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Práxis Educativa

versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.14 no.3 Ponta Grossa set./dic 2019  Epub 16-Oct-2019

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.14n3.012 

Dossiê: Jovens e ativismo em (des)construção: socializações e (in)ações políticas

Horizontes juvenis da luta por transporte: o Movimento Tarifa Zero em Belo Horizonte

Youth Horizons of struggle for transport: the Zero Fee Movement in Belo Horizonte

Horizontes juveniles de la lucha por el transporte: el Movimiento Tarifa Cero en Belo Horizonte

Igor Thiago Oliveira Moreira* 
http://orcid.org/0000-0002-8889-8390

Geraldo Leão** 
http://orcid.org/0000-0002-9894-5488

*Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: <igor1871prof@gmail.com>. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8889-8390

**Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: <gleao2001@gmail.com>. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9894-5488


Resumo:

Este artigo tem como objetivo apresentar os resultados de uma pesquisa sobre o contexto de surgimento do Movimento Tarifa Zero na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, e os sentidos conferidos pelos jovens participantes à ação política protagonizada por eles. O artigo situa o período de mobilizações na cidade que antecederam o movimento, sua configuração e suas principais características, bem como os limites e os alcances de sua ação política. A pesquisa baseou-se na copesquisa militante, perspectiva teórico-metodológica que parte da premissa de uma investigação engajada, de modo a questionar a existência de neutralidade na produção do conhecimento e a rígida separação entre pesquisador e pesquisados. Os dados foram colhidos por meio da observação participante, de entrevistas, análise de documentos e acompanhamento do movimento nas suas redes sociais. Os resultados da pesquisa indicaram uma configuração decrescente das expectativas a partir dos desafios e dos constrangimentos à ação enfrentados pelos jovens ativistas.

Palavras-chave: Juventude; Participação política; Movimentos sociais

Abstract:

This paper aims to present the results of a research on the context of the emergence of the Zero Fee Movement in the city of Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil, and the meanings conferred by young participants to the political action carried out by them. The paper identifies the period of mobilizations in the city that preceded the movement, its configuration and main characteristics, as well as the limits and scope of its political action. The research was based on the militant co-research, theoretical-methodological perspective that starts from the premise of an engaged research, in order to question the existence of neutrality in the production of knowledge and the rigid separation between researchers and researched. Data were collected through participant observation, interviews, document analysis and monitoring of the movement in their social networks. The results of the research indicated a decreasing configuration of expectations from the challenges and constraints to action faced by young activists.

Keywords: Youth; Political participation; Social movements

Resumen:

Este artículo tiene como objetivo presentar los resultados de una investigación orientada al contexto de surgimiento del Movimiento Tarifa Cero en la ciudad de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, y los sentidos conferidos por los jóvenes participantes a la acción política protagonizada por ellos. El artículo sitúa el período de movilizaciones en la ciudad que precedieron al movimiento, su configuración y principales características, así como los límites y los alcances de su acción política. La investigación se basó en la copesquisa militante, perspectiva teórico-metodológica que parte de la premisa de una investigación comprometida, de modo a cuestionar la existencia de neutralidad en la producción del conocimiento y la rígida separación entre investigador e investigados. Los datos fueron recolectados por medio de la observación participante, de entrevistas, análisis de documentos y seguimiento del movimiento en sus redes sociales. Los resultados de la investigación indicaron una configuración decreciente de las expectativas a partir de los desafíos y de las limitaciones a la acción enfrentados por los jóvenes activistas.

Palabras claves: Juventud; Participación política; Movimientos sociales

Introdução

Um panorama das ações coletivas protagonizadas por jovens nas duas primeiras décadas do século XXI, seja no âmbito global ou local, revelam uma diversidade de atores e uma pluralidade de pautas, formas de organização e espaços de atuação que nos desafia a compreensão. Produzidas como respostas às mutações e às incertezas das sociedades contemporâneas, as mobilizações juvenis atuais podem fornecer-nos algumas chaves de análise que permitam compreender as contradições e os conflitos que emergem desses contextos do capitalismo globalizado. Os movimentos sociais e as ações coletivas juvenis podem ser vistos como grandes faróis que nos indicam possíveis direções do curso das transformações sociais contemporâneas.

Nesse sentido, este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa sobre o Movimento Tarifa Zero (TZ) de Belo Horizonte, surgido em meio aos grandes protestos do ano de 2013, que colocou na agenda pública da cidade a luta pelo direito social ao transporte (MOREIRA, 2017). O objetivo deste trabalho é apresentar o contexto de surgimento do movimento Tarifa Zero na cidade de Belo Horizonte e os sentidos da ação política protagonizada pelos jovens participantes do movimento. O artigo situa o período de mobilizações na cidade que antecederam ao movimento, sua configuração e suas principais características, bem como os limites e os alcances de sua ação política. O estudo buscou conhecer os sujeitos que participavam dessa ação, as suas expectativas políticas. Como pano de fundo, buscava-se compreender a relação entre a ação empreendida e as transformações políticas e sociais pelas quais passou a sociedade brasileira nas últimas décadas. Quais eram os significados da luta pelo direito social ao transporte? O que essa experiência de luta nos informa sobre os obstáculos e os desafios da democracia no Brasil? Quais horizontes de futuro podem ser percebidos a partir da ação do movimento?

Este artigo está organizado da seguinte forma: inicialmente, é apresentado o contexto das mobilizações juvenis em Belo Horizonte que antecederam a emergência do Movimento TZ, com destaque para o caráter dissidente de lutas antagônicas relacionadas ao direito à cidade, especialmente com as manifestações de Junho de 2013; em seguida, o artigo aborda a trajetória do Movimento TZ em Belo Horizonte, sua configuração e suas principais características. Por fim, o texto traz os resultados da pesquisa, destacando os alcances e os limites da experiência investigada.

Aspectos metodológicos

A pesquisa foi desenvolvida tendo como escolha metodológica a copesquisa militante (CAVA, 2013; ROGGERO, 2013). Tal perspectiva teórico-metodológica parte da premissa de uma investigação engajada, de modo a questionar a existência de neutralidade na produção do conhecimento e a rígida separação entre pesquisador (saber que interpreta) e pesquisados (sujeitos da ação). Ao propor a inversão epistemológica que separa o ato de investigar do objeto investigado, a copesquisa aponta para a dissolução das relações rígidas entre o observador e o observado. Não se trata, então, de recolocar uma relação hierárquica em outros termos, como substituir o domínio da ciência sobre objeto pela submissão da ciência ao saber que emana do objeto.

O postulado da pesquisa engajada avança na direção de propor um amálgama complexo que iguale as posições entre pesquisador e pesquisado, permitindo a construção conjunta do conhecimento e ampliando suas possibilidades interpretativas. Desse modo, a copesquisa parte da cooperação social como condição para a produção do conhecimento de determinada luta ou movimento, enquanto garante espaço para as intenções singulares dos sujeitos, especialmente as intenções investigativas e interpretativas que, ao fim, retornem para enriquecer a construção coletiva das lutas e dos movimentos. Tal perspectiva teórico-metodológica ensejou uma aproximação entre pesquisador e os sujeitos da investigação, que permitiu compreender e perceber os dilemas, os obstáculos, os riscos e as potências da ação política dos jovens participantes do movimento.

De junho de 2013 a maio de 2014, foram acompanhadas reuniões, assembleias, ocupações, pequenas e grandes manifestações, articulações, aulas públicas, coleta de assinaturas, debates e atividades na universidade em Belo Horizonte. Essas atividades estavam ligadas a ativistas que se mobilizaram em torno da problemática urbana e do poder municipal, que se ampliou após os protestos de junho de 2013, constituindo uma rede de movimentos e de coletivos contestatórios (SHERER-WARREN, 2006). Esse foi um período importante de aproximação e de apropriação teórica e prática sobre essa rede que se estruturava. Posteriormente, a partir da consolidação do Movimento TZ como uma ação coletiva na cidade, os pesquisadores passaram a acompanhar e a participar intensamente de suas atividades de agosto de 2014 a fevereiro de 2016.

