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Práxis Educativa

versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.14 no.2 Ponta Grossa maio/ago 2019  Epub 14-Jun-2019

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.14n2.015 

Artigos

Voando com Peter Pan e caindo no buraco com Alice: os clássicos da literatura infanto-juvenil como possibilidades para ler, escrever e imaginar*

Flying with Peter Pan and falling into the hole with Alice: the classics of infant-juvenile literature as possibilities for reading, writing and imagining

Volando con Peter Pan y cayendo en el agujero con Alice: los clásicos de la literatura infanto-juvenil como posibilidades para leer, escribir e imaginar

Patricia Maria Barbosa Jorge Sparvoli Costa** 
http://orcid.org/0000-0001-9891-8562

Elvira Cristina Martins Tassoni*** 
http://orcid.org/0000-0002-8968-39

Fernando Azevedo**** 
http://orcid.org/0000-0002-7373-705X

**Doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP, Brasil/CIEC - Universidade do Minho, Portugal. E-mail: <patriciambjsc@gmail.com>.

***Docente e pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. E-mail: <cristinatassoni@puc-campinas.edu.br>. ORCID:

****Docente e pesquisador do Centro de Investigação em Estudos da Criança - Universidade do Minho, Portugal. E-mail: <fraga@ie.uminho.pt>.


Resumo:

Discutimos, neste artigo, os clássicos da literatura como possibilidade no trabalho com a linguagem - oral e escrita - e para a construção de processos imaginativos. Trazemos um recorte de uma pesquisa participante do tipo intervenção, realizada, em 2017, com alunos do 5º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública do interior paulista, Brasil. Com base nos estudos de Vigotski, objetivamos evidenciar o papel das histórias infantis no processo de desenvolvimento das funções psicológicas superiores, mais especificamente a linguagem oral, a escrita e a imaginação. Os resultados apontaram que, por meio da literatura, os alunos ampliaram a sua participação nas atividades propostas, bem como o seu envolvimento com a leitura e a produção de texto. As experiências decorrentes das narrativas, Peter Pan e Alice no País das Maravilhas, promoveram o enriquecimento dos enredos dos textos escritos pelos alunos.

Palavras-chave: Literatura infanto-juvenil; Linguagem oral e escrita; Imaginação; Letramento

Abstract:

We discuss, in this paper, the classics of literature as a possibility in working with language - oral and written - and the construction of imaginative processes. We bring a participant research cutoff of the intervention type, carried out with students of the 5th grade of Elementary School of a public school in the hinterland of São Paulo, Brazil, in 2017. Based on Vygotsky’s studies, we aimed to highlight the role of children’s stories in the process of development of higher psychological functions, more specifically oral language, writing and imagination. The results indicated that through literature students increased their participation in the proposed activities, as well as their involvement with reading and text production. The experiences derived from the narratives, Peter Pan and Alice in Wonderland, promoted the enrichment of the plots of the texts written by the students.

Keywords: Infant-juvenile literature; Oral and written language; Imagination; Literacy

Resumen:

Discutimos, en este artículo, los clásicos de la literatura como posibilidad en el trabajo con el lenguaje - oral y escrito - y para la construcción de procesos imaginativos. Traemos un recorte de una investigación participante del tipo intervención, realizada, en 2017, con alumnos del 5º año de la Enseñanza Fundamental de una escuela pública del interior paulista (Brasil). Con base en los estudios de Vigotsky, objetivamos evidenciar el papel de las historias infantiles en el proceso de desarrollo de las funciones psicológicas superiores, más específicamente, el lenguaje oral, la escritura y la imaginación. Los resultados apuntaron que, por medio de la literatura, los alumnos ampliaron su participación en las actividades propuestas, así como su implicación con la lectura y la producción de texto. Las experiencias derivadas de las narrativas, Peter Pan y Alice en el País de las Maravillas, promovieron el enriquecimiento de los enredos de los textos escritos por los alumnos.

Palabras clave: Literatura infantil-juvenil; Lenguaje oral y escrito; Imaginación; Alfabetización

Introdução

O mais importante não é o que as crianças escreveram, mas o fato de que elas mesmas foram autoras, criadoras, exercitando sua imaginação criativa e sua materialização. (Vigotski, 2014, p. 90).

Este trabalho traz considerações sobre os clássicos da literatura infanto-juvenil1, assim como as possibilidades de se realizar atividades dentro do contexto escolar visando às práticas da leitura e da escrita. A partir de um recorte de uma pesquisa participante do tipo intervenção, discutiremos sobre a imaginação, com base nos estudos de Vigotski (1996, 2000, 2009, 2014), e evidenciaremos, ainda, como a contação de histórias e a mediação podem contribuir na construção dos processos imaginativos, de forma a promover aproximações de alunos de um 5º ano do Ensino Fundamental2 com a linguagem oral e escrita. O trabalho envolveu dois clássicos da literatura infanto-juvenil - Peter Pan e Alice no País das Maravilhas - que nortearam as atividades, as quais tinham como finalidade promover avanços no uso da linguagem e experiências que explorassem a imaginação. Nesse sentido, temos a seguinte questão norteadora: De que maneira o trabalho com os clássicos da literatura pode ser promissor para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores dos alunos, mais especificamente a linguagem oral, a escrita e a imaginação?

Assumimos que os clássicos da literatura podem favorecer o envolvimento das crianças com a linguagem oral e escrita, permitindo que expressem suas ideias tanto na fala como no papel, e, ainda, que desenvolvam a atividade criadora, que, muitas vezes, é posta de lado, em detrimento às formas mecânicas de produzir um texto, por exemplo.

Dos contos populares às obras autorais de James Barrie e Lewis Carroll

Elucidamos que os contos populares propiciaram um caminho para o surgimento dos contos de fadas, que foram base para as obras autorais dos séculos XIX e XX, a partir das quais consolidaram-se os clássicos da literatura infantil e juvenil. As histórias perpassam a vida das pessoas desde os tempos mais remotos da humanidade. Entretanto, por existirem há muito tempo, as versões acerca das histórias infantis assumem diferentes enredos.

Imagine exatamente esta cena: a família de camponeses residindo em uma pequena cabana na França do século XVIII, com um pai afiando suas ferramentas de trabalho para o dia seguinte; a mãe costurando as roupas das crianças e estas ouvindo atentamente as histórias, que, muitas vezes, lhes pareciam assustadoras, contadas pelos pais. Os acontecimentos das narrativas preenchiam as longas noites de inverno, as quais eram aquecidas por imensas lareiras. As histórias, portanto, têm feito parte do cotidiano das pessoas por milhares de anos.

Coelho (2003) explica que a história da literatura registra a primeira coletânea de contos infantis publicada no século XVII na França. No entanto, o gênero propriamente dito “Literatura Infantil” nasceu com Charles Perrault. Um século depois, na Alemanha, a partir das pesquisas linguísticas realizadas pelos irmãos Grimm, a literatura infantil foi definitivamente constituída e inicia-se a sua expansão pela Europa e Américas.

Darnton (1986) esclarece que tanto os contos dos irmãos Grimm como os de Perrault surgiram a partir de contações de histórias de tradição oral popular. Este último, com o intento de atender ao gosto dos refinados frequentadores dos salões franceses, retocou, modificou e atenuou as passagens de todas as histórias e produziu o seu famoso Contes de mamèrel´oye (Contos da Mamãe Ganso), que foi publicado em 1697. É interessante ressaltar que Perrault não tinha como intenção escrever contos para as crianças. Ao resgatar, por meio da literatura, a tradição popular oral, buscava maior valorização da intelectualidade francesa em detrimento da antiga intelectualidade grega e romana.

