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Práxis Educativa

versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.14 no.3 Ponta Grossa set./dez 2019  Epub 16-Out-2019

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.14n3.005 

Artigos

A Educação Física brasileira por entre distintas epistemologias e o entrave da área 21

Brazilian Physical Education in different epistemologies and the obstacles presented by area 21

Educación Física brasileña por entre distintas epistemologías y el obstáculo del área 21

Cláudio Pellini Vargas* 
http://orcid.org/0000-0002-4060-0401

Marcos Garcia Neira** 
http://orcid.org/0000-0003-1054-8224

*Bolsista de Produtividade em Pesquisa da UNESA (2019-2020). Doutor em Educação (UFJF). Professor Adjunto VI no Centro Universitário Estácio Juiz de Fora nos cursos de Pedagogia e Educação Física (bacharelado e licenciatura). E-mail: <prof.pellini@yahoo.com.br>. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4060-0401

**Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2. Doutor em Educação (USP). Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, atuando no departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada. É coordenador do Grupo de Pesquisas em Educação Física escolar (www.gpef.fe.usp.br). E-mail: <mgneira@usp.br>. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1054-8224


Resumo:

Este artigo reflete sobre o contexto atual do campo da Educação Física no Brasil. A partir de um ensaio de Bernard Charlot no campo da Pedagogia, realizamos analogias com a área com o intuito de apresentar como a vemos na forma de três grandes pensamentos. Em um segundo momento, apresentamos um mapeamento epistemológico atual do campo, de forma a evidenciar a diversidade dos seus saberes a partir de um referencial pós-crítico. Descentralizamos o papel do conhecimento acadêmico, valorizando aquele pertencente ao senso comum e à cultura popular, fato que transforma a cultura corporal, o objeto da área. Essa argumentação leva-nos, por fim, a enaltecer a importância do pensamento pós-crítico na Educação Física, a questionar a insistência institucional de sua manutenção exclusivamente na Área 21 de avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e a apresentar as consequências negativas desse processo para estudantes, professores e pesquisadores.

Palavras-chave: Epistemologia; Teoria Pós-crítica; CAPES.

Abstract:

This paper reflects upon today’s context of Physical Education in Brazil. Based on an essay written by Bernard Charlot in the field of Pedagogy, we conducted analogies with the area in order to present how we see it in the form of three great thoughts. In a second moment, we present a current epistemological mapping of the field, in order to show the diversity of its knowledge from a post-critical referential. We decentralize the role of the academic knowledge, enhancing that belonging to common sense and popular culture, a fact that transforms body culture, object of the field. This argument leads us, finally, to extol the importance of post-critical thinking in Physical Education, to question the institutional insistence of its maintenance exclusively in the Coordination for the Improvement of Higher Education Personnel (CAPES) Evaluation Area 21 and to present the negative consequences of this process for students, teachers and researchers.

Keywords: Epistemology; Post-critical theory; CAPES

Resumen:

Este artículo reflexiona sobre el contexto actual del campo de la Educación Física en Brasil. A partir de un ensayo de Bernard Charlot en el campo de la pedagogía, realizamos analogías con el área con el objetivo de presentar cómo la vemos en forma de tres grandes pensamientos. En un segundo momento, presentamos un mapeo epistemológico actual del campo, de modo a evidenc

iar la diversidad de sus saberes a partir de un referencial post-crítico. Descentralizamos el papel del conocimiento académico, valorando aquel que pertenece al sentido común y a la cultura popular, hecho que transforma la cultura corporal, el objeto de la zona. Esta argumentación nos lleva, finalmente, a potenciar la importancia del pensamiento post-crítico en la Educación Física, a cuestionar la insistencia institucional de su mantenimiento exclusivamente en el Área 21 de evaluación de la Coordinación de Perfeccionamiento del Personal de Nivel Superior (CAPES) y a presentar las consecuencias negativas de este proceso para estudiantes, docentes e investigadores.

Palabras clave: Epistemología; Teoría Post-crítica; CAPES

Considerações iniciais

Não há como negar que pesquisar em Educação Física (EF) na contemporaneidade brasileira - em qualquer uma de suas subáreas - significa enveredar por caminhos que apresentam rumos pouco claros, tomando por base a sua história, a chamada crise de identidade (BRACHT, 2007) e, principalmente, as epistemologias hoje disponíveis. Na intenção de colaborar com pesquisadores que adentram à temática, apresentamos este ensaio teórico e crítico sobre a EF, com especificidade para aquela realizada no âmbito escolar.

Objetivamos refletir sobre alguns pensamentos existentes na área da EF no Brasil, seja dentro de sua comunidade acadêmica, seja nos “bastidores” dos cursos de formação e das escolas, ou mesmo àqueles que ainda compõem o imaginário social, ou seja, a ideia estereotipada do ensino esportivo e da melhoria da aptidão física. De forma mais específica, almejamos destacar a importância da “miscelânea” epistemológica que caracteriza a área e como ela tem contribuído para um avanço teórico-metodológico, para, a partir daí, evidenciar o quanto a EF é prejudicada como campo do saber situada na Área 21 de avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), ou seja, área da Saúde e que reúne também os campos da Fisioterapia, da Fonoaudiologia e da Terapia Ocupacional.

Para atingir tais objetivos, sustentamo-nos inicialmente na argumentação de Bernard Charlot (2006), relacionando-a ao campo epistemológico da EF. O autor esboça uma espécie de “mapeamento epistemológico” da área de Educação, na qual emergem inúmeros discursos. Os argumentos apresentados permitem traçar um paralelo com a EF, articular parte de sua estrutura a outras visões da área, conferindo-lhes novos sentidos com base nas suas especificidades. Defendemos a semelhança entre as duas áreas e afirmamos o equívoco de considerar a EF um campo apenas da saúde.

Na segunda parte do trabalho, apresentamos uma situação do cenário epistemológico atual a partir dos pressupostos das teorias pós-críticas e o que elas significam para o campo. Para Rezer (2010, p. 2), “[...] é possível desenvolver um exercício de análise [crítica] conjuntural sobre a complexidade instaurada no âmbito da EF brasileira na contemporaneidade, estabelecida em um jogo de disputas entre diferentes epistemologias que constituem seu interior”.

Por fim, apresentamos documentos oficiais da CAPES que mostram a visão que a instituição tem sobre a área e argumentamos que essa noção de produção do conhecimento defendida pela comissão avaliadora da EF é reducionista, uma vez que busca sustentar-se exclusivamente nas lógicas biologicistas, ignorando a diversidade epistemológica existente e que inspira não só a formação de professores, mas também as pesquisas no âmbito pedagógico e sociocultural.

Exposição do problema

Assim como Charlot (2006) argumenta que existe um problema de identidade profissional na Pedagogia, sustentamos que a docência em EF no Brasil enfrenta situação semelhante. Essa afirmação ampara-se na significativa produção intelectual observada nos últimos 30 anos na área, mais especificamente após o Movimento Renovador, cujos primórdios situam-se na década de 1970 (VARGAS; CUNHA JUNIOR, 2018), atravessam o período de redemocratização vivido nos anos de 1980 e culminam no conhecido debate promovido pela Revista Movimento, entre os anos de 1994-1995, resumido na questão: “Mas afinal, o que é Educação Física?”. Na ocasião, vários trabalhos (GAYA, 1994; TAFFAREL; ESCOBAR, 1994; BRACHT, 1995; GHIRALDELLI JUNIOR, 1995; LOVISOLO, 1995) dialogaram sobre uma “possível” especificidade da área e a eles se somaram outros sobre as questões de identidade profissional ou sobre a identidade epistemológica da EF. Nos anos subsequentes, as discussões prosseguiram (FENSTERSEIFER, 2001, 2009; REZER, 2010; ALMEIDA; BRACHT; VAZ, 2012; VARGAS; MOREIRA, 2012), de forma a evidenciar a complexidade da questão. Entretanto, tudo isso parece ter sido ignorado pela principal instituição de avaliação da Pós-Graduação brasileira: a CAPES.

