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Práxis Educativa

versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.14 no.3 Ponta Grossa set./dez 2019  Epub 16-Out-2019

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.14n3.022 

Dossiê: Jovens e ativismo em (des)construção: socializações e (in)ações políticas

Jovens em estado de alerta no Facebook: diálogos tecidos em/na rede como estratégia de (re-)existência à regulação das vidas precarizadas

Young people in a state of alert on Facebook: networked dialogues and dialogues interwoven on the network as a strategy of (re-)existence in the regulation of precarious lives

Jóvenes en estado de alerta en Facebook: diálogos tejidos en/en la red como estrategia de (re-)existencia a la regulación de las vidas precarizadas

*Pós-doutorando (bolsista PNPD/CAPES) e professor no Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas (PPGECC) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Baixada Fluminense (UERJ/FEBF). Membro do Núcleo de Estudos Diferenças, Educação, Gênero e Sexualidades (NUDES). E-mail: <junnior_2003@yahoo.com.br>. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5221-7135

**Professor do Colégio Pedro II. Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação (ProPEd) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Membro do Grupo de Estudos Diferença e Desigualdade na Educação Escolar da Juventude (DDEEJ). E-mail: <teofilo.leandro@gmail.com>. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9123-5280

***Professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação (ProPEd) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Líder do Grupo de Estudos em Gênero e Sexualidade e(m) Interseccionalidades (Geni). E-mail: <pocahy@uol.com.br>. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7884-4647

****Professor da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense e do Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas (PPGECC) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Baixada Fluminense (UERJ/FEBF). Líder do Núcleo de Estudos Diferenças, Educação, Gênero e Sexualidades (NUDES). E-mail: <ivanamaro.uerj@gmail.com>. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8813-5510


Resumo:

Este artigo explora a forma como um grupo de jovens apropria-se das redes sociais digitais como estratégia de (re-)existência à regulação das vidas precarizadas. O trabalho de campo contou com a participação de cerca de 70 jovens autodeclaradas/os não-heterossexuais que integram uma comunidade no Facebook. As conversas online tecidas com essas/es jovens buscaram problematizar elementos das redes enunciativas que forjam o regime (cis)heterocentrado e os modos pelos quais os sujeitos se posicionam face às interpelações normativas. Neste texto, analisamos duas conversas estabelecidas com os participantes da pesquisa, envolvendo a discussão sobre o casamento civil igualitário e a denúncia de postagens discriminatórias e preconceituosas compartilhadas na rede, convidando-nos, como profissionais da educação, a reconhecer o compromisso ético desses jovens frente às questões sociais da vida cotidiana.

Palavras-chave: Redes sociais; Resistência; Educação

Abstract:

This paper explores how a group of young people appropriates digital social networks as a strategy of (re-)existence in the regulation of precarious lives. About 70 self-declared non-heterosexual young people who are part of a Facebook community participated in the fieldwork. The online conversations woven between them sought to problematize elements of the enunciative networks that forge the (cis)heterocentric regime, and the ways in which subjects position themselves in the face of normative interpellations. In this text, we analyze two conversations established with the participants of this research, who discussed same-sex civil marriage and the criminalization of discriminatory and prejudiced posts shared in the network, inviting us as educational professionals to recognize the subjects’ ethical implication with the social issues of daily life.

Keywords: Social networks; Resistance; Education

Resumen:

El artículo explora la forma como un grupo de jóvenes se apropia de las redes sociales digitales como estrategia de (re-)existencia a la regulación de las vidas precarizadas. El trabajo de campo contó con la participación de cerca de 70 jóvenes autodeclarados/as no heterosexuales que integran una comunidad en Facebook. Las conversaciones en línea tejidas con estos/as jóvenes buscaron problematizar elementos de las redes enunciativas que forjan el régimen (cis) heterocentrado y los modos por los cuales los sujetos se posicionan frente a las interpelaciones normativas. En este texto, analizamos dos conversaciones establecidas con los participantes de la investigación, involucrando la discusión sobre el matrimonio civil igualitario y la denuncia de publicaciones discriