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Práxis Educativa

versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.14 no.2 Ponta Grossa mayo/ago 2019  Epub 14-Jun-2019

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.14n2.017 

Artigos

Estado do conhecimento: a Educação Profissional em situações de restrição de liberdade

State of knowledge: Professional Education in situations of restriction of freedom

Estado del conocimiento: la Educación Profesional en situaciones de restricción de libertad

Willian Rayner Lima* 
http://orcid.org/0000-0002-6129-5418

Priscila de Lima Gomes** 
http://orcid.org/0000-0001-7986-5653

Léia Adriana da Silva Santiago*** 
http://orcid.org/0000-0002-6057-6808

*Mestrando em Educação Profissional e Tecnológica pelo IFGoiano. Membro da Defensoria Pública do Distrito Federal. E-mail: <willian.rayner@hotmail.com>.

**Mestranda em Educação Profissional e Tecnológica pelo IFGoiano. E-mail: <priscila.gomes@ifg.edu.br>.

***Docente do IFGoiano. E-mail: <leia.adriana@ifgoiano.edu.br>.


Resumo:

Este trabalho busca analisar o panorama das produções científicas nos programas de Pós-Graduação stricto sensu, no que diz respeito à Educação Profissional no espaço prisional. Focalizando o ensino profissionalizante sob o prisma da ressocialização, procedemos a levantamento de teses e de dissertações sobre o tema, utilizando como fonte a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). Constatamos que a temática da Educação Profissional no sistema penitenciário foi pouco explorada, principalmente em cursos de Doutorado. Desta feita, ainda há muito a ser pesquisado, notadamente se considerada a complexidade da questão, o aumento vertiginoso do encarceramento vivenciado pelo país nas duas últimas décadas e o potencial emancipador que o ensino profissionalizante apresenta para as pessoas em situação de restrição de liberdade.

Palavras-chave: Estado do conhecimento; Ensino profissionalizante; Educação para presos

Abstract:

This work seeks to analyze the panorama of scientific productions in the stricto sensu graduate programs, regarding professional education in prison spaces. Focusing on professional education under the scope of resocialization, we proceeded to the survey of theses and dissertations on the subject, using as source the Brazilian Digital Library of Theses and Dissertations (Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações - BDTD). We found that the issue of professional education in the prison system has been little explored, especially in doctoral courses. Thus, there is still much to be researched, especially considering the complexity of the issue, the vertiginous increase of incarcerations within the country in the last two decades and the emancipatory potential that the professional education presents for people in a situation of restriction of freedom.

Keywords: State of knowledge; Professional education; Education for prisoners

Resumen:

Este trabajo busca analizar el panorama de las producciones científicas en los programas de posgraduación stricto sensu, en lo que respecta a la educación profesional en el espacio carcelario. Enfocando la enseñanza profesional bajo el prisma de la resocialización, procedemos al levantamiento de tesis y de disertaciones sobre el tema, utilizando como fuente la Biblioteca Digital Brasileña de Tesis y Disertaciones (BDTD). Constatamos que la temática de la educación profesional en el sistema carcelario fue poco explorada, principalmente en cursos de Doctorado. De esta manera, aún hay mucho a ser investigado, especialmente si se considera la complejidad de la cuestión, el aumento vertiginoso del encarcelamiento vivido por el país en las últimas dos décadas y el potencial emancipador que la enseñanza profesional presenta para las personas en situación de restricción de libertad.

Palabra clave: Estado del Conocimiento; Enseñanza profesional; Educación para presos

Introdução

Ao lado da educação e da saúde, a segurança pública representa um dos maiores desafios a serem enfrentados pelos governos na atualidade. Bem ilustram esse cenário os discursos presentes nas eleições para a Presidência da República e para o Governo do Estado de diversas entidades federativas, no ano de 2018, sempre no sentido de aumento da repressão ao crime. Esse fenômeno social, contudo, não é novidade. Nos últimos anos, o país já vem ampliando os investimentos nessa área, o que, de certa forma, possibilitou melhor estruturação das instituições policiais. Em decorrência disso, houve aumento exponencial da taxa de encarceramento. Segundo dados divulgados pelo Departamento Penitenciário Nacional (BRASIL, 2017), entre 2000 e 2016, houve um aumento de 157% na taxa de aprisionamento no país, de modo que a população carcerária brasileira alcançou a extraordinária marca de 726.712 pessoas.

Por outro lado, o sentimento social de subjugação à criminalidade mantém-se mais vivo do que nunca, a indicar que o aumento da repressão ao crime não trouxe reflexos na qualidade da segurança, ao menos não na medida em que se esperava. Não raras vezes, o indivíduo volta a infringir a lei penal mesmo após passar período consideravelmente longo em situação de restrição em liberdade, suportando todas as mazelas do sistema penitenciário. A reincidência é a prova viva de que a punição, por si só, não é o bastante para a resolução do problema. Diante da ineficácia do cárcere para conter a criminalidade, faz-se necessário reconhecer a importância de medidas alternativas, como a educação e o trabalho, instrumentos de política pública à disposição do Estado para a ressocialização.

A Lei de Execução Penal, Lei Nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (BRASIL, 1984, p. 10227), em seu art. 10, preconiza que “[...] a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”. A referida disposição normativa deixa claro qual é um dos principais objetivos da aplicação da lei penal, senão o maior: a ressocialização.

Deve-se tomar o termo “ressocialização” como o processo por meio do qual o indivíduo apenado volta a pertencer à sociedade, torna a fazer parte do meio social em que vive. Para tanto, não basta cessar a segregação, colocando o sujeito em liberdade, é preciso que o Estado assegure uma formação educacional mínima a essas pessoas para que sejam capazes de reescreverem seu futuro fora da prisão.

Segundo Julião (2011), contudo, muitos especialistas chamam atenção para

[...] o fato de que a maior parte das prisões no mundo, diante das suas precárias condições materiais e humanas, das condições reais em que se desenvolve a execução da pena privativa de liberdade, torna inalcançável o objetivo reabilitador. Seguindo esse princípio, chega-se a posturas radicais e extremas de sugerir que a única solução para o problema da prisão seja a sua extinção pura e simples. (JULIÃO, 2011, p. 144).

A partir da lição apresentada pelo autor, tem-se como coerente o discurso segundo o qual a permanência no mundo do crime nem sempre se dá pela intenção deliberada do indivíduo de permanecer no mundo do crime. É possível que a reincidência se dê justamente pela falta de preparação desses seres humanos durante o período em que permaneceram presos.

A grande maioria da população carcerária, antes de ingressar no sistema penitenciário, era invisível aos olhos do Estado, desprovida de serviços públicos na área de educação, sem formação profissional. Para que esses indivíduos tenham um futuro melhor, é preciso que lhes sejam asseguradas educação, inclusive voltada ao mundo do trabalho.

Julião (2011) ressalta a dificuldade de colocação dos reeducandos no mercado formal de trabalho, mesmo havendo a oferta de ensino profissional nos presídios, haja vista os altos índices de desemprego que assolam o país e também o estigma social que acompanha os egressos do sistema penitenciário. Dessa feita, a Educação Profissional a ser disponibilizada nesses espaços deve ir além da transmissão de conhecimentos técnicos/específicos que tornem os apenados aptos ao desempenho de determinada atividade laborativa. Sem desprezar a perspectiva mercadológica, essa modalidade de educação não pode se limitar a tal, devendo buscar a emancipação social do reeducando. Nesse sentido, Julião (2011) observa que:

É importante perceber que não basta criar uma escola associada ao ensino profissional, mas sim uma que ajude a desenvolver potencialidades (competências) que favoreçam sua mobilidade social, não se deixando paralisar pelos obstáculos que serão encontrados na relação social. Em suma, uma escola que privilegie a busca pela formação de um cidadão consciente da sua realidade. (JULIÃO, 2011, p. 148).

