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Práxis Educativa

versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.14 no.2 Ponta Grossa maio/ago 2019  Epub 14-Jun-2019

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.14n2.014 

Artigos

“Ninguém solta a mão de ninguém”: conectados/as em rede, resistimos

“No one let go of anyone’s hand”: network connected, we resist

“Nadie suelta la mano de nadie”: conectados/as en red, resistimos

Danilo Araujo de Oliveira* 

Anderson Ferrari** 

Nathalye Nallon Machado*** 

*Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e doutorando em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Currículos e Culturas. E-mail: <danilodinamarques@hotmail.com>.

**Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pós-doutor em Educação e Cultura Visual pela Universidade de Barcelona. Professor da Faced/Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFJF e coordenador do grupo Gênero, Sexualidade, Educação e Diversidade (GESED) da UFJF. E-mail: <aferrari13@globo.com>.

***Mestre em Educação pela UFJF, doutoranda em Educação pela UFJF. Professora da Secretaria de Estado de Educação de Juiz de Fora. Membro do grupo GESED/UFJF. E-mail: <natha_30@hotmail.com>.


Resumo:

Este artigo parte de dois aspectos da atualidade que nos chamam atenção. O primeiro diz da renovação e da inventividade das resistências em meio ao cenário de ameaças às conquistas democráticas e às relações de gênero. No encontro com esse primeiro, o segundo aspecto é a organização e a mobilização das mulheres na internet por meio do ciberativismo. Para desenvolver nossas análises, partimos da formação do grupo que se organizou durante as eleições presidenciais de 2018, o Grupo Mulheres Unidas contra Bolsonaro, para problematizar o ciberativismo como luta pela existência no tempo presente. Como perspectiva teórico-metodológica, assumimos as provocações de Michel Foucault para pensar as resistências e as biopolíticas como categorias de análise. Como conclusão, podemos dizer que o ciberativismo das mulheres reforça o aspecto positivo do poder na perspectiva foucaultiana, de modo a renovar o feminino e o feminismo como resultado de negociação capaz de produzir outras formas de ser e de estar no mundo.

Palavras-chave: Ciberativismo; Mulheres; Resistências; Biopolítica

Abstract:

This paper is based on two topical aspects that call us attention. The first concerns the renewal and inventiveness of resistances amid the scenario of threats to democratic achievements and gender relations. In the encounter with this first aspect, the second one is the organization and mobilization of women on the Internet through cyber-activism. In order to develop our analysis, we start with the formation of the group that was organized during the presidential elections of 2018, the United Women Group against Bolsonaro, to problematize cyber-activism as a struggle for existence in the present time. As a theoretical and methodological perspective, we assume the provocations of Michel Foucault to think of resistances and biopolitics as categories of analysis. As a conclusion we can say that women’s cyber-activism reinforces the positive aspect of power in the Foucaultian perspective, renewing the feminine and feminism as a result of negotiation capable of producing other forms of being and being in the world.

Keywords: Cyberactivism; Women; Resistances; Biopolitics

Resumen:

Este artículo parte de dos aspectos de la actualidad que nos llaman la atención. El primero trata de la renovación e inventiva de las resistencias en un medio al escenario de amenazas a las conquistas democráticas y a las relaciones de género. En el encuentro con ese primero, el segundo aspecto es la organización y movilización de las mujeres en la internet por medio del ciberactivismo. Para desarrollar nuestros análisis partimos de la formación de grupo que se organizó durante las elecciones presidenciales de 2018, o Grupo Mujeres Unidas contra Bolsonaro, para problematizar el ciberactivismo como lucha por la existencia en el tiempo presente. Como perspectiva teórico- metodológica, asumimos las provocaciones de Michel Foucault para pensar en las resistencias y las biopolíticas como categorías de análisis. Como conclusión, podemos decir que el ciberactivismo de las mujeres refuerza el aspecto positivo del poder en la perspectiva foucaultiana, de modo a renovar el femenino y el feminismo como resultado de negociación capaz de producir otras formas de ser y de estar en el mundo.

Palabras clave: Ciberativismo; Mujeres; Resistencias; Biopolítica

Introdução

Atenção ao dobrar uma esquina

Uma alegria, atenção menina

Você vem, quantos anos você tem?

Atenção precisa ter olhos firmes

Pra este sol, para esta escuridão

Atenção

Tudo é perigoso

Tudo é divino maravilhoso

Atenção para o refrão

É preciso estar atento e forte

Não temos tempo de temer a morte

Atenção para a estrofe e pro refrão

Pro palavrão, para a palavra de ordem

Atenção para o samba exaltação

Atenção

Tudo é perigoso

Tudo é divino maravilhoso

Atenção para o refrão

É preciso estar atento e forte

Não temos tempo de temer a morte

Atenção para as janelas no alto

Atenção ao pisar o asfalto, o mangue

Atenção para o sangue sobre o chão

Atenção

Tudo é perigoso

Tudo é divino maravilhoso

(Gilberto Gil, Emanuel Viana e Caetano Veloso)

Em 1969, em pleno período da Ditadura civil-militar brasileira, Gal Costa lançou um disco em que a música “Divino Maravilhoso” compunha uma das faixas. Além de ter sido um período de perdas democráticas, ameaças às manifestações sociais e intensa tortura e violência, as décadas de 60 e 70 do século XX também representaram uma época de grande efervescência cultural no Brasil, demonstrando que as resistências fazem parte das relações de poder como formas de construir diferentes subjetividades e maneiras de enfrentamento àquilo que nos ameaça. Hoje, mais do que nunca, essa canção de autoria de Gilberto Gil, Caetano Veloso e Emanuel Viana é atual. Ela nos incita a colocar em evidência a relação (que se renova) entre ameaças e enfrentamentos, perdas de direito e resistências. Sua utilização, nesta introdução, parece-nos interessante para iniciarmos nossa discussão sobre ativismo e mobilização pela internet. Esse é o foco de análise do artigo: a relação entre ativismo e a internet como espaço de mobilização, de resistência e de subjetivação. Para isso, vamos partir de movimentos de mulheres para explorar os significados dessa aliança no ciberespaço.

Como no refrão da música - “é preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte” -, a formação do Grupo Mulheres Unidas contra Bolsonaro, que se organizou na plataforma do Facebook durante as eleições presidenciais de 2018, parece afirmar essa necessidade de ficar atentas para lutar pelas suas existências. Nesse sentido, é um refrão que nos convida a problematizar as relações dos sujeitos com o seu tempo histórico, a forma como vamos nos constituindo em meio a discursos, relações de saber-poder e as ações dos sujeitos sobre si mesmos e sobre os/as outros/as. Um conjunto de reflexões que nos aproximam da perspectiva foucaultiana de análise, como uma forma de educação que aposta na produção que coloque sob suspeita nossos modos de subjetivação. No contexto atual, queremos olhar para esses movimentos de produção de si e dos/as outros/as pelo espaço de mobilização na internet, entendendo-a como campo problemático de investigação.

A popularização dos bens de consumo ocorrida na primeira década dos anos 2000 possibilitou o acesso não somente a bens duráveis como geladeiras, televisões e computadores, mas também a serviços como telefonia móvel, internet e TVs por assinatura, por exemplo. Assim, dentre esses serviços e produtos, vem chamando nossa atenção o crescente uso da internet entre brasileiras/os nos últimos anos. Como pesquisadores/as no campo da educação, problematizamos esses espaços de sociabilidade como educativos, uma vez que modificam nossa forma de ver, ser visto e, principalmente, nossa forma de agir, além de interferir, diretamente, no cotidiano escolar, nos processos de ensino-aprendizagem e nas relações entre professoras/es e alunas/os.