Hoje, quando nos perguntam sobre o que ensinamos: “você é professor de quê?”; ou sobre o tema de nossas pesquisas, e respondemos “Educação Física”, ainda percebemos três reações: a primeira, mais discreta, é a de certa “desconfiança” por parte dos acadêmicos, pois é difícil reconhecer o nosso objeto; a segunda, por vezes (in)discreta, é a de “pouco caso”, geralmente expresso pelos diretores e pelos professores de outras disciplinas que não atribuem muita importância ao componente; já a terceira, bem mais evidente e disseminada nos meios de comunicação, é a ideia estereotipada de que nosso trabalho se resume ao treinamento esportivo ou à melhoria da saúde da população.

Ao que parece, somos especialistas em um campo que oscila muito, que possui várias representações, ou até o pior, seguimos por um caminho diferente daqueles que optaram por estudar os campos mais rígidos da ciência moderna. De fato, na EF, continua sendo difícil identificar as fronteiras quando a pergunta envolve a ideia de saber, conhecimento ou pesquisa. Em seu ensaio, Charlot (2006) faz uma alusão muito semelhante sobre a Educação:

Quem atua no ensino de ciências da educação, na França, ou em uma estrutura de pós-graduação em educação, no Brasil, tem um problema de identidade profissional. Quando me perguntam sobre o que ensino, sobre o tema de minhas pesquisas, e respondo “ciências da educação”, ou me perguntam do que se trata (reação que predomina na França), ou acreditam que trabalho com formação de professores (reação que predomina no Brasil). Em suma, sou especialista de algo impreciso, sem fronteiras claras, e difícil de identificar. O que, evidentemente, não é muito agradável do ponto de vista narcísico. (CHARLOT, 2006, p. 7).

Charlot avança afirmando que não é o único nessa situação e institucionaliza o problema ao se referir à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd). O autor questiona como a ANPEd pensa, do ponto de vista epistemológico, sobre as expressões em/na/da Educação. O quadro repete-se com a EF e o Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE), sua principal entidade científica. O que significa “do Esporte”? Será que guarda o mesmo sentido “em sociologia”, “em psicologia” ou “em filosofia”? Nesse caso, “do Esporte” remete à disciplina que chamaríamos de EF. Ou será que significa “sobre EF”, “acerca da EF”, “a respeito da EF”? Repetindo o que ocorre na Educação (CHARLOT, 2006), o termo “EF” remete-nos a um conjunto de situações práticas e políticas ligadas à EF no sentido amplo do termo. Tal como a ANPEd para a Educação, o CBCE é uma associação que reúne pesquisadores de diferentes disciplinas interessados nos vários objetos da EF.

Ao abordarmos um tema dessa magnitude, não temos qualquer pretensão de esgotar o assunto, mas, sim, recuperar o debate epistemológico. Se as discussões das décadas de 1980 e 1990 questionavam “o que vem sendo a EF”, hoje, consolidada no âmbito acadêmico, indagamos sobre “o que ela se tornou”. Houve avanço institucional? Como a CAPES tem pensado a questão?

Algumas visões mais amplas sobre a EF

Os estudiosos parecem não estar de acordo sobre a existência de uma disciplina específica chamada Educação Física. As relações de poder que perpassam esse debate são perceptíveis no posicionamento da EF na conhecida “área 21” da CAPES. Aí situada, ela compartilha critérios sobre a pesquisa, produção de novos conhecimentos e formação de pesquisadores com a Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, assumidamente influenciadas pela perspectiva biologicista e com foco na saúde. Nesse espaço institucionalizado, a produção sociocultural e pedagógica da EF tem pouco relevo, sendo prejudicada no que diz respeito ao desenvolvimento dos conhecimentos que caracterizam o exercício profissional no campo da licenciatura. Ou seja, não se considera seu lugar histórico na escola e sua consequente função social.

Sustentamos, pois, existirem três pensamentos mais amplos. O primeiro, assim como Charlot (2006) se referiu à Pedagogia, chamaríamos pelo nome de inexistência epistemológica, presente em muitos departamentos, faculdades e laboratórios de EF, entendidos apenas como ambientes institucionais nos quais colaboram especialistas de diferentes áreas. Apesar de tal situação experimentar um possível processo de reconfiguração, pois editais de concursos recentes têm exigido a Graduação em EF para os docentes pesquisadores, estes ainda são locais onde encontramos doutores em Sociologia, Psicologia, Medicina (graduados ou não em EF), que parecem se interessar também pelo ensino, ou pelo esporte, ou mesmo doutores em Educação, os quais, como sustenta Charlot (2006), não sabemos também precisar o que são, mas que parecem estar ligados a questões práticas sobre escola, formação de professores, currículos etc., e geralmente pouco interessados no esporte propriamente dito. Apesar de pertencerem ao departamento de EF ou ao mesmo programa de Pós-Graduação, não existe pesquisa em EF, mas, sim, uma pesquisa sociológica, psicológica, didática etc., sobre temas ligados à EF, como o esporte ou qualquer outra manifestação da cultura corporal. Entretanto, os que fazem pesquisas educacionais sobre a EF é que costumam utilizar com maior frequência o termo “EF” e não “esporte”. Como já alertou Bracht (2007), isso resulta em um “diálogo de surdos”, e o problema da falta de especificidade da EF estaria, assim, resolvido por sequer existir.

O segundo pensamento, assim como Charlot (2006) mostra sobre a Educação, trata da ideia de uma cultura comum. Nas palavras do autor:

Quando trabalhamos em um departamento de psicologia, interessamo-nos prioritariamente pelo que é publicado na área de psicologia, o que inclui outros temas além da educação. Ao passo que, quando somos psicólogos educacionais em um departamento de ciências da educação, interessamo-nos sobretudo por aquilo que se publica sobre educação, estando aí incluídas áreas diferentes da psicologia. Assim, em um departamento, em uma pós-graduação, e, além disso, nas “ciências da educação”, constrói-se pouco a pouco uma cultura comum, fortemente inter ou transdisciplinar. (CHARLOT, 2006, p. 8).

Da mesma forma, quando vinculados a um departamento de EF, interessamo-nos pelo que é publicado na área de EF, o que inclui outros temas além dos esportes. Contudo, quando graduados em EF e situados em um departamento da área de Educação, buscamos por aquilo que se publica sobre EF em uma óptica fundamentalmente pedagógica. Assim, no desenvolvimento das pesquisas, na construção dos saberes nas “ciências da EF”, também se promove e se fortalece a ideia de uma cultura comum, seja inter ou transdisciplinar. Acrescentamos, ainda, que a expressão inter ou transtemática seria também adequada para identificá-la como uma disciplina escolar.

Entretanto, o que nos parece mais específico da EF como área de saber, assim como na Educação, conforme salienta Charlot (2006), é o fato de ela ser uma área na qual estão diretamente envolvidos conhecimentos (de epistemologias distintas), práticas que vinculam valores (axiologias) e políticas (com ideologias diversas). Para o autor:

Delimita-se assim uma primeira definição da disciplina educação ou ciências da educação: é um campo de saber fundamentalmente mestiço, em que se cruzam, se interpelam e, por vezes, se fecundam, de um lado, conhecimentos, conceitos e métodos originários de campos disciplinares múltiplos, e, de outro lado, saberes, práticas, fins éticos e políticos. O que define a especificidade da disciplina é essa mestiçagem, essa circulação. (CHARLOT, 2006, p. 9).