Deve-se buscar a formação omnilateral, cuja efetivação no campo prático requer um fim à fragmentação das práticas pedagógicas. Parece necessária a adoção de um plano que promova a interação do ensino formal com o ensino profissional, a fim de contribuir para o amadurecimento pessoal dos sujeitos em privação de liberdade, tornando-os aptos a fazerem escolhas conscientes.

É necessário, portanto, uma escola que não seja apenas uma instituição dos saberes, mas também do ser, na qual as relações humanas sejam construídas em harmonia com a natureza, e que o hoje seja a alavanca do sucesso e felicidade das próximas gerações. Por isso, os professores devem encontrar brechas nestas instituições fechadas e fazer a diferença ou, de uma vez por todas, encontrar novas maneiras de fazer educação. (SILVA JUNIOR, 2016, p. 90).

Não obstante as dificuldades inerentes ao cárcere, “[...] pensar o sistema penitenciário e a instituição prisão em diálogo com outros sistemas e espaços nos parece uma forma de abrir brechas, pequenas fendas que possam anunciar possibilidades de enfrentamento dos paradoxos entre punir e educar” (ONOFRE, 2016, p. 44). É dessa necessidade de interação entre os sistemas que a educação e o trabalho devem ser vistos, não como categorias autônomas e independentes, mas, sim, como partes que se complementam na formação do ser humano. Afinal, além do poder político que a educação apresenta, também o trabalho

[...] como criador de valores de uso, como trabalho útil, é indispensável à existência do homem - quaisquer que sejam as formas de sociedade - é necessidade natural eterna de efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza, e, portanto, de manter a vida humana. (MARX, 1982, p. 50).

Com base no aporte teórico apresentado, parece não haver dúvida quanto à importância da educação e do trabalho para a ressocialização das pessoas em situação de privação de liberdade. Assim sendo, ganha espaço a temática do ensino profissional para presos.

Mediante tais constatações, dá-se a importância de fazer, neste artigo, o que tem sido denominado, por alguns autores, de estado do conhecimento. À semelhança do minucioso trabalho realizado por Rodrigues, Quadros e Oliveira (2019), em que se procedeu a um levantamento de estudos acerca da prática educacional na prisão, intencionamos, aqui, analisar a referida temática também a partir de uma revisão bibliográfica, focalizando, contudo, a Educação Profissional.

Assim, em relação à bibliografia, buscamos produções dos programas de Pós-Graduação stricto sensu que tivessem como objeto a Educação Profissional direcionada às pessoas em situação de restrição de liberdade. Para tanto, foram realizadas consultas na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), por trabalhos apresentados entre os anos de 2007 e 2017, utilizando-se os seguintes descritores: (i) “educação prisional profissional”, (ii) “educação profissional prisão”, (iii) “educação profissional ressocialização” e (iv) “educação trabalho prisão”.

O inventário das produções acadêmicas identificadas

Nos últimos anos, muitos estudos do tipo “estado da arte” ou “estado do conhecimento” têm sido produzidos no Brasil. Ferreira (2002, p. 259) deixa claro que esse fenômeno se dá, entre outros fatores, pelo “[...] desafio de conhecer o já construído e produzido para depois buscar o que ainda não foi feito”, o que contribui para a evolução da ciência. Esse tipo de pesquisa tem sua importância reconhecida, tendo em conta possibilitar “[...] uma visão geral do que vem sendo produzido na área e uma ordenação que permite aos interessados perceberem a evolução das pesquisas na área, bem como suas características e foco, além de identificar as lacunas ainda existentes” (ROMANOWSKI; ENS, 2006, p. 41).

Partindo dessa perspectiva, por meio da BDTD e com a utilização dos descritores já mencionados, procuramos inventariar as produções acadêmicas que tinham como objeto a Educação Profissional no sistema penitenciário, não se limitando a apenas “[...] identificar a produção, mas analisá-la, categorizá-la e revelar os múltiplos enfoques e perspectivas” (ROMANOWSKI; ENS, 2006, p. 39).

A fim de melhor sistematizar os dados, elaboramos o Quadro 1, apresentado a seguir, para discriminar a instituição de ensino à qual o programa de Pós-Graduação stricto sensu está vinculado, o tipo de produção acadêmica (dissertação ou tese), ano de defesa, autor e título do trabalho.

Quadro 1 Teses e dissertações obtidas junto à BDTD sobre Educação Profissional para pessoas em situação de privação de liberdade 

Instituição Tipo Ano Autor(a) Título
UFSC Tese 2007 Bernadétte Beber Reeducar, reinserir e ressocializar por meio da educação a distância
Unicamp Dissertação 2008 Marilsa Fátima Favaro Políticas de formação do trabalhador: a FUNAP
UFG Dissertação 2009 Luciana Maria de Almeida Nas trilhas do fazer e do saber a possibilidade de ser: os caminhos do trabalho e da educação na prisão
UFSC Dissertação 2011 Roberto Vidal Fonseca A profissionalização dos apenados, por meio da educação a distância, como contribuição à inserção ao mercado de trabalho: o caso da penitenciária de Florianópolis/SC
UFRN Dissertação 2014 Ana Lúcia Pascoal Diniz PROEJA FIC/Fundamental no IFRN-Campus Mossoró: das intenções declaradas ao funcionamento de um curso em espaço prisional
UnB Dissertação 2015 Crisonéia Nonata de Brito Gomes Programa Mulheres Mil: uma oportunidade de reinserção social cidadã às reeducandas da penitenciária feminina do Distrito Federal
UTFPR Dissertação 2015 José Luiz Koliski A qualificação profissional de encarcerados da colônia penal agroindustrial do Paraná
Unoeste Dissertação 2016 João Ferreira da Silva Junior O significado e as contradições da educação para o trabalho nas penitenciárias do estado de São Paulo, desenvolvidos pela fundação "Professor Doutor Manoel Pedro Pimentel" (FUNAP)
UCPel Tese 2017 Ana Paula Nedel Educação profissionalizante de presos e o enfrentamento de vulnerabilidades: armadilhas, desafios e esperanças numa experiência Prisão e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense
UnB Dissertação 2017 Walace Roza Pinel Educação em prisões: um olhar à formação profissional na penitenciária feminina do Distrito Federal

Fonte: Elaborado pelos autores com base nos dados da pesquisa.

Considerando o período de busca utilizado, o trabalho mais antigo refere-se a uma tese de Doutorado junto à Universidade Federal de Santa Catarina. Nessa pesquisa, Bernadétte Beber (2007) buscou desenvolver estratégia didático-pedagógica voltada à Educação Básica e ao ensino profissionalizante nas unidades prisionais daquele ente federativo, focalizando a modalidade Educação à Distância (EaD). A pesquisadora, por meio de pesquisa bibliográfica, analisou “[...] a literatura [que] oferece suporte para o embasamento dos conhecimentos teóricos à luz da teoria do conhecimento por compreender, decifrar, interpretar, analisar, criar e recriar a Estratégia Didático-Pedagógica para ser implantada em Espaços Prisionais” (BEBER, 2007, p. 25-26). Segundo a autora, ela também procedeu à pesquisa documental, haja vista a necessidade de se analisar a realidade da Educação Básica e profissional no sistema penitenciário estadual catarinense.

Beber (2007), após consultar a documentação oficial correlata, destaca que, em nenhuma unidade do sistema penitenciário de Santa Catarina, o poder público se vale da modalidade EaD para ofertar a Educação Básica, não se obtendo informação também, à época, da existência de programa voltado à formação integrada nos estabelecimentos prisionais daquele estado, com matriz curricular abarcando a educação formal e a profissional. Justamente diante desse cenário de omissão do Estado, para a autora, o desenvolvimento de uma estratégia didático-pedagógica, tal como proposto, possibilitaria mais oferta e permanência dos internos na educação.