Segundo Darnton (1986), Chapeuzinho Vermelho teve sua versão modificada de forma considerável ao passar da classe camponesa francesa para “o quarto do filho de Perrault” e de lá para ser publicada. É interessante observar o caminho que esse conto popular percorreu, sofrendo intensas modificações, para ampliarmos nosso olhar para tantas outras histórias infantis que conhecemos hoje, as quais, possivelmente, também sofreram alterações. Enfatizamos, então, que, segundo Darnton (1986), os contos populares são documentos históricos que sofreram diferentes e profundas alterações, de acordo com as tradições orais em que estavam inseridos.

Vale destacarmos que as histórias conhecidas atualmente por nós eram destinadas aos adultos e, quando contadas às crianças, possuíam um caráter de advertência como no caso da história Chapeuzinho Vermelho. Foi com as adaptações que sofreram que começaram a ser propostas ao público infantil. Entretanto, de acordo com Coelho (1998), estamos vivendo um momento de redescoberta em torno do maravilhoso, do imaginário, do onírico, do fantástico que contribuem para que o entendimento de determinadas verdades humanas aconteça:

A visão mágica do mundo deixou de ser privativa das crianças, para ser assumida pelos adultos. A bela adormecida, Rapunzel, Chapeuzinho Vermelho e mil outras narrativas maravilhosas ainda terão algo a nos dizer? Sem dúvida que sim. O que nelas parece apenas “infantil”, divertido ou absurdo, na verdade carrega uma significativa herança de sentidos ocultos essenciais para a nossa vida. (COELHO, 1998, p. 9).

Há, então, um movimento de ir-e-vir das histórias entre adultos-crianças, revelando as suas contribuições peculiares para diferentes interesses ou, até mesmo, conflitos internos de cada indivíduo.

Darnton (1986) retrata, em sua obra O grande massacre de gatos, a vida cotidiana dos camponeses do século XVIII, marcada por longas jornadas de trabalho árduo, a fome, muitas crianças órfãs e sua convivência com madrastas terrivelmente maldosas, e, especialmente, uma população com uma breve existência. O autor explica que os contos populares, apesar do realismo social, traziam em suas narrativas fantasias e divertimento, porém os camponeses descobririam que a vida era cruel, desumana e tais histórias apenas confirmavam isso.

Em analogia com os contos populares, observamos que há uma inovação nos clássicos da literatura em se tratando das dimensões axiológicas, do ponto de vista semântico e da questão do maravilhoso. Diferentemente dos contos populares, que estão articulados à tradição oral e transmitidos de geração em geração, as histórias que compuseram nossa pesquisa junto às crianças são textos autorais. Cabe ainda ressaltarmos que os critérios de escolha para o trabalho com os textos em questão -Peter Pan e Alice no País das Maravilhas - deram-se justamente por serem matriciais e marcados como clássicos da literatura e, ainda, pela complexidade de seus enredos em um constante universo imaginativo, tornando-os histórias interessantes, únicas e desafiadoras em conteúdos reflexivos.

Azevedo (2013, p. 11) explica que, para além de exercerem uma fascinação única, “[...] os clássicos se referem àquelas obras cuja relevância simbólica e cultural as transformou em objetos de constante revisitação, pela parte de inúmeros leitores”. É importante salientar que entendemos como obras clássicas da literatura infantil e juvenil aquelas histórias que todos conhecem (ou ao menos já ouviram algo a seu respeito) e que por elas foram marcados, transformados. Ademais, os clássicos da literatura são obras que foram publicadas por diferentes editoras e contam com sucessivas edições. Enfim, com histórias inesquecíveis e enredos interessantes, esses textos fazem parte do patrimônio cultural e simbólico. Assim, os adultos intencionam, por sua vez, que as crianças e os adolescentes também as conheçam.

As obras clássicas jamais esgotam o seu potencial hermenêutico e, como bem afirma Azevedo (2013), os clássicos da literatura infantil e juvenil devem ser compreendidos sob uma perspectiva histórica e crítica, ponderando sua relevância e seus papéis em uma sociedade que, ainda no século XXI, continua na busca para a concretização da utopia. Dessa forma, percebemos que esses textos se destacam de outros de potencial recepção leitora infantil, pois, sendo clássicos da literatura, abarcam um significativo número de crianças que conhecem tais narrativas, facilitando a aproximação com algumas atividades fomentadoras de uma educação literária. Ao intencionar a construção de processos imaginativos, as obras clássicas permitem inúmeras possibilidades para o professor, assim como para os alunos, tendo em vista que as aventuras acontecem em um universo repleto de elementos maravilhosos. Animais e plantas falantes, crianças que voam, parecem coisas totalmente possíveis em um mundo repleto de situações tidas como impossíveis no mundo empírico e histórico-factual, mas que, no momento de leitura, não nos causa estranheza, pois há um conhecimento tácito dos protocolos que regem a leitura/recepção literária (SCHOLES, 1992).

Assim, o fato de os clássicos da literatura infantil e juvenil carregarem diversos elementos maravilhosos e serem conhecidos das crianças facilita a aproximação destas com as propostas escolares e permite a ampliação da atividade criadora, na construção de processos imaginativos.

Os clássicos da literatura como possibilidades para ler, escrever e imaginar

A partir de um levantamento bibliográfico, compreendemos que, atualmente, há um movimento acentuado dos pesquisadores em discutir e propor o (re)significar das práticas de leitura e de escrita na escola. Com a preocupação em instigar as crianças para que, movidas pelo interesse, avançassem no processo da leitura e da escrita, Seixas (2010), Goulart (2000), Machado, Berberian e Santana (2009), Belintane (2000) e Gonçalves (2013) buscaram diferentes maneiras de trabalhar a linguagem, a partir de metodologias diferenciadas. Seixas (2010, p. 6) evidencia a necessidade da busca por novas metodologias frente às dificuldades das crianças ao afirmar que “[...] é preciso buscar alternativas metodológicas mais prazerosas e eficazes que motivem esses alunos para a escrita”. A alfabetização, que formalmente tem início nos 1º, 2º e 3º anos do Ensino Fundamental, impacta diretamente na relação que os alunos vão estabelecendo com a leitura e a escrita e se consolida (ou pelo menos, deveria se consolidar) no fim do ciclo de alfabetização. Goulart (2000) apresenta um estudo nesse contexto, afirmando que há uma deficiência no que se refere ao trabalho pedagógico realizado nas classes de alfabetização e que tal trabalho não se tem mostrado suficiente para formar leitores e escritores competentes: “As crianças aprendem a decodificar letras em sons, no caso da leitura, e a codificar sons em letras no caso da escrita, sem, no entanto, produzir sentido nessas atividades. Assim, não conseguem dar conta da leitura e da produção de textos socialmente legitimados” (GOULART, 2000, p. 158).

Será, por isso, que um número significativo de alunos nos anos finais do Ensino Fundamental I apresentam dificuldades no que se refere à linguagem escrita? O contexto de nosso estudo mostra exatamente esse cenário: crianças que já passaram pelo ciclo de alfabetização e que, contudo, não se apropriaram de forma sólida da linguagem escrita. Nesse viés, Disner (2010) nos atenta que, mesmo frequentando o ensino regular, há um número significativo de alunos que não se apropria de alguns conhecimentos, mais especificamente o conhecimento da escrita. Desse modo, para além de estar matriculado na Educação Básica, os alunos precisam ser afetados por práticas pedagógicas que produzam sentidos e significados.

É possível identificar, ainda, a presença marcante da literatura infantil nos estudos selecionados, já que Pires (2001), Santos (2001), Araújo (2002), Disner (2010), Fonseca (2011), Jordão (2012), Montezi e Souza (2013), Fronckowiak (2013), Costa (2013), Barbosa e Sousa (2015), Vieira (2015), Militão (2015) e Oliveira (2015) fizeram uso das histórias infantis como ferramenta para o desenvolvimento das crianças. Nesse sentido, é notória a contribuição da literatura para o ambiente escolar. Entretanto, a presença da imaginação é escassa e comprova o que encontramos em nossa revisão bibliográfica, assim como o que foi evidenciado por Barbosa e Souza (2015) quando apontaram a necessidade no investimento em pesquisas acerca da imaginação na adolescência, tendo como fundamento teórico os estudos de Vigotski, pois, ao realizarem a revisão de literatura, não encontraram um número significativo de produções sobre o tema. Investir na literatura e na imaginação como ferramentas para que ocorra avanços nos usos da linguagem oral e escrita é, portanto, um possível caminho para a aprendizagem.