Alguns estudos parecem corroborar claramente essa ideia. Candau (2011), por exemplo, identifica múltiplas dimensões que mediatizam o processo ensino-aprendizagem. Para a autora, isso se efetiva com base nas dimensões técnica (conteúdo), político-social (ideológico) e humanista (axiológico). Souza e Paixão (2015) completam que a

[...] dimensão técnica se refere ao processo de ensino-aprendizagem como ação intencional, sistemática, em que o educador busca considerar as condições objetivas presentes e necessárias à aprendizagem de um dado conteúdo. Já a dimensão político-social configura-se de forma inerente ao processo ensino-aprendizagem, numa dada ambiência sociocultural específica à localização da instituição de ensino e dos sujeitos, a partir de uma posição de classe definida na organização social em que vivem, impregnando toda a prática pedagógica. E por fim, a dimensão humanista consiste nas relações interpessoais. Trata-se de uma dimensão eminentemente subjetiva, individualista e afetiva do processo de ensino-aprendizagem. (SOUZA; PAIXÃO, 2015, p. 11).

Quando consideramos a Educação do ponto de vista histórico, verificamos as pedagogias que surgiram com nomes distintos em épocas diversas. Contudo, Charlot (2006) é enfático sobre um ponto comum, e concordamos com esse denominador: cada qual une diretamente os fins e as práticas. Como o autor destaca, há uma pedagogia tradicional, uma pedagogia Montessori, uma pedagogia Freinet, uma pedagogia freireana etc. Do mesmo modo, na EF, há uma “pedagogia” desenvolvimentista, há uma humanista, há uma histórico-crítica, há uma pós-crítica, etc. Cada uma é um conjunto de fins ligados a uma concepção filosófica e muitas vezes político-ideológica da sociedade e todas são traduzidas em práticas específicas. Tanto a Pedagogia, como a EF, não são fundamentalmente campos de saberes, onde se produz algo de forma clara. Antes disso, são campos de axiologia prática, e poderíamos assim dizer, campos de valores com possibilidades de colocá-los em ação, ou mesmo como já argumentou Bracht (1999, 2007), um campo de intervenção, de práticas ordenadas para um fim.

Nesse sentido, muito mais do que produzir conhecimentos, elas são objetos de experimentações, de debates, acirram convicções, criam algumas inovações. Agregue-se a ausência de instrumentos de aferição, haja vista a real impossibilidade de se avaliar a aprendizagem na EF escolar tendo por referência única as perspectivas da modernidade (VARGAS, 2017). Afirmar isso não significa depreciar as áreas, mas constatar que estão centradas nas práticas e nos fins, e no elo entre ambas, e não nos saberes (CHARLOT, 2006). Elas veiculam saberes obscuros, implícitos, axiológicos, ideológicos, todos eles ligados às práticas (e sempre interessantes para a pesquisa e produção do conhecimento).

Avançando na reflexão, nossa percepção dos aspectos político-ideológicos presentes na EF (os quais parecem ainda hoje ter uma característica mais militante do que pedagógica) também se sustenta na constante crítica ao neoliberalismo, com fortes bases no marxismo. A argumentação de Taffarel e Escobar (1994) traduziu bem essa mentalidade, que persiste na área:

[...] o fazer científico [da EF] se dá dentro de determinadas relações históricas que caracterizam a ciência enquanto: a) força produtiva - pois quando incorporada aos processos produtivos aumenta a produtividade, o rendimento, a mais-valia, assegurando a acumulação do capital e as condições que o perpetuam; b) dominação política - pois quando incorporada à sociedade industrial, à modernidade e à pós-modernidade, por uma política de racionalidade científico-tecnológica assumida pelo Estado, determina condições de vida, processos de trabalho, de acesso a bens culturais como educação, saúde, segurança; c) ideologia - pela sua subjunção aos interesses das classes dominantes, mediatizados pelo Estado e expressos em leis, planos e diretrizes governamentais e administrativas. (TAFFAREL; ESCOBAR, 1994, p. 5).

Charlot (2006) argumenta que essa ideia parece limitada para a Educação, pois parte de fundamentos exatos. Sem ignorar a base pedagógica da EF, podemos tecer a mesma reflexão. Vejamos: dentro da EF, é certo que as crianças são socialmente desiguais no que se refere à escola, e afirmamos com segurança que o neoliberalismo considera os temas da cultura corporal como mercadorias, e não como um direito dos alunos na escola. No entanto, é correto também que a relação do docente com sua instituição ou com os órgãos de regulação do seu trabalho interfere na sua prática pedagógica etc. Portanto, essa ideia ampla e essencialmente política, por exemplo, tende a ignorar as diferentes escalas dos fenômenos (CHARLOT, 2006). Ela tem a tendência de utilizar explicações amplas, que chamaríamos grandes narrativas, para dar conta de todas as ordens de fenômenos sociais e pedagógicos, inclusive os locais. Nesse sentido, pesquisas sobre o local diante do global não seriam necessárias, pois a resposta já estaria praticamente dada se aceitarmos esse pressuposto.

Assim como o autor defende no contexto da Pedagogia, existe aí um desafio que nos parece também importante para a EF escolar. É inegável que o neoliberalismo gera efeitos sobre a situação das escolas no Brasil. Todavia, será, por exemplo, que as crianças que se envolvem em conflitos em uma escola o fazem porque assistem lutas comerciais de MMA na internet ou jogadores de futebol brigando na TV? Da mesma forma, é inegável que as dificuldades que uma parcela dos estudantes brasileiros encontra para aprender não são efeitos diretos da política do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional, do Comitê Olímpico Internacional (COI), ou mesmo das megacorporações comerciais capitalistas. Nesse caso, as dificuldades estão também diretamente ligadas às ações dos professores, ainda que se possa admitir que a própria autorregulação do status quo social influencie. Como Charlot (2006) sustenta, articular as análises “macro” e “micro” é um desafio fundamental na produção do conhecimento, e tentar explicar diretamente um pelo outro é um erro metodológico, independentemente das “boas intenções” políticas que possam existir. Ora, devemos acrescentar aqui, e com leve tom de ironia, que qualquer nova metanarrativa, ao que parece, terá sempre uma característica totalizante.

O terceiro grande pensamento, acrescentamos, pode ser entendido pela ideia de identidade comum. Charlot (2006) investe nessa ideia para a Educação, da qual particularmente discordamos, pois, na possibilidade de ser assumida pelos acadêmicos, essa definição se desdobraria em consequências concretas, modos de organização fundamentalmente rígidos e objetivos muito específicos a serem alcançados para a área. Entendemos que isso seria uma espécie de “engessamento epistemológico”.

Na EF, por exemplo, acreditar nessa possibilidade significaria coadunar com o pensamento tradicional da área, vinculado unicamente à biologia, que ainda prevalece no cenário atual, principalmente se considerarmos a alocação dos Programas de Pós-Graduação em EF na área 21 da CAPES e toda produção daí decorrente. Acrescente-se a isso a franca expansão dos cursos de bacharelado desvinculados da pedagogia e do pensamento crítico e pós-crítico. O que é hegemônico tenderá a prevalecer.

Enfim, seria possível construir uma EF singular, com seus próprios conceitos e, eventualmente, métodos específicos de pesquisa? Embora difícil, reconhecemos a existência de um movimento no interior da área que acena com outras possibilidades. Reiteramos, pois, a visão de Neira (2018), ao sustentar que as vertentes pós-críticas, explicadas adiante, têm causado certo incômodo nos pesquisadores atrelados às ideias convencionais, mas também uma certa satisfação dos professores em atuação, por dialogarem mais intensamente com aquilo que efetivamente acontece nas escolas.

O cenário epistemológico...