O segundo trabalho tomado como objeto de análise foi desenvolvido junto à Universidade Estadual de Campinas. Marilsa Fátima Favaro, enfocando a relação educação/trabalho, buscou compreender a formação profissional desenvolvida no âmbito do sistema penitenciário paulista. De um lado, a pesquisadora verbaliza haver consenso acerca da importância da Educação Profissional para a ressocialização dos presos; de outro, questiona: “[...] a opção política é uma educação para o trabalho ou um trabalho educativo?” (FAVARO, 2008, p. 226).

Nesse estudo, a autora relata que muitos são os desafios para a efetivação de uma política educacional dentro do sistema penitenciário. De início, há problemas de ordem orçamentária, tendo a Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso (FUNAP), entidade vinculada à administração penitenciária do estado de São Paulo, experimentado perda de recursos a partir de 1995. Além disso, os programas desenvolvidos mostram-se muito aquém do necessário, seja em relação à efetiva demanda seja quanto aos objetivos que se busca alcançar com a pena. No que toca ao setor privado, não se verifica um real compromisso com a Educação Profissional dos presos, haja vista que, via de regra, não há liberação para as aulas, “[...] ficando clara a dimensão única do trabalho como produção” (FAVARO, 2008, p. 228).

Acrescenta que o educador não se limita a quem se encontra formalmente vinculado à escola e/ou aos programas educacionais, abrangendo também “[...] aquele que, em distintas funções no cotidiano prisional, não está dado aos conformismos e aos postulados dogmáticos a respeito do preso e da prisão” (FAVARO, 2018, p. 229). Nessa linha de raciocínio, para a autora, considera-se educador quem, por meio de atitudes, palavras e exemplos, contribui para a consolidação do trabalho educativo no espaço prisional, independentemente do posto nele ocupado.

Ao analisar os tipos de oficinas existentes na FUNAP, Favaro (2008) verifica que o trabalho lá realizado não guarda consonância com as técnicas produtivas atuais, de modo que o ensino profissional ofertado na prisão qualifica o preso a desenvolver trabalhos dentro da própria prisão, mas não o habilita a alcançar um posto de trabalho extramuros. Além da adoção de técnicas obsoletas, a autora destaca ainda o desencontro das relações de educação-trabalho, imperando a lógica do controle penitenciário em detrimento da formação do preso. Por fim, visando à superação do desalinhamento existente entre as práticas de educação e de trabalho, Favaro (2008, p. 230) sugere que, “[...] considerar as histórias de vida, as experiências no mundo do trabalho, o trabalho educativo, o significado da pena e a perspectiva de liberdade conduzem a algumas pistas para formular uma política de formação social pelo trabalho”.

Luciana Maria de Almeida também se dispôs a estudar as categorias trabalho e educação sob o viés das pessoas em situação de restrição de liberdade. Desenvolvida no âmbito do programa de Pós-Graduação stricto sensu em educação da Universidade Federal de Goiás, a pesquisa teve como locus a Penitenciária Odenir Guimarães, localizada na cidade de Aparecida de Goiânia/GO, tendo como objeto de estudo o Ensino Médio ofertado na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA), bem como as oficinas de trabalho existentes no referido estabelecimento prisional.

Uma das primeiras constatações que a autora registra diz respeito aos muitos sentidos que o termo “educação” apresenta a depender do grupo entrevistado. Para os agentes penitenciários, o termo é associado a uma possibilidade de ressocialização dos presos. Já os professores veem a educação como um processo de socialização, no qual existe troca de conhecimentos, assumindo os presos a condição de sujeitos. A direção escolar, por sua vez, vê na educação uma alternativa para lidar com os “alunos defasados”.

Ao analisar as práticas de ensino e de trabalho realizadas naquela penitenciária, Almeida (2009) constata que tais práticas são interpretadas muitas vezes sob o prisma de uma relação custo-benefício, considerando que a adesão do preso pode lhe trazer melhorias. A legislação prevê a possibilidade de que o preso “pague” parte da pena imposta pelo Estado por meio do trabalho e do estudo, além de se constituir em mais um elemento a ser considerado pelos profissionais responsáveis por atestar o comportamento dos presos. Para além disso, o trabalho apresenta-se, também, como um meio lícito de que dispõe o preso para auferir recursos financeiros, mesmo ainda restrito seu direito de ir e vir.

Em contraponto a tais benefícios, Almeida (2009) pontua que o trabalho realizado dentro dos presídios é extremamente mal remunerado, dispondo a Lei de Execução Penal que a contraprestação pecuniária do preso não pode ser inferior a 3/4 (três quartos) do salário mínimo. Não bastasse, não conta com a proteção da Consolidação das Leis Trabalhistas, daí porque se exclui direitos como o décimo terceiro salário, as férias e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Registra a autora que esse cenário guarda coerência com as políticas neoliberais, em que vigora e impera a regra da maximização de lucros.

Diante desse contexto, a autora sinaliza para um “[...] cenário possível de exploração do trabalho do privado de liberdade” (ALMEIDA, 2009, p. 127), ao tempo em que não considera o trabalho intramuros como “ação social”. Segundo Almeida (2009), para que o trabalho realizado no sistema prisional recebesse tal qualificação, seria necessário que propiciasse reflexões das práticas laborativas empregadas, bem como momentos de socialização dos sujeitos envolvidos, situações que, no mais das vezes, não se concretizam. O que se tem verificado no campo prático, contudo, são experiências de trabalho servil e repetitivo.

Segundo Almeida (2009, p. 127), “[...] o trabalho, para todo e qualquer sujeito, inclusive os sentenciados, deve proporcionar a consciência de sua utilidade e valor”, não podendo se limitar a uma alternativa à ociosidade. Além disso, a autora defende a articulação entre as atividades de educação escolar e de trabalho. Todavia, os dados coletados junto à Penitenciária Odenir Guimarães indicam o não cumprimento do papel emancipador do trabalho e apontam para o desalinhamento das ações educativas e de trabalho.

Roberto Vidal Fonseca (2011), por sua vez, desenvolveu uma pesquisa, de abordagem qualitativa, que consistiu em um estudo de caso na Penitenciária de Florianópolis, por meio da qual ele buscou, entre outros objetivos, investigar a necessidade de se adotar a EaD como modalidade de ensino para a profissionalização dos internos nesse mesmo espaço prisional. Após análise dos dados empíricos, a conclusão de Fonseca (2011) é no sentido de que as atividades de laborterapia, postas em prática na Penitenciária de Florianópolis durante o cumprimento da pena privativa de liberdade, conquanto tenham o efeito positivo de preencher o tempo ocioso dos apenados, pecam por não alcançarem um percentual considerável da população carcerária, além de não se revelarem como oportunidade de qualificação profissional apta a assegurar a reinserção do apenado no mundo do trabalho. O autor concluiu também que a modalidade de ensino EaD apresenta potencialidades na resolução do problema da falta de formação profissional no âmbito das unidades que compõem o sistema penitenciário brasileiro. Ainda segundo o autor, o ponto central é “[...] desenvolver cursos profissionalizantes que sejam absorvidos pelo mercado de trabalho. Desta forma o apenado desenvolverá um senso de responsabilidade, adquirindo novas habilidades e evitando até a reincidência” (FONSECA, 2011, p. 56).

Dando continuidade, o único trabalho encontrado que tratou da Educação Profissional em uma unidade federal do sistema penitenciário foi a dissertação de Ana Lúcia Pascoal Diniz, intitulada Proeja FIC/Fundamental no IFRN-Campus Mossoró: das intenções declaradas ao funcionamento de um curso em espaço prisional. O estudo foi apresentado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte para conclusão do curso de Mestrado na área de Educação. A pesquisa teve como objeto o curso Formação Inicial e Continuada (FIC) de Auxiliar Técnico em Gestão e Qualidade em Serviços, ofertado de forma integrada ao Ensino Fundamental, na modalidade EJA, promovido pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte - Campus Mossoró.