Somos, de muitas formas, convocados/as a usar a internet nos seus mais variados fins, de modo que ela alterou, de forma decisiva, as maneiras como pagamos nossas contas, aprendemos e ensinamos, namoramos, nos locomovemos e, principalmente, nos comunicamos e nos mobilizamos. Dados recentes disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) evidenciam esse crescimento do alcance da internet no Brasil. Segundo a pesquisa “PNAD Contínua do TIC 2017”, esse acesso ocorre principalmente pelo celular. Também de acordo com a pesquisa, o grupo social que mais acessa a internet é aquele com faixa etária entre 20 e 24 anos, correspondendo a 88,4% dos usuários. No entanto, outro grupo nos convida a pensar a potencialidade desse meio de comunicação: aquele de pessoas com 10 anos ou mais, que representaram 69,8% dos 181,1 milhões que acessaram a internet pelo menos uma vez em três meses. Somando esses dois grupos, podemos dizer que temos um contingente com variação entre 10 a 24 anos que se constitui como o grupo majoritário de internautas1.

Percebemos a vinculação da internet com a/o jovem e reforçamos nossos argumentos de que a/o jovem “[...] interage crescentemente com as tecnologias e, nessa mistura se produz e orienta seu comportamento, conduz a sua própria existência” (SALES, 2010, p. 37), de modo que “[o] vínculo da juventude com a tecnologia é da ordem da impregnação e da composição. Seu locus privilegiado é o ciberespaço” (SALES, 2010, p. 37, grifo da autora). Uma série de aplicativos e redes sociais estão ao alcance das mãos das/dos jovens, fazendo dos aparelhos digitais parte delas/es e talvez confundindo o que é humano e o que é máquina. Conforme as suposições de Donna Haraway, essas/es jovens ciborgues são “[...] um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção” (HARAWAY, 2009, p. 360). Ainda segundo a autora, as/os jovens ciborgues se manifestam, questionam seus modos de existência e juntas/os se articulam contra os mecanismos do biopoder2, que precarizam suas vidas na contemporaneidade. Nesse sentido, partimos da formação do Grupo Mulheres Unidas contra Bolsonaro para problematizar o ciberativismo3 como luta pela existência no tempo presente.

O Grupo Mulheres Unidas contra Bolsonaro foi criado em 30 de agosto de 2018, o que parece ter chamado atenção à formação de outros grupos como o LGBTQI+ Resistência pela Democracia!, criado, logo em seguida, em 10 de setembro do mesmo ano. A criação dos dois grupos fez parte das ações de resistência em rede aos discursos de ódio propagados e incitados pelo candidato à presidência do partido Social Liberal (PSL) e que atingiam, principalmente, as mulheres e a população LGBTQI+. No entanto, os grupos não limitaram suas ações somente à internet, convocaram uma série de pessoas às ruas em diversas partes do Brasil a partir do sentido de pertencimento ao gênero e à diversidade sexual sem, no entanto, ampliar a articulação pelo investimento na luta pela democracia.

Como prolongamento desses movimentos, logo após os resultados da eleição de 2018, uma imagem começou a circular na internet: duas mãos dadas, uma rosa ao fundo e a frase “ninguém solta a mão de ninguém”. O resultado das eleições demonstrou a necessidade da manutenção da mobilização entre esses grupos e, mais do que isso, exigiu uma nova investida na inventividade da resistência. Para Michel Foucault (2009), a resistência, assim como a liberdade, é parte das relações de poder e tem de ser tão inventiva quanto o poder, para se constituir com uma força neste jogo entre poder e resistência.

É essa força inventiva que nos chamou atenção nas reações pós-eleição expressadas na arte que tomou a internet. A autora da arte, Thereza Nardelli, é uma tatuadora de Belo Horizonte, Minas Gerais. A artista conta que a frase é da mãe dela. Na legenda da foto, Nardelli afirma: “[...] a resistência só começou. ninguém solta a mão de ninguém. [...] fico feliz demais de participar de alguma forma positiva desse momento [...] tamo junto demais”4. A imagem oficial conta hoje5 com 55.205 curtidas e 2.371 comentários, sendo compartilhada na internet nos perfis de outras pessoas, nos stories do Instagram, linhas do tempo; enfim, nos diferentes mecanismos de organização das páginas nas redes sociais. Podemos dizer que essas ações fogem ao controle, criam uma rede entre diferentes pessoas e seus atravessamentos de raça, de classe, de gênero, de sexualidade, de pertencimento geográfico a partir da internet e sua ação sobre os indivíduos, subvertendo fronteiras, juntando uma diversidade de pessoas em torno das situações de precariedade. Não há um abandono das singularidades, mas há busca por algo que nos une e nos torna uma/um responsável pela/pelo outra/o.

Com a ampla divulgação da imagem e do slogan “Ninguém solta a mão de ninguém”, também surgiu uma explicação sobre sua origem, que remete ao mesmo contexto da música de Caetano Veloso e Gilberto Gil. A frase - Ninguém solta a mão de ninguém - teria sido criada em momentos difíceis vividos por estudantes da Universidade de São Paulo, durante o período da Ditadura Militar brasileira nas décadas de 1960 e 1970. De acordo com o Jornal GGN (NASSIF, 2018), em matéria do dia 2 de novembro de 2018, no curso noturno de Ciências Sociais daquela Universidade, as luzes repentinamente eram apagadas e a frase “Ninguém solta a mão de ninguém” era dita pelas/os estudantes. Assim que as luzes eram acendidas novamente, as/os estudantes faziam uma “chamada” e, por muitas vezes, constatavam que alguns de suas/seus colegas não estavam mais lá. Assim, o “Ninguém solta a mão de ninguém” ganhou status de um slogan que traduz sentimentos de resistência, de solidariedade e de união. É preciso estar atento e forte!

Para organizar a análise desse movimento originário das mulheres e sua amplitude no campo do ciberativismo, vamos discutir dois pontos que dialogam quando colocamos sob investigação nossos modos inventivos de subjetivação: novas formas de existir como a resistência e a biopolítica.

Os grupos: experimentação da existência e da resistência

As eleições para Presidente de 2018 foram marcadas pelo uso das redes sociais, seja pelo compartilhamento em massa de fake news, ou pela articulação de segmentos diversos em apoio, rejeição e/ou denúncia das/dos candidatas/os, ou, ainda, como forma de acompanhamento das declarações que surgiam constantemente. O candidato eleito nesse mesmo ano esteve no centro das discussões ao ter seus pronunciamentos ligados a afirmações misóginas, machistas, homofóbicas, xenofóbicas e preconceituosas. Todo esse contexto de disputa possibilitou as condições de emergência das articulações de resistência que tomaram conta das redes sociais nesse momento no Brasil. Foi possível acompanhar vários movimentos de renovação das resistências envolvendo sujeitos de diferentes gerações, gênero, raça, classe. Muitos posicionamentos a favor das liberdades, das existências e da democracia foram potencializados naquele momento em que o Brasil se encontrava. Para muitas mulheres e muitos homens, tais posicionamentos foram além das éticas pessoais nas relações que estabeleciam em seu cotidiano e passaram a ativamente fazer parte de uma pauta de reinvindicações em grupo, unindo sujeitos em torno de uma luta comum. Consideramos essas atitudes como ativismos. O ativismo contém, além dos posicionamentos pessoais coerentes, o convencimento, que faz com que seja necessária uma rede eficaz e ampla de contatos. A internet não inventou o ativismo como resistência, mas ela potencializou essas ações por sua abrangência. Estamos apostando, assim, que a internet não é apenas um espaço e tampouco um simples instrumento tecnológico. Como defende Manuel Castells (2003):

O ciberespaço torna-se um terreno disputado. No entanto, será puramente instrumental o papel da Internet na expressão de protestos sociais e conflitos políticos? Ou ocorre no ciberespaço uma transformação das regras do jogo político-social que acaba por afetar o próprio jogo - isto é, as formas e objetivos dos movimentos e dos atores políticos? (CASTELLS, 2003, p. 114).