Vivemos um tempo em que complexas realidades multiculturais se entrecruzam em uma ampla diversidade de tradições políticas, étnicas, sociais, religiosas e de gênero. Em quase todos os recantos do mundo ocidental já se visualizam múltiplas etnias alusivas às ondas migratórias das últimas décadas. Na maioria dos casos, a problemática da diversidade cultural se configura como uma “ferida aberta”. Em um contexto influenciado pela globalização, profusão de discursos e neoliberalização da economia, a potência explicativa do materialismo histórico não é mais suficiente e abriu espaço para outras propostas interpretativas, ampliando as fronteiras de conflito do século XXI para os âmbitos culturais.

Em tal perspectiva, é impossível pensar a política exclusivamente pelo viés econômico. Não é apenas a condição de classe que delimita os marcadores sociais das diferenças. Para além do lugar que o sujeito ocupa nas relações de produção, também há discursos que atuam sobre ele e mesclam referências de gênero, de religião etc. Atentos a toda movimentação, os estudiosos de epistemologias pós-críticas argumentam que os espaços de conflito se direcionam cada vez mais às fronteiras das diferenças culturais como âmbitos de negociação social e política. Nesses tempos, descobre-se que os dilemas representados anteriormente pela oposição ideológica capitalismo/comunismo há muito se extinguiram. Em seu lugar, despontam preocupações com o consumo, valorização das diferenças, preservação do meio ambiente, direitos humanos e democratização do acesso aos bens culturais.

O consumo de produtos culturais passou, então, a regular a integração ou a exclusão dos membros de uma comunidade. A globalização dos alimentos, música, esportes, formas de lazer etc. fomentam o espelhamento da construção artificial de uma “comunidade imaginária” no âmbito global e de referenciais culturais aparentemente universais. A contrapartida dessa dinâmica homogeneizadora é, paradoxalmente, o surgimento de uma tendência paralela de fragmentação que se manifesta em reivindicações diversas. Diante de um projeto monocultural hegemônico, a afirmação das diferenças se expressa em termos plurais a partir de distintas instâncias religiosas, políticas, estéticas, étnicas ou de gênero. É por isso que as políticas da diferença são a chave no processo de construção de identidades solidárias.

Assim posto, os processos culturais em vigor questionam a primazia do modelo hegemônico moderno como o sujeito único do pensamento político universal. Ao questionar a autoridade do pensamento masculino ocidental, os movimentos sociais dos direitos civis, as feministas, os ambientalistas, os sem-terra, os sem-teto, o poder negro, a comunidade gay e os movimentos de descolonização, além de outras forças sociais, destacam a complexidade das relações hierárquicas de poder que podem sustentar-se na suposta pluralidade das diferenças. Afinal, o desafio do século XXI é o pleno exercício dos direitos humanos com a garantia do princípio da igualdade a partir do reconhecimento da diversidade, ou seja, a equidade.

A institucionalização do discurso1 do direito à educação escolar e à igualdade de oportunidades de acesso à escola, ao lado de outras políticas públicas, pretende responder positivamente a esse cenário contemporâneo. Muito embora a expansão do atendimento à população seja um aspecto louvável, é importante reconhecer que a progressão geométrica do número de vagas representou, inicialmente, a reprodução do mesmo ensino para todas as pessoas (NEIRA, 2014).

A nova demanda social repercutiu sobre a população escolar, fazendo avolumar-se a contradição já existente entre a cultura historicamente privilegiada pelos currículos convencionais e as culturas dos alunos. No Brasil, a situação ganhou mais visibilidade a partir do ingresso na escola dos filhos dos grupos até então dela excluídos. Públicos antes não escolarizados, de distintas origens sociais e culturais, começam progressivamente a constituir-se como uma parcela importante do corpo discente. Parece haver uma ampliação da heterogeneidade da população escolar, a qual desencadeou um problema curricular concretizado no constante enfrentamento com “o outro”, antes marginalizado, mas agora ao lado (NEIRA, 2011).

As tentativas de construir-se uma escola democrática, com uma educação de qualidade, têm como ponto de partida a compreensão desse contexto, das coisas do mundo e do próprio currículo, transformados em objetos de estudo passíveis de múltiplas leitura e interpretação. Não raro, os trabalhos que se debruçam sobre o assunto apoiam-se na produção das teorias pós-críticas (PARAÍSO, 2004). Geradas em meio aos movimentos que questionaram os desígnios culturais, políticos e econômicos da Modernidade, as teorias pós-críticas deslocaram a maneira de conceber a pedagogia, que passou a ser vista como prática social, logo, cultural, resultante da linguagem, dos textos, dos discursos, das relações de poder2, da história e dos processos de subjetivação (NEIRA, 2011). Nas teorias pós-críticas, o poder é descentrado, espalhado por toda rede social. Consequentemente, o conhecimento não é exterior ao poder, mas, sim, parte inerente.

Contudo, ao que se deve o surgimento dessas teorias pós-críticas? As dificuldades de compreender a paisagem social que se constituiu no final do século XX evidenciaram o esgotamento das explicações existentes e anunciaram seu surgimento. Desse modo, as temáticas que afligem os sujeitos contemporâneos (diferença, desigualdade, injustiça, sustentabilidade, inclusão etc.) tornaram necessárias novas categorias de análise que permitissem descortinar as relações travadas entre poder e identidade e entre a escola, a universidade e a sociedade contemporânea.

Toda essa movimentação intelectual proclama, portanto, uma nova época histórica e diferente da anterior (SILVA, 2011). Questionam-se os princípios e os pressupostos do pensamento social e político estabelecidos e desenvolvidos a partir do Iluminismo. O sujeito moderno, cuja identidade parecia estável e bem definida, está se tornando fragmentado, composto por várias identidades (HALL, 2006). As novas epistemologias colocam sob suspeita os princípios das “grandes narrativas” da Modernidade, considerando que, em parte de suas premissas, esta última se apresentou como uma expressão de vontade de domínio e controle sobre os grupos minoritários. Igualmente, tendem ainda a rejeitar distinções entre conhecimento científico e conhecimento cotidiano (SILVA, 2011), e se as instituições educacionais são influenciadas, naturalmente os seus componentes também o são.

A inserção da Educação Física nesse cenário epistemológico

O diálogo da EF com os referenciais pós-críticos (pós-estruturalismo, pós-colonialismo, multiculturalismo crítico, estudos culturais) possibilita outras formas de constituir a experiência pedagógica, descentralizando o papel do conhecimento acadêmico e valorizando os saberes pertencentes ao senso comum, à cultura popular ou à cultura paralela à escola. Os seus pressupostos favorecem a realização de atividades de ensino que reconheçam e valorizem as múltiplas identidades presentes na sociedade, colocando em dúvida a promessa educacional moderna de libertação do homem por meio do acesso ao conhecimento científico (NEVES, 2018).

O pós-estruturalismo pode ser entendido como continuidade e, ao mesmo tempo, transformação e superação do pensamento estruturalista. O pós-estruturalismo propõe-se a explicitar a complexidade com que homens e mulheres “leem” e interpretam a realidade. O pós-estruturalismo toma a linguagem como algo não fixo e, portanto, não mais centrado na correspondência inquestionável entre um signo e seu significado. Nele, a linguagem passa a ser compreendida como movimento, em constante fluxo, sempre indefinida, adiada e imersa em relações de poder. Não existe sujeito para o pós-estruturalismo, a não ser como simples e puro resultado de um processo de produção cultural e social (FOUCAULT, 1995).

Um olhar pós-estruturalista para o ensino da EF concebe o currículo, as práticas corporais e as próprias teorias que o fundamentam como criações discursivas que influenciam o posicionamento dos sujeitos. Nesse sentido, definir o tema de estudo, organizar, desenvolver e avaliar as atividades de ensino adquirem conotação política, uma vez que a depender da brincadeira, dança, luta, ginástica ou esporte abordados, e como isso é feito, determinadas vozes serão representadas e outras silenciadas (BONETTO, 2016).