A par de outros objetivos, a pesquisa teve por finalidade verificar o cumprimento, por parte do Proeja/FIC Fundamental, das intenções declaradas oficialmente como sendo um programa que pretende se tornar parte de uma política social de inclusão emancipatória. Tomando como parâmetro o curso analisado, Diniz (2014) reconhece que o programa não alcançou esse viés emancipador, revelando, ao contrário, natureza compensatória, de modo que vem amenizando, de alguma forma, o déficit social existente no âmbito da educação.

Um dos óbices à efetivação das potencialidades do Proeja/FIC Fundamental, na visão da autora, reside no fato de a integração dar-se apenas no plano teórico. O programa é desenvolvido por duas instituições distintas, cabendo a uma ministrar as disciplinas de formação geral e à outra desenvolver as disciplinas de qualificação profissional. Nesse contexto, “[...] pode-se culminar em proposições didático-pedagógicas e curriculares estanques e separadas entre si” (DINIZ, 2014, p. 115). Outro entrave apontado pela autora deve-se ao baixo número de matrículas nos últimos três anos que antecederam à pesquisa, circunstância que concorre negativamente para a consolidação do programa como parte de uma política pública.

Reconhecendo a importância da formação omnilateral para a formação do cidadão, a autora salienta que “[...] o desafio é construir um projeto pedagógico de curso capaz de materializar, na prática, as dimensões trabalho, ciência, tecnologia e cultura e a elevação de escolaridade, tendo como referência o perfil dos estudantes e suas experiências anteriores” (DINIZ, 2014, p. 163).

Crisonéia Nonata de Brito Gomes também se dedicou a estudar o tema, apresentando o trabalho intitulado Programa Mulheres Mil: uma oportunidade de reinserção social cidadã às reeducandas da Penitenciária Feminina do Distrito Federal (PFDF) para obtenção do título de mestre em Educação junto à Universidade de Brasília. Nesse estudo, a autora adotou, como público-alvo, as presas qualificadas nos cursos de Estética Feminina e Recepcionista, entre os anos de 2013 e 2014, cuja oferta se deu por intermédio do Instituto Federal de Brasília - Campus Gama.

Com o propósito de situar o objeto do estudo no contexto político-social, o Programa Mulheres Mil resulta de iniciativa conjunta dos governos do Brasil e do Canadá, constituindo em política pública que tem como valores fundantes o combate à violência contra a mulher, o acesso à educação, a promoção da equidade e a igualdade entre os sexos. Em 2009, a meta da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC) consistia na expansão desse programa, de modo que fosse implementado em todos os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia do país (BRASIL, 2008).

Em razão de já ter atuado no programa, por meio do Instituto Federal de Roraima (IFRR), com as reeducandas da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, no curso de Culinária Regional, experiência que se mostrou muito bem sucedida graças à união de esforços entre o IFRR, entidades do Sistema S e a Secretaria de Justiça e Cidadania, Gomes (2015) almejava identificar se, no Distrito Federal, os objetivos do programa também vinham sendo alcançados ou não, sobretudo no que diz respeito à elevação do nível de escolaridade, à emancipação econômico-social e à efetiva inserção das presas no mundo do trabalho.

Quanto ao primeiro objetivo, Gomes (2015) registra que dez das 16 reeducandas entrevistadas não estudavam quando passaram a integrar o Programa Mulheres Mil. Destas dez, três, por influência do programa, retornaram ao estudo. Registra ainda que essas três reeducandas já tinham conhecimento da escola existente na unidade prisional, mas que até então não haviam tido interesse em se matricular, o que somente se materializou após a participação no programa em questão. A autora aponta ainda que, mesmo aquelas que não retornaram aos estudos, manifestaram o desejo de fazê-lo.

No que diz respeito ao potencial emancipador dos cursos oferecidos, Gomes (2015) sinaliza que todas as reeducandas entrevistadas declararam que o Programa Mulheres Mil contribuiu de forma incisiva para a elevação da autoestima, bem como para o empoderamento. Além do conteúdo específico de cada um dos cursos ofertados, as entrevistadas apontaram alguns dos conhecimentos transmitidos e que são responsáveis por essa mudança: “Noções de Informática e Internet, Educação Financeira, Comunicação Oral, Bio Dança e Estética Feminina” (GOMES, 2015, p. 76).

Gomes (2015) afirma, por fim, que, em relação ao objetivo de emancipação da mulher no mundo do trabalho, o Programa Mulheres Mil, tal como apresentado pelo IFB - Campus Gama, nos exercícios de 2013 e 2014, revelou-se um insucesso. Em primeiro lugar, as presas revelaram não se sentirem preparadas para desempenhar atividades que exigiam as qualificações transmitidas. Em segundo, as 16 entrevistadas não exerciam atividade remunerada, deixando de pôr em prática os conhecimentos adquiridos. Em terceiro lugar, a qualificação profissional não se revelou como oportunidade real de obtenção de renda para essas mulheres.

Diante desse cenário e tendo como parâmetro a experiência exitosa desse mesmo programa na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo em Roraima, Gomes (2015) conclui pela necessidade de reformulações. A autora defende que a qualificação profissional possibilite às mulheres em situação de restrição de liberdade “[...] ingressar no mundo do trabalho enquanto ainda estão cumprindo pena, pois de que adianta qualificar e não pôr em prática?” (GOMES, 2015, p. 103). Para ela, essas mulheres veem o labor como um meio de prestar auxílio financeiro à família, notadamente aos filhos que estão em liberdade, daí porque se mostra importante que o ingresso no mundo do trabalho seja tratado ainda quando da qualificação profissional - e não como projeto futuro, pós-liberdade.

José Luiz Koliski, discente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Tecnologia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, tratou sobre a qualificação profissional de pessoas em privação de liberdade, tendo o estudo sido realizado com os internos da Colônia Penal Agroindustrial do Paraná (CPAI). Segundo Koliski (2015), o objetivo da pesquisa consistia em analisar os limites e as possibilidades da qualificação profissional sob o viés da reinserção econômica e social dos presos, a partir da percepção deles mesmos. Dezessete internos foram entrevistados que, à época, estavam participando ou já haviam participado de programas de escolarização, de cursos de qualificação profissional e de atividades laborais.

Para apresentar a situação da unidade prisional em que se deu a pesquisa de campo, Koliski (2015) relata que a CPAI, em 27 de junho de 2014, possuía 1.483 encarcerados, dos quais 1.074 desempenhavam alguma atividade laborativa. Cabe pontuar, contudo, que o potencial de oferta chegava a 2.150 vagas de trabalho, superando, inclusive, o número total de presos da unidade. Quanto à educação formal, a CPAI findou o primeiro semestre de 2014 com 721 encarcerados matriculados na EJA, assim distribuídos: 49 em processo de alfabetização; 457 no Ensino Fundamental, primeiro e segundo segmento; e 215 no Ensino Médio. Por fim, em relação à qualificação profissional, em junho de 2014, estavam em funcionamento apenas os cursos FIC do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC), com carga horária igual ou superior a 160 horas. Houve, na CPAI, a certificação de 146 alunos-apenados.