O ciberespaço como esse espaço de disputa amplificou outras negociações, como, por exemplo, os discursos de gênero e de sexualidade. Os movimentos de mulheres que estamos analisando estão em meio a jogos político-sociais de disputa do que é ser mulher em tempos de ameaças e de perdas democráticas. As mulheres reivindicam, individualmente, e, por conseguinte, coletivamente, respostas comuns de “todas” as mulheres. Contudo, essa homogeneidade do gênero feminino é impossível, porque a interseccionalidade entre gênero, raça e classe nos mostra que a mulher negra é diferente da mulher branca, assim como a mulher da classe média é distinta daquelas de classe pobre, por exemplo.

Ainda como espaço de disputa, outros movimentos de mulheres, especialmente o grupo “Mulheres com Bolsonaro”6 também foram organizados em resposta a esses, em uma direção inversa de apoio ao candidato. Entretanto, respondendo à questão levantada por Manuel Castells (2003) na citação anterior, podemos dizer que o ativismo, tomado como sinônimo de militância, também se modificou ao longo dos anos, de maneira que ele se ajustou à internet e à era da informação, dando origem ao ciberativismo. As práticas de luta e de transformação da realidade como expressão do ativismo encontraram na internet seu meio ideal de organização, visto que esta possibilitou a abertura de novas formas de troca social, mais ágil, abrangente e incontrolável, que ampliou o entendimento da internet como mídia privilegiada dos grupos ou indivíduos na sua ação ativista. O ciberativismo é uma forma de resistência e, nesta era da internet, ele pode partir de um indivíduo, de ato espontâneo, sem a necessidade de estar organizado em um grupo de militância.

Diante desse cenário, é o descontínuo que chama atenção e que nos permite aproximações ao conceito de resistência para focar nos corpos, nos comentários, nas palavras, nos discursos que foram acionados nessa rede do ciberativismo de mulheres como expressão de energias e de resistências. O descontínuo é a ruptura, o incontrolável. As mulheres, nas suas existências, buscam combater suas vulnerabilidades pela afirmação do que é ser mulher, o que significa dizer que a organização dessas ações, por mulheres ameaçadas pelo machismo, afigura-se como acontecimentos que irrompem no espaço histórico em novos mecanismos de luta.

A luta das mulheres por seus direitos, por sua existência, por políticas públicas e por imagens do feminino como possibilidades de ser e estar no mundo de forma diferente não é nova, ela data da segunda metade do século passado com as feministas (SCOTT, 1995). O que há de novo nessa trajetória de luta é o descontínuo da internet e o poder de cada mulher em se constituir como articuladora das lutas. “Esses actos constituem-se como gestos de resistência, ou seja, gestos que expressam a força de um devir e de um sentido que é sempre, enquanto resistência, um devir-minoritário” (VILELA, 2006, p.110). Seguindo a perspectiva foucaultiana, Eugenia Vilela vai desenvolver o argumento em torno da resistência ligado diretamente aos mecanismos de poder, para afirmar a emergência de ações, de linguagens, de expressões de arte cuja tarefa seria fazer aparecer aquilo que não aparecia, fazer emergir as pequenas infâmias do cotidiano (VILELA, 2006).

A resistência surge, na analítica de Foucault (2009), a partir da relação entre as formas de saber e as forças do poder, sobretudo como crítica a esses modos de poder-saber que nos constituem, nos quais vivemos imersos e dos quais falamos. Podemos pensar que o ciberespaço vem se constituindo como forma de saber, de maneira que vamos aprendendo a usar, a circular e a construir articulações nesse espaço, elaborando conhecimento de si e das/os outras/os a partir dele. E ele também vem se constituindo como em meio a forças do poder, como espaços de denúncia, de acusação, de ameaça e de resistência. Tanto como espaço de saber quanto de forças do poder, o que parece unir esses dois aspectos é o poder de articulação social que a internet se tornou, o que faz com que uma ação individual possa se tornar coletiva em um curto período.

Parece-nos produtivo discutir frente aos momentos político-sociais de ameaça às liberdades, de perda de direitos democráticos, de fechamento e de dificuldades nas relações do poder, o surgimento de movimentos que reivindicam a possibilidade de todas e de todos fazerem parte do mundo, sem limitar qualquer existência. É necessário olhar para o possível, para o que surge da ação coletiva dos sujeitos como novas formas de ser e de estar no mundo, como núcleos de resistência. Essa ação coletiva dos sujeitos é entendida por nós como núcleos de resistência. A internet, com sua abrangência e velocidade, viabilizou o que hoje conhecemos como ciberespaço e, com ele, toda a gama de movimentos ativistas que aí encontramos. Foi neste ciberespaço que surgiu o movimento de mulheres, em uma associação entre imagem, palavras de ordem, histórias compartilhadas, manifestações programadas que rompem com o sentido das coisas e, principalmente, fazem irromper, em um dado momento histórico, uma diversidade de força do singular. Os compartilhamentos transformaram a ação singular de uma mulher em uma rede de apoio que deu força a tantas outras mulheres, tão diferentes e tão iguais entre si.

Um dos grupos de maior destaque nessas eleições, conforme já anunciamos anteriormente, foi o Grupo Mulheres Unidas contra Bolsonaro, o qual, em uma semana de engajamento, agregou mais de 2 milhões de mulheres no Facebook para discutir ações possíveis contra a eleição do candidato e enfrentar as suas declarações preconceituosas. As mulheres convocavam as demais em uma união motivada pelo pertencimento ao gênero. Ser mulher deveria ser suficiente para fortalecer o vínculo e entender que algumas relações de gênero podem construir desigualdades sociais entre homens e mulheres reforçando o lugar da mulher como desqualificado (SCOTT, 1995). O grupo foi um dos principais responsáveis por outros movimentos que se iniciaram na internet, como, por exemplo, o uso das Hashtags7 #EleNão, #EleNunca, #NotHim, #EleJamais. Essas hashtags não foram usadas somente no Facebook, mas deram origem a movimentos que proliferaram pela Grande Rede e desencadearam em outros no Twitter, outra plataforma digital importante. Houve a criação de grupos como o LGBTQI+ Resistência pela Democracia!8.

O primeiro grupo citado foi vítima de um ataque cibernético sendo invadido no dia 16 de setembro de 2018. Nesse ataque, o nome do grupo foi alterado, fazendo alusão e apoio ao candidato que, posteriormente, seria eleito, seguindo de ameaças às moderadoras da mobilização. A própria invasão desse espaço de debate e de mobilização contra os retrocessos nos direitos das mulheres aponta para o reconhecimento e a potencialidade da internet para a luta e a confluência de interesses. O grupo não foi invadido em vão! No início da tarde do mesmo dia, o grupo foi restaurado, demonstrando que tudo na internet é muito rápido9.

Com a aproximação das eleições, uma série de eventos começou a ser criada na internet; grande parte deles com teor satírico, com uma linguagem que priorizava o engraçado, muito próprio das redes sociais, porém, com uma enorme vascularidade e penetração na vida cotidiana das pessoas. A resistência das mulheres expandiu-se e foi envolvendo outros grupos minoritários como LGBTQI+10, além de variados segmentos que se organizaram em defesa das conquistas democráticas e das suas formas de existir. Com isso, podemos pensar que a internet e esses movimentos são parte de uma trama que vai constituindo a realidade que também se organiza nos jogos discursivos e, ao fazer isso, dá significados à vida, dá visibilidade e legitimidade às lutas, às resistências e aos sujeitos (FOUCAULT, 2009).