A apreciação de clássicos da literatura pelas crianças - Pinóquio, de Collodi; O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry; Peter Pan, de James Mathew Barrie; Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll; entre outras - vai para além da leitura deleite. Sua contribuição pode ser corroborada mais especificamente, no que se refere ao desenvolvimento das funções psicológicas superiores, com base nos estudos de Vigotski (1996, 2000, 2009, 2014).

As funções psicológicas superiores correspondem a comportamentos humanos conscientes, cognitivos e emocionais, construídos pela interação com o ambiente sociocultural, diferenciando o homem dos animais. “Cabe decir, en general, que las relaciones entre las funciones psíquicas superiores fueron en tiempos relaciones reales entre los hombres. Me relaciono conmigo mismo como la gente se relaciona conmigo” (VIGOTSKI, 1996, p. 101). Nesse sentido, as funções psicológicas elementares são de ordem biológica e podem ser expressas em reações automáticas que envolvem reflexos, associações e aprendizagens simples. Cabe destacarmos que as funções psicológicas superiores, especificamente humanas, têm a sua gênese nas funções elementares e, ao serem mediadas pelas relações socioculturais, apresentam-se como formas de atuação mais complexas e sofisticadas, como, por exemplo, o pensamento abstrato, o raciocínio dedutivo e a memória mediada. Para Vigotski (2000, p. 149), “[...] um desenvolvimento não é a simples continuação direta de outro, mas ocorre uma mudança do próprio tipo de desenvolvimento - do biológico para o histórico-social”.

É importante destacar que, de acordo com Azevedo (2013, p. 98-99), os clássicos da literatura permitem que o sujeito se descubra como pessoa e o incentivem a conhecer a “paleta multicolor do mundo”, permitindo, com isso, uma reflexão crítica no que se refere ao seu lugar na polis. Entretanto, o autor ressalta que conceber a literatura como estratégia para pensar a alteração dos ambientes cognitivos em que o sujeito está inserido só é possível a partir de um trabalho de mediação em que as práticas interpretativas ultrapassem a rasura e a ocultação das suas dimensões textuais e contextuais, de forma a superar o modelo de uma leitura única e individual do fenômeno literário. Assim, um trabalho com a literatura é reconhecido como mediador das funções psicológicas superiores, pois promove reflexões sobre modos de agir, pensar e sentir os diversos dilemas humanos.

Compreendemos, então, que a exploração dos clássicos da literatura no trabalho com as crianças pode contribuir significativamente para o desenvolvimento delas como pessoas integrantes e participantes ativas na polis. Por fim, percebemos essas narrativas como possibilidades de ativar os processos imaginativos, tendo como base justamente esse universo maravilhoso3, que as caracteriza e as define.

Ademais, para além da temática da imaginação, essas obras, com sua riqueza textual, sua origem permeada de histórias de vidas e configurando, muitas vezes, a perspectiva de rituais iniciáticos (ARAÚJO; AZEVEDO, 2018), permitem o trabalho de outras questões de aprendizagem, tal como a linguagem oral e escrita, que consiste na proposta assumida por nós.

Vigotski: A imaginação na perspectiva histórico-cultural

A imaginação é um processo extremamente complexo, como bem afirma Vigotski (2009). Para o autor, a atividade criadora é aquela em que se elabora algo novo, isto é, a criação de um objeto do mundo externo; uma construção da mente ou, ainda, de um sentimento, conhecida apenas pela pessoa que está criando.

Há uma grande diferença no que se refere à definição de imaginação proposta pela psicologia e pelo senso comum. A primeira denomina como imaginação ou fantasia, a atividade criadora. Já, no cotidiano, imaginação ou fantasia referem-se a tudo aquilo que não é real; assim sendo, não pode ter nenhum significado prático relevante (VIGOTSKI, 2009, 2014). O autor diz que a imaginação é a base de toda atividade criadora e está presente em todos os campos da vida cultural, possibilitando a criação artística, a científica e a técnica. “Nesse sentido, necessariamente, tudo o que nos cerca e foi feito pelas mãos do homem, todo o mundo da cultura, diferentemente do mundo da natureza, tudo isso é produto da imaginação e criação humana que nela se baseia” (VIGOTSKI, 2009, p. 14).

De acordo com Vigotski (2009, 2014), há dois tipos de atividades próprias do comportamento humano. O primeiro tipo é chamado de atividade reprodutiva e está ligada diretamente à memória. Nesse caso, nada novo é criado, mas, sim, reproduzido de forma mais ou menos precisa de algo que já existia. Podemos exemplificar quando relembramos da casa em que passamos a infância, uma viagem realizada ou, ainda, quando desenhamos ou escrevemos seguindo um determinado modelo. O autor explica que:

Nosso cérebro e nossos nervos, que possuem uma enorme plasticidade, modificam com facilidade sua estrutura mais tênue sob diferentes influências e, se os estímulos são suficientemente fortes e repetidos com bastante frequência, conservam a marca dessas modificações. (VIGOTSKI, 2009, p. 12).

O segundo tipo de atividade do comportamento humano é a combinatória ou criadora. Define-se como a criação de novas imagens ou ações. Um fato histórico, um texto lido ou a vida do homem no futuro, podem ser representados sem que o sujeito tenha vivenciado aquela ação. Não há reprodução de impressões que foram vivenciadas, mas podem ser criadas. “O cérebro não é apenas o órgão que conserva e reproduz nossa experiência anterior, mas também o que combina e reelabora, de forma criadora, elementos da experiência anterior, erigindo novas situações e novo comportamento” (VIGOTSKI, 2009, p. 14). É importante salientar que a atividade criadora representa uma enorme complexidade, desenvolvendo-se lenta e gradativamente e das formas mais simples para as mais complexas.

Em cada estágio etário, ela tem uma expressão singular; cada período da infância possui sua forma característica de criação. Além disso, não existe de modo isolado no comportamento humano, mas depende diretamente de outras formas de atividade, em particular do acúmulo de experiências. (VIGOTSKI, 2009, p. 18).

Outra questão importante quando tratamos de imaginação é sua articulação com a realidade. Segundo Vigotski (2009), há quatro formas de relação entre a atividade da imaginação e a realidade. A primeira forma refere-se à afirmação que diz que toda obra da imaginação se constrói sempre de elementos vindos da realidade e presentes na experiência anterior da pessoa, ou seja, a atividade criadora da imaginação depende diretamente da riqueza e da diversidade da experiência anterior da pessoa. O autor ainda lembra que seria um milagre se a imaginação surgisse do nada e que não partisse de experiências anteriores do indivíduo. Nesse contexto, enfatizamos a importância de proporcionarmos ricas experiências às crianças, objetivando, com isso, ricas atividades criadoras. “A imaginação origina-se exatamente desse acúmulo de experiência” (VIGOTSKI, 2009, p. 22). Vale ressaltarmos que, nesse caso, Vigotski enfatiza que a imaginação se apoia na experiência.

A segunda forma entre a imaginação e a realidade refere-se à articulação entre o produto final da imaginação e um fenômeno complexo da realidade. Trazemos um exemplo do próprio Vigotski: “Quando, baseando-me em estudos e relatos de historiadores ou aventureiros, componho para mim mesmo um quadro da Grande Revolução Francesa ou do deserto africano, em ambos o quadro resulta da atividade de criação da imaginação” (VIGOTSKI, 2009, p. 23). Compreendemos que, a partir de uma leitura, o indivíduo é capaz de criar o que foi apreendido, sem nunca ter vivenciado determinada experiência. Ocorre uma reelaboração, a partir de elementos da realidade; desse modo, novamente, é preciso que a pessoa tenha tido diversas experiências.