Segundo Koliski (2015), se, de um lado, a CPAI caracteriza-se pela ampla oferta de trabalho, interno e externo, em órgãos públicos e entidades privadas; de outro, o trabalho realizado pelos internos dessa unidade está alinhado à função reprodutiva do capital, atendendo demandas do mercado por profissionais de baixa qualificação e que farão jus à inexpressiva remuneração. Além disso, o interesse dos apenados pelos programas de qualificação profissional deve-se mais à possibilidade de remição de pena e eventual contrapartida financeira do que ao potencial de aprendizagem ou reinserção no mercado de trabalho, daí porque, para o autor, tais programas falham em seu aspecto educativo. A educação formal, por sua vez, separada e em concorrência com a Educação Profissional, não é extensiva a todos, encontrando-se restrita a um pequeno grupo, sobretudo em razão de uma cultura carcerária da punição assentada sobre o princípio punitivo e retributivo da pena, que trata o estudo na prisão como uma regalia.

Especificamente quanto ao ensino profissionalizante para os presos da CPAI, Koliski (2015) ressalta que os cursos oferecidos são de curta duração, com carga-horária entre 160 e 200 horas, além de exigir pouca escolaridade dos interessados, não representando uma real possibilidade de reinserção econômica. O autor pondera ainda que nem mesmo o viés mercadológico é verificado no momento de oferta de alguns cursos, como, por exemplo, no ramo da construção civil, em que, para fins de empregabilidade, a exigência das empresas não é de certificação, mas, sim, de experiência prática. O pesquisador traz ainda que “[...] os cursos de qualificação profissional PRONATEC/FIC adotados no sistema prisional cumprem uma função aparente, ‘maquiando’ a profissionalização de apenados” (KOLISKI, 2015, p. 171). Deixa claro o autor que os cursos profissionalizantes no espaço prisional, em verdade, representam importante nicho econômico às instituições ofertantes, sobretudo do Sistema S.

Segundo Koliski (2015), dos 17 alunos-internos participantes da entrevista, dois reconhecem a qualificação profissional com a experiência profissional, e outros dois a reconhecem com a integração entre a experiência profissional e os cursos profissionalizantes. Os demais entrevistados reconheceram as limitações dos cursos ofertados, sugerindo a integração entre conhecimento geral e a Educação Profissional, tal como defendido pelo autor, para quem,

[...] apesar da oferta de educação formal, trabalho e cursos profissionalizantes na CPAI, a falta de integração entre esses programas, o aligeiramento educacional, a desarticulação entre teoria e prática e a ausência de acúmulo de experiência laboral comprovada, foram apontadas pelos apenados e corroboradas pelos documentos analisados como limitações à qualificação profissional, pouco contribuindo para a reinserção econômica e social. (KOLISKI, 2015, p. 176).

No ano seguinte, João Ferreira da Silva Junior desenvolveu o trabalho intitulado O significado e as contradições da educação para o trabalho nas penitenciárias do estado de São Paulo, desenvolvidos pela Fundação “Professor Doutor Manoel Pedro Pimentel” (FUNAP). Silva Junior (2016) faz um apanhado histórico da instituição, criada em 1976, e que tinha como objetivo maior, inicialmente, a promoção de ações que fomentassem a qualificação profissional do interno, bem como o trabalho remunerado dentro das prisões. Posteriormente, após o afastamento da Secretaria Estadual de Educação (SEE) do espaço prisional, coube à FUNAP, a partir de 1979, não só o ensino profissionalizante, mas também a educação formal. Assim, a instituição passa a exercer papel duplo no espaço prisional: a elevação da escolaridade e a qualificação profissional. Contudo, com o advento da Resolução CNE/CEB Nº 2, de 19 de maio de 2010 (BRASIL, 2010), a SEE foi obrigada a reassumir a Educação Básica nos presídios, restando à FUNAP cumprir tão somente o objetivo que inspirou sua criação, qual seja: a educação para o trabalho no sistema penitenciário. Para tanto, a FUNAP criou o Programa de Educação para o Trabalho e Cidadania (PET) e formalizou inúmeras parcerias, como, por exemplo, com o PRONATEC e com entidades do Sistema S, terceirizando as ações educacionais.

Frente a esse cenário, Silva Junior (2016) reconhece a criação do PET como uma forma de que se valeu a FUNAP para manter o espaço adquirido ao longo das três décadas em que desenvolveu a educação formal no sistema prisional paulista. Para o autor, essa foi a medida utilizada para que a FUNAP se mantivesse ativa no sistema penitenciário, não vindo a ser suplantada pelo retorno da SEE àquele mesmo espaço social. Focalizando nesse programa, a pesquisa buscou respostas às seguintes questões: “Como se configura a educação para o trabalho nas unidades prisionais? Diante da especificidade que é a prisão, o que realmente a educação para o trabalho contribui para a vida em liberdade do indivíduo preso?” (SILVA JUNIOR, 2016, p. 100). Para a pesquisa de campo, o autor selecionou as unidades de regime fechado e semiaberto da Penitenciária de Presidente Prudente, além do Centro de Ressocialização e da Regional da FUNAP, ambos na cidade de Presidente Prudente/SP.

Após analisar os documentos oficiais do programa e entrevistar os participantes, todos com atuação no PET, Silva Junior (2016) fez considerações dignas de registro: a) com exceção dos gestores, os demais agentes não participaram do Projeto Pedagógico de Curso (PPC), havendo educadores entrevistados que sequer conheciam o que representa um PPC; b) pequena margem de liberdade quanto à escolha dos cursos de qualificação, havendo um catálogo pré-definido; c) ausência de manifestação por parte dos reeducandos quanto aos cursos que teriam interesse em participar, sendo a escolha feita, tomando por base, as necessidades da unidade prisional; d) diferentemente dos gestores, os educadores, que compõem a base do processo educativo, não possuem habilitação necessária para desenvolver a contento, a ação pedagógica; e) ausência de momentos organizados para troca de experiências quanto aos avanços e às dificuldades encontradas por cada unidade na execução do programa.

Considerando que os cursos oferecidos, de curtíssima duração, não atendem às condições mínimas para assegurar a “[...] plena aprendizagem e a assimilação dos conhecimentos necessários para se tornar um profissional realmente capacitado” (SILVA JUNIOR, 2016, p. 122), o autor considera que o PET, em verdade, objetiva uma acomodação por parte dos alunos apenados frente às precariedades que marcam o mundo do trabalho nos dias de hoje, restando demonstrado ainda, para o autor, que a concepção de trabalho que direciona a atuação dos educadores do PET, sejam monitores sejam gestores, está calcada na lógica de mercado, ainda que implicitamente. Ao concluir que o ensino profissionalizante ofertado por meio do PET não está à altura do direito fundamental à educação e tendo em conta as entrevistas realizadas, o autor sinaliza

[...] o quanto é falacioso os cursos realizados nos interiores das unidades prisionais, pois seguem uma concepção de mero serviço em detrimento ao conceito de direito humano, ou seja, todos têm direito a uma educação pública e de qualidade, entretanto, o que vemos neste programa são parceiros privados executando cursos de qualificação em locais públicos com objetivo apenas do lucro. (SILVA JUNIOR, 2016, p. 123).

Em 2017, Ana Paula Nedel concluiu o curso de Doutorado em política social e direitos humanos, ofertado pela Universidade Católica de Pelotas, com trabalho nominado Educação profissionalizante de presos e o enfrentamento de vulnerabilidades: armadilhas, desafios e esperanças numa experiência Prisão e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSul). A pesquisa de campo deu-se em dois estabelecimentos prisionais do estado do Rio Grande do Sul, a Penitenciária Estadual de Arroio dos Ratos e a Colônia Penal Agrícola General Daltro Filho.

Nedel (2017) explica que a escolha por essas duas unidades tem razão de ser, pois a primeira se destina ao cumprimento de pena privativa de liberdade em regime fechado, espaço em que o fator segurança tem valor primordial, ao passo que a segunda é destinada ao regime semiaberto, regime em que o preso possui mais “liberdade”, mostrando-se o controle estatal em menor escala. Diante de estabelecimentos com regramentos distintos e realidades diversas, seria possível verificar se as diferenças que regem essas duas unidades prisionais refletem - ou não - no ensino profissionalizante ofertado em cada uma delas.