Entretanto, as resistências não se limitaram ao ciberespaço, elas também tomaram as ruas. A partir da internet, movimentos e encontros foram marcados, tomaram as ruas e, ao tomarem esse espaço público, voltaram ao ciberespaço pelas fotografias, pelos filmes, pelos relatos, pelos compartilhamentos; enfim, uma rede que, por meio da colaboração, pôde existir. Podemos pensar que, nesse espaço virtual, a ação se legitima mais ainda porque permite mais visibilidade, de maneira que quem não foi para as ruas também pôde acompanhar todo o movimento das ruas no ciberespaço. As passeatas do dia 29 de setembro foram organizadas no ciberespaço e houve registro de sua realização em 18 capitais e 65 cidades envolvidas nos atos. Os eventos em São Paulo, com maior adesão, somavam na rede social mais de 300 mil participantes. O Mulheres Unidas contra Bolsonaro foi responsável pela convocação das pessoas a irem às ruas e demonstrarem repúdio às ideias difundidas pelo candidato11. O ciberativismo é, portanto, esses modos de atuação do poder e da resistência nas redes sociais. Nas palavras de Marina Bialer e Rinaldo Voltolini (2017), entendemos que:

O ciberespaço enquanto conjunto de redes interativas permite que a informação digital circule livremente, desenraizada do mundo físico. É nesse sentido que nos parece pertinente a afirmação de que a web é mais ampla do que um mero instrumento de difusão de informação, tendo um efeito organizador da realidade promovido pelo uso da internet como uma tecnologia que transforma as informações desenraizando-as do suporte físico estático e transformando-a em virtualidade, em uma desterritorialização das informações. (BIALER; VOLTOLINI, 2017, p. 66).

Nesses movimentos, somos obrigadas/os a conviver com a imprevisibilidade, pois é impossível demarcar com segurança se eles irão acontecer, como acontecerão, quem irá tomar as iniciativas das discussões e conduzirá as manifestações. Entretanto, essa característica de fluidez e ausência de rigidez no controle desse tipo de ação demonstra o caráter volátil a que estamos expostas/os - Ninguém solta a mão de ninguém!

Diante da imprevisibilidade desses movimentos de resistência em diálogo com as relações de poder, importa questionar de onde surgem esses momentos e movimentos de resistência. Um tipo de questionamento que nos conduz a outro de tamanha importância na constituição das relações de força, que é a dimensão do sujeito ético. Estamos cientes de que seria um equívoco acreditar que esse movimento de mulheres em torno de ações e de pensamentos movidos pela necessidade de construir um espaço possível de resistência esteja ligado ao retorno a uma ideia do sujeito como forma de identidade. O que esse movimento de resistência de mulheres parece colocar em circulação é a noção de si como relação, que tem a ver com o que Foucault (2009) vai chamar de processos de subjetivação. Considerando que o poder é uma relação de forças, um jogo de forças, podemos dizer que a subjetivação (ou a maneira como nos tornamos o que somos, como nos constituímos como sujeitos) é, também, uma relação de forças consigo mesmo/a, como uma dobra da linha de forças.  

Esse gesto onde se fendem as coisas e as palavras poderia ser um modo de pensar a possibilidade de sentido das linhas sem coordenadas, a partir do desenho de um diagrama, isto é, da exposição das relações de forças que constituem o poder. Tornar-se então manifesta a necessidade de atravessar a linha, de transpor as relações de força do saber-poder e, assim, entrar num outro espaço onde se concentrassem a energia das vidas em si mesmas, tal como podiam ser em estado livre, não as ligando apenas a um destino que as condenaria a submeter-se a todo o discurso e a desaparecer sem nunca terem sido ditas, a não ser porque deixaram algum traço no ponto do seu contacto com o poder. E, não ignorando as descontinuidades que nos trespassam, tornar-se-ia importante reconhecer o lugar, o momento e a paixão que envolvem qualquer desejo de compreensão do mundo. (VILELA, 2006, p. 113).

Somos muitas/os alguéns que juntas/os seguimos! Assim, os movimentos surgem, difundem-se e ganham proporções de forma rápida e exponencial. Os modos de ação em conjunto, as manifestações ou, ainda, as assembleias públicas na contemporaneidade são problematizadas pela autora Judith Butler (2018), a qual considera que essas reuniões podem provocar sensações tanto de esperança quanto de medo. A prerrogativa de que vivemos em um estado democrático opera nesse fio tênue dos levantes organizados por grupos e dos efeitos que eles podem provocar em uma sociedade. É necessário ficar atenta/o aos jogos de poder inerentes ao que se chama democrático, tendo em vista que a designação do que se chama democrático está em disputa seja pelas/os analistas seja pelo próprio grupo que autodetermina sua ação como tal. Isso pode ser exemplificado nas eleições de 2018 na qual o partido eleito (PSL) utilizou como campanha democrática a defesa de uma família brasileira12 para o povo brasileiro.

A forma de um discurso moralizador e padronizado pôde ser ouvido e visto durante a circulação das ideias da campanha do candidato que prometia trazer o “Brasil de volta”. Quando questionamos que família brasileira é essa, que povo brasileiro é esse, é possível perceber que as existências dissonantes, famílias com modelos que escapam ao tradicional pai, mãe, filhas/os não estavam contempladas pelo discurso proferido pelas/os conservadores. Em um país em que grande parte das famílias tem na mulher sua fonte de sustento e sobrevivência13, é fácil perceber que nem todas as constituições de família e de povo estavam incluídas na proposta de campanha.

Nesse sentido, há uma relação de inclusão e de exclusão quando determinado grupo se autodetermina como democrático e na maneira como constrói sua ideia de povo, o que significa pensar que há uma disputa para estabelecer uma fronteira e reconhecer aquelas/es que serão “o povo”. Inclusão e reconhecimento estão nos pressupostos desses processos e nos importa problematizar o que e quem está visível toda vez que se elabora uma ideia de povo; indo um pouco além, nos cabe pensar também como se operar com as desigualdades e as exclusões, que, na maioria das vezes, não estão explícitas.

Judith Butler (2018) convida-nos a questionar se esses movimentos de demandas sociais e políticas mais recentes, como, por exemplo, o movimento “Fora Temer” e o que reivindicava “Diretas Já”14, podem indicar “[...] exemplos verdadeiros ou promissores da vontade popular, a vontade do povo” (BUTLER, 2018, p. 13). Para a autora, o que parece ser mais promissor é operar com a ideia de que precisamos ler as cenas que os movimentos públicos tornam possíveis, “[...] não apenas nos termos da versão de povo que eles anunciam explicitamente, mas das relações de poder por meio das quais são representadas” (BUTLER, 2018, p. 13). Marcadas pela transitoriedade, a formação da coletividade pode acontecer e se dissolver em instantes, pode ganhar adeptas/os de forma voluntária e involuntária, adquirindo significado anterior e independente da reivindicação a ser feita. É esse significado da reunião que interessa à filósofa, a qual considera que as formas plurais de reuniões se sobrepõem ao entendimento sobre “o povo” que pode ser acolhido, mesmo que parcialmente. Na perspectiva de Butler (2018), o ato de reunir-se é “[...] uma importante prerrogativa política [...]. A reunião significa para além do que é dito, e esse modo de significação é uma representação corpórea concertada, uma forma plural de performatividade” (BUTLER, 2018, p. 14). Interessa-nos, nesse sentido, o significado que o ciberativismo ganha na sociedade contemporânea, quando é possível visualizar sua existência, quer seja em formas de hashtag, quer seja na quantidade de compartilhamentos, comentários, curtidas e adesão. Na velocidade que a internet permite, milhares de corpos ciborgues se unem “[...] exercitando um direito plural e performativo de aparecer, um direito que afirma e instaura o corpo no meio do campo político” (BUTLER, 2018, p. 17).