Se eu não tiver alguma ideia de aridez, de areal, de enormes espaços e de animais que habitam o deserto, não posso é claro, criar a minha imagem daquele deserto. Da mesma forma, se eu não tiver inúmeras representações históricas, também não posso criar na imaginação um quadro da Revolução Francesa. (VIGOTSKI, 2009, p. 24)

O indivíduo é capaz de imaginar o que não viu a partir de narrativas alheias. A experiência apoia-se na imaginação, como afirma Vigotski em diferentes obras.

A terceira forma refere-se ao caráter emocional e manifesta-se de dois modos: a) qualquer sentimento e emoção tende a se encarnar em imagens conhecidas correspondentes a esse sentimento. Podemos exemplificar com um coração, que, para muitas pessoas, remete ao amor ou a cor preta que sinaliza o luto; b) a imaginação influi no sentimento, por exemplo: uma criança que entra em um quarto à noite pode se deparar com sombras que não são visíveis durante o dia. A fantasia de que há um monstro ou fantasma em determinada sombra desencadeia um sentimento de medo. Nesse caso, a imaginação gerou o medo.

Por fim, a quarta forma da relação entre imaginação e realidade descreve que a construção da fantasia pode ser algo completamente novo, que nunca aconteceu na experiência de uma pessoa e sem nenhuma correspondência com algum objeto de fato existente, mas, ao ser externamente encarnada, ao materializar-se, começa a existir realmente no mundo e influir sobre outras coisas. É a chamada imaginação cristalizada, que pode ser exemplificada por uma máquina, um instrumento criado e produzido pelo ser humano. Vigotski explica que:

Esses produtos da imaginação passaram por uma longa história, que, talvez, deva ser breve e esquematicamente delineada. Pode-se dizer que, em seu desenvolvimento, descreveram um círculo. Os elementos de que são construídos foram hauridos da realidade pela pessoa. Internamente, em seu pensamento, foram submetidos a uma complexa reelaboração, transformando-se em produtos da imaginação. Finalmente, ao se encarnarem, retornam à realidade, mas já como uma nova força ativa que a modifica. Assim é o círculo completo da atividade criativa da imaginação. (VIGOTSKI, 2009, p. 30).

Pensando nas fases da existência humana, refletirmos sobre a imaginação presente em cada etapa remete-nos erroneamente a inferir que a criança pequena possui a imaginação mais acirrada em comparação ao adolescente ou adulto. Por que o senso comum nos leva a acreditar nessa premissa? E por que ela é equivocada?

Vigotski (2014) explica que há diferenças no que se refere à capacidade criativa nas diferentes fases da vida. O autor distingue que, em cada período de desenvolvimento infantil, a imaginação criativa é elaborada de um modo particular. Inferir que a imaginação infantil é mais acentuada vai na contramão do que foi exposto por Vigotski, que afirma que a imaginação está intrinsecamente ligada às ricas experiências vividas pela pessoa. Dessa forma, a criança ainda está construindo experiências; assim, quando comparadas as de um adulto, ela possui um grau menor; por isso, sua imaginação também é reduzida. O que é mais acentuado na criança é a simplicidade e a espontaneidade da fantasia, as quais, conforme seu crescimento, começam a diminuir.

[...] a fantasia na idade infantil é mais rica e variada do que a fantasia no adulto. No entanto, tal afirmação não encontra fundamento do ponto de vista científico, pois sabemos que a experiência da criança é mais pobre do que a experiência do adulto. Sabemos também que seus interesses são mais simples, mais elementares, mais pobres; por último, sua relação com seu meio ambiente não tem a complexidade, a precisão e a variedade que caracterizam o comportamento do adulto e que constituem os fatores básicos determinantes da função da imaginação. A criança pode imaginar muito menos coisas do que um adulto, mas acredita mais nos produtos da sua imaginação e controla-os menos, isto é, [...] qualquer coisa de irreal ou inventado, é certamente maior na criança do que no adulto. (VIGOTSKI, 2014, p. 36-38).

Entendemos que, a partir do acúmulo de ricas experiências, a imaginação da criança passa por um processo de desenvolvimento e atinge seu amadurecimento na idade adulta, correspondendo à fantasia amadurecida. Cabe salientar que a relação com o meio em que a criança está inserida, com questões simples ou complexas perpassando seu cotidiano, influenciará diretamente no processo de maturidade da imaginação. Dessa forma, discutimos todos esses conceitos e exemplos para evidenciar a complexidade que envolve a atividade criadora e, consequentemente, sua importância para o desenvolvimento integral das crianças. Entretanto, cabe refletirmos: será que estamos propiciando experiências significativas às nossas crianças? Estamos deixando-as recombinar, reelaborar, criar; enfim, estamos dando espaço para que o círculo da atividade criadora se enriqueça e se complete?

Vigotski (2014) afirma que qualquer construção da imaginação, partindo da realidade, tende a completar um ciclo completo e a encarnar novamente na realidade (imaginação cristalizada, explicada anteriormente); contudo, para que de fato aconteça o círculo completo, há de existir o desejo da imaginação para a criação, pois essas aspirações e os impulsos possibilitariam a aproximação da construção imaginativa à realidade, independentemente do campo em que tal desejo está inserido e de sua grandeza: “Os homens sempre desejam alguma coisa - que tanto pode ser algo insignificante como algo de muito valor; os homens sempre criam com determinado propósito - quer seja ele um Napoleão, planejando uma batalha, ou um cozinheiro, inventando um novo prato” (VIGOTSKI, 2014, p. 48).

O trabalho pedagógico envolvendo tanto as obras clássicas da literatura como a contação de histórias é uma possibilidade para que exista o incentivo da atividade criadora entrelaçado com o processo de leitura e de escrita. Vigotski vê a imaginação perpassando intensamente todos os campos pessoais e sociais do homem, sendo onipresente; compreendemos, portanto, que a capacidade criativa representa um papel amplamente importante na existência do homem.

No mundo da imaginação: a importância da contação de histórias e da mediação

Como proposta para que haja o incentivo da construção de processos imaginativos nas salas de aula, acreditamos na exploração de momentos de contação de histórias. Investir nesses momentos é possibilitar, para além das questões da imaginação, ricas situações para as atividades de leitura e de escrita.

De acordo com Bortolin e Burghi (2014), a contação de histórias, uma atividade ancestral, além de corresponder a inúmeras atribuições pedagógicas e culturais, não deixa de ser uma brincadeira. Corroborando essa afirmação, Mesquita (2013) afirma que o ato de contar histórias corresponde a uma necessidade própria do ser humano. O autor enfatiza que:

As pessoas não podem viver sem fazer o relato mais ou menos pormenorizado do que lhes aconteceu ou do que pensam ter-lhes acontecido. [...]. Durante séculos, em todas as partes do mundo, as histórias eram contadas ao serão, ajudando a passar o tempo enquanto as pessoas descansavam dos trabalhos diários. (MESQUITA, 2013, p. 169).

Todavia, nos dias atuais, como consequência dos variados recursos tecnológicos acessíveis na vida cotidiana, muitas experiências para crianças já vêm prontas e a contação de histórias, assim como o ato de brincar passam para um segundo plano. Entretanto, quando presenteadas com uma história lida ou mesmo contada com fortes emoções, deixa marcas na criança.