De partida, Nedel (2017) registra a dificuldade de encontrarem-se docentes dispostos a participar dos cursos ofertados intramuros pelo PRONATEC por meio do IFSul. Houve situações em que os gestores precisaram estimular os profissionais a se inscreverem e outras em que se fez necessário lançar novo edital de convocação, haja vista a ausência de interessados. Nedel (2017) atribui essa situação ao estigma que marca o espaço social prisão e aqueles que nele se encontram, estigma sentido pela própria autora em alguns momentos da pesquisa.

Nedel (2017) traz também a existência de segregação de funções entre as instituições envolvidas, sobretudo quanto à seleção dos internos para participar dos cursos. A seleção em si ficava a cargo da equipe técnica do presídio, composta por psicólogos e assistentes sociais, não havendo participação da instituição de ensino nessa fase. A esta se reservava a função de organizar a parte burocrática, promover as aulas e o acompanhamento pedagógico. Pondera que, dadas as especificidades da prisão, muitas são as circunstâncias a serem consideradas para seleção dos alunos, como, por exemplo, tempo de duração da pena, eventual transferência de estabelecimentos prisionais e também benefícios da execução penal, citando-se a progressão de regime e a liberdade condicional.

Para Nedel (2017), outras situações margeiam a oferta do ensino profissionalizante no interior dos presídios, como o estabelecimento de requisitos rígidos para participação dos cursos, relatando, por exemplo, o caso de um interno que se viu privado de um curso na área de elétrica, não obstante sua participação fosse recomendada, unicamente por não possuir inscrição no Cadastro de Pessoa Física. Segundo a autora, essa rigidez acaba por impossibilitar a adequação da situação individual de cada interno ao curso, bem como a adequação da grade curricular e do plano de ensino. Ao fazer essa constatação, Nedel (2017) compreende que a superação da burocracia é uma exigência para a efetivação do ensino profissional no presídio.

Ao comparar a situação da unidade de regime fechado e a de regime semiaberto, Nedel (2017) constata algumas diferenças. Na primeira, segurança é a palavra de ordem, de modo que os professores permanecem afastados dos internos por meio de grades, obstaculizando sobremaneira a interação dos sujeitos, além de dificultar a realização das aulas práticas. Na segunda, por outro lado, os presos podem se deslocar dentro da unidade prisional, limitando-se a segurança basicamente à proibição do consumo de drogas e ao uso de celulares, o que, via de consequência, permite mais aproximação dos presos com os docentes, tal como se dá na sala de aula extramuros. Além disso, na primeira, também por razões de segurança, o deslocamento dos internos é cercado de formalidades, bastante moroso, acarretando atraso no início das aulas e no desenvolvimento do conteúdo dos cursos, não se verificando essa mesma situação na segunda. Outra diferença apontada reside na motivação dos internos. No regime fechado, verifica-se uma motivação maior dos internos em participar dos cursos, porquanto, em razão de se darem no mesmo horário, a opção pelas aulas prejudica o banho de sol, que é um dos únicos momentos de “lazer” de que os internos desfrutam. No regime semiaberto, por sua vez, embora a motivação também seja um elemento importante, não apresenta a mesma dimensão do regime fechado, considerando que a opção pelos cursos não impõe o mesmo sacrifício aos internos.

Dando continuidade, Nedel (2017), a partir da entrevista de um docente com experiência no PRONATEC, tanto extramuros quanto intramuros, traz uma constatação surpreendente. No primeiro caso, de cursos ofertados para pessoas em liberdade, verifica-se que o maior interesse dos alunos está na certificação, o que se depreende a partir dos questionamentos acerca de quantas provas precisarão ser feitas ou o quanto de frequência necessário para obtenção do certificado. Além disso, a participação no curso, nesses casos, é fomentada por questões financeiras, dados os auxílios transporte e alimentação oferecidos. Por outro lado, nos cursos ofertados dentro do ambiente prisional, é perceptível o interesse com o aprendizado em si, situação verificável pela disposição com que os alunos frequentam as aulas e pela maior facilidade de aprendizado. A autora destaca ainda que esse envolvimento mais intenso por parte dos alunos em situação de privação de liberdade se dá pelo fato de eles vislumbrarem nos cursos uma oportunidade de valorização pessoal e de perspectivas até então inexistentes.

Segundo Nedel (2017), em relação ao PRONATEC, há de ser feita uma distinção entre o IFSul e o Sistema S. O IFSul é uma instituição que tem como pilares a educação, a ciência e a tecnologia, primando pela formação omnilateral do indivíduo. Para o cumprimento dessa missão, além do corpo docente, a instituição conta com corpo técnico especializado, composto, por exemplo, por médicos, psicólogos, assistentes sociais, nutricionistas, estando, assim, mais bem estruturada para ofertar um ensino voltado à emancipação social, não puramente técnico. Essa mesma realidade, por outro lado, consistente no apoio ao aluno apenado por profissionais das mais diversas áreas, não se faz presente no Sistema S, sendo apontada como a principal diferença entre os cursos ofertados pelo IFSul e pelo referido sistema.

Por fim, Nedel (2017, p. 107) deixa claro que, embora o PRONATEC seja um programa idealizado para a sociedade extramuros, nos moldes em que ofertado pelo IFSul - Campus Charqueadas, “[...] é capaz de produzir uma possibilidade real de mudança na perspectiva desses apenados, de alteração dos rumos futuros da vida laboral desses indivíduos”, seja no mercado formal seja no informal, havendo, na pesquisa, inúmeros relatos de docentes entrevistados com experiências de alunos, oriundos do sistema prisional, que conseguiram obter colocação no mundo do trabalho a partir dos conhecimentos transmitidos por meio do ensino profissionalizante.

Em Educação em prisões: um olhar à formação profissional na penitenciária feminina do Distrito Federal, Walace Roza Pinel, à luz do materialismo histórico-dialético, discutiu o trabalho e a educação, com o intuito de buscar compreender como ambos se relacionam com “[...] as políticas públicas de ‘ressocialização’ e ‘reeducação’ de pessoas privadas de liberdade durante o cumprimento da pena” (PINEL, 2017, p. 31).

Um dos primeiros apontamentos do autor consiste em uma crítica ao papel assumido pela EJA no espaço prisional, quase que de exclusividade, como se não houvesse outras possibilidades formativas que o Estado pudesse por em prática para garantir aos internos o direito fundamental à educação. Como forma de contornar essa realidade, Pinel (2017) sugere que, além da EJA, também seja assegurado o ensino universitário, o ensino profissionalizante técnico regular, bem como cursos livres, cuja oferta pode ser implementada a partir de convênios com instituições públicas (Instituto Federal de Educação, Universidade, etc.) ou parcerias com movimentos sociais.

Ainda tratando dessa questão, o autor destaca a potencialidade do programa de Formação Integrada e Emancipadora de Acesso à Educação Superior (FORMANCIPA), resultado de uma iniciativa do Serviço de Paz, Justiça e Não Violência do Pedregal - GO (SERPAJUS) e a Universidade de Brasília (UnB) e que se caracteriza por seu caráter interdisciplinar, contando não só com oficinas pedagógicas, mas também culturais, com atividades de música, teatro, redação, além de palestras e aulas de campo. Seguindo o raciocínio de Pinel (2017), há de ser vista com bons olhos a eventual parceria entre a PFDF e o FORMANCIPA, considerando a perspectiva emancipadora do programa, apto a colaborar, assim, para que as internas tenham um futuro melhor.