Além da imersão no campo de pesquisa, foram realizadas onze entrevistas com integrantes do movimento com o objetivo de sistematizar impressões sobre alguns aspectos da trajetória dos participantes. Essas entrevistas abordaram as percepções e os sentidos sobre o engajamento no Movimento TZ, os aprendizados advindos da participação, as expectativas que emergem da atividade ativista, dentre outras questões. Para a realização das entrevistas, foram selecionadas pessoas que compunham o “núcleo orgânico” do movimento, ou seja, aqueles que participavam da maioria das reuniões, das ações e das formulações coletivas. Esse núcleo orgânico também sofria com algumas variações em sua composição e na qualidade e na intensidade da participação, mas era possível perceber alguns que acompanharam os principais momentos do Movimento TZ. Além disso, procurou-se considerar a paridade de gênero e a variação etária.

Outra fonte importante de pesquisa foram as redes sociais e as mídias onde o Movimento TZ estava inserido. A lista de e-mails, página de Facebook, os grupos no aplicativo de celular WhatsApp, os vídeos postados nos canais de hospedagem de vídeos, especialmente o YouTube, os sites de fotos e as imagens, os diversos blogs e sites variados onde figurava o movimento, dentre outros, expressaram a sua existência virtual, bem como podem ser entendidos como o repositório memorial da movimentação. Essas ferramentas foram fundamentais para a existência e o desenvolvimento do Movimento TZ e serviram para mobilização, organização, troca de informações, formação de opinião, debates, relatos, produção e divulgação de conteúdos relacionados à própria movimentação e à cidade (textos, fotos, flyers e vídeos). Do ponto de vista metodológico, o mergulho nas redes e nas plataformas onde o Movimento TZ estava inserido foi fundamental como fonte de informações e de percepções sobre o movimento, produzindo um material empírico significativo da pesquisa.

Breves apontamentos sobre a produção que trata do engajamento dos jovens brasileiros

Podemos situar, na década de 1960, os primeiros estudos sobre a participação política dos jovens brasileiros, com as produções de Otávio Ianni, O jovem radical, de 1968, e de Marialice Foracchi, em dois de seus principais estudos: o estudante e a transformação da sociedade brasileira, de 1965, e A juventude na sociedade moderna, de 1972. Mais especificamente, essa última autora dedicou-se à análise da categoria juventude, das relações geracionais e dos movimentos juvenil a partir do contexto das transformações sociais e das mobilizações estudantis dos anos de 1960 no Brasil. Esses estudos pioneiros, no entanto, não tiveram continuidade nos anos seguintes, talvez pela morte prematura da pesquisadora. A despeito da intensa movimentação social e política no período de redemocratização brasileira, o tema “jovens e participação política” não foi objeto de interesse acadêmico até 1985, quando aparecem trabalhos sobre a participação política de secundaristas e universitários durante o período da ditadura civil-militar (CARRANO, 2002).

A dificuldade para encontrar estudos sobre o engajamento juvenil em movimentos e lutas sociais no período da transição democrática pode ser explicada pela ausência de um campo de estudos consolidado sobre os jovens brasileiros (SPOSITO, 2002). Certamente, eles estavam presentes nas lutas sociais do período, mas as suas especificidades diluíam-se frente a outros atores - moradores de periferia, mulheres, negros e trabalhadores.

Somente a partir da segunda metade dos anos de 1980 e da virada para a década de 1990, apareceram os estudos que relacionam participação juvenil e culturas urbanas. Esses trabalhos mostram um alargamento da experiência dos jovens em ações coletivas, com destaque para a relação entre a esfera cultural e as novas formas de ocupação política das cidades. O acento da análise estava no reconhecimento da esfera cultural como elemento importante para os processos de sociabilidade juvenis, para a aglutinação de interesses comuns e de práticas coletivas (ABRAMO, 1994; CAIAFA, 1989; SPOSITO, 1993; VIANNA, 1988). Eram os jovens aparecendo na cena pública para além dos lugares comuns do movimento estudantil, da escola e da universidade e que, consequentemente, passavam a ser percebidos como algo que ultrapassava a figura do jovem estudante.

Esses estudos abordavam uma parcela das juventudes que trazia para o espaço público das cidades brasileiras seus corpos e suas roupas marcados por novos estilos de vida, novas linguagens, novos comportamentos e vozes dissonantes, como, por exemplo, os grupos de jovens punks (ABRAMO, 1994). Podemos dizer que a presença dos coletivos juvenis na cena urbana dos anos de 1980, em geral jovens das camadas populares, permitia compreender a tensão entre as esperanças políticas vividas naquele contexto e os efeitos da dura crise econômica na vida cotidiana.

Na década de 1990, a participação das juventudes brasileiras é atravessada pelo discurso do protagonismo juvenil, que passa a delinear a prática e a formulação de políticas públicas para a juventude e projetos sociais desenvolvidos pelo terceiro setor (SOUZA, 2006). Ao lado disso, no contexto das políticas de ajustes neoliberais implantadas nesse período, o comportamento político dos jovens, nos anos de 1990, é marcado pelo que Sousa (1999) nomeia de “pensamento desiludido”. Por meio de depoimentos de jovens nos diversos espaços de participação pesquisados, a autora percebe elementos que se sobrepõem: de um lado, a disposição para o engajamento conectada a uma ideia de utilidade (ser útil, fazer alguma coisa), o caráter educativo (conscientização das pessoas) e o imediatismo (fazer o que é possível); de outro, os obstáculos percebidos e sentidos como a apatia e a despolitização geral da sociedade (falta de cidadania do brasileiro). Esta foi uma abordagem que dominou alguns estudos sobre a relação entre jovens e participação no contexto escolar.(LEÃO; SANTOS, 2018).

O contexto: mobilizações contestatórias e ações em Belo Horizonte

Podemos dizer que as análises sobre o engajamento juvenil, no Brasil, oscilaram da visibilidade das lutas estudantis dos anos de 1960 à ação de coletivos juvenis nas grandes cidades dos anos de 1980 e 1990, muitas vezes invisíveis para o poder público e vistos como ameaças pelo imaginário social, passando pela perspectiva de uma participação regulada muito presente em projetos sociais e propostas educativas a partir do paradigma do protagonismo juvenil. Nos anos de 2000, mudanças no cenário político e social irão expor tensões e conflitos sociais, em que os jovens serão atores centrais.

Após a década que terminara em crise e desesperança, a chegada de um ex-operário à presidência da República, em 2003, significou um alento às expectativas sociais por transformações nesse âmbito mais profundas. Os dois primeiros Governos Lula (2003-2010) e o primeiro Governo Dilma (2011-2014) foram marcados por um conjunto de políticas econômicas e sociais de cunho reformista, que produziram maior inserção social e desenvolvimento econômico, sem promover reformas estruturais do ponto de vista político e tributário. Assim, em que pese avanços como a diminuição da pobreza e a expansão da escolarização, contradições sociais permaneceram e tensões sociais se agudizaram, especialmente nas grandes metrópoles. Elas eclodiram em várias manifestações locais, com características, pautas e formas de organização inovadoras, em que os jovens foram protagonistas centrais.

Assim como em várias cidades brasileiras, em Belo Horizonte, entre os anos de 2010 e 2012, emergiram novas formas de contestação social protagonizadas por jovens (OLIVEIRA, 2012). A cidade, mais do que palco dos experimentos e das criações do dissenso por parte dos jovens ativistas, era objeto central da contestação. Os jovens ativistas traziam um dissenso para a cena pública sobre os rumos do desenvolvimento urbano. Dessa maneira, os ativistas urbanos que protagonizavam as lutas nas cidades, ainda que não formulassem nitidamente um confronto político com determinado governo, expressavam, de alguma forma, uma fissura naquele projeto em voga pós 2003. Eram vozes dissonantes que emitiam sinais de alerta sobre as contradições do crescimento e modelo econômico celebrado como exitoso até então.