No tocante à teorização pós-colonial, a ênfase recai nas relações de poder entre as nações que influenciam a disseminação de narrativas que produzem o outro como estranho ou exótico. As formas de representar os grupos étnicos e religiosos minoritários encontram-se em toda parte, principalmente nos materiais didáticos, nos exemplos utilizados pelos professores e nas formas de representar os participantes das práticas corporais. O pós-colonialismo analisa tanto os discursos elaborados do ponto de vista do dominante, quanto os produzidos por pessoas oriundas das regiões empobrecidas.

Não deixa de ser interessante uma análise pós-colonialista das propostas convencionais de EF. É notório o privilégio das manifestações culturais de origem euro-estadunidense em detrimento de outras mais próximas dos referenciais culturais do povo brasileiro (LINS RODRIGUES, 2013). Dado que as brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas são textos da cultura que veiculam significados, é fácil concluir que nenhuma seleção é isenta, e seja qual for a manifestação escolhida, o sujeito da educação será posicionado de uma forma ou outra, interferindo na sua constituição identitária.

A análise do contexto atual também se beneficiou com a emergência do multiculturalismo. Trata-se de um movimento de reivindicação dos grupos minoritários residentes nos países do hemisfério norte para terem suas formas culturais socialmente reconhecidas e representadas (SILVA, 2011). O multiculturalismo levanta uma importante questão ao transferir para o terreno político a compreensão da diversidade. Nesse campo, não existe hierarquia entre as culturas, não existe nenhum critério transcendente pelo qual uma cultura possa ser julgada superior à outra.

Em uma perspectiva crítica do multiculturalismo, não é apenas a diferença que resulta de relações de poder, mas a própria definição daquilo que se definir como “humano”. Uma proposta pedagógica inspirada nessa concepção não se limita a ensinar a tolerância e o respeito, mas insiste na análise dos processos pelos quais as diferenças são produzidas por meio de relações assimétricas e desiguais (SILVA, 2011). Nesses termos, a diferença, mais que tolerada ou respeitada, é questionada permanentemente, e o ensino de EF, nesse sentido, além de incluir o estudo das práticas corporais pertencentes a grupos distintos, promove uma reflexão sobre como essas diferenças foram socialmente produzidas e estabelecidas.

Outra teoria pós-crítica que oferece ferramentas para compreender a atualidade são os estudos culturais. Seu eixo de pesquisa principal consiste nas relações entre a cultura contemporânea e a sociedade, consubstanciadas nas práticas sociais presentes em qualquer instituição. Do ponto de vista político, os estudos culturais objetivam a construção de um projeto de transformação social e, do teórico, pretendem compor um novo campo conceitual baseado na interdisciplinaridade e comprometido com a mudança na representação das relações de poder. Escosteguy (2010) explica que seu amparo inicial no marxismo foi importante para analisar a interface cultura e economia. Apesar da crítica ao reducionismo e ao economicismo e a contestação do modelo de base-superestrutura, a perspectiva marxista contribuiu para os Estudos Culturais ao compreender a “autonomia relativa” da cultura, o que significa que ela não é dependente das relações econômicas, nem tampouco seu reflexo, mas sofre consequências que não devem ser desprezadas.

Os estudos culturais inspiram os professores de EF a borrarem as fronteiras entre cultura popular e a acadêmica, ou, ainda, entre cultura de elite e cultura de massa, buscando abalar a concepção que a produção do conhecimento pertence ao curso natural da história e sinalizar que os saberes provindos das comunidades escolares também devem ser legitimados. Uma EF influenciada pelos estudos culturais equipara todas as práticas corporais sem qualquer separação entre o conhecimento tradicionalmente considerado como escolar e o conhecimento cotidiano (NUNES; NEIRA, 2016).

Enfim, uma proposta de ensino norteada (ou sulizada, lestizada, oestizada) pela teoria pós-crítica não promove a substituição da cultura corporal dominante pela dominada. O que se defende é que diversos conhecimentos relativos à cultura corporal subordinada sejam incluídos na agenda dos debates pedagógicos institucionais, por terem sido, ao longo dos séculos, desdenhados e tergiversados. Também se defende que a cultura corporal dominante seja analisada sob outros ângulos, isto é, tomando por base as crenças epistemológicas não dominantes (NEIRA, 2018).

Os entraves causados à Educação Física oriundos da Área 21

Como se observou na argumentação epistemológica anterior, ao apropriarmo-nos das teorias pós-críticas e seus desdobramentos, percebemos a modificação substancial do objeto de estudo da Educação Física. De fato, houve uma total desvinculação da antiga ideia de promoção da saúde, aptidão física e desenvolvimento motor no seio escolar e na formação em licenciatura. Ademais, aqueles referenciais têm direcionado inúmeras políticas educacionais.

Ao compreender a gestualidade como uma das formas que os diferentes grupos culturais utilizam para expressar os significados atribuídos às experiências vividas, não só os signos presentes nas brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas, como também os significados a eles atribuídos pelos diferentes grupos sociais, tornam-se elementos constitutivos da chamada cultura corporal (NEIRA; GRAMORELLI, 2017). Queremos dizer que se trata de um objeto de estudo que escapa de uma visão unilateral, seja tradicional ou crítica, sendo oportuno e necessário o uso de distintas epistemologias para sua análise, favorecidas pela visão pós-crítica.

Contudo, esse não parece ser o entendimento que a comissão de avaliação da área de EF na CAPES, bem como também de seus periódicos acadêmicos, tem mostrado pela questão. Ao verificarmos os documentos que a comissão da Área 21, composta nos últimos dois triênios por 19 pesquisadores das áreas de Fisioterapia, Fonoaudiologia, EF e Terapia Ocupacional, observamos a participação de apenas um representante com pesquisas vinculadas às áreas sociocultural e pedagógica da EF, fato que evidencia o desequilíbrio e, o que é mais grave, um total descaso com uma parte relevante dos conhecimentos da área, visto que os saberes pedagógicos e socioculturais são imprescindíveis aos licenciados.

Observemos nos Quadros 1 e 2 as formações acadêmicas dos coordenadores e dos consultores da Área 21. Não se trata aqui, e sob nenhuma hipótese, de questionar suas qualificações em seus âmbitos de pesquisa. Reconhecemos que todos, sem exceção, são pesquisadores de escol, bem como pressupomos as dificuldades no enfrentamento institucional desse processo. Entretanto, apresentamos nossa argumentação sobre o “desequilíbrio dessa balança”, visivelmente tendendo para o lado biológico da área. A quem interessa a manutenção dessa situação? Dentre os nove consultores listados no Quadro 1 e os dez no Quadro 2, apenas um pesquisador possui produção acadêmica voltada aos aspectos socioculturais da EF. Como uma vertente tão ampla e tão diversa pode se fazer representada por apenas um pesquisador da área? Evidenciamos, assim, um problema que traz significativas consequências para o campo.

Quadro 1 Comissão da Área 21/2013 (apenas coordenadores gerais e consultores da EF) 

Pesquisador Função Graduação Doutorado
André Luiz Felix Rodacki Coordenador EF Exercise and Sport Sciences
Maria Cecília Martinelli Coord. Adjunta Fonoaudiologia Distúrbios da Comunicação Humana
Rinaldo Roberto de J. Guirro Coord. Adjunto Fisioterapia Biologia Patologia Buco Dental
Carlos Ugrinowitsch Consultor EF Exercise Science
Fernando Diefenthaeler Consultor EF Ciências do Movimento Humano
Jorge Roberto Perrout de Lima Consultor EF EF
Lilian Teresa Bucken Gobbi Consultor EF Kinesiology
Otávio G. Tavares da Silva3 Consultor EF EF
Pedro Hallal Consultor EF Epidemiologia
Ricardo Jaco de Oliveira Consultor EF Neurologia
Wagner Luiz do Prado Consultor EF Nutrição

Fonte: Documento de avaliação da CAPES (2013) e Currículo Lattes (CNPq) dos pesquisadores. Todas as informações estão em domínio público. Elaborado pelos autores.