Voltando-se à temática central da pesquisa realizada, a Educação Profissional no cenário prisional, e tendo presente a realidade da PFDF, Pinel (2017) verbaliza que, “no sistema”, educação e trabalho são tratados como categorias distintas, autônomas, como algo estanque. Aos olhos dos sujeitos que fazem parte daquele contexto social, aqui incluídos os gestores, os agentes penitenciários e, até mesmo, as próprias internas, o acesso a ambos os direitos, educação e trabalho, é tratado como um privilégio, próprio de uma pequena minoria. Ressalta o autor que, embora inexista legislação que dê amparo a essa dicotomia, como se a educação excluísse o trabalho e vice-versa, houve uma naturalização dessa ideologia, fruto da máxima do “sempre foi assim”.

Pinel (2017) discorda firmemente da divisão existente entre a Educação Básica, cuja oferta se dá por intermédio da EJA, e a Educação Profissional, que se encontra vinculada às oficinas, sendo esse modelo segregador adotado na PFDF. Entendendo que as modalidades de ensino possuem vínculos indissociáveis, o autor posiciona-se contrariamente à separação imposta pelo Estado, defendendo a adoção de uma perspectiva mais ampliada, a partir de uma simbiose entre ambas, pois, assim, a Educação Básica e a Profissional serão pensadas em sua totalidade. Em consequência, ter-se-ia uma educação com viés emancipador, capaz de contribuir, de algum modo, para o já difícil e doloroso retorno ao convívio social.

Pinel (2017) tece críticas também à sistemática do ensino profissionalizante via EaD, ao menos tal como adotado no Distrito Federal. É necessário que a instituição de ensino esteja cadastrada junto ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), dando-se a oferta unicamente pelo Centro de Educação Profissional à Distância (CENED). Trata-se de uma escola privada, que disponibiliza cursos de Educação Profissional com carga horária de 180 horas em sua grande maioria, variando o valor de R$ 120,00 a R$ 170,00. A censura do autor a essa sistemática deve-se principalmente a três fatores: 1) em visita a uma unidade do CENED, por inúmeras vezes, destacou-se a possibilidade de o interno se valer desses cursos para obter a remição de parte da pena, permitindo concluir, ainda que indiretamente, o domínio da lógica capitalista em detrimento do real interesse em preparar o aluno para o mundo do trabalho; 2) por se tratar o CENED de uma instituição privada e diante da ausência de uma instituição pública que também assegure essa modalidade de ensino, apenas aqueles com melhores condições financeiras tem acesso ao ensino profissionalizante via EaD, agravando, ainda mais, o contexto de marginalização das pessoas menos favorecidas; 3) independentemente do curso escolhido, não há nenhuma aula prática, limitando-se à preparação tão somente a aspectos teóricos, daí porque se põe em dúvida a credibilidade desses cursos.

[...] é inevitável se pensar que formar profissionais tão heterogêneos como: pedreiros, eletricistas, gestores de material de risco hospitalar, auxiliares de oficina mecânica, apenas por meio de apostilas, sem qualquer laboratório, estágio prático ou acesso à internet é uma forma precarizada da relação pedagógico-profissional, expondo estas pessoas inclusive a risco quando de sua possível prática laborativa no retorno a liberdade. (PINEL, 2017, p. 150).

Em relação à pesquisa de campo, Pinel (2017) adotou como objeto de estudo o curso de assistente administrativo, com 30 alunas, ofertado na PFDF, por meio do PRONATEC.

A primeira anotação que o autor traz é no sentido de que, no espaço prisional, reproduzem-se estruturas discriminatórias existentes extramuros. Já no início do processo de observação, verifica-se que a maioria das mulheres selecionadas para frequentar o curso possui o aspecto “feminilizado” e de cor branca, constituindo as de tez escura pequena minoria. O cenário da sala de aula guarda incoerência com a realidade do pátio, onde há nítida predominância de mulheres negras e “masculinizadas”. Para o autor, essa constatação deixa claro que as questões raciais e de orientação sexual são determinantes para o acesso das mulheres a oportunidades no sistema penitenciário.

Outro ponto levantado por Pinel (2017) refere-se ao poder discricionário existente no espaço prisional. Mesmo contando com 30 alunas inscritas, a frequência nunca passava de 25 estudantes-internas, obtendo-se sempre respostas evasivas acerca da razão das faltas. O período de observação permitiu ao autor concluir que muitas daquelas mulheres ficavam impossibilitadas de participar das aulas, mesmo estando devidamente matriculadas, em razão de penalizações por eventuais infrações cometidas, pequenas que fossem.

Prosseguindo, não obstante a Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984), em seu art. 11, inciso IV, prever a educação com um direito da pessoa presa, os elementos empíricos referentes ao curso de assistente administrativo na PFDF demonstraram que esse direito não é assegurado a todos. O autor relata que não basta o interesse da mulher em privação de liberdade pelo estudo, pois, “[...] mesmo que a interna esteja disposta a frequentar o espaço formativo profissional, pesa a onipotência e onipresença do aparato estatal, o qual, de acordo com o seu critério, pode, ou não, autorizar o acesso da interessada ao curso” (PINEL, 2017, p. 180).

Quanto à percepção das internas, dois pontos merecem destaque. O primeiro, em relação à importância da educação profissional, Pinel (2017) ressalta a existência de um consenso entre as entrevistadas em conferir significado e relevância à educação formal, seja ela ofertada por meio do PRONATEC ou mesmo de outra forma. “Foi unânime o entendimento de que o acesso e a permanência na educação como uma atividade contínua, intencional e pública têm efeito positivo sobre o ‘moral’ das mulheres que frequentam a escola” (PINEL, 2017, p. 184). O segundo, quanto à aplicação do conhecimento adquirido, as respostas das alunas-internas alternaram entre realismo e esperança, “[...] quer seja pelo estigma de ‘egressa’, quer seja pela precariedade de sua formação profissional naquele espaço” (PINEL, 2017, p. 184).

Por fim, o autor, de um lado, pontua que o curso propiciou melhora significativa no convívio daquelas mulheres em situação de privação de liberdade, revelando-se a educação profissional, nesse contexto, “[...] uma forma de resistência não-violenta na resolução de possíveis conflitos” (PINEL, 2017, p. 184). De outro, o pesquisador registra a deficiência do curso ofertado e destaca a ausência de recursos didáticos importantes e de aulas práticas que permitam a aplicação dos conhecimentos transmitidos.

Realizado o exame individual de cada um dos trabalhos anteriormente selecionados e a fim de avançar na compreensão desses estudos, de grande valia se mostra, no Quadro 2, a apresentação das categorias de análise sobre as quais se fundaram cada uma das pesquisas.

Quadro 2 Categorias de análise dos trabalhos selecionados 

Título Categorias de análise
Reeducar, reinserir e ressocializar por meio da educação a distância Currículo na Educação Básica; Lei de Execução Penal; Educação a Distância; Abordagem Sistêmica.
Políticas de formação do trabalhador: a FUNAP Educação; Trabalho; Políticas Públicas; Sistema Prisional.
Nas trilhas do fazer e do saber a possibilidade de ser: os caminhos do trabalho e da educação na prisão Educação; Trabalho.
A profissionalização dos apenados, por meio da educação a distância, como contribuição à inserção ao mercado de trabalho: o caso da penitenciária de Florianópolis/SC Educação a Distância; Ensino técnico; Mercado de trabalho; Sistema prisional.
PROEJA FIC/Fundamental no IFRN-Campus Mossoró: das intenções declaradas ao funcionamento de um curso em espaço prisional Educação Profissional; Educação de Jovens e Adultos; Educação em prisões.
Programa Mulheres Mil: uma oportunidade de reinserção social cidadã às reeducandas da penitenciária feminina do Distrito Federal Educação profissional; Políticas públicas de inclusão social; Relações de gênero; Sistema prisional.
A qualificação profissional de encarcerados da colônia penal agroindustrial do Paraná Educação profissional; Trabalho.
O significado e as contradições da educação para o trabalho nas penitenciárias do estado de São Paulo, desenvolvidos pela fundação "Professor Doutor Manoel Pedro Pimentel" (FUNAP) Educação Profissional; Educação nas prisões; Trabalho.
Educação profissionalizante de presos e o enfrentamento de vulnerabilidades: armadilhas, desafios e esperanças numa experiência Prisão e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense Educação Profissional; Sistema penal e educacional; Políticas públicas.
Educação em prisões: um olhar à formação profissional na penitenciária feminina do Distrito Federal Trabalho; Educação.