Esses sinais de alerta indicavam problemas e questionamentos na relação entre o crescimento e o desenvolvimento econômico, por um lado; e a questão urbana, por outro. Eram as cidades infernais e insuportáveis de se viver, como produto direto do desenvolvimento do capitalismo brasileiro, que estavam no centro de contestação dos ativistas urbanos. Conforme aponta Maricato (2013):

Em São Paulo o preço dos imóveis sofreu aumento de 153% entre 2009 e 2012. No Rio de Janeiro, o aumento foi de 184%. A terra urbana permaneceu refém dos interesses do capital imobiliário e, para tanto, as leis foram flexibilizadas ou modificadas, diante de urbanistas perplexos. A disputa por terras entre o capital imobiliário e a força de trabalho na semiperiferia levou a fronteira da expansão urbana para ainda mais longe: os pobres foram expulsos para a periferia da periferia. [...]. Os despejos violentos foram retomados e [...] favelas bem localizadas na malha urbana sofrem incêndios, sobre os quais pesam suspeitas alimentadas por evidências constrangedoras. [...]. Mas é com a condição dos transportes que as cidades acabam cobrando maior dose de sacríficos por parte de seus moradores. E embora a piora da mobilidade seja geral - isto é, atinge a todos, é das camadas de rendas mais baixas que ela vai cobrar o maior preço em imobilidade. O tempo médio das viagens em São Paulo era de 2 horas e 42 minutos em 2007. Para um terço da população, esse tempo é de mais de três horas, ou seja, uma parte da vida se passa nos transportes, seja ele um carro ou num ônibus superlotado - o que é mais comum. (MARICATO, 2013, p. 24-25).

Segundo a autora, o aprofundamento do processo da “cidade mercadoria”, na primeira década do século XXI, significou o oposto da reivindicação histórica de produção de cidades justas, humanizadas, igualitárias e aprazíveis para viver-se.

É preciso destacar, então, que uma geração de ativistas urbanos se forjou em um contexto de complexas e aceleradas mudanças sociais, cujo horizonte de expectativas na sociedade oscilou ambiguamente entre a esperança e a desilusão. Estamos, então, a tratar de uma geração ativista forjada no período de emergência das lutas urbanas da primeira década do século XXI no Brasil, na vivência de suas contradições sociais e políticas. É aqui que estão localizadas as primeiras experiências que irão contribuir para a configuração do Movimento TZ BH.

Transporte como direito social: origens da proposta de TZ

Podemos remeter a proposta de implantação do transporte público universal e gratuito à gestão de Lúcio Gregori na Secretaria Municipal de Transportes do Governo Luíza Erundina pelo Partido dos Trabalhadores - PT (1989 - 1993) na cidade de São Paulo que ficou conhecida como “tarifa zero”. A ideia era garantir o direito ao transporte para um população que, em 1986, gastava cerca de um quinto do seu salário com esse serviço.1 A proposta seria financiada com a criação de um Fundo de Transporte mantido por uma parte do orçamento municipal, principalmente por meio dos recursos do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), que sofreria reajustes de acordo com as distintas faixas de renda.

A proposta gerou, na época, um grande debate na cidade de São Paulo, havendo uma polarização entre população mais carente, que apoiava a proposta, e setores das classes média e alta, que se opunham ao aumento de impostos municipais para o seu financiamento. Os grupos contrários à proposta construíram uma narrativa que procurava, via veículos de comunicação, influir decisivamente no debate público em desfavor da proposta. Esta foi formulada como um projeto de lei e rejeitada pela Câmara Municipal de São Paulo. Sem continuidade na gestão seguinte, a ideia de implementação da gratuidade universal dos transportes saiu de cena nos anos de 1990, salvo algumas iniciativas pontuais e localizadas, por parte de gestões municipais também consideradas progressistas. Apesar disso, continuou no horizonte de lutas dos movimentos ligados ao transporte público.

Em meados da década dos anos de 2000, a proposta da TZ passa a ganhar um novo impulso a partir do surgimento do Movimento Passe Livre (MPL). Este foi criado em 2005 no V Fórum Social Mundial, em um encontro nacional pelo passe livre, no dia 28 de janeiro, em Porto Alegre.2

Com a explosão dos grandes protestos em junho de 2013, a proposta da TZ extrapola os círculos de atuação dos jovens ativistas urbanos e dos militantes, intelectuais e grupos envolvidos com a questão urbana e ganha outro patamar de visibilidade: acumula projeção reivindicativa nas ruas em uma das maiores revoltas urbanas populares da história brasileira.

Junho de 2013: antecedentes do Movimento TZ BH

Como analisado anteriormente, a primeira década do século XXI, no Brasil, foi marcada por um ciclo de reformas econômicas e sociais com impactos positivos, acompanhadas de políticas públicas que produziram mudanças concretas nas condições de vida de grande parte da população brasileira. Esse processo não se deu sem contradições, e a euforia nacional via-se confrontada por vozes dissonantes da contestação social que emergiam de alguns movimentos sociais. O aumento do número de greves no ano de 2012 e os ventos turbulentos de movimentos de contestação que ocorreram em várias cidades do mundo a partir de 2011 (HARVEY; SADER; TELES, 2012; BAVA, 2011) indicavam frestas que poderiam se transformar em grandes rachaduras. Por outro lado, grupos conservadores e setores da elite e da classe média brasileira estavam insatisfeitos com as reformas sociais promovidas a partir de 2003.

Os acontecimentos de junho de 2013 podem ser entendidos como expressão dessas tensões em ebulição na sociedade brasileira e um fator significativo para que mudanças ocorressem. Até aquele mês, mesmo que com os sinais de possíveis mudanças, o pacto lulista gozava de legitimidade, sendo possível ao Governo Federal administrar as condições de sua governabilidade.3 A aceleração das transformações conjunturais a partir daí foram significativas. Em março de 2013, o Governo Dilma apresentava um recorde de popularidade, com 79% de aprovação popular segundo algumas pesquisas,4 o que nos obriga a pensar sobre a velocidade dos acontecimentos que alteraram drasticamente o clima político nacional a partir de então.

A onda de protestos em junho de 2013 tem relação direta com as mobilizações em torno dos aumentos das tarifas de transporte em várias cidades brasileiras. Já, em janeiro daquele ano, houve manifestações na região metropolitana de São Paulo, que conquistaram a revogação do aumento da tarifa no município de Taboão da Serra - SP. Em abril, uma mobilização iniciou-se em Porto Alegre pelo mesmo motivo.

Entretanto, os protestos cresceram e assumiram grandes proporções após o dia 13 de junho de 2013, quando uma manifestação do Movimento Passe Livre (MPL) de São Paulo foi duramente reprimida pela Polícia Militar. Foram detidas 240 pessoas, muitas feridas, dentre eles uma fotógrafa do jornal Folha de São Paulo, que foi alvejada no olho por um tiro de bala de borracha. A partir daí, os protestos massivos espalharam-se pelo Brasil. Estima-se entre 10 e 15 milhões de manifestantes em cerca de 500 cidades (ARANTES, 2014), e em 100 mil pessoas reunidas em um ato público no dia 17 de junho em São Paulo (NAKAMURA, 2013). Marcados por uma polifonia de vozes, pela heterogeneidade de atores e pela pluralidade de demandas, os protestos ensejaram muitas interpretações que fogem ao alcance deste artigo.5 Cabe aqui apenas registrar a relação entre esses eventos e a emergência em Belo Horizonte do Movimento TZ. O fato é que os protestos de junho de 2013, pela própria grandeza dos acontecimentos, transbordam a dimensão temporal de sua duração e são necessários para sustentar as análises de fatos políticos e sociais subsequentes.