O ciberespaço também tem sua função expressiva e significativa porque estamos, todos nós, constantemente envolvidas/os com e nesse espaço, que não mais se difere do real, mas é uma imbricação, está amalgamado com os espaços físicos. Segundo Sales (2010), nossos perfis nas redes sociais on-line se misturam com os sujeitos que somos nas praças, no trabalho, nas ruas. Dessa maneira, as alianças e os grupos formados durante as eleições de 2018 contra o fascismo15 e os discursos de ódio propagados transmitem “[...] uma exigência corpórea por um conjunto mais suportável de condições econômicas, sociais e políticas, não mais afetadas pelas formas induzidas de condição precária” (BUTLER, 2018, p. 17). O que é relevante pensar a partir disso tudo, segundo Butler (2018), é a “[...] a ideia de ‘agência’ ou ação que permite às pessoas retirarem de situações muito ruins os recursos para intervir e modificar os termos da realidade” (BUTLER, 2018, p. 17). Essas ideias na contemporaneidade surgem da e na internet.

Butler (2018) já fazia referência às sensações de medo e de esperança quando pensamos nas assembleias públicas na contemporaneidade. Podemos dizer que também temos essas sensações quando pensamos na internet. Isso porque existem múltiplas possibilidades de uso dessa ferramenta. Se antes da existência da internet, ou, mais precisamente, anterior às redes sociais digitais mais recentes, havia uma hegemonia na divulgação da informação; hoje, muitos blogs, perfis e grupos multiplicam as disputas por verdade, colocando em circulação uma diversidade de narrativas. Entretanto, o fenômeno inverso a esse também pode ser observado, ou seja, temos, como efeito das mudanças das tecnologias digitais, o compartilhamento massivo de notícias falsas. Contudo, é predominantemente em rede que os movimentos da contemporaneidade se iniciam, ganham forma e força. As hashtags colocam em evidência mundial o que se pretende pôr em discussão, a formação de grupos on-line convoca pessoas de forma instantânea ao diálogo; os comentários e os compartilhamentos multiplicam-se rapidamente e, juntamente, as fronteiras temporais e geográficas se enfraquecem. São “[...] nestas vastas redes entrelaçadas de interfaces comunicacionais, distribuídas indiferentemente em salas, mesas ou mãos, [que] os afetos e interesses circulam modulando as intensidades capazes de orientar os movimentos e sustentar a coesão de uma multidão em face das normas e ditames imperiais” (MALINE; ANTOUN, 2013, p. 190). A emergência das vozes de grupos como Grupo Mulheres Unidas contra Bolsonaro e LGBTQI+ Resistência pela Democracia! traduz experiências de resistência e experiência de liberdade de expressão.

Esses grupos anunciam e disputam com aquelas/es que tentam silenciar e invisibilizar suas vozes e suas expressões. É criação no meio do caos e, por tratar-se desse elo entre juventudes e internet, as características dessa luta são de resistência, mas também de muito humor e deboche. Como exemplo desse humor, temos os eventos criados na época da eleição contra o presidente eleito: “Filhos do Mr. Catra contra Bolsonaro”, “Gente que não sabe flertar contra Bolsonaro”, “Os cavaleiros do zodíaco Bolsonaro”, “Micróbios, Vírus e Bactérias contra Bolsonaro”, “Bonecos do Posto contra Bolsonaro” etc.16. A lista poderia seguir crescendo uma vez que esses eventos se multiplicaram rapidamente, envolvendo as/os usuárias/os da rede que poderiam manifestar interesse, confirmar participação e/ou compartilhar os eventos em suas timelines. Esses eventos juntam-se aos referidos grupos como parte do movimento formado por pessoas que “[...] identificam-se como sujeitos unidos ao acontecimento, atores de sua atualização, e têm a republicação como estratégia de alargamento de si e de sua própria potência em uma audiência intensa” (MALINE; ANTOUN, 2013, p. 198). Esses levantes populares, os quais nos unem umas/uns as/aos outros/as na internet, convidam-nos a colocar sob suspeita o contexto em que os indivíduos são educados e incitados a se preocupar apenas consigo, e não com as/os outras/os - temos aqui uma forma de responsabilização. Ao contrário dos significados de responsabilidade difundidos pelo neoliberalismo17, “[...] a assembleia desempenha de uma forma provisória e plural de coexistência que constitui uma alternativa ética e social distinta da ‘responsabilização’” (BUTLER, 2018, p. 18). A responsabilização coletiva que esses movimentos e o ciberativismo denotam está diretamente ligada à preservação da vida, à luta por existir, por ter direito a existir. Com isso, parece-nos possível travar a discussão também no campo da biopolítica, seguindo o pensamento foucaultiano, como uma política dos sujeitos vivos constituídos em populações (FOUCAULT, 2009).

Para Foucault (2009), a biopolítica pode ser entendida com um conjunto de biopoderes locais, ou seja, poderes que dizem das possibilidades de existência a partir de novas relações de poder que se aplicam à vida. No entanto, a biopolítica pode ser entendida ainda como formas potencializadas da vida frente aos poderes, como política de resistência, como temos defendido até agora. É essa análise da biopolítica que mais nos interessa, quando ela diz da luta pelo direito à diferença, ao direito de existir, como produção de subjetividades que ao mesmo tempo serve à crítica daquilo que é e criação e inventividade daquilo que poderá ser.

Biopoder, responsabilização e todas junt@s sem soltar a mão de ninguém

Queremos recuperar a história da origem da frase “Ninguém solta a mão de ninguém!” para discutir a biopolítica em suas manifestações pelo direito de existir, de resistir como forma de existência. Como já dissemos anteriormente, a frase teria surgido espontaneamente em um contexto de ameaça à vida, no contexto da Ditadura Militar em que as universidades eram palco de ameaça e tortura. As luzes eram apagadas na sala e como proteção diante da ameaça à vida as pessoas diziam “ninguém solta a mão de ninguém”, como forma de garantir que todas estariam juntas e que juntas seria mais difícil levar qualquer uma individualmente, visto que estavam em uma corrente de mãos que as prendiam umas nas outras. Recuperar essa frase em outro contexto histórico é uma forma de ressignificar o seu sentido, mantendo o recado de que as vidas das mulheres estão ameaçadas hoje em dia e que é necessário manterem-se unidas para proteção individual e coletiva. As vidas das mulheres importam. As ameaças à vida advêm de diferentes direções: no feminicídio, que insiste em se manter alto e frequente; na cultura do estupro, que se renova constantemente na educação dos gêneros; na ausência de políticas públicas que combatam a desigualdade dos gêneros; na criminalização do aborto; enfim, situações que já faziam parte do cotidiano de enfrentamento das mulheres e que se fortaleceram com a eleição do novo presidente, que não demonstra nenhum interesse em modificar esse quadro.

As campanhas políticas são momentos privilegiados em que temos a oportunidade de entrar em contato com os mecanismos de poder que advogam por determinadas vidas e deixam outras de lado. Que vidas importam nos discursos e nos projetos desse governo? Que vidas são deixadas de lado e são precarizadas pelos mesmos discursos e projetos desse governo? Afinal, estamos falando de um jogo de poder e força que constitui o cenário político-social, um desenho de país e de sujeitos com direitos que exclui outros tantos. Os projetos de governo são constituídos por um conjunto de biopoderes que se aplicam à vida, dão vida, retiram vida. Entretanto, eles também constroem formas de resistir como luta pelo direito de existir e de viver, de maneira que a vida é potencializada, ela entra na pauta de luta, produz subjetividades que vão dialogar, negar, propor outros conjuntos de biopoderes que gerem outras vidas possíveis. Por tudo isso é que insistimos que o debate que estamos travando até agora, em torno da resistência das mulheres na constituição do ciberativismo, pode contribuir com as problematizações do cotidiano a partir da sua análise como efeito da biopolítica.