Quadro 2 Comissão da Área 21/2017 (apenas coordenadores gerais e consultores da EF) 

Pesquisador Função Graduação Doutorado
André Luiz Felix Rodacki Coordenador EF Exercise and Sport Sciences
Márcia Keske-Soares Coord. Adjunto Fonoaudiologia Linguística e Letras
Rinaldo Roberto de J. Guirro Coord. Adjunto Fisioterapia Biologia Patologia Buco Dental
Herbert Ugrinowitsch Consultor EF EF
Cláudia Lúcia de Moraes Forjaz Consultor EF EF
Jorge Roberto Perrout de Lima Consultor EF EF
Luiz Guilherme A. Guglielmo Consultor EF Ciências da Motricidade Humana
Otávio G. Tavares da Silva4 Consultor EF EF
Mauro V. Gomes de Barros Consultor EF Ciências do Movimento Humano
Sergio Teixeira da Fonseca Consultor EF Applied Kinesiology
Wagner Luiz do Prado Consultor EF Nutrição
José Cazuza de Farias Júnior Consultor EF Atividade Física relacionada à Saúde

Fonte: Documento de avaliação da CAPES (2017) e Currículo Lattes (CNPq) dos pesquisadores. Todas as informações estão em domínio público. Elaborado pelos autores.

Assim posto, passamos à análise dos documentos da Área 21 e transcrevemos partes dos relatórios de avaliação das comissões do triênio e quadriênio anteriores. Cumpre enfatizarmos que a concepção sobre EF é a mesma nos dois documentos, sem qualquer alteração textual no intervalo dos anos avaliativos entre 2013 e 2017.5-6 O fragmento a seguir é um exemplo central, pois aborda a visão conceitual sobre EF:

A Educação Física possui importante contribuição para o desenvolvimento das capacidades físicas de crianças e adolescentes em idade escolar para que as mesmas possam apresentar um bom controle e desenvolvimento de suas potencialidades físicas, motoras, psíquicas e cognitivas. Um bom desenvolvimento motor potencializa uma relação importante com indicadores de saúde como hábitos de vida que possibilitem ações para uma vida saudável, as quais podem auxiliar no combate de várias doenças, como obesidade e o aumento de doenças coronarianas - que podem ser evitadas pelo exercício físico. A Educação Física não possui apenas caráter higienista, mas também é importante meio de prática educativa por meio de valores agregados a prática esportiva. Muitos profissionais advogam em favor da educação pelo movimento frente as potencialidades da área para um desenvolvimento das dimensões físicas, intelectuais, psíquicas e sociais do ser humano. O desenvolvimento do gosto pela prática de atividades físicas é fundamental para a construção de adultos saudáveis e providos com importantes valores associados ao movimento em suas diferentes formas de manifestação. (CAPES, 2013, p. 5).

Esse recorte, idêntico nos dois relatórios, revela o desconhecimento sobre o campo pedagógico e de toda produção intelectual dos inúmeros professores e pesquisadores que buscaram avanços e legitimidade para a área desde o seu Movimento Renovador. Acentuamos que muitos documentos curriculares, hoje institucionalizados na forma de políticas públicas educacionais, já superaram há bastante tempo a visão defendida pela comissão, a se destacar nos termos “desenvolvimentistas” e, principalmente, “higienistas”. O fato incita-nos a denunciar as inúmeras lacunas, nesse caso “abismos”, que surgem da falta de diálogo entre a instância superior de avaliação da Pós-Graduação e as inúmeras universidades e escolas espalhadas pelo país. Nas análises de Lazzarotti Filho et al. (2018), encontramos as mesmas reflexões:

Essa concepção parece indicar elementos de uma visão instrumental e utilitarista de EF, com vistas ao desenvolvimento de uma noção restrita de saúde, assume-se explicitamente higienista, como também assume um papel de educação moral. Tal concepção, inclusive, há muito vem sendo criticada pelas pesquisas e produções [dos pesquisadores] provenientes da subárea pedagógica dos próprios PPGs em EF, os quais, porém, pouco ou nunca têm sido convidados a participar das comissões de área [...]. (LAZZAROTTI FILHO et al., 2018, p. 239).

Avançando, apresentamos três consequências negativas do processo. A primeira, mais imediata, trata-se dos periódicos acadêmicos. É possível observar, por exemplo, na Plataforma Sucupira, que inúmeros periódicos bem qualificados nas diferentes subáreas da Medicina recebem a mesma qualificação em EF. De forma oposta, um periódico bem qualificado nas áreas de Educação, Filosofia ou Sociologia, geralmente não é tão bem qualificado em EF. Imaginemos então a hipótese de um pesquisador em Filosofia do Esporte que publique um trabalho em uma revista muito bem qualificada em Filosofia, mas que não possua boa qualificação em EF (ou que sequer tenha essa qualificação). Pareceria justo com o docente se seu Programa de Pós-Graduação for em EF? Por que assumimos tal diferenciação epistemológica tão acirrada?

Observemos o Quadro 3 que evidencia a diminuição da qualificação em EF dos periódicos mais tradicionais (de amplas temáticas) e de qualificação máxima (A1) em Educação. Ao mudar o período avaliativo, todas as revistas de escopo educacional citadas7 tiveram diminuídas sua qualificação em EF. Por outro lado, observamos que apenas quatro das poucas revistas que contemplam estudos socioculturais e pedagógicos da EF melhoraram sua qualificação em Educação.

Quadro 3 Principais periódicos da EF e da Educação e suas avaliações nos últimos anos 

Periódico Escopo Estrato de avaliação (Qualis)
Triênio 2010-2012 Quadriênio 2013-2016
EF Educação EF Educação
Motriz (UNESP) EF A2 B1 B1 B1
Movimento (UFGRS) EF A2 A2 A2 A2
RBCE (UFSC) EF B1 B2 B1 A2
REBEFE (USP) EF B1 B2 B1 B1
Revista da Educação Física (UEM) EF B1 B3 B1 B1
RBCM (UNB) EF B2 B3 B2 B3
Motrivivência (UFSC) EF B4 B4 B2 B5
Pensar a prática (UFG) EF B2 B3 B2 B2
RBE (ANPED) Educação B1 A1 B2 A1
Cadernos de Pesquisa (FCC) Educação B1 A1 B2 A1
Educação & Sociedade (UNICAMP) Educação B1 A1 B2 A1
Educação & Realidade (UFRGS) Educação B1 A1 B2 A1
Educação em Revista (UFMG) Educação B1 A1 B2 A1
Educação e Pesquisa (USP) Educação B1 A1 B2 A1

Fonte: Plataforma Sucupira no site da Capes. Elaborado pelos autores.

Questionamos essa rigidez das avaliações da comissão de EF: As revistas da área de Educação do estrato mais elevado não são suficientemente qualificadas para acolher trabalhos da EF? Se um periódico responde aos critérios da área de Educação para se classificar no estrato A1, o que o torna B2 em EF? Por que os periódicos do estrato A1 em Medicina também são A1 em EF, o que justifica essa diferença de tratamento? Na Tabela 1, a seguir, consideramos o universo das revistas acadêmicas avaliadas.