Do ponto de vista da análise dos movimentos sociais e das ações coletivas contemporâneas no Brasil, paradoxalmente, os acontecimentos durante e após os grandes protestos de junho de 2013 produziram um cenário fértil e rico para pesquisas e estudos, ao mesmo tempo que criaram uma série de camadas mais complexas para o entendimento dos sentidos das lutas sociais. Os grandes protestos criaram as condições para que as insatisfações represadas se expressassem, aqui e acolá, em espaços sociais mais amplos e diversos. Um cenário em que os contemporâneos experimentos contestatórios parecem ter entrado em uma espiral complexa, frente a um regime temporal de repentina e intensa aceleração.

Em outras palavras, do ponto de vista da trajetória dos movimentos e coletivos protagonizados por jovens ativistas urbanos, os protestos de junho de 2013 podem ser entendidos como uma espécie de ápice, um momento de ascensão tão esperado, um impulso sem precedentes, ao mesmo tempo que produziram desgastes que aguçaram o senso crítico e reflexivo dos próprios movimentos, coletivos e ativistas sobre seus limites, suas possibilidades e os caminhos a serem trilhados (NASCIMENTO, 2017).

As interpretações sobre os grandes protestos referidas anteriormente possuem, cada qual a seu modo, plausibilidade à luz de acontecimentos posteriores. Elas nos permitem relacionar os grandes protestos ao surgimento de uma nova direita e ao posterior processo de impeachment da Presidenta Dilma (SOUZA, 2016), como também podem ser vistas como um legado de luta, de organização e de resistência, relacionado à contestação social que se seguiu, como o movimento dos estudantes secundaristas em anos posteriores (ORTELLADO, 2016).

Independentemente do olhar que se tenha sobre as Jornadas de Junho, não há dúvidas de que as manifestações expressaram contradições e tensões em estado de ebulição no contexto social brasileiro que, aliado à ação de uma “nova” direita no país, contribuíram para desgastar a popularidade do Governo Federal nos anos seguintes.

Junho de 2013: a proposta de TZ entra no debate público na cidade de Belo Horizonte

Escapa aos objetivos deste artigo abordar a história anterior aos movimentos de junho de 2013 em Belo Horizonte. Há uma vasta produção acadêmica sobre os recentes movimentos sociais, coletivos culturais, ocupações e protestos na capital mineira sobre as configurações e os alcances de uma rede ativista na cidade.6

As conexões entre as ações coletivas e os movimentos sociais tornaram-se mais amplas, diversas e complexas na medida em que as lutas em torno da questão urbana foram ganhando mais visibilidade, força e capacidade de mobilização na primeira década dos anos 2000. Movimentos de luta por moradia e reforma urbana, coletivos e iniciativas de ocupação dos espaços públicos na cidade, coletivos culturais, grupos de ativistas anarquistas, juventudes militantes dos partidos e correntes de esquerda e uma múltipla gama de ativistas independentes, que trafegam por iniciativas contestatórias variadas, compuseram um amálgama que sustentou pautas e conteúdos reivindicatórios durante os protestos de junho de 2013, bem como iniciativas e ações no período posterior a eles.

Antes dos protestos de junho de 2013, a proposta da TZ aparecia de forma incipiente e fragmentária em Belo Horizonte. Contudo, é a partir das mobilizações que tomaram conta de várias cidades brasileiras naquele momento que a pauta do transporte público gratuito emerge no debate público na cidade. A questão ganhou alguma entrada em Belo Horizonte em 2012, principalmente pela intervenção do coletivo editorial PISEAGRAMA,7 cuja campanha não-eleitoral por mudanças da cidade durante as eleições daquele ano teve, como uma das propostas, a gratuidade universal nos transportes. Em uma de suas ações, esse coletivo afixou cartazes em locais públicos e divulgou mensagens em redes sociais hashtags com propostas para a cidade, dentre elas a mensagem #Ônibus Sem Catraca.8 Pode-se registrar, também, a atuação do Núcleo Isegoria do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), durante os protestos contra o aumento da passagem em 2011 e 2012.

Assim como em diversas cidades, essa rede ativista constituiu, no bojo das manifestações de 2013, a Assembleia Popular Horizontal (APH) de Belo Horizonte. As sessões da APH aconteceram sob o viaduto Santa Tereza, um espaço que se tornou símbolo da rede ativista em Belo Horizonte. Diversos coletivos culturais, de contestação, performáticos, movimentos sociais, jovens punks, skatistas, pixadores, grafiteiros e integrantes de coletivos do hip-hop se apropriaram daquele lugar como o abrigo da articulação rebelde e contestatória.

Foram constituídos Grupos de Trabalho que compunham a Assembleia Popular Horizontal e eram responsáveis pela elaboração de demandas e propostas de ação para cada eixo temático. Cada um dos grupos possuía autonomia para se reunir e elaborar suas propostas. As sessões da APH constituíam-se como o espaço de discussão e deliberação das demandas e das propostas oriundas desses grupos.

Dentre eles, destacamos os Grupos de Trabalho de Reforma Urbana/moradia e Mobilidade urbana/transporte, que abrigaram uma participação mais expressiva e contaram com maior duração e organicidade, desdobrando-se em lutas e articulações posteriores no âmbito institucional e de ação direta nas ruas. O primeiro encampava os movimentos sociais de luta por moradia e ativistas e militantes articulados em torno da bandeira da reforma urbana.

Já o Grupo de Trabalho de Mobilidade Urbana/transportes foi o embrião do movimento Tarifa Zero e trazia para a cena pública não somente a concepção do transporte e da mobilidade urbana como um direito social, expressa na exigência por gratuidade universal nos transportes. Suas primeiras ações foram marcadas por um conjunto de questionamentos e denúncias a respeito da gestão municipal pouco transparente do transporte público.

Ainda no segundo semestre de 2013, o Grupo de Trabalho de Mobilidade Urbana da APH lança a campanha pela TZ em Belo Horizonte, a partir da coleta de assinaturas para a apresentação de um projeto de lei de iniciativa popular na Câmara de Vereadores da cidade. Tal empreitada realizou-se a partir de um projeto político publicitário que objetivava dar visibilidade e ampla aceitação da proposta por parte da população. A estratégia era a de criar imaginário e narrativa na cidade que demonstrassem, de maneira clara, as vantagens da TZ. A partir de então camisetas, cartazes, estêncil e adesivos com a logo da campanha foram espalhados pela cidade e passaram ser a expressão visual da existência da luta pela gratuidade universal do transporte em Belo Horizonte. Era o início do Movimento TZ BH.

O campo de ações do Movimento TZ em Belo Horizonte

A luta pela tarifa zero no transporte público implica a alteração de dispositivos institucionais e estruturas desiguais e injustas que constituem historicamente a formação da sociedade brasileira. Implica, também, a conquista de um novo direito social, o direito ao deslocamento e à mobilidade urbana, que necessariamente se expressa na luta de classes em torno do conflito distributivo, da questão tributária e da disputa pelos recursos e pelas prioridades de investimentos do Estado. Dessa maneira, a luta pela tarifa zero aponta para a alteração do injusto sistema tributário, propondo a progressividade na cobrança de impostos de acordo com a renda, bens, lucros e dividendos ganhos pelos cidadãos. Por outro lado, aponta, ainda, para a disputa de prioridades políticas no interior do Estado, no caso a priorização de investimentos e de incentivos ao desenvolvimento e à modernização do sistema de transporte público em detrimento do transporte individual.