[...] o ato de contar histórias é fundamental, uma vez que, as histórias fazem parte da natureza humana. Elas têm o poder de congregar e emocionar, interiorizar conceitos e preconceitos, portanto devem ser muito bem escolhidas. Além disso, o ato de contar histórias age também como elemento que facilita o processo contínuo da aprendizagem. Ajuda a construir o ato imaginário, despertando no aluno uma expectativa que, por exemplo, a história de Os três porquinhos proporciona. A maioria da população mundial traz consigo (em múltiplas versões) esta e outras histórias fabulosas. A identificação com essas narrativas denota indícios de vivências pessoais, que em suas singularidades - dizem quem somos e nos leva a compreensão de novos valores. (BORTOLIN; BURGHI, 2014, p. 214).

Percebe-se, então, que há uma grandiosidade nas histórias infantis que, por meio da contação ou mesmo da leitura, provocará impactos na criança e, ainda, atuará na construção imaginativa.

No que se refere à importância de um trabalho para que a imaginação seja estimulada, Vigotski (2014) esclarece que todo o futuro do homem é alcançado por meio da imaginação criativa, sendo essencial o incentivo da criação artística na idade escolar. Nesse contexto, questionamos: É preciso empenho? Sim! Enfatizamos novamente para que a história se concretize como um potencializador no desenvolvimento da imaginação, não basta apenas abrir o primeiro livro que encontrarmos e começarmos a lê-lo. A leitura de uma história, ou mesmo uma contação oral de uma história, necessita de um preparo do contador para que a criança seja instigada e conduzida para o mundo mágico que está prestes a adentrar. Conforme nos indicam Montezzi e Souza (2013, p. 79), “[...] é preciso investir no modo de contar, modificando o meio físico, criando um cenário e um clima que desperte o interesse do ouvinte”.

Vigotski (1996) afirma que o processo de aprendizagem é mediado. Laplane e Botega (2010) explicam que, para Vigotski, mediação é “[...] o modo como o meio social cria ou converte relações sociais em funções mentais”. Em outras palavras, Vigotski define como mediação componentes culturais como signos e instrumentos, mas também as pessoas. Todos exercem uma função mediadora que possibilita a apropriação do conhecimento pelo outro. Assim, a partir da interação social, a operação por meio de signos e instrumentos promove o desenvolvimento das funções mentais superiores, como a imaginação, o pensamento, a linguagem oral e escrita, a memória e a atenção. Portanto, os processos de mediação

[...] ocorrem inicialmente na forma de ações e relações externas, que implicam a participação de outras pessoas, para, depois, ocorrerem internamente na formação do psiquismo humano. Assim, do ponto de vista de Vigotski, a criança é inicialmente um ser social, ou melhor, um ser cuja existência depende da sua imersão social e da sua capacidade de chamar a atenção dos membros mais experientes da espécie e mobilizá-los para satisfazer as suas necessidades. (LAPLANE; BOTEGA, 2010, p. 18).

A internalização é, por conseguinte, a apropriação de algo a partir da interação com o signo, com um instrumento e com o outro, a partir da mediação. “O processo de desenvolvimento consiste, justamente, na individualização, ou seja, na transformação de relações e atividades sociais em relações e funções individuais” (LAPLANE; BOTEGA, 2010, p. 18). Ao pensarmos especificamente neste trabalho, o livro infantil pode ser compreendido como um elemento mediador, assim como a maneira que o adulto conta a história.

Contudo, como fazer a teoria concretizar-se, de fato, na prática? Como aproveitar os momentos de contação de histórias para que sejam articulados ao desenvolvimento da linguagem e da construção de processos imaginativos? Vigotski afirma que a atividade criadora depende intrinsecamente da riqueza e da heterogeneidade das experiências vivenciadas pela pessoa, pois é a partir dessas experiências que são formados os materiais que compõem a construção da fantasia. Desse modo, cabe aos adultos proporcionarem experiências significativas para que, de fato, a imaginação das crianças se desenvolva. “A imaginação origina-se exatamente desse acúmulo de experiência. Sendo as demais circunstâncias as mesmas, quanto mais rica é a experiência, mais rica deve ser também a imaginação” (VIGOTSKI, 2009, p. 22).

O caminho metodológico

Esta investigação caracteriza-se como uma pesquisa participante do tipo intervenção, pautada nas reflexões de Rocha e Aguiar (2003). Para as autoras,

[...] a pesquisa-intervenção consiste em uma tendência das pesquisas participativas que busca investigar a vida de coletividades na sua diversidade qualitativa [referindo-se à análise dos sentidos que vão gradativamente ganhando consistência nas práticas], assumindo uma intervenção de caráter socioanalítico. (ROCHA; AGUIAR, 2003, p. 66).

Assim, a proposta da pesquisa foi realizar intervenções em uma sala de aula de 5º ano do Ensino Fundamental - com 23 alunos - de uma escola pública do interior paulista. O intuito foi explorar os clássicos da literatura infanto-juvenil e a imaginação, investindo, com isso, na potencialidade que essa articulação pode ter para o desenvolvimento da linguagem oral e escrita. É importante destacarmos que a escola está situada na periferia da cidade, próxima à zona rural e sua indicação foi por meio da Secretária de Educação do município, atendendo aos objetivos da pesquisadora: alunos que, apesar de terem concluído o ciclo de alfabetização - do 1º ano ao 3º ano do Ensino Fundamental -, ainda apresentavam algumas defasagens no que se refere às práticas linguísticas.

A base das atividades com as crianças foram as histórias Peter Pan e Alice no País das Maravilhas. A escolha por essas obras deu-se pela maior complexidade de suas narrativas em relação a outros clássicos e, também, pela presença constante da imaginação. Realizamos um período de observação participante na sala de aula semanalmente, no início do ano letivo, durante um mês. Tal período intencionou verificar como as atividades de linguagem eram realizadas e se havia espaço para atividades relacionadas à literatura. Ademais, as falas das crianças e suas relações com a aprendizagem no ambiente escolar foram importantes para nortear nossas atividades de intervenção. Foi durante o período de observação que ficou evidenciado que os alunos já haviam construído a hipótese alfabética de escrita e que já produziam textos; contudo, apresentavam problemas de textualização e de grafia.

Assim, em abril de 2017, iniciamos as intervenções com as crianças, as quais foram realizadas todas as sextas-feiras até o final do ano letivo. Organizamos 18 atividades de intervenção, sendo nove propostas referentes à história do Peter Pan e outras nove, à Alice no País das Maravilhas. Todas as atividades foram videogravadas a fim de termos a possibilidade de retornar as cenas para identificar gestos que acompanhavam as falas e compreender a dinâmica e toda a complexidade que estavam presentes nos discursos e nas interações com as crianças. Além das filmagens que captaram as (re)ações e as falas dos alunos, a pesquisa contou ainda com conversas com eles antes do início das intervenções, durante e ao final delas. Tanto as filmagens das atividades de intervenção como das conversas com as crianças foram transcritas, compondo o material empírico que contou ainda com as produções escritas e os desenhos realizados pelos alunos, como produto das situações diversas exploradas nas histórias.

Como parte fundamental da metodologia, a própria pesquisadora fantasiou-se e assumiu a identidade de personagens das histórias com a intenção de que as crianças se aproximassem tanto das histórias como do universo imaginativo - Wendy, usando o vestido e laço azul nos cabelos; e Alice, usando uma tiara e sapatos como os da personagem. Isso permitiu que alguns traços das narrativas estivessem presentes no mundo real. Em uma das conversas com os alunos, Alice conta o seu segredo4 para as crianças.

Na verdade, eu sou a Alice, disfarçada de professora! A Alice, aquela do livro... A Alice, do País das Maravilhas... É que lá de onde eu vim, quando acabou minha história, acabaram também as aventuras, então resolvi vir para o mundo de vocês, mas disfarçada de professora! Olha, mas vamos falar baixinho sobre isso, sabe por quê? Porque não é permitido que personagens das histórias permaneçam no mundo real... Se alguém escutar, minha identidade será revelada e o portal mágico para o mundo das histórias será fechado para sempre. E se isso acontecer, o mundo da fantasia acabará e ninguém mais poderá brincar de faz de conta! Eu até corri um certo risco chamando a Wendy aqui... mas deu tudo certo...

