da pesquisa evidenciam um quadro de precarização da vida dos alunos e de suas famílias que, com algumas exceções, se traduz numa fraca formação na educação básica, em precárias condições de habitação, baixos salários, na ausência de condições para uma boa alimentação, nos poucos livros lidos ao longo da vida, em escassos momentos disponíveis para o estudo fora da sala, nas longas jornadas de trabalho, nas dificuldades para a compreensão dos textos indicados, nas dramáticas experiências de escrita, no uso substancial de medicamentos para amenizar dores, ansiolíticos ou antidepressivos.

A pesquisa trouxe muitos elementos empíricos, alguns dos quais estão sistematizados neste artigo, que dão materialidade ao conceito de capital cultural discutido por Bourdieu e ajudam a compreender as condições de vida de parte expressiva de alunos da pedagogia. Os aspectos, aqui, delimitados justificam um baixo capital cultural que é traduzido nas dificuldades de apropriação de textos teóricos, bem como, de um movimento intelectual de abstração. Neste sentido, reforça-se a tese de Bourdieu, retomada por Souza, de que a ausência de uma disciplina intelectual compromete avanços qualitativos. As exigências postas pelas instituições sociais na atualidade, particularmente a escola, demandam um movimento intelectual para além do imediato. O baixo capital cultural traduz-se, entre outras formas, na dificuldade de avançar para além das práticas imediatas, bem como na apropriação de textos mais complexos. As leituras indicadas como as mais marcantes, assim como os filmes, revelam um universo cultural muito limitado. As demandas por leituras que exigem um esforço teórico, especialmente no âmbito da filosofia, das teorias pedagógicas, da sociologia, da psicologia, entre outras, encontram resistências e dificuldades de apropriação.

Essas dificuldades não resultam de processos naturais. Existem razões históricas que ajudam compreender como a precarização não fica limitada à educação básica, mas perpassa o conjunto das relações socioeconômicas e culturais. Neste sentido, a tese de Bourdieu de que não se pode analisar o capital cultural de modo isolado do capital social e, principalmente, do capital econômico, justifica-se plenamente. Há imbricações profundas entre a formação cultural e as condições materiais de sobrevivência. São múltiplos os fatores que se entrelaçam e resultam numa limitada formação intelectual.

O problema é que a precarização da vida, incluindo a dimensão formativa-intelectual, vai na contramão das exigências educacionais dos complexos espaços educativos formais e não formais. As múltiplas formas de socialização e individualização existentes no contexto atual demandam cada vez mais esforço dos professores. Para tanto, é imprescindível uma formação que seja capaz de dar conta de compreensões teóricas e práticas de modo profundo e qualificado. Em outras palavras, é preciso criar condições efetivas para uma análise crítica das contradições socioeconômicas e políticas e dos diferentes projetos de sociedade em disputa.

Os contextos de precarização comprometem não apenas a qualidade de vida, mas também o desenvolvimento de uma reflexão teórica que exige um esforço de abstração. A não construção de um habitus de estudar e ler fica agravada pelas condições de sobrevivência que absorvem muita energia dos alunos. As condições de trabalho profundamente exigentes resultam em problemas de saúde, comprometendo o sono e, por conseguinte, a concentração necessária para o próprio estudo.

São essas algumas conclusões que podem ser tiradas da pesquisa. Como foi observado inicialmente, a pesquisa teria de continuar para avaliar como os alunos reagem frente às dificuldades e ao baixo capital cultural. Pressupondo que as condições preexistentes ao ingresso na instituição de ensino superior não determinam o desempenho, seria importante aprofundar como os alunos estabelecem novas relações com o saber, na perspectiva apontada por Charlot. O que se conclui, até o momento, é que há um quadro geral de precarização que se traduz num baixo capital cultural.

1Na construção do questionário, bem como da sua aplicação, foi fundamental a contribuição de inúmeros docentes que atuam no curso de pedagogia. O trabalho de sistematização das respostas contou com a colaboração de alunos bolsistas PIBID e PIBIC.

2Bourdieu foi convocado para o serviço militar na Argélia para onde se dirigiu em 1955 e lá permaneceu até 1960 quando retornou para a França. Naquele período iniciou a sua trajetória de pesquisador. Schultheiss (2017, p. 11) afirma que, naquele contexto, ele forjou conceitos fundamentais que perpassam as suas pesquisas posteriores. No entanto, reconhece que pouco destaque foi dado pelos estudiosos de Bourdieu para essa fase inicial ou formadora da sua sociologia. Naquele período, ocorreu uma “virada reflexiva, bem presumível, do estruturalismo genético pela qual ele se guiava, esse status nascendi de um habitus nas ciências sociais deveria ocupar uma posição-chave nessas considerações” (grifos do autor). A respeito das pesquisas que Bourdieu desenvolveu nesse período, pode-se ver a obra Argelia 60: estructuras económicas y estructuras temporales (2013).

3“A noção de capital cultural impôs-se hoje na sociologia da cultura” (tradução minha).