Lúcio Gregori, em uma entrevista no início do ano de 2016, informou que a proposta original de gratuidade elaborada em São Paulo, na gestão de Luiza Erundina, baseada exclusivamente em impostos municipais, não poderia ser sustentada atualmente. Segundo ele, hoje, uma proposta dessa natureza necessariamente implica criar uma estrutura institucional de investimento e de financiamento público, que envolve todos os entes da federação: munícipios, governo estadual e federal.9 Assim, a efetivação do direito social ao transporte, já promulgado por Emenda Constitucional, exige um arranjo institucional semelhante ao que garante o financiamento e a existência de outros direitos sociais, como ocorre, por exemplo, com a saúde, a assistência social e a educação.10 Talvez, para os transportes e a mobilidade urbana, algo semelhante ao Sistema Único da Saúde (SUS) ou ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS) deveria se efetivar para a devida garantia desse direito.11

Em meados de 2014, o movimento promoveu um seminário para a construção de uma Proposta de Política Nacional de Mobilidade Urbana com o objetivo de incidir no debate eleitoral das eleições, em nível federal e estadual. O seminário contou com a presença de dois ex-gestores públicos ligados à questão do transporte coletivo. Tal proposta afirmava o reconhecimento do transporte como direito social, a criação de fundos públicos nos níveis nacional, estadual e municipal para subsídio dos sistemas de transporte e a redução do valor pago pela tarifa por parte dos usuários do transporte coletivo. Projetou-se a realização de uma campanha para lançamento da proposta da política nacional e de um site dedicado a ela.12

A campanha foi tema de muitas reuniões durante o ano, mas não foi efetivada. O volume de ações em que o movimento estava envolvido, no segundo semestre daquele ano, como a organização da intervenção no Plano Plurianual de Ação Governamental de Belo Horizonte, se articulava a outras ações pontuais junto aos outros movimentos sociais da cidade, que teve como consequência a não priorização da campanha naquele momento.

Havia uma dificuldade em priorizar ou dar continuidade em muitas das ações. A hipótese que pode ajudar a explicar esse ponto talvez esteja relacionada a uma espécie de ausência de perspectiva estratégica, a partir da qual o movimento pudesse tanto se planejar em prazos de tempo mais longos quanto avaliar a execução das ações que realizava. Nesse sentido, o projeto da gratuidade nos transportes, que foi impulsionado pelo efervescente contexto dos grandes protestos em 2013, aos poucos iria deixando de ser o foco principal do movimento em Belo Horizonte. As dificuldades e os desafios em realizar a empreitada de coleta de assinaturas para o projeto de lei de iniciativa popular pareceram superar a projeção inicial entusiasmada dos jovens ativistas que intencionavam mobilizar a população da cidade.

A experiência concreta, condizente com a realidade da natureza da disputa que envolvia a luta pela gratuidade universal dos transportes na cidade, foi conduzindo as expectativas iniciais em um curso decrescente. Aos poucos, os jovens ativistas perceberam que a conjuntura explosiva que emergiu em junho de 2013, propiciando a queda das tarifas em mais de cem cidades brasileiras e alimentando o sonho da gratuidade nos transportes, amainou-se no deserto do real. Desse modo, à medida que o “reservatório de energia rebelde” acumulado durante os grandes protestos de junho de 2013 foi se esgotando, os jovens ativistas passaram a encarar a aridez da construção cotidiana da luta social em um contexto delineado por toda sorte de adversidades.

De toda maneira, o repertório de ações do Movimento TZ, em Belo Horizonte, sempre esteve, de alguma forma, conectado à experiência adquirida e à memória dos acontecimentos de 2013. Os protestos nas ruas que continuaram a ocorrer a cada recorrente reajuste anual das tarifas eram animados pelo desejo, ainda que de maneira não consciente, de repetição da grande revolta ou algo próximo a isso. Por conseguinte, permaneceu no imaginário dos jovens ativistas a ideia da eficácia e da força dos protestos de rua no embate com o poder municipal e com as empresas de ônibus.

Outro aspecto é a conexão da luta nas ruas com a luta no campo institucional. No final do mês de junho de 2013, jovens e coletivos juvenis promoveram uma ocupação da Câmara Municipal de Belo Horizonte, que tinha como uma das exigências centrais a abertura e a realização de uma auditoria nas planilhas de custo das empresas de ônibus que atuavam na cidade. Assim, Junho de 2013 produziu também um impulso renovador da luta institucional a respeito da questão da política de transportes e mobilidade urbana. Como consequência desse fato, o Movimento TZ constituiu-se como um dos principais atores políticos da cidade a pautar esses temas junto ao poder municipal. No entanto, é importante, igualmente, salientar que, na medida em que a pressão das ruas perdeu pujança, a experiência da participação institucional do Movimento TZ passou a ser delineada pela tensão de se submeter aos contornos e aos modos da institucionalidade e procurar ultrapassá-los. Assim, podemos compreender o movimento a partir da análise de dois momentos, a saber: ação direta nas ruas por meio de protestos contra o aumento das tarifas e atuação na esfera institucional. Longe de vê-los como campos opostos, cabe considerar esses dois âmbitos de atuação do Movimento TZ como instâncias complementares que, ao mesmo tempo, se rivalizam.

Nas ruas contra o aumento da tarifa: desafios e obstáculos

Os protestos de rua contra os recorrentes aumentos de tarifa eram os momentos de grande efervescência que alteravam o cotidiano do movimento. As reuniões semanais do coletivo, que normalmente abrigavam em média cerca de 8 a 15 ativistas, passaram a contar com mais presenças. A juventude dos partidos de esquerda, coletivos do movimento estudantil, militantes, ativistas de outros movimentos sociais, participantes ocasionais do Movimento TZ e outros interessados passaram a compor essa frente de lutas que dava visibilidade a uma rede ativista na cidade.

As tarefas de organização e de preparação de cada evento contra o aumento no valor das passagens - segurança, mobilização, confecção de faixas, panfletos e cartazes e contato com a imprensa etc. - eram divididas entre os participantes da frente de lutas. O Movimento TZ era reconhecido como protagonista das convocações para os atos e, assim, era visto pela imprensa. As notícias dos jornais geralmente mencionavam diretamente o nome do movimento, tanto nos dias anteriores aos protestos como após a sua realização.

Na medida em que havia a previsão de reajuste da tarifa, sempre no dia 29 do mês de dezembro de cada ano, alguns desses atos de rua tiveram um caráter preventivo aos aumentos. De maneira geral, o objetivo dos atos de rua era o de paralisar a cidade. Para além do seu objetivo imediato expresso no slogan sempre repetido nos atos “se a tarifa aumentar a cidade vai parar”, esses atos de paralisação do fluxo da cidade trazia um sentido de contestação mais geral da ordem social voltada à produção capitalista. Reduzir a velocidade dos fluxos de produção na cidade por meio de protestos, de ocupações e de intervenções era uma forma de luta anticapitalista, uma vez que atingia os núcleos da produção.

Havia debates e discussões sobre se a melhor tática não seria realizar trancamentos e travamentos das vias de Belo Horizonte no período da manhã, quando os trabalhadores estariam se dirigindo ao trabalho, com o objetivo de causar obstáculos para a dinâmica da produção da cidade. Nessa mesma linha de argumentação, era avaliado pelos participantes do movimento que os trancamentos de rua no período em que os trabalhadores retornavam do trabalho para casa causava prejuízos para os próprios trabalhadores, retirando-lhes o tempo de descanso e dificultando a adesão da população em geral. Essas propostas de travamentos de vias pela manhã não se concretizaram, devido ao número insuficiente de pessoas mobilizadas para realizá-las. Como grande parte das manifestações ocorreram no mês de dezembro e janeiro, período de férias escolares, havia certa dificuldade em mobilizar os estudantes secundaristas e universitários que, em grande parte, participavam dos eventos.