Destacamos duas atividades realizadas com as crianças para demonstrar como é possível o trabalho com os clássicos em questão no desenvolvimento da linguagem oral e escrita. A primeira atividade, nomeada O Voo, teve o propósito principal de observar como as crianças se envolveriam com a proposta e se seriam capazes de adentrar o mundo maravilhoso que estava sendo apresentado a elas. Foi, dessa maneira, uma “aula” diferente em comparação com as que estavam habituadas.

A personagem Wendy entrou na sala de aula e começou a conversar. Ela contou o trecho da história de quando conheceu Peter Pan e como aprendeu a voar, construindo, assim, uma narrativa do que vivenciou com o garoto. É interessante expor ainda que a contação da história foi permitindo que as crianças participassem dela, fazendo-as refletir sobre o que estava sendo narrado e interagir com a personagem o tempo todo. Outra questão importante da metodologia foi a utilização de diferentes elementos mágicos5 (presentes ou não nas histórias) e a elaboração de cenários, que possibilitou que as crianças fossem sendo envolvidas no mundo do faz-de-conta e, com isso, foi possível aprimorar questões referentes à linguagem oral e escrita e da imaginação.

A partir dos elementos mágicos - gancho do pirata, sino representando a linguagem das fadas e pozinho mágico -, as crianças levantaram hipóteses e começaram a construir processos imaginativos de acordo com a mediação da pesquisadora, que estava caracterizada de Wendy. Nesse contexto, com pensamentos felizes e pó de fadas (glitter), as crianças “voaram”, sendo estimuladas com alguns áudios do filme Peter Pan e com os próprios elementos mágicos - sino tocando, gancho do pirata encostando em seus braços - e simulações de vento feita pela pesquisadora.

Depois, os alunos foram solicitados a compartilhar como tinha sido voar, com quem voaram, o que viram, o que sentiram e se gostaram da experiência. Em seguida, propusemos que desenhassem o voo para compartilharem com a turma. Na semana seguinte, relembramos oralmente o que tínhamos realizado e, a partir das lembranças, tendo o desenho que haviam produzido como mediador mnemônico, escreveram o primeiro texto acerca do que viveram. Perguntamos se gostariam de ler o texto produzido para compartilharem com os amigos e, para nossa surpresa, a maioria quis ler - manifestação não observada no dia a dia da sala de aula.

A segunda atividade, Entrando no buraco do Coelho Branco, seguiu os mesmos passos da intervenção O Voo, com o objetivo de verificar se a construção de processos imaginativos e as questões da linguagem haviam avançado. Vale pontuar que a atividade O Voo foi realizada em abril de 2017; e Entrando no buraco do Coelho Branco, em agosto do mesmo ano.

As crianças foram levadas a uma área verde da escola, local em que se depararam com um buraco em uma árvore, uma cenoura e ainda alguns cogumelos. Perguntadas sobre o que poderia ser tudo aquilo, levantaram algumas hipóteses e logo chegaram na história Alice no País das Maravilhas. Alice contou seu segredo, já explicitado anteriormente, e convidou os alunos a imaginarem que adentrariam o buraco do Coelho Branco.

Após toda a atividade de imaginar, as crianças foram provocadas a compartilharem sua experiência. Entretanto, foram fiéis à história Alice no País das Maravilhas, contando detalhes do livro ou do filme. Nesse sentido, o processo baseou-se muito mais na memória que tinham da narrativa do que em construir um processo imaginativo, a partir de elementos da história. Com suas falas, percebemos que conheciam a fundo o conto em questão.

Ao retornarmos à sala de aula, as crianças produziram seus desenhos sobre o que haviam realizado, e, depois, socializaram com a turma o que haviam criado. Na semana seguinte, foi solicitada a produção do texto do que vivenciamos ao adentrar o buraco, tendo como base o desenho. Nesse sentido, a imaginação norteou a organização da produção empírica e foi considerada como categoria de análise para este artigo.

Wendy, Alice e as crianças: as produções artísticas e textuais

A contação das histórias permitiu que as crianças participassem do enredo, fazendo-as refletir sobre o que estava sendo narrado e não sendo meros espectadores, mas, sim, participantes, já que Wendy e Alice os incluíam em muitos momentos de suas narrativas. Desse modo, a pesquisadora permitiu que as crianças participassem de forma ativa no enredo que estava sendo construído. Começamos, então, a apresentar alguns elementos mágicos já citados anteriormente e, com isso, as crianças levantaram hipóteses e começaram a construir processos imaginativos de acordo com a mediação das personagens. Nessa perspectiva, o investimento no ato de narrar, isto é, ler a história antes de ser contada e apropriar-se dela é primordial para que as crianças adentrem o universo e o contexto em que a história acontece. Desse modo, é importante que se faça um planejamento antes da contação de histórias. Nesse viés, compartilhamos com Fonseca (2011) a importância da preparação de um verdadeiro ritual na hora da contação de histórias:

Quando contamos histórias é necessário criar um ambiente e convidar os alunos envolvendo-os neste ambiente de entrada no mundo da imaginação que nos proporciona aquisição de conhecimentos, ou seja, facilita o encontro do saber com o prazer, da aprendizagem com a Cultura, por meio do lúdico proporcionado pelo mundo simbólico da literatura. (FONSECA, 2011, p. 81).

Além do ambiente mágico que é preciso ser criado, o modo de narrar a história deve seduzir quem escuta. É interessante pontuar que o narrador precisa gostar de contar histórias e estar envolvido com a atividade, transmitindo paixão, sentimento, entrega, pois, conforme Fonseca (2011, p. 81) bem destaca, “cada história tem um pedacinho de nós”.

Percebemos que os alunos se envolveram consideravelmente e que, por meio de suas opiniões, foram adentrando um universo bastante diferente do que estavam habituados, deixando-se levar pela fantasia, confirmando que os clássicos da literatura em conjunto ao incentivo da imaginação podem instigar o interesse dos alunos para que novos conhecimentos sejam construídos, como foi proposto por Montezi e Souza (2013), Fonseca (2011), Pires (2001) e Oliveira (2015). Vale ressaltarmos que as crianças, que pouco falavam no período em que a pesquisadora realizou a observação do dia a dia da sala de aula antes do período das intervenções, estavam envolvidas e queriam emitir suas opiniões.

Após a primeira produção artística - o desenho referente ao voo -, a pesquisadora questionou se eles gostariam de contar para a turma o que desenharam. A iniciativa em compartilhar suas produções foi praticamente de todas as crianças - duas crianças resistiram no primeiro momento, mas, logo após o início da socialização, decidiram também mostrar seus desenhos. Esse movimento de querer apresentar o que haviam produzido nos mostra que as crianças estavam envolvidas com as atividades e, por terem sido convidadas a emitir suas opiniões, também se sentiram confortáveis em mostrar seus desenhos. Dessa forma, sentiram-se seguras em poder compartilhar com os colegas algo criado por elas. É interessante destacarmos que algumas crianças, ao apresentarem suas criações, apesar de tímidas, conseguiram compartilhar detalhes de como tinha sido o voo. Mais desenvoltas na atividade do buraco, tanto seus desenhos como o modo de apresentá-los mostraram avanços. Ricos em detalhes, os alunos conseguiram reproduzir momentos da história em questão em suas produções artísticas. Uma das crianças, por exemplo, conseguiu proporcionar ao leitor que imaginasse o local em que ela estava: “Nessa casa tinha uma estante com vários frascos e potes de biscoito...”; “tinha vários livros, uma mesa e uma porta com uma maçaneta bem antiga”. Foi possível observar uma frequência maior no uso de adjetivos atribuídos aos objetos: “e eu caí em um buraco de um coelho e vi mesa, cadeiras, livros, roupa do coelho, cenouras e uma mesa de vidro gigante”; “cheguei em uma salinha grande”; “tinha três cadeiras e um pano bem bonito que era de cor rosa”.