A biopolítica diz da transformação do poder entre os séculos XVIII e XIX com o objetivo de não somente governar os indivíduos, mas a população (FOUCAULT, 2009). A invenção da “população” colocou esse novo desafio para os governos, pensar e governar um conjunto de indivíduos a partir da ideia de homogeneidade. Para isso, a biopolítica, por meio dos biopoderes locais, dedicar-se-á ao governo da saúde, da higiene, do matrimônio, da sexualidade, da mortalidade e da natalidade; enfim, ela se ocupará desses aspectos como preocupações políticas em nome de uma população (FOUCAULT, 2009). A campanha para a Presidência do Brasil, que deu origem a tantos movimentos de resistência, fundou-se, no que tange ao modelo de ser humano, em princípios do homem universal, heterossexual, branco, classe média, oriundo de uma família nuclear. Esses princípios, repetidos exaustivamente pelas/os defensoras/es da “moral” e dos “bons costumes”, levaram-nos a buscar, nas análises de Foucault (2009), no que se refere à formatação do indivíduo e ao condicionamento da sociedade, entendimento para essa realidade que nos impuseram.

Foucault demarca uma transformação dos mecanismos de poder a partir do século XVII. Antes desse período, o soberano tinha o “direito de causar a morte ou de deixar viver” (FOUCAULT, 2009, p. 148). Pretendia-se borrar as forças, dobrá-las ou destruí-las em função da sobrevivência do soberano. Substituindo a existência jurídica ou da soberania, o que importa agora é a existência biológica, a existência de uma população. Nessa nova configuração do poder, “[...] a velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida” (FOUCAULT, 2009, p. 152). Esse poder sobre a vida instaura uma série de mecanismos de normalização, disciplinas e regulações da população para obter a sujeição dos corpos. A crença em modelos ideais de famílias, de seres humanos, de sexualidade e de corpos articula formas de controle da sociedade, autorizando corpos e existências e descartando inúmeras outras. Em Vigiar e Punir, Foucault (2016) apresenta-nos que

[...] o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. [...] pode haver um “saber” do corpo que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las: esse saber e esse controle constituem o que poderia chamar a tecnologia política do corpo. (FOUCAULT, 2016, p. 29-30).

Assim, entendemos as várias motivações que fizeram surgir os movimentos de resistências que se opuseram às ideias de conservadorismo e unidade de pensamento que tão fortemente avançou no Brasil nos últimos tempos. É preciso estar atento e forte! Como estamos falando de poder e de micropoderes como estratégias de dominação e controle, estar atenta/o e forte significa perceber que, além do Estado, o poder também se exerce nas relações que estabelecemos, nas limitações que nos cerceiam, nos padrões que insistem em afirmar o que é “correto” e o que é “indesejável” e “asqueroso”.

Há um investimento contínuo em condições de existência, probabilidade de vida e de saúde. A consequência dessa nova configuração do poder é uma crescente atuação da norma, o poder irá funcionar em função da norma, “[...] um poder dessa natureza tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar, mais do que se manifestar em seu fausto mortífero; [...], opera distribuições em torno da norma” (FOUCAULT, 2009, p. 157). Há nessa organização uma distribuição dos seres vivos em valor e utilidade. O biopoder irá demarcar quais vidas realmente importam, e, nesse contexto, são aquelas/es que se conformam à norma de vida instituída. Os corpos devem ser saudáveis, dóceis e autossuficientes, além de serem capazes de gerir suas vidas e progredirem mesmo não recebendo condições para isso, sendo individualmente aptas/os por si mesmas/os e não pelas/os outras/os.

Para Butler, “[...] somos moralmente pressionados[as] a nos tornar precisamente o tipo de indivíduo que está estruturalmente impedido de concretizar essa norma” (BUTLER, 2018, p. 20). Existe, para essa autora, nas formas de atuação desse biopoder, uma precarização induzida e reproduzida, de maneira que, distante da norma, vive-se com insegurança e desesperança. A precarização é um estado produzido pela precariedade, esta última “[...] implica um aumento da sensação de ser dispensável ou de ser descartado que não é distribuída por igual na sociedade” (BUTLER, 2018, p. 21). As manifestações dos grupos em análise dentro dessa contextualização adquirem sentidos de resistência aos modos de atuação do biopoder quando juntas/os afirmam que suas vidas importam e anunciam a responsabilidade que temos pelas vidas das/os demais.

No que se refere à atuação desse biopoder, interessam-nos outros efeitos que ele pode causar. Considerando existir um tipo de poder que investe na vida, podemos perceber que a própria vida valorizada por essa modalidade de poder ganha sentido, forma e aspecto distintos de outras formas de viver deslocadas, descartáveis, periféricas, precárias e dissidentes. Assim, as vidas que importam passam a ser o próprio poder. A linguagem, o trabalho, os corpos, os afetos, os desejos e as sexualidades podem ser lugares de contra-poderes, espaços de produção de subjetividades outras e desassujeitamentos (REVEL, 2005). Essas dissidências, esses deslocamentos, passam então a ser lugares da afirmação da vida; vida outra, que não aquela prescrita pela norma.

Juntar-se, fortalecer-se, criar vínculos e formas de pertencimento on-line por meio dessa rede de troca, de desabafos, de encorajamentos como fizeram essas mulheres e jovens do Grupo Mulheres Unidas contra Bolsonaro, pode ser uma forma de pensar uma política não mais sobre a vida, mas, sim, da vida. Dessa forma, o sentido de biopoder de que nos aproximamos é aquele que toma como elemento os “[...] modos de subjetivação, através dos quais os indivíduos são levados a atuar sobre si próprios, sob certas formas de autoridade, em relação a discursos de verdade, por meio de práticas do self, em nome de sua própria vida ou saúde, de sua família ou de alguma outra coletividade” (RABINOW; ROSE, 2006, p. 29).

Esses grupos que se formam no ciberespaço caracterizam-se como um lugar de produção do saber, processos de subjetivação e de fortalecimento das redes de resistência, algumas tão explícitas, visíveis e outras potenciais. Os indivíduos atuam sobre si e sobre os outros, quando compartilham as situações de vulnerabilidade e buscam alternativas para viver, entram em disputa pela produção de verdades. Nosso interesse por esse tipo de mobilização vem ao encontro da ideia de que somos todas/os subjetivadas/os pela linguagem, em uma rede de poder que tanto nos oprime, quanto também nos fortalece e encoraja. A vida em sua diversidade aguça não só a nossa curiosidade, mas reafirma a crença de que “[...] todos os empreendimentos que têm a vida, e não a morte, como seu telos - projetos para ‘fazer viver’ - são centrais para a configuração do biopoder contemporâneo” (RABINOW; ROSE, 2006, p. 37, grifo dos autores).

As afirmações misóginas e homofóbicas do presidente eleito revelam quais vidas importam: são as de homens brancos e heterossexuais. As suas afirmações contundentes em torno dos estudos de gênero e de sexualidades e seu apoio da retirada dessas questões da escola reiteram os discursos de normalização os quais insistem nos imperativos da heteronormatividade. No levante desses grupos que resistem e se apoiam, “[...] pouco importa que se trate ou não de utopias; temos aí um processo bem real de luta; a vida como objeto político foi de algum modo tomada ao pé da letra e voltada contra o sistema que tentava controlá-las” (FOUCAULT, 2009, p. 158). A vida é objeto de luta e, para isso, é necessário questionar todas as condições que são postas para que ela seja possível, incluindo a problematização que somos individualmente responsáveis pelas nossas vidas. A precariedade nessa forma de organização “é uma condição social compartilhada e injusta” (BUTLER, 2018, p. 22).