A ideia de realizar atos que minimizassem o transtorno dos trabalhadores no retorno do trabalho para casa, ao mesmo tempo que produzissem um efeito na cidade, encontrou outras formas de materializar-se. Isso se deu na opção por executar os trajetos de alguns atos nas regiões e nos bairros habitados pelas classes mais abastadas da cidade, com o objetivo de atenuar o efeito para o conjunto da população e parar as vias onde circulava a elite da cidade. Em muitos dessas ocasiões, podemos perceber aspectos que traduzem algumas formas de ser das movimentações contemporâneas protagonizadas por jovens, como a ação direta nas ruas sob a forma da carnavalização do protesto (CHRISPINIANO, 2002; FREIRE FILHO, 2007; ORTELLADO; RYOKI, 2004). Buscava-se dar visibilidade, de maneira irônica e debochada, aos oponentes políticos a serem enfrentados, tanto do poder público, quanto do setor empresarial ligado aos transportes. Alguns desses oponentes foram objetos de atos específicos, como protestos diante da residência de gestores públicos do transporte, queima de pneus em pontos estratégicos e colagem de cartazes denunciando o abuso do preço da tarifa e os nomes dos responsáveis pelas empresas de ônibus que operam na capital mineira. A realização de “catracassos” - pular a catraca sem pagar a tarifa - era outra forma de ação direta utilizada nos atos de rua ou em outros momentos específicos (VELOSO, 2015).

Melucci (1999) chama-nos atenção para o fato de que as movimentações sociais contemporâneas se comportarem como meios de comunicação social. Segundo ele,

[...] su función es revelar los problemas, anunciar a la sociedad que existe un problema fundamental en un área dada. Tienen una creciente función simbólica, tal vez podría incluso hablarse de una función profética. Son una especie de nuevos medios de comunicación social. (MELUCCI, 1999, p. 70).

Nesse sentido, os atos de rua e demais ações do Movimento TZ podem ser interpretados como formas de comunicação, de informação e de visibilidade para o conjunto da cidade de um conflito social, no caso a problemática em torno do transporte público. Ainda que as pessoas percebam e sintam, em seu cotidiano, o problema da mobilidade urbana, é o movimento social que expressa e vocaliza a insatisfação na cena pública e produz a conflitualidade com os outros atores envolvidos na questão - Prefeitura, BHTrans e empresas de ônibus.

A partir dessa reflexão de Melucci (1999), poderíamos pensar o Movimento TZ como produtor e divulgador de informações e sentidos contra-hegemônicos na cidade. Um meio de comunicação alternativo sobre a vida da cidade, conectado ao cotidiano urbano e aos conflitos em torno do transporte público urbano, bem como à dinâmica de funcionamento do poder institucional municipal. Contudo, é necessário relativizar justamente a capacidade de comunicação do movimento com o conjunto da sociedade. Essa questão está, assim, diretamente relacionada à capacidade de mobilização social do movimento.

Um dos grandes desafios dos atos era mobilizar o conjunto da população da cidade. Os atos pouco conseguiam ultrapassar o universo geracional dos jovens ativistas e os círculos da militância de esquerda e do ativismo urbano. Os esforços de mobilização da população, em geral eram realizados por meio de panfletagens no centro da cidade e de convocações pelas redes sociais, principalmente pela página no movimento no Facebook TZ - BH que possuía cerca de 21.698 de seguidores.13 No entanto, os esforços de comunicação com a população pouco resultavam em uma maior participação nos atos. Nas panfletagens, percebia-se que, ainda que as pessoas deduzissem que manifestações ocorreriam na cidade em função do aumento do valor das passagens, poucas delas sabiam sobre o Movimento TZ. Assim, embora potente como meio de criação e de divulgação de informações e de artefatos ativistas - vídeos, músicas, flyers, “memes”, informações, textos, relatos, debates - a internet atingia apenas indivíduos que, de alguma forma, gravitam em torno das lutas sociais urbanas e dos círculos das esquerdas em geral. Logo, a baixa capacidade de mobilização estava relacionada ao que podemos chamar de baixo enraizamento social, especialmente com os usuários do transporte público - os setores mais empobrecidos da população.

Além das dificuldades em mobilizar a população, os atos contra os aumentos da tarifa e pela transformação do sistema de transportes na cidade sofriam com a repressão por parte das forças de segurança. Grande parte dos atos, especialmente aqueles que reuniram mais pessoas, foram acompanhados pela Polícia Militar fortemente armada e equipada, o que representava sempre uma ameaça de repressão, uma forma de marcar os limites do que a própria polícia entende como aceitáveis para o exercício da contestação nas ruas. A polícia, ao mostrar-se nessa condição, a de um corpo repressivo preparado para a guerra, indicava, sempre, a possibilidade, de em qualquer momento, ativar seus recursos contra os manifestantes: bombas de gás lacrimogênio, balas de borracha, cães, helicópteros e força bruta em geral.

A repressão e as violações de direitos sofridas pelo Movimento TZ nas ruas de Belo Horizonte podem ser compreendidas em um contexto mais amplo de repressão e de criminalização dos movimentos e das lutas sociais no Brasil, especialmente após os grandes protestos de junho de 2013, quando as forças de segurança sofisticaram seus métodos.14

TZ e institucionalidade: tentativas de uma “política hacker” em meio aos limites da participação institucional

Ao analisar o conjunto de desafios e problemas a respeito da participação institucional em nossa recente democracia, Dagnino (2002) destaca a partilha efetiva do poder como uma das questões centrais. Segundo a autora, esse é um foco de conflitos sobre concepções distintas acerca do que efetivamente significa a participação institucional. De acordo com a pesquisadora, dentre os mecanismos que bloqueiam uma efetiva partilha de poder nos espaços participativos institucionais, está a exigência de qualificação técnica e política para o exercício da participação.

A qualificação técnica específica representou um dos polos de ação de maior investimento do movimento com o desenvolvimento e a aquisição de capacidades e habilidades políticas por parte dos participantes do Movimento TZ. Se nas ruas e no trabalho militante junto à população e aos trabalhadores observavam-se as dificuldades de mobilização do movimento, nos espaços de participação institucional havia uma maior desenvoltura.

Os participantes do movimento ocupavam todos os espaços participativos possíveis relacionados à questão dos transportes e à mobilidade urbana do município. Além disso, procuraram estar presentes o máximo possível em todas as audiências públicas na Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa de Minas Gerais relacionadas à temática.15

O investimento em formação e qualificação técnica para essa participação era alto. Havia uma dedicação e um entusiasmo por parte de muitos participantes, com horas dedicadas ao estudo, à preparação e à discussão. O movimento procurou manejar por dentro das instituições e dos espaços de poder os dispositivos políticos que constituíam a política de transporte na cidade. Podemos dizer que o Movimento Tarifa Zero pretendeu abrir a “caixa” dos documentos e das elaborações técnicas relacionadas à política municipal dos transportes e retirar a “máscara” da suposta neutralidade do conhecimento técnico e científico, revelando os interesses e as prioridades em jogo na disputa. Desse modo, o movimento procurou operar com seus instrumentos técnicos no interior dos espaços de poder para revelar sua dimensão não neutra, mas política.