4O texto de Bourdieu (1966) aqui utilizado foi traduzido por Aparecida Joly Gouveia e revisado por Maria Alice Nogueira, conforme Bourdieu (2011b, p. 39-64).

5Entende-se, aqui, como informais os espaços educativos que precedem ao ingresso na escola. Tem uma interferência fundamental nesse sentido o contexto familiar, mas também os recursos tecnológicos como a televisão e a internet.

6Será usada, aqui, a tradução do texto original de Bourdieu (1979) feita por Magali de Castro e revisado por Maria Alice Nogueira que está na obra organizada por Nogueira e Catani. Escritos da Educação (2011d, p. 73-79).

7Precarização é, aqui, entendida como a fragilização de direitos trabalhistas que resultam numa crescente negação de condições adequadas e dignas de trabalho, remuneração, alimentação, descanso e lazer. Antunes (2018, p. 37) resume em três palavras o contexto atual de crescente de precarização no mundo do trabalho: terceirização, informalidade e flexibilidade. A respeito da precarização, pode-se ver Antunes (2005, 2011, 2018) e a obra organizada por Antunes e Braga (2009).

8Cabem, aqui, duas observações sobre o sentido de periferia: a primeira é que muitos alunos provêm de cidades pequenas (menos de 10 mil habitantes), onde a delimitação entre centro e periferia nem sempre é bem configurada; a segunda observação é que a periferia é compreendida, muitas vezes, como lugar de marginalidade (lugar de pobre e marginal). Persistem percepções entre os alunos que a periferia é lugar perigoso. Em razão disso, negam a condição de moradores de periferia. A obra organizada por Jessé Souza, A Ralé brasileira: quem é e como vive (2016), contém vários artigos que analisam as condições de vida de quem vive na periferia urbana e ajuda a compreender melhor as representações negativas que são produzidas e reproduzidas em diferentes contextos em relação aos moradores de periferia. Essa problemática é retomada por Souza na obra A classe média no espelho: “Hoje em dia, o trabalhador precário não se considera pobre, mas de classe média” (2018, p. 17).

9Ainda é comum a definição de trabalho (emprego) apenas para quem tem algum vínculo formal, com carteira assinada e salário fixo. Dessa forma, atividades domésticas e agrícolas ficam excluídas e não são, muitas vezes, definidas como trabalho.

10Os textos estudados em sala de aula e os indicados como leitura complementar são, em geral, muito limitados diante da complexidade sociocultural e política da sociedade e das instituições sociais. Mesmo assim, é comum a reclamação sobre o excesso de leituras.

11De 2015, quando da realização pesquisa, aos dias atuais, aumentou muito a contratação de alunos da pedagogia através do Centro Integrado Empresa-Escola (CIEE) ou de empresas terceirizadas. Muitos alunos da pedagogia estão, hoje, nessa condição.

12É preciso ter cuidado com diagnósticos sobre doenças e uso de medicamentos. O que a pesquisa aponta é uma correlação entre as condições de trabalho (extenuantes e muita pressão), os salários baixos, um elevado número de horas diárias dedicadas ao emprego e ao estudo com o uso de medicamentos.

13É preciso ponderar algumas situações em que as condições de remuneração do aluno não expressam a realidade socioeconômica da família, ou seja, mesmo que o aluno receba um salário baixo, a totalização da renda familiar permite um padrão de vida elevado devido a atividades de comércio ou em outros setores empresariais. No entanto, são exceções.

14Alguns responderam de modo vago: Bastante (2); Diversos (1); Muitos (23); Não lembra (5); Não sabe (4); Perdeu a conta (3); Poucos (1); Vários (15). Um dado significativo é que mais de 100 alunos não responderam essa questão.

15Das 15 obras mais lidas, sete delas são indicações de professores que atuam em disciplinas no curso de Pedagogia.

16“O enxame digital não é nenhuma massa porque não é inerente a nenhuma alma, nenhum espírito. A alma é congregadora e unificante. O enxame digital consiste de indivíduos isolados” (Tradução minha).

17Entende-se, por utopia, os sonhos e desejos que vão além das questões imediatas. Do grego óu (advérbio de negação) mais topos (lugar, aqui entendido como o espaço imediato), utopia significa o não aqui, o não imediato, o que está para além do lugar onde piso. Utopia é o que está além do aqui, mas não pode ser compreendida como ilusão ou sonho, mas sim como força propulsora que mobiliza o sujeito a sair do imediato e projetar-se para frente.

18Jessé Souza e seus colaboradores desenvolveram várias pesquisas que estão condensadas na obra A ralé brasileira (2016), na qual se destacam grupos que são mais marginalizados na sociedade. Numa segunda obra, Os batalhadores brasileiros (2012a), entram em cena outros sujeitos, que, através de um grande esforço pessoal, familiar e com apoio de políticas públicas, conseguem ascender socialmente. Boa parte dos alunos pesquisados pode ser classificada na categoria batalhadores.

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Recebido: 20 de Dezembro de 2018; Revisado: 26 de Fevereiro de 2019; Aceito: 27 de Fevereiro de 2019; Publicado: 07 de Março de 2019

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