As formas de organização dos grupos on-line indicam o apoio e a responsabilização mútua os quais evidenciam resistência frente ao biopoder instaurado em nossa sociedade. É um despertar popular significativo ainda que nascente e provisório frente a essas formas de poder que induzem à precariedade. Toda forma de política que busca legitimar e autorizar a precariedade como necessidade para sustentar as vidas que realmente importam torna-se motivação para os ativismos que estão presentes em nossas redes e em nossas vidas; afinal, para nós, todas as existências importam. Ainda que esses movimentos não indiquem uma vitória dada de uma vez por todas diante de todas as formas de precariedade, eles indicam que é preciso, possível e necessário lutar. Algumas vezes as condições de ações de resistência nos são tiradas, minimizadas e/ou invisibilizadas, e essas lutas que surgem no ciberespaço fazem parte de uma luta criativa pela resistência, é uma busca pela instalação e pela preservação de condições para que seja possível lutar.

As/Os jovens ciborgues desse grupo provavelmente tenham histórias múltiplas, mas o que as/os fazem se implicarem na formação de redes de suporte pode indicar um entendimento outro da forma de responsabilização do biopoder. Subvertendo as exigências de autossuficiência, de tornar-se mais socialmente isolado e, por conseguinte, precário, esses grupos instauram “[...] formas [...] de estar no mundo [...] como formas de aliança e herança” (FREEMAN, 2007, p. 311). O processo de criação dos grupos, os compartilhamentos dos links para que outras pessoas na mesma condição possam ser alcançadas, as postagens que denunciam as políticas de retrocessos e retiradas de direitos e funcionam como alerta de que precisamos lutar, os comentários de apoio evidenciam uma experiência do não estamos sós. Mesmo diante dos cenários de abjeção, apagamento e precarização induzida, os eventos criados debochando do presidente eleito, os memes, os vídeos e as postagens que nos unem, podem evidenciar um outro lado desse cenário obscuro que vem se desenhando, demonstram que “[...] a vida nos torna inventivos [...] não pára de fabricar laços e nos fazer fabricá-los” (DESPRET, 2016, p. 2). A força da imaginação nesse processo une e fortalece nossas vidas mesmo diante das relações de poder que a torna muitas vezes frágil e difícil de viver. É preciso estar atento e forte! Ninguém solta a mão de ninguém! Ainda que não haja como resultado dessas lutas uma superação evidente e concreta, a existência nessas condições transborda a sobrevivência, criando um elo com o possível acompanhados de otimismo e não preso em um beco sem saída. A questão sobre o que significam os grupos Grupo Mulheres Unidas contra Bolsonaro e LGBTQI+ Resistência pela Democracia!?, entre outros, “[...] abre [...] para uma mais valiosa que é saber com antecedência o que nos mantém em comum, [...] o que vida futura pode ser” (BUTLER, 2004, p. 35), considerando que existir é “[...] composto por material compartilhado com os outros” (PINAR, 2016, p. 21).

A formação desses grupos on-line de mulheres e pessoas LGBTQI+ podem reverberar uma “[...] experiência compartilhada de ‘finitude’ [na qual] a morte dá foco ao viver” (PINAR, 2016, p. 21), podem indicar ainda amizades como modo de vida por um campo de enlaçamento em que “[...] os corpos [...] interpenetram, arrastam consigo e transmitem afetos uns aos outros” (PUAR, 2005, p. 152), ainda que isso seja manifestado utilizando os ícones de curtir, “amei”, “haha”, “uau”, “triste”, “grr”, ou comentando para demonstrar apoio, para demonstrar que estamos juntas/os. Talvez todas essas pessoas estejam em manifesto pela “[...] insistência na potencialidade ou possibilidade concreta para outro mundo” (MUNÕZ, 2011, p. 1). Um outro mundo onde suas vidas sejam possíveis e importem.

Considerações finais

As formas de resistência como inventividade incontrolável do sujeito foi a tônica de análise desta escrita, uma aposta na liberdade e no poder nos sujeitos, mais especificamente nas mulheres, que, desde as feministas, vêm assumindo esse lugar de se reinventarem constantemente a partir da crítica do que são e das possibilidades de existência do que poderão ser. Uma análise que nos convida a pensar os jogos de poder e de força que nos constituem hoje na era da informação, na ação abrangente do ciberespaço, de maneira que a necessidade de resistir não representa uma libertação ou mesmo emancipação do poder, como pode parecer.

As/os nascidas/os digitais deram pistas e ensinaram caminhos para modelos de manifestação que gerações anteriores às suas desconheciam ou desacreditavam ser possível. Como ciborgues que fazem do celular uma ferramenta acoplada ao corpo, a juventude mostra que as tecnologias digitais possibilitam a união de muitas pessoas e causas. Essa maneira outra de enfrentamento viabilizou a circulação de ideias, proporcionou que muitas pessoas pudessem estar juntas e que estarem conectadas pode ser uma estratégia de enfrentamento às opressões. Pelos grupos e por meio dos grupos, muitas pessoas tornaram-se visíveis, importantes e convencidas de que era possível existir, fato que, talvez, sozinhas, tivessem desistido de lutar pelo que acreditam... Em grupo, foi possível discutir causas que nos unem em torno da sobrevivência, da resistência e, por que não dizer, também, da alegria.

As mulheres nos seus movimentos de luta pelo ciberativismo reafirmam o aspecto produtivo do poder nas análises foucaultianas, de maneira que o corpo feminino ou o sujeito feminino hoje é lugar de negociação em que as mulheres do ciberativismo fazem circular, participam sendo produzidas e produzindo outros tantos corpos e sujeitos femininos iguais e diferentes.

No teatro de sombra e luz do poder, de uma trama complexa de estratégias, tácticas, forças e mistérios, irrompe inesperadamente uma energia guerreira cuja natureza e substância invade os interstícios de um real onde os indivíduos criam o seu destino. O pensamento de Michel Foucault ajuda-nos a pensar a arquitetura e o guião desse teatro onde a cortina nunca cai; ele permite-nos perspectivar o modo como as relações entre o poder e a vida se jogam no palco da história. No seu pensamento, a questão do poder articula-se, simultaneamente, com o problema da história, como o problema da realidade e com o problema do homem, perspectivando-o como um postulado frágil. (VILELA, 2006, p. 114).

Essa citação de Engênia Vilela aponta-nos para algo que nos parece viável de recuperar nessas considerações, que é o jogo da vida como parte das relações de poder. A ação das mulheres não é resposta ao poder, como se ela fosse exterior a ela; são ações possíveis e inventivas do poder, são partes do poder, são práticas concretas possíveis em um determinado contexto histórico.

Essa forma de estar juntas, reconhecer as condições de precariedade e lutar por existência é um ato de resistência e é um poder que se manifesta transformando as vidas em vidas possíveis. Tomaremos um exemplo de uma ativista gorda, Virgie Tovar (2018), em seu livro Tens Direito a permanecer gorda, para dizer, por meio de palavras de outrem, sobre vida e precariedade em corpos dissonantes:

De acordo com a cultura, minha vida importava menos porque não era um “produto transável”, desta forma me empurraram para as margens: uma fronteira gloriosa e estranha. [...]. A gordofobia e as dietas eram como fantasmas que lançavam uma sombra sobre minha vida. Mas, como toda opressão, criaram um caminho de saída da asfixiante realidade do convencional. [...]. Quem dera que todo mundo tivesse acesso ao mundo maravilhoso dos marginalizados, claro, sem a necessidade de um acesso brutal a este mundo. (TOVAR, 2018, p. 91, tradução nossa)18.

Poder, resistência e vida estão amalgamados nesse movimento quando pensamos que “a vida é um poder” (REVEL, 2005, p. 28), que a vida “[...] é lugar de emergência de um contra-poder” (REVEL, 2005, p. 28). A resistência pode localizar-se no próprio objeto do biopoder, a vida. O que se percebe na atual conjuntura, segundo Peter Pál Pelbart (2003), é que o poder sobre a vida está em disputa com o poder da vida, marcado sobretudo pela inventividade e pela criação.