Tabela 1 Quantitativo de periódicos por área/estrato em dezembro/2018 

Área do Qualis/Estrato A1 A2 B1 B2 Total
EF 239 275 377 381 1272
Educação 121 380 542 425 1468
Interdisciplinar 938 1189 1956 1798 5881

Fonte: Plataforma Sucupira no site da Capes. Elaborada pelos autores.

Cumpre enfatizarmos que existem 1.272 revistas acadêmicas qualificadas em EF pela CAPES entre os estratos A1-B2, das quais, no Brasil, apenas as oito citadas no Quadro 3 aceitam trabalhos socioculturais e pedagógicos8. Em números percentuais, isso significa menos do que 1% do total. É óbvio o entrave que os pesquisadores da área sociocultural e pedagógica da EF enfrentam para conseguir divulgar suas pesquisas em revistas relevantes e que tenham impacto direto sobre a área. Convém ainda chamar atenção para o detalhe de que isso pode explicar a constante morosidade dos processos de avaliação, fato que tem feito os especialistas em EF aguardar muito tempo, por vezes anos, para terem seus trabalhos em domínio público9. É comum ainda observarmos as revistas interrompendo o processo de submissão devido à quantidade de trabalhos na fila avaliativa. Por outro lado, as cobranças institucionais dos Programas de Pós-Graduação em EF para produção desses pesquisadores são as mesmas de todos os demais, independentemente da subárea ou da quantidade de periódicos que se interessam por suas temáticas.

Todavia, a principal questão que emerge envolve as razões filosóficas pelas quais isso acontece: Como interpretar os dados sem questionar o modo epistêmico de agir da CAPES? Será a racionalidade científica moderna ainda a única norteadora dessa lógica? Que discursos, hierarquias e poderes envolvem as decisões e avaliações?

Diante do exposto, sustentamos que os dois últimos documentos de área respondem por si só10. Ao argumentarmos sobre a importância da “coerência”, verificamos exatamente o contrário. Como é possível abordar interdisciplinaridade como um conceito plural, que envolve distintas epistemologias, e ao mesmo tempo exigir “alinhamento” e “estreito vínculo” das produções dos pesquisadores?

A área 21 reafirma o compromisso com a interdisciplinaridade e destaca a importância de pesquisadores de áreas afins em participar de novas propostas e dos programas em funcionamento. Todavia, a área ressalta que os objetos de estudo de tais pesquisadores devem possuir estreito vínculo com a identidade dos programas onde se inserem. Logo, artigos que não se alinhem e ameacem a coerência interna das propostas não serão considerados, visto que um programa de pós-graduação não consiste em um conjunto de pesquisadores reunidos, sem um eixo norteador estruturado e bem delineado que permita identificar sua aderência ao foco da proposta. Produções em periódicos fora do escopo da Área 21 e das Áreas de Concentração dos Programas que a compõem não desqualificam tais pesquisadores, mas dificultam o entendimento de uma estrutura acadêmica coerentemente organizada e alinhada (coerência interna). (CAPES, 2013, p. 14, grifos nossos).

Lazzarotti Filho et al. (2018) argumentam que não existe clareza na exposição sobre a importância da interdisciplinaridade que o documento de 2013 procura enfatizar. Reiteramos, como os autores, que o problema permanece no relatório de 2017 e que a CAPES continua não ter por hábito convidar pesquisadores da área sociocultural e pedagógica da EF para participação das avaliações, fato que naturalmente compromete o processo. Elementar: interdisciplinaridade conduzida por pesquisadores que transitam apenas em epistemologias biodinâmicas? Continuam os autores da pesquisa:

[...] o texto em si não é esclarecedor em relação à maneira com que garantirá a interdisciplinaridade. Pelo contrário, a preocupação expressa na sequência é com os objetos específicos do campo, os quais estão voltados para demarcar o interior das fronteiras do conhecimento que alimentam e se articulam com a EF, em vez de buscar apontar estratégias para o desenvolvimento da área numa perspectiva interdisciplinar (LAZZAROTTI FILHO et al., 2018, p. 239).

Assim, uma segunda consequência de tal situação consiste no fato de que os pesquisadores da área voltados aos aspectos socioculturais, e ainda pressionados pelo controle institucional no que tange à produção intelectual, tendem a publicar em revistas especializadas em outros campos, em especial (e obviamente), na própria área de Educação. Com pouco espaço editorial, os pesquisadores “pedagógicos” acabam também por se afastar das Pós-Graduações em EF e se credenciam em outros programas das humanidades, fato que impede os cursos de EF em alcançar os altos patamares de avaliação e reconhecimento em eixos que se preocupem com a licenciatura e as escolas. Como tem sido comum, são os Programas de Pós-Graduação em Educação que absorvem essa demanda sob o risco de vermos paralisada uma parte importante da produção de conhecimentos e a totalidade da formação de novos pesquisadores da subárea pedagógica da EF. Vejamos, nos Gráficos 1, 2 e 3, o caso da Universidade de São Paulo (USP) que possui o Programa de Pós-Graduação em EF mais longevo no Brasil:

Fonte: Portal de Busca Integrada da Universidade de São Paulo (PBI-USP).

Gráfico 1 Quantidade anual de dissertações e teses das subáreas sociocultural e pedagógica defendidas no Programa de Pós-Graduação em Educação Física e Esporte11  

Fonte: Portal de Busca Integrada da Universidade de São Paulo (PBI-USP).

Gráfico 2 Quantidade anual de dissertações e teses das subáreas sociocultural e pedagógica defendidas no Programa de Pós-Graduação em Educação 

Fonte: Portal de Busca Integrada da Universidade de São Paulo (PBI-USP).

Gráfico 3 Quantidades anuais de dissertações e teses das subáreas sociocultural e pedagógica defendidas no Programa de Pós-Graduação em Educação Física e Educação 

Conforme os dados extraídos do PBI-USP em 15 de dezembro de 2018, a plataforma que discrimina a totalidade do acervo bibliográfico da universidade, constatou-se que, entre 1983 e 2018, foram defendidas 47 dissertações e/ou teses das subáreas sociocultural e pedagógica no PPG em EF e 58 no PPG em Educação. Entretanto, o dado que confirma o deslocamento epistemológico da EF para a Educação é o flagrante paralelismo entre a diminuição da produção do PPG em EF e o aumento no PPG em Educação. Nos últimos 10 anos, foram defendidas 16 dissertações e/ou teses no primeiro e 33 no segundo. Esse período coincide com o recrudescimento da política avaliativa da CAPES. Logo, podemos relacionar o decréscimo identificado na produção pedagógica e sociocultural do PPGEFE-USP como efeito colateral do seu alinhamento aos critérios da área 21.

Outro dado que não pode ser desconsiderado é a dificuldade de criação de novos cursos de Pós-Graduação Stricto Sensu em EF que possuam linhas de pesquisa direcionadas às práticas pedagógicas e aos seus aspectos socioculturais, o que impede um diálogo profícuo e direto entre os alunos em formação na pesquisa com docentes especialistas nos temas em questão, e naturalmente, a licenciatura e a escola se enfraquecem. Logo, observa-se nos PPGs de EF o constante fortalecer de uma identidade epistemológica tradicional, ainda atrelada aos grilhões das concepções biológicas e “racionalistas” de ciência. Enquanto isso, Rocha et al. (2015) sinalizam que nas subáreas sociocultural e pedagógica começa a despontar uma significativa produção científica inspirada na teorização pós-crítica.