Fonte: Elaborado pelos autores com base nos dados da pesquisa.

A realidade do cenário penitenciário brasileiro é de uma população com baixíssima ou sem nenhuma formação escolar, sem acesso à cultura, ao esporte, ao trabalho digno, etc. Em resumo, essa população é composta por indivíduos que, antes do encarceramento, não tiveram acesso a condições humanas de sobrevivência, daí porque a educação e o trabalho na prisão se revelam oportunidades ímpares para tais pessoas. Esse aspecto, destacado de uma forma em geral nos trabalhos analisados, foi pontuado com veemência nas pesquisas de Gomes (2015) e Pinel (2017), cujos resultados indicaram que o ensino profissional na prisão trouxe melhoria na autoestima dos sujeitos participantes, benefícios no convívio com os demais internos, além de perspectivas melhores, até então inexistentes, para quando do restabelecimento da liberdade. Nesse aspecto, Onofre (2007) observa que:

Quaisquer que sejam os papéis possíveis apontados para a escola - preencher o tempo, distrair a mente, sair da cela, conquistar benefícios jurídicos, aprender a ler, escrever e fazer contas, serem aprovados nas provas -, ela é percebida pelos alunos como algo positivo dentro da penitenciária. É um lugar onde vivem experiência numa situação de interação, em que existe a possibilidade de respeito mútuo, de troca e cooperação, o que contribui para que a pena possa ser vivida de maneira mais humana. (ONOFRE, 2007, p. 25).

Outro ponto muito debatido no meio acadêmico e que restou confirmado nos dados empíricos colhidos nas pesquisas aqui apresentadas, sobretudo nas de Favaro (2008), Diniz (2014) e Silva Junior (2016), está relacionado à necessidade de alinhamento da formação geral com a do mundo do trabalho. Se o objetivo maior da Educação Profissional é a emancipação do aluno, de pouca valia se mostra a preparação para o trabalho servil, desprovido de significação social, devendo-se priorizar a preparação voltada ao domínio das técnicas produtivas atuais. Contudo, para tanto, mostra-se necessário que o indivíduo tenha condições de incorporar tais conhecimentos, daí porque se deve buscar, também no espaço prisional, a integração entre a Educação Básica e a Profissional, modelo que, além de promover a elevação da escolaridade, assegurará a preparação do apenado para o trabalho moderno.

Não se trata de missão fácil levar a Educação Profissional para dentro da prisão. Justamente por isso, destacam-se as pesquisas de Beber (2007) e de Fonseca (2011), os quais compreendem a modalidade de ensino EaD como um facilitador. Com efeito, diante do processo de globalização e do avanço da internet, o uso dessa ferramenta se tornou uma realidade inarredável; todavia, válidos os alertas de Pinel (2017), máxime quanto à ausência de aulas práticas e quanto à oferta unicamente por instituições privadas. Sempre tendo presente o objetivo emancipador da educação, se, de um lado, é necessário incentivar o uso da EaD como uma forma de alcançar um maior número de beneficiários; de outro, a adoção desse modelo não pode comprometer a qualidade do ensino oferecido, limitando-se a questões puramente teóricas, sem qualquer práxis. Além disso, sendo a educação um direito de todos, é necessário que o poder público também adote essa modalidade de ensino, para que os economicamente menos favorecidos sejam igualmente contemplados.

Aliás, a presença do poder público no sistema penitenciário não deve se ater à área da segurança, devendo incidir também sobre a educação, com quadro de servidores efetivos organizados em plano de cargos e carreira. É necessário que o Estado, nesses espaços, assuma diretamente a responsabilidade pelo ensino, seja propedêutico seja profissional, preferencialmente com a habilitação dos gestores, docentes e técnicos para educação em prisões. Isso porque, ao menos no que toca à capacitação profissional, como bem advertem Koliski (2015) e Silva Junior (2016), tem havido uma “terceirização” dessa função a entes privados, especialmente para os do Sistema S, que se limitam a ofertar cursos de curta(íssima) duração, muitas vezes apenas teóricos e desalinhados até mesmo da perspectiva mercadológica, sem qualquer potencial emancipador.

Por fim, merece destaque o envolvimento dos institutos que integram a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica na oferta de ensino profissionalizante no sistema prisional. As produções acadêmicas de Diniz (2014), Gomes (2015) e Nedel (2017) tiveram por objeto programas desenvolvidos, respectivamente, nos institutos federais do Rio Grande do Norte, de Brasília e Sul-rio-grandense. Tal constatação se revela demasiadamente importante. Indica que as instituições que compõem a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, além de preparar mão de obra qualificada para diversos setores da economia, têm contribuído para solucionar problemas sociais relevantes desse país, como, no caso em questão, o direito à Educação Profissional nos presídios. Resta claro que, além de ocupar posição de destaque no cenário educacional no país, tais instituições mantêm a preocupação com os grupos menos favorecidos, levando educação de qualidade para pessoas que, no mais das vezes, em toda sua existência, apenas se tornaram visíveis aos olhos do Estado quando do encarceramento.

Considerações finais

Com a melhor estruturação da força policial ocorrida nos últimos anos, houve um aumento da repressão à criminalidade. Todavia, tal iniciativa não vem apresentando os resultados esperados, de modo que a segurança pública ainda continua entre os mais sérios desafios a serem enfrentados pela sociedade brasileira. Resta claro que, a par da repressão já existente, necessária a adoção de medidas tendentes a evitar a prática de outros crimes. Nesse cenário, a educação deve ser vista como um instrumento de política pública no processo de ressocialização dos indivíduos reclusos no sistema penitenciário, contribuindo, assim, para evitar a reincidência penal.

Salutar que seja ofertado não apenas o ensino propedêutico, mas também o profissionalizante, haja vista a possibilidade de os reeducandos utilizarem o trabalho como um caminho para a construção de um futuro distante da criminalidade. Nesse ponto, não se despreza a importância da empregabilidade, para que essas pessoas possam auferir renda de forma lícita e, assim, prover um futuro melhor para si e para suas famílias. Por outro lado, a questão não se limita a isso, a Educação Profissional na prisão deve ser provida de modo a conscientizar os sujeitos de que as relações de trabalho estão umbilicalmente ligadas às demais relações sociais, daí porque, se bem trabalhadas nessa modalidade de ensino, o trabalho pode se apresentar como um propulsor para um novo futuro em relação a essas pessoas.

Para finalizar, a partir de levantamento feito na BDTD, constatamos que a temática da educação profissional no sistema penitenciário foi objeto de estudo em pouquíssimos programas de Pós-Graduação stricto sensu, principalmente em cursos de Doutorado. Dessa feita, ainda há muito a ser pesquisado, notadamente se considerada a complexidade da questão, o aumento vertiginoso do encarceramento vivenciado pelo país nas duas últimas décadas e o potencial emancipador que o ensino profissional apresenta para as pessoas em situação de restrição de liberdade.

Referências

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BEBER, B. Reeducar, reinserir e ressocializar por meio da educação a distância. 2007. 146 f. Tese (Doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007. [ Links ]

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Recebido: 16 de Março de 2019; Revisado: 10 de Maio de 2019; Aceito: 11 de Maio de 2019; Publicado: 23 de Maio de 2019

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