No que se refere aos avanços na linguagem escrita, algumas crianças conseguiram criar textos únicos, usaram elementos da realidade e das histórias, combinaram e criaram elementos novos, desenvolveram sua imaginação por meio da proposta realizada. É importante acentuarmos novamente que, na primeira atividade, a maioria das crianças exibiu textos mais pontuais e breves; já, na segunda, os textos apresentaram riqueza de detalhes e descrições de ambientes e sensações. A seguir, apresentamos trechos das produções dos alunos:

“Como é escuro aqui. E tinha várias coisas como: porta, cama, uma cozinha e um monte de cenouras e era muito pequeno, tinha que engatinhar em vez de andar em pé. E nós fomos andando, até que chegou em uma porta pequena e entramos e chegamos em um jardim cheio de flores, cenouras era um lugar lindo e lá era o portal-secreto...” (Yara6).

“E de repente deu um apagão em tudo e havia uma pequena luz. Théo ficou com medo e se escondeu e eu que tive que lutar com o grande dragão branco” (Kauã).

“Quando eu tinha chegado na floresta eu vi uma mesa e umas xícaras de chá. Tinha 3 cadeiras e um pano bem bonito que era cor de rosa, depois eu vi o céu bem bonito” (Ro).

“... eu vi uma cortina colorida com várias cores e eu fiquei muito curiosa para ver o que tinha atrás daquela cortina linda” (Flávia).

Durante as atividades, também refletimos acerca da importância da escrita para comunicar algo a alguém, enfatizando que a escrita legível se faz fundamental em nossas escritas. A tomada de consciência de que escrevemos para o outro e, ao fazê-lo, nos comunicamos com as pessoas, foi sendo construída ao longo das atividades, bem como a compreensão da função social da escrita. Nesse sentido, houve mais preocupação com a letra legível na atividade do buraco, o que mostrou que as crianças estavam em processo de internalização dessa questão. Apesar de ainda apresentarem problemas de ortografia e de traçado na letra que melhoraram ao longo de nossas atividades, no final de nossas intervenções, ainda tinham questões a aprimorar. Isso evidenciou que a aprendizagem percorre um longo e intenso caminho, que precisa de um trabalho recorrente e sistematizado, por um amplo período de tempo, além de mediação planejada e intencional. Assim, como Barbosa e Souza (2015), verificamos que o trabalho com as histórias pode favorecer o desenvolvimento de habilidades de leitura e de escrita, de forma a promover a criatividade e a imaginação.

Por fim, percebemos que a contação de histórias, sendo esta realizada por uma das personagens, tendo as crianças como participantes importantes na proposta que estava sendo construída, fez com que os alunos se aproximassem de um contexto altamente imaginativo. Crianças quietas, tímidas e até mesmo apáticas ao que acontecia dentro da sala de aula começaram a emitir suas percepções, passando a ser parte do conhecimento que estava sendo construído. Para além desse envolvimento das crianças que começava a se fazer presente, almejávamos que os alunos se sentissem convidados a escrever e que desejassem escrever - e isso aconteceu.

É importante se pensar na inclusão desses alunos num ambiente escolar que os incentive a escrever, mesmo que seus conhecimentos se distanciem dos conhecimentos previstos para a série, que seus escritos estejam distantes da norma-padrão, podendo assim usufruir dos conhecimentos apropriados, no decorrer da escolarização, em suas situações concretas de vida. (DISNER, 2010, p. 110).

Nesse contexto, mesmo com erros ortográficos, de pontuação, de coesão, de coerência e, ainda, com desafios a serem superados, queríamos que as crianças compreendessem o significado de estarem fazendo determinada tarefa e não desistissem. Possibilitar que compartilhassem suas vivências foi ir ao encontro do aprimoramento da linguagem oral, da habilidade de comunicar algo a alguém, para que, somente depois, suas ideias fossem expressas no papel. Afinal, antes “[...] de a palavra tomar forma na escrita, ela nos chega em corpo de voz” (SIQUEIRA, 2013, p. 53).

É possível compreendermos, após os estudos de Vigotski, a importância que as experiências e as interações sociais representam para o desenvolvimento da criança. Nesse contexto, ressaltamos que o indivíduo é um sujeito ativo em sua própria aprendizagem a partir daquelas interações sociais. Dessa forma, o que podemos afirmar dentro dessa perspectiva traçada até então é que, além da contação de histórias constituir-se como potencializadora para a imaginação infantil, a mediação também é um significativo potencializador no que se refere à imaginação da criança e no desenvolvimento da linguagem oral e escrita.

No ambiente escolar e familiar, o interessante seria trabalhar com diferentes histórias infantis e gêneros literários, de forma a propor atividades instigantes às crianças e em diferentes ambientes. Um desenho, uma pintura, a criação de um livro a partir da história ouvida são exemplos de meios que poderiam colaborar tanto com o desenvolvimento da imaginação infantil como da linguagem oral e escrita, após a contação da história.

Para Girardello (2011), o papel dos adultos é atuar como mediadores, influenciando a imaginação das crianças:

A atitude dos adultos no ambiente em que a criança vive, assim, é outro fator de influência sobre a imaginação. O papel dos adultos como mediadores entre a criança e o ambiente físico e o clima social criados pela família ou pelas instituições educativas fazem diferença na qualidade da vida imaginativa dos pequenos. (GIRARDELLO, 2011, p. 80).

Nesse mesmo contexto, Silva (2012) defende que a imaginação não é um mero devaneio, um passatempo ou uma ilusão infantil, como acreditado por muitos. Ela é a base para o pensamento, a criação e o conhecimento do mundo. Entretanto, para Girardello (2011), a imaginação desenvolve-se de maneira mais significativa, quando se possibilita tempo, isto é, o trabalho com a imaginação se amplia quando há calma, isolamento e mesmo com o ócio. Muitas vezes, os adultos, que cercam a criança, não possibilitam esse tempo para que a atividade criadora entre em pleno exercício. A imaginação infantil é suprimida pela rotina escolar, pelos conteúdos que precisam ser apreendidos, pelas avaliações constantes; enfim, pela urgência em que se efetue a aprendizagem. Isso não ocorre somente na escola. Quantas vezes interrompemos uma criança que está quieta, questionando-a, chamando-a para a realidade:

Nem sempre a criança que se mostra momentaneamente parada, com o olhar fixo e aparentemente vago, precisa naquele instante da interferência automática do adulto para que faça alguma coisa, para que se envolva com os colegas ou com alguma outra proposta em andamento na sala. Às vezes, ela pode estar em plena elaboração imaginária, vivenciando o devaneio, que é parte fundamental de sua vida subjetiva. (GIRARDELLO, 2011, p. 78).

É essencial possibilitar tempo para que a criança estabeleça relações entre o que está vendo, vivendo e aprendendo para que processos imaginativos sejam construídos. Para elucidar essas afirmações, trazemos Maheirie et al. (2015, p. 56) que afirmam que criar algo consiste na combinação de elementos já vividos com novos elementos; é a “habilidade de combinar o velho com o novo”. Assim, defendemos a importância tanto da contação de histórias quanto da mediação para que a atividade criadora esteja constantemente em exercício.

Em se tratando das atividades que se constituíram em motivos para as produções textuais, entendemos que proporcionar momentos para que a criança possa pensar, falar e viver ricas experiências sobre o assunto explorado ajudará no momento da escrita. Afinal, a criança escreve melhor sobre assuntos que lhe interessam e dos quais ela tem muito a dizer, pois ela pensou, conversou e refletiu de forma intensa sobre o tema previamente. “É muito frequente que a criança escreva mal porque não tem sobre o que escrever” (VIGOTSKI, 2014, p. 55). Temáticas pouco exploradas ou exploradas superficialmente tornam-se pouco interessantes aos alunos.