No mesmo sentido dessas reflexões, destacamos recente e importante encontro de pesquisadores de EF ocorrido na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que foi denominado por 8º Fórum de Pós-Graduação do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte e o 5º Fórum de Pesquisadores das Subáreas Sociocultural e Pedagógica da Educação Física. O evento debateu e problematizou as diretrizes avaliativas da CAPES e os critérios da área 21, resultando na “Carta de Porto Alegre”, da qual extraímos o seguinte recorte:

Nos preocupava e preocupa a lógica de avaliação que imperava e ainda impera no SNPG cujo resultado foi a asfixia lenta e gradual das subáreas sociocultural e pedagógica nos Programas de Pós-Graduação numa forma de autossabotagem visto que reduzir a Educação Física à uma subárea seria um mecanismo de suicídio acadêmico por eliminar pilares de sustentação do próprio campo. Essa asfixia se deu pela valorização de determinadas abordagens teórico-metodológicas e de enfoques político-epistemológicos sobre outros, com implicações sobre o financiamento, o que acaba por cristalizar as diferenças e a desintegração da Educação Física na área 21, incidindo na sua capacidade de tratar de problemas complexos, na produção de conhecimentos. (CBCE, 2018, p. 3).

Finalmente, um terceiro problema oriundo desse contexto refere-se ao que Ghiraldelli Júnior (2006) oportunamente alertou em relação às estratégias de poder:

No Brasil, os órgãos de avaliação são também, em certos casos, órgãos de fomento à pesquisa. Isso complica tudo, pois a avaliação não aparece como uma mensuração - como no ranking americano ou europeu -, mas como uma instância de distribuição de recursos, como uma instância com poderes econômicos em que se premia ou se pune após a mensuração. É difícil acreditar que essa mensuração possa sair correta em meio a tal situação. Precisaríamos rapidamente acabar com isso. Temos de entender o que é avaliação como mensuração e avaliação como intimidação. E temos que entender que a distribuição dos recursos precisa partir da generosidade de uma tentativa de Welfare State, e não da tentativa de dividir um pequeno bolo para famintos. (GHIRALDELLI JÚNIOR, 2006, p. 307).

Parece aqui configurar-se uma lógica já familiar em nossa história recente. As pesquisas educacionais, ao longo dos últimos anos, têm denunciado as exigências do mercado no tocante às constantes adequações das instituições educacionais. Um exemplo clássico é a questão dos currículos que se submetem às demandas mercadológicas, fomentando o status quo. Argumentamos pelo avesso, ou seja, as instituições educacionais é que deveriam reforçar uma construção crítica de intervenção, mudança e transformação constante do cenário social por meio dos seus atores. Logo, ao invés de direcionar procedimentos ou mesmo intimidar pesquisadores, a CAPES deveria apenas avaliar se os Programas de Pós-Graduação cumprem as diretrizes estabelecidas pelas universidades e pelo Ministério da Educação.

Considerações finais

Devemos destacar a importância dessa discussão para a EF. Esse processo, agregue-se, não se refere especificamente ao desenvolvimento da saúde dos indivíduos e nem interessa aos pesquisadores de EF vinculados à biodinâmica. Contudo, ele pode contribuir para a sociedade como um todo como um processo amplo que contempla humanização, subjetivação e socialização, assim como ocorre na Pedagogia (CHARLOT, 2006), tendo em vista que os conceitos atuais de saúde não se resumem à ausência de doenças, mas consideram também as epistemologias das humanidades (LAURO; LEITE; VARGAS, 2014).

Diante de toda a argumentação, situar a EF no campo específico das Ciências da Saúde (Área 21) configura-se em um claro equívoco institucional que prejudica seu avanço e toda produção dos pesquisadores aplicados às investigações dos aspectos socioculturais e pedagógicos. Já é inclusive sabido que a EF, como componente curricular da Educação Básica, situa-se na área das Linguagens, como se observa por exemplo na Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Questionamos, pois, se um dos caminhos plausíveis e mais imediatos para mitigar esse entrave não seria o de alocação da EF na área Interdisciplinar ou que, pelo menos, toda a produção dos pesquisadores vinculada aos periódicos qualificados nas demais áreas sociais e humanas passassem a ter a mesma valoração que os alocados no campo das Ciências da Saúde.

Em síntese, o extrato “Qualis” de uma revista em Educação, Filosofia, História, Psicologia, Sociologia ou Antropologia deveria ser aceito nos PPGs de EF que tenham linhas de pesquisa culturais e pedagógicas. Como foi apresentado no texto, e agregando aqui a vasta produção intelectual da área nos últimos 30 anos, é consenso entre os pesquisadores que a EF seja um campo de intervenção no qual operam múltiplos saberes. Acrescentamos que, se uma equipe de avaliação não for composta também por pesquisadores do campo pedagógico e sociocultural, a EF jamais sairá dessa posição fragilizada, com sérias consequências para a produção de conhecimentos e para a formação de novos pesquisadores.

Uma última reflexão sociofilosófica remete-nos às ideias dos trabalhadores fabris do início do século XX. Nesse sentido, afirmamos que a universidade do amanhã não pode se tornar a fábrica de outrora. Recordamos, assim, toda a contribuição das epistemologias de base marxista e seus desdobramentos nos conceitos de capital cultural lidos nos melhores trabalhos de Pierre Bourdieu. Se, na qualidade de classe, buscamos a superação dessa lógica neocapitalista que se debruça sobre os docentes travestidas nessas novas roupagens de “produção intelectual”, parece-nos necessária a evocação da autonomia das universidades para o enfrentamento do problema (TOURINHO; PALHA, 2014). A CAPES é instância de avaliação e não de direcionamento dos “comportamentos” da Pós-Graduação brasileira.

Por fim, colocando de uma maneira mais ampla, o exame da teia de relações que envolve todo esse processo não pode se divorciar da experiência de produção cultural realizada sempre por “sujeitos” nas suas idiossincrasias. Caso possam entendê-las dessa forma, os atores envolvidos, sejam pesquisadores, professores ou estudantes, terão dado um passo decisivo para compreender as imbricadas relações de poder (e status) acadêmico que ainda existem em nossa área e na sociedade científica em geral.

1Seguindo o raciocínio de Costa (2000), empregamos os conceitos de discurso, de linguagem e de narrativa com sentido similar, significando instâncias instituidoras de representações e significados que vigoram e têm efeitos de verdade.

2Com base em Foucault (1995), o poder deve ser entendido como uma multiplicidade de relações de forças imanentes, que formam cadeias ou sistemas transitórios e instáveis.

3O único pesquisador da comissão com experiência e produção intelectual sobre aspectos socioculturais da EF.

4O único pesquisador da comissão com experiência e produção intelectual sobre aspectos socioculturais da EF.

6Extraído de: <http://avaliacaoquadrienal.capes.gov.br/documentos-de-area>. Acesso em: 15 jan. 2019.

7Escolhidas por serem reconhecidamente as de mais tradição e impacto no cenário da Educação brasileira.

8Observe-se que não temos nenhum periódico nacional de escopo sociocultural e pedagógico situado no estrato A1 em EF.

9Agregue-se o comprometimento de determinadas análises, interpretações de dados e seus resultados, considerando a fluidez e as rápidas transformações do mundo contemporâneo.

10Os dois documentos, tanto do triênio (2013), como do quadriênio (2017), também apresentam a citação destacada de forma idêntica, ou seja, concluímos que não houve qualquer avanço reflexivo a respeito da ideia interdisciplinar.

11Desde 2013, o Programa de Pós-Graduação em Educação Física e Esporte (PPGEFE) oferece os cursos de Mestrado e Doutorado em Ciências, nas áreas de concentração Estudos Biodinâmicos da Educação Física e Esporte e Estudos Socioculturais e Comportamentais da Educação Física e Esporte (FORJAZ; CORRÊA; TRICOLI, 2017).

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Recebido: 30 de Janeiro de 2019; Revisado: 17 de Junho de 2019; Aceito: 20 de Junho de 2019; Publicado: 27 de Junho de 2019

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