Todos e qualquer um inventam, na densidade social da cidade, na conversa, nos costumes, no lazer novos desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de cooperação. A invenção não é prerrogativa dos grandes gênios, nem monopólio da indústria ou da ciência, ela é a potência do homem comum. Cada variação, por minúscula que seja, ao propagar-se e ser imitada torna-se quantidade social, e assim pode ensejar outras invenções e novas imitações, novas associações e novas formas de cooperação. Nessa economia afetiva, a subjetividade não é efeito ou superestrutura etérea, mas força viva, quantidade social, potência psíquica e política. (PELBART, 2003, p. 23).

A tomada de poder sobre o ser humano como ser vivo não encontrará mais um objeto passivo, uma população apática, mas estratégias de resistência ao processo de poder sobre vida, instaurando a capacidade criativa do ser humano em investir no poder da vida. Ainda que estejamos todas e todos expostas/os a formas opressoras de vida e sobrevivência, não podemos esquecer a possibilidade de resistência, de reinvenção de si e da criação de um discurso que questione a supremacia de qualquer aspecto da vida. A forma disciplinadora que dociliza os corpos e perpetua mecanismos de poder são hoje reveladas em posts, mensagens, rodas de conversa, palestras, dissertações, teses e, assim, as normas que oprimem e regulamentam as formas únicas de viver são questionadas e postas à prova: estamos atentas/os, estamos fortes, embora o perigo esteja em cada fresta.

“Ninguém solta a mãe de ninguém” é a expressão que pode nos mover e nos fazer viver. Quando um poder de disciplinamento, docilidade e controle parecia alcançar a vida e tudo dominar, quando as possibilidades eram do “deixar morrer”, emergem forças de um grupo, de uma junção de pessoas e movimentam espaços, discursos, saem de telas e percorrem ruas, cidades, encorajam pessoas. Com esse movimento, muitas pessoas puderam sentir uma potência indomável de fazer-se viver. Assim, mesmo em condições improváveis e sob discursos que as inferiorizam e as minimizam, as pessoas encontram maneiras criativas para estar no mundo com suas múltiplas formas de existir.

1Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) divulgou os dados que estamos utilizando em 20 de dezembro de 2018. Trata-se da última pesquisa feita e disponibilizada da área. Por isso, utilizamos para embasar nossos argumentos sobre a forte presença da juventude na internet. Para mais detalhes, ver: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/23445-pnad-continua-tic-2017-internet-chega-a-tres-em-cada-quatro-domicilios-do-pais>.

2Biopoder é um conceito importante na trajetória de investigação de Michel Foucault. O autor francês dedicou grande parte de seus estudos em reflexões sobre o poder. Ele contesta a ideia muito aceita de pensar o poder somente pelo viés da repressão. Para ele o poder é produtivo, seria responsável em produzir e incitar comportamentos. É no conjunto dessas reflexões que o Biopoder surge para analisar as práticas do Ocidente Moderno voltadas a controlar a vida das populações. É o poder sobre a vida que interessa para administrar as populações. Por meio do Biopoder, estabeleceu-se uma série de conhecimentos, leis e medidas políticas com o objetivo de controlar e disciplinar as manifestações, epidemias e a ocupação dos espaços.

3Apesar de ter ganhado os espaços de discussão mais recentemente, o ciberativismo surgiu no ano de 1984. Trata-se de “[...] ações coletivas coordenadas e mobilizadas coletivamente através da comunicação distribuída em rede interativa” (MALINE; ANTOUN, 2013, p. 20).

4A grafia da frase segue a maneira usada pela autora. Para conferir a foto, legenda completa e os comentários da foto, ver o perfil oficial no Instagram: <@zangadas_tatu>.

5Dados atualizados em 10 de janeiro de 2019.

6Quando o grupo “Mulheres unidas contra Bolsonaro” atingiu a marca de 1 milhão de seguidores e seguidoras, outro grupo surgiu no Facebook - o grupo “Mulheres com Bolsonaro”. Em função do nome e da data de criação, podemos sugerir que se trata de uma resposta à oposição ao candidato. Para além disso, ele aponta para a demonstração de que não é possível falar na categoria gênero feminino como homogênea, o que é reforçado pela administradora do grupo que afirma que o objetivo era mostrar que também havia mulheres que apoiavam o candidato. Disponível em: <https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2018/09/grupo-mulheres-com-bolsonaro-reune-mais-de-440-mil-integrantes-em-dois-dias.html>. Acesso em:12 mar. 2019.

7São os assuntos mais comentados em rede pelo uso de hashtag. A hashtag é o uso de uma palavra ou mais precedido de jogo da velha, em uma postagem. Essa forma de postagem permite que as postagens que fazem uso dessa técnica possam ser contabilizadas, gerando o trending topics por assunto.

8Para mais detalhes ver a reportagem de Roberta Jansen para O Estadão de S. Paulo. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,apos-ser-hackeado-grupo-do-facebook-contra-bolsonaro-chega-a-2-5-milhoes-de-participantes,70002508030>. Acesso em: 12 mar. 2019.

9Ver também notícia destacada no tópico anterior.

10LGBTQI+ é denominação utilizada neste artigo, muito embora não haja um consenso, no próprio movimento social LGBT, quanto as letras que devem compor a sigla que busca retratar a diversidade sexual e de identidade que nos constitui. LGBTQI+ significa Lébicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexuais, terminado com o sinal de adição para marcar tantas outras identidades que não estão representadas pelas anteriores.

11De acordo com notícia veiculada pela BBC, em 30 de setembro de 2018: “O #EleNão saiu das redes sociais para as ruas. A ideia teria surgido no grupo de Facebook Mulheres Unidas Contra Bolsonaro, que tem hoje 3,88 milhões de membros. A partir daí, o movimento se espalhou pelas redes”. Para mais detalhes ver: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45700013>. Acesso em:12 mar. 2019.

12No programa oficial do PSL, consta o modelo de família defendido como aquele ligado ao conservadorismo, como se segue no texto “Conservador é aquele que respeita e deseja preservar as instituições (família, entidades religiosas, polícia, Poder Judiciário, entre outros) e costumes, de modo geral”. Disponível em: <https://www.pslnacional.org.br/pagina/em-que-acreditamos>. Acesso em: 12 mar. 2019.

13Dado retirado da reportagem “Novos arranjos familiares”, da revista do IBGE, de 2017. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/3ee63778c4cfdcbbe4684937273d15e2.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2019.

14Tanto o “Fora Temer” quanto o “Diretas Já”, em 2017, foram organizados por grupos e sindicatos que falavam em nome de determinadas categorias e sujeitos. <https://www.brasil247.com/pt/247/brasil/273347/Movimentos-sociais-organizam-in%C3%ADcio-do-%27Fora-Temer%27-nas-ruas-em-2017.htm>. Acesso em: 12 mar. 2019.

15Fascismo é todo movimento político e filosófico ou regime que defende os conceitos de nação e raça acima dos valores individuais e que é representado por um governo autocrático, centralizado na figura de um ditador (ROLLEMBERG, 2017).

16Para uma lista mais ampla, verificar: “Os 26 eventos contra Bolsonaro mais inusitados que já foram criados na web”. Disponível em: <https://noticias.bol.uol.com.br/fotos/entretenimento/2018/09/27/os-25-eventos-contra-bolsonaro-mais-inusitados-que-ja-foram-criados-na-web.htm#fotoNav=26>. Acesso em: 12 mar. 2019.

17Para Gérard Duménil e Dominique Lévy, o neoliberalismo pode ser definido “[...] como uma configuração de poder particular dentro do capitalismo, na qual o poder e a renda da classe capitalista foram restabelecidos depois de um período de retrocesso” (DUMÉNIL; LÉVY, 2007, p. 2).

18Trecho do livro Tienes derecho a permanecer gorda, de Virgie Tovar.

Referências

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Recebido: 13 de Fevereiro de 2019; Revisado: 08 de Abril de 2019; Aceito: 10 de Abril de 2019; Publicado: 22 de Abril de 2019

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