É relevante salientarmos que criar momentos de debate e fazer com que participem da tomada de decisões dentro do ambiente em que estão inseridos, no caso, a escola, sobre assuntos diversos é importante para que as crianças construam críticas, formulem opiniões, ampliem seu vocabulário, construam seu lugar e sintam-se parte dele. Belintane (2000) também demonstra a preocupação de trazer o sujeito, a sua linguagem, a sua cultura e a sua voz para o processo educativo, demonstrando, com isso, que a criança adentra a escola com importantes conhecimentos que devem ser levados em consideração. O autor enfatiza que, apesar de existirem diretrizes curriculares oficiais que incentivam o desenvolvimento da oralidade, a preocupação da escola centraliza sua ênfase na linguagem escrita. Alerta que os alunos já possuem a capacidade de se comunicar em seu cotidiano, porém o trabalho com a linguagem oral deve ir além desse cotidiano, de forma a ampliar o espectro de usos linguísticos, consequentemente a fala pública.

Para Belintane (2000), o trabalho com a oralidade é um “imenso por fazer”; assim, acreditamos que, partindo de histórias conhecidas dos alunos, aliadas a um ambiente mágico e preparado, as crianças se aproximarão das propostas, aprimorando a oralidade. Isso permitirá que elas expressem suas opiniões no decorrer das atividades, inserindo-as em debates, como, por exemplo, sobre as situações vividas pelas personagens. Já nas atividades referentes à linguagem escrita, é essencial a tomada de consciência de que se escreve para o outro e, ao escrever, há a comunicação com as pessoas, compreendendo, assim, a função social da escrita. Escrever para as personagens das histórias, questionando-as sobre suas atitudes ou sobre como a dinâmica de sua vida funciona em seu mundo, são opções de atividades referentes à linguagem escrita. Criar pequenas dramatizações e outros finais para os enredos são possibilidades de produção textual, afastando-se das atividades tradicionais, mecânicas e, muitas vezes, maçantes. Por que não simular o voo de Peter Pan, voando com pozinho mágico e entrar no buraco do Coelho Branco de Alice no País das Maravilhas com os alunos e, depois, propor uma escrita de como foi a experiência?

É importante salientarmos, ainda, que os alunos adentraram as histórias e se envolveram com as propostas. Como exemplo, trazemos a fala de uma criança que, no início das atividades, afirmara que não gostava de ler, de escrever; enfim, de realizar as atividades propostas na sala de aula. No entanto, a criança nos surpreendeu ao mostrar o livro que havia escolhido para realizar um reconto proposto pela professora da sala:

Criança: Pro, vem aqui um pouquinho, quero te mostrar uma coisa.

Pesquisadora: O que é? Me mostra!

Criança retira de sua mochila o livro Alice no País das Maravilhas.

Criança: Olha, pro!

Pesquisadora: Nossa! Que legal!

Criança: A sua história! Escolhi para fazer a reescrita da semana.

Pesquisadora: Você gostou?

Criança: Gostei bastante. É longo... mas eu quis ler mesmo assim.

Pesquisadora: Willian, fico muito feliz... você lembra que você dizia lá no começo do ano que não gostava de ler e que não gostava de fazer reescrita?

Criança: Ah... mas eu ainda não gosto de nada disso... eu gostei dessa história e como você conta um pouquinho de cada vez, eu quis pegar e ler pra já saber o final.

Inferimos que os diversos momentos de leitura da história, a forma como foram planejados, as situações repletas de apelos à imaginação afetaram Willian de tal forma que promoveu forte desejo em ler a obra, o que o levou a buscá-la na biblioteca da escola. A mediação da pesquisadora e dos objetos culturais relacionados ao conto Alice no País das Maravilhas levou essa criança a se aproximar de práticas de leitura. É importante destacar que, durante o período de observação, Willian enfatizava constantemente que não gostava de ler e de escrever, optando pela escolha de textos curtos. Contudo, mesmo afirmando que “ainda não gosta de nada disso”, Willian indicia mudanças: escolhe uma história longa para elaborar o reconto (atividade frequente proposta pela professora), expressa grande interesse em ler. Esse episódio reforça a reflexão de que levar os alunos à biblioteca, ler diariamente para eles ou com eles não são práticas suficientes para a formação do leitor. A forma como tudo isso acontece é que deve ser objeto de reflexão dos professores e da escola.

Considerações finais

A contribuição inovadora que buscamos com este artigo é um olhar promissor a partir dos clássicos da literatura nas salas de aula no processo de desenvolvimento da linguagem e da imaginação. A escolha de Peter Pan e Alice no País das Maravilhas no trabalho pedagógico possibilitou a aproximação das crianças tanto do ato de ler e de escrever como da imaginação. Evidentemente, as obras escolhidas por nós não são a única opção para esse tipo de proposta. Entretanto, os clássicos da literatura, como já acentuamos anteriormente, são bastante conhecidos das crianças, facilitando a articulação de um diálogo para a aprendizagem. Vale pontuarmos que tal conhecimento - já terem ouvido ou lido inúmeras vezes - não provocou desinteresse e apatia; pelo contrário, conseguimos, a partir dessas narrativas, novas possibilidades de exploração para além da leitura deleite, impactando diretamente na aprendizagem. Dessa forma, Peter Pan e Alice no País das Maravilhas, obras autorais, com seus enredos complexos e altamente imaginativos, permitiram a aproximação das propostas pedagógicas, potencializando o desenvolvimento da linguagem oral e escrita.

Sendo a imaginação algo de extrema complexidade, é preciso um investimento árduo e constante dentro do ambiente escolar, constituindo, na literatura infantil, mais especificamente, nos clássicos da literatura, uma possibilidade para que isso ocorra. Vale ressaltarmos que, a partir da maneira que se narra uma história, inúmeras possibilidades de aprendizagens se instauram e, com isso, avanços são promovidos no desenvolvimento da criança.

Consolidamos a epígrafe deste artigo afirmando que possibilitar diferentes motivos de escrita aos alunos, sendo eles protagonistas de seus textos, os leva a serem capazes de construir processos imaginativos, materializando-os. Nesse sentido, eles compreenderão a função social da escrita, avançarão na compreensão do sistema de escrita alfabético e poderão fazer uso com autonomia da escrita na produção textual do ponto de vista da grafia e da textualidade.

*O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento PDSE - 88881.190223/2018-0/88887.148034/2017-00.

1Entendemos como literatura infantil àquelas obras destinadas às crianças mais novas, de dois a dez anos de idade. Já a literatura infanto-juvenil corresponde àquelas obras de maior complexidade designadas aos pré-adolescentes, encontrando-se entre a literatura infantil e a juvenil. Sobre a distinção entre literatura infantil e literatura infanto-juvenil ver Azevedo (2011).

2A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-Campinas - CAEE nº 62463816.7.0000.5481.

3Para Mesquita (2013), todas as situações que ocorrem fora da nossa compreensão, da dicotomia espaço/tempo ou ainda realizada em local vago ou indeterminado no mundo fazem parte do maravilhoso. As histórias acontecem em um mundo, comum, familiar e, ao mesmo tempo, indefinido, contendo uma lógica muito própria.

4Fala inspirada em Fonseca (2011).

5Denominamos de elementos mágicos objetos trazidos para a sala de aula que mantinham alguma relação ou não com o universo fantástico das histórias exploradas.

6Todos os nomes são fictícios para preservar as identidades dos participantes.

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Recebido: 24 de Fevereiro de 2019; Revisado: 08 de Maio de 2019; Aceito: 10 de Maio de 2019; Publicado: 20 de Maio de 2019

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