Um exemplo desse tipo de atuação refere-se à tentativa de propor emendas orçamentárias na revisão das ações do Plano Plurianual de Ação Governamental (PPAG) do munícipio. No ano de 2013, ainda no calor das Jornadas de Junho, as propostas do movimento foram rejeitadas por alegação de não cumprimento dos requisitos técnicos para a sua apresentação. Já na segunda tentativa, no ano posterior, o movimento buscou conhecer as filigranas técnicas que fizeram com que as propostas fossem rejeitadas, anteriormente, e se preparou de maneira ainda mais intensa para disputar o orçamento municipal. Dessa vez, os interesses econômicos das empresas de ônibus e da lógica política de priorização do transporte individual deixaram mais claros os motivos da rejeição das propostas. Conforme informa Veloso (2015):

Isso ficou mais evidente no ano seguinte, quando já ciente das complexas regras de alocação orçamentária, o Movimento TZ propôs três emendas orçamentárias ao PPAG: a gratuidade do transporte nos últimos domingos do mês (com impacto anual de R$30 milhões), a gratuidade do transporte no Dia Mundial Sem Carros (com impacto anual de R$2 milhões), e a publicação dos dados de qualidade do transporte por ônibus no interior dos veículos, a exemplo do quadro de horários, a mais modesta e factível entre as três apresentadas, com impacto de 200 mil reais por ano. Na ocasião, alegando “problemas técnicos” não esclarecidos, a comissão de orçamento da câmara municipal rejeitou as duas primeiras propostas. A terceira foi simplesmente rejeitada, sem que sequer uma justificativa fosse apresentada. Era o isolamento e o oportunismo da esfera estatal falando mais alto. (VELOSO, 2015, p. 212).

De todo modo, é relevante ressaltar o embate empreendido pelo Movimento TZ no interior das instituições, marcado pela disputa em torno da concepção de transporte público e da mobilidade urbana. Assim, valendo-nos, ainda, do exemplo anterior, na proposta elaborada pelo Movimento TZ para a revisão PPAG de 2014, os participantes estudaram a peça orçamentária em detalhes e transferiram recursos de políticas e programas que privilegiavam o transporte individual para o financiamento de suas propostas, beneficiando o fortalecimento do transporte público e do direito social ao transporte. Em vista disso, o movimento entrou na “caixa orçamentária” e procurou alterar suas coordenadas técnicas em benefício do interesse público mais amplo.

Esse tipo de atuação e participação política, que envolve alto grau de conhecimentos técnicos e científicos, é caracterizado por Castelfranchi (2013) como política hacker ou cidadania tecnocientífica:

Nesta perspectiva, grupos e movimentos que tentam ressignificar direitos, ou questionar a definição de eficiência, ou ainda, desmascarar os critérios políticos e morais incorporados tacitamente em algoritmos que calculam objetivamente riscos, rankings de qualidades, indicadores de desenvolvimento, não estão simplesmente negociando, ou resistindo. Estão operando na insistência de um hacking epistemológico: desmontando conceitos e definições que, uma vez remontadas, funcionam e significam diversamente. Quando esses grupos têm êxito, eles não estão tomando o poder, nem apenas resistindo ao poder. Estão recombinando a política, em seus critérios e suas normas tácitas. (CASTELFRANCHI, 2013, p. 328).

Assim, combinando a política das ruas e a atuação institucional, a experiência procurou interferir nos rumos das políticas públicas para o transporte coletivo, travando uma luta pelo direito social ao transporte. No entanto, o jogo da disputa institucional pareceu não possuir força suficiente para os avanços e as conquistas sociais esperados pelos participantes do movimento.

Considerações finais

Este artigo elegeu alguns aspectos do Movimento Tarifa Zero em Belo Horizonte, buscando situar sua gênese no contexto das movimentações protagonizadas especialmente por jovens na primeira década deste século. Privilegiamos, também, a análise das ações na rua, que buscavam mobilizar a população para o enfrentamento da questão da qualidade do transporte público e do preço das passagens, como a atuação institucional na disputa pelo fundo público e pela transparência na gestão do transporte municipal. Trata-se de uma experiência situada em determinado tempo e contexto, portanto suas conclusões devem ser consideradas como provisórias e como indicações de possíveis interpretações sobre um objeto em movimento.

Um primeiro aspecto refere-se a uma espécie de configuração decrescente das expectativas alimentadas pelo movimento com o passar do tempo. Originado e impulsionado pela energia rebelde contida nos grandes protestos de 2013, o movimento fomentou o sonho da conquista do transporte universal gratuito, como um direito social ao transporte, que se expressava na ideia de “uma vida sem catracas”. A partir do processo acelerado de mudanças conjunturais após junho de 2013, a ação do movimento parece ter se inclinado para uma dimensão de reação às urgências. Assim, o projeto de implantar um sistema de tarifa zero com controle social popular nos transportes aos poucos foi se transmutando na permanente luta, sem êxito concreto, contra os anuais reajustes no valor das passagens. A pauta do TZ passou a priorizar a luta contra o risco de exclusão do acesso ao transporte para um número cada vez maior de pessoas.

A investigação indicou uma distância geracional entre os jovens que protagonizam a lutas contemporâneas e aqueles militantes mais velhos, o que produzia limites na ação política de uma parcela dos jovens ativistas urbanos, como é o caso do Movimento TZ. Elementos como o trabalho de base nos bairros, nos locais de trabalho, nas escolas e nas comunidades, as práticas da educação popular e as ações de mobilização nos espaços cotidianos da população, tão caros à história dos movimentos populares, eram distantes das experiências políticas de uma parcela das novas gerações ativistas. Assim, consideramos importante o desenvolvimento de pesquisas que se dediquem a investigar a transmissão e a conexão de experiências, de conhecimentos e de práticas entre parcelas das novas gerações ativistas e gerações militantes formadas nas décadas anteriores. Investigações dessa natureza poderiam lançar luzes acerca dos possíveis conflitos geracionais e distintos processos de socialização de militantes nos movimentos sociais contemporâneos.

Outro desdobramento relaciona-se à compreensão dos processos de socialização política das novas gerações mediados pelas tecnologias da comunicação e da informação. Os limites e as potências dos processos de transmissão e de circulação de valores, de ideias e de imaginários políticos nos ambientes digitais compõem um campo profícuo amplo e cada vez mais atual para o estudo da militância e dos movimentos sociais na contemporaneidade.

Outro aspecto que nos chama atenção na atuação do Movimento TZ em Belo Horizonte refere-se ao alto grau de repressão acionado pelo Estado, com elementos que podem ser considerados novos nas formas de repressão e de criminalização, um certo aprimoramento da gestão dos conflitos sociais. Estudos e pesquisas que se dediquem a essa temática são igualmente importantes e necessários, podendo contribuir para uma melhor compreensão da relação entre forças de segurança do Estado e ativismo urbano.

Quanto à experiência de participação institucional do movimento, percebemos uma tensão entre as expectativas de alteração das lógicas institucionais de participação e a reiteração das estruturas de dominação e controle presentes nesses espaços. As ações do movimento buscaram pressionar o poder público para atuar com maior transparência em relação ao orçamento municipal, à política dos transportes e às planilhas de custos das empresas de ônibus, incidindo sobre esses dispositivos. Essas ações representaram um forte investimento em preparação e qualificação técnica por parte dos jovens ativistas, que alimentavam a expectativa de transmutação do conhecimento técnico em poder decisório e político.

Os obstáculos enfrentados pelo TZ chamam atenção para a necessidade de reflexão sobre o atual momento da democracia e as perspectivas das lutas sociais de maneira geral. A efetivação dos direitos sociais expressos na Constituição Federal de 1988, conquistas do ciclo de lutas e mobilizações populares do período, exige a abertura de um novo ciclo de lutas sociais. No entanto, a morfologia das lutas e dos movimentos sociais, hoje, parece indicar não mais o “salto progressista para o futuro”, mas, sim, “[...] a urgência de apagar o incêndio geral que de qualquer modo os dominantes já atearam” (ARANTES, 2014, p. 97). O Movimento TZ em Belo Horizonte parece se situar nesse ponto de alteração das expectativas para uma ação política voltada a “apagar o incêndio”, minimizar e reduzir os danos sociais. Diferentemente das lutas empreendidas no período da redemocratização brasileira, quando um horizonte de futuro transformador em aberto movia as utopias dos jovens militantes, hoje vivenciamos expectativas de ação voltadas às urgências do presente. Esse presente não aponta para a janela transformadora do futuro, mas contém parte dos destroços que esse mesmo futuro encolhido anuncia e que parecem fazer parte da experiência compartilhada pelas novas gerações (ARANTES, 2007).

Os jovens ativistas indicavam a emergência de novos sujeitos, portadores de uma subjetividade antagonista que procurava, em meio aos destroços e aos obstáculos do presente, fazer desse mesmo antagonismo expressão pública do dissenso. Tais jovens, junto a outros atores, deram visibilidade pública na capital mineira ao debate sobre a questão urbana e do transporte público como direito social. As críticas aos rumos das transformações urbanas, especificamente sobre a política de transportes que privilegiava o carro e o transporte individual, trazidas pelos jovens ativistas do Movimento Tarifa Zero, indicavam o desenvolvimento de um engajamento que podemos definir como vigilante sobre a cidade e sobre o poder municipal. Essa vigilância atenta à política de transportes e às ações da Prefeitura e empresas de ônibus produziu um conjunto de informações que comunicava e dava visibilidade a um ethos do dissenso em Belo Horizonte, além da necessidade de uma outra vida na urbe calcada no direito social ao acesso a espaços e a equipamento na cidade.

No Movimento TZ conviviam demandas sobre questões estruturais que acompanham a história das lutas urbanas no Brasil e novas questões trazidas pela experiência urbana das novas gerações: desejo de qualidade de vida na cidade, do livre usufruto dos espaços públicos, da mobilidade urbana digna e adequada e do livre fruir para consumo e produção cultural na cidade. O desejo de uma cidade ambientalmente saudável em todas as dimensões, de uma cidade em que caibam todos e todas e que permita um viver digno, a luta contra a cidade-empresa, cidade-mercadoria, cidade do controle e a denúncia das injustiças; enfim, estava no horizonte do que se compreendia como o direito amplo à cidade. Dessarte, os sentidos elaborados pelos sujeitos da pesquisa sobre o engajamento no interior do movimento podem ser definidos como a expressão do desejo de participar dos destinos da urbe, das tomadas de decisão e de influir nas questões públicas, expressos em um desejo de radicalização e de aprofundamento da democracia na cidade.

Um processo educativo sobre a cidade e uma mudança de olhar e de perspectiva sobre a temática urbana, fez do TZ uma rica experiência de aprendizagem para os jovens. Essa dimensão da experiência e do aprendizado evidenciou-se em todos os depoimentos dos participantes, nos quais podemos identificar dois elementos centrais: o aprendizado sobre a cidade e sobre o transporte público; logo, o alargamento da sensibilidade e do entendimento da problemática urbana, e o aprendizado da participação e do agir coletivo.

A forma de atuação do movimento indicou também um potencial polifônico de criação de artefatos culturais do dissenso no amálgama entre as ruas e as redes sociais com o uso de flyers, fotografias, imagens, vídeos, músicas, cartazes, faixas e “memes”. Os participantes de coletivos culturais trouxeram à tona de maneira poética uma abordagem festiva e contestatória as formas desiguais e diversas de viver na cidade. Múltiplos sentidos, desejos e imaginários urbanos desfilaram por meio das imagens, dos vídeos, dos textos, das poesias, dos corpos políticos, das palavras de ordem e das composições musicais produzidas pelos jovens ativistas que compuseram uma obra aberta sobre a Belo Horizonte contemporânea.

1Confira entrevista com Lúcio Gregori em 4 de novembro de 2009. Disponível em: <https://goo.gl/nVYtGo>. Acesso em: 10 out. 2017.

2Uma análise detalhada sobre a história do Movimento Passe Livre pode ser encontrada em Sousa (2015), Veloso (2015) e Vinicius (2014).

3Nos anos de 2006 e 2007, esboçou-se um movimento, protagonizado hegemonicamente por setores das classes médias e altas, contra o PT e Lula, intitulado “Cansei”. Esses setores tentaram se autoproclamar os legítimos opositores ao que classificavam, na época, como ditadura de esquerda e da corrupção. Uma reportagem do período tomou nota de que “[...] foi um protesto diferente, com direito a fotógrafos da revista de celebridade Caras, equipe do ‘TV Fama’, bolsas Prada e óculos Dior para as mulheres e blazer com abotoaduras, gel no cabelo e colarinho branco para os homens”. Disponível em: Goo.gl/HlvGMd. Acesso em: 12 jul. 2016.

4Disponível em: <http://goo.gl/nvzUb9>. Acesso em: 2 maio 2015.

5A literatura sobre os grandes protestos de junho de 2013 e seus desdobramentos é ampla, diversificada e continua a ser produzida. Pode-se citar: Arantes (2014), Cava (2013), Cava e Cocco (2014), Gohn (2014), Judensnaider et al. (2013), Maricato et al. (2013), Nogueira (2013) e Ricci e Arley (2014).

6Confira o texto Belo Horizonte e (algumas de) suas movimentações subterrâneas, publicado no blog do Coletivo Conjunto Vazio. Disponível em: https://comjuntovazio.wordpress.com/2015/01/. Acesso em: 12 jan. 2017.

7“PISEAGRAMA é uma plataforma editorial dedicada aos espaços públicos - existentes, urgentes e imaginários - e, além da revista semestral sem fins lucrativos, realiza ações em torno de questões de interesse público como debates, micro-experimentos urbanísticos, oficinas, campanhas e publicação de livros.” Apresentação do coletivo editorial em seu site. Disponível em: <http://piseagrama.org/sobre/>. Acesso em: 12 jan. 2017.

8Sobre a campanha, confira o site do coletivo. Disponível em: http://piseagrama.org/campanha/. Acesso em: 14 jan. 2017.

9Programa Espaço Público - TV Brasil. Entrevista com Lúcio Gregori, 26 jan. 2016. Disponível em: <https://goo.gl/HtdCW9>. Acesso em: 12 jan. 2017.

10É preciso anotar a existência de experiências de implementação da tarifa zero nos transportes em 12 cidades brasileiras de pequeno e médio porte. Ver: site Rede Brasil Atual. Disponível em: https://goo.gl/IjXLIx. Acesso em: 12 jan. 2017.

11A Lei nº 12.587, de 3 de janeiro de 2012, institui diretrizes para a Política Nacional de Mobilidade Urbana. Segundo o art. 2º dessa lei, a “Política Nacional de Mobilidade Urbana tem por objetivo contribuir para o acesso universal à cidade, o fomento e a concretização das condições que contribuam para a efetivação dos princípios, objetivos e diretrizes da política de desenvolvimento urbano, por meio do planejamento e da gestão democrática do Sistema Nacional de Mobilidade Urbana” (BRASIL, 2012, n.p.).

12Site dedicado à proposta da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Disponível em: <http://mobilidadebrasil.org/>. Acesso em: 25 mar. 2017.

13Disponível em: <https://www.facebook.com/tarifazerobh/>. A última aferição de seguidores da página foi realizada em 15 de maio de 2017.

14Confira os relatórios Protestos no Brasil 2013 (disponível em: <https://artigo19.org/blog/2014/06/23/relatorio-protestos-no-brasil-2013/>) e Nas ruas, nas leis, nos tribunais: Violações ao direito de protesto no Brasil 2015-2016 (disponível em: <https://artigo19.org/blog/2017/02/09/relatorio-analisa-processo-recente-de-criminalizacao-de-protestos-no-brasil/>) produzidos pela Revista Artigo 19.

15Para uma descrição pormenorizada da participação do Movimento TZ na esfera institucional, ver Veloso (2015) e Domingues (2016). Para uma análise do movimento na esfera jurídica, ver Coelho (2017).

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Recebido: 24 de Março de 2019; Revisado: 08 de Maio de 2019; Aceito: 12 de Maio de 2019; Publicado: 01 de Junho de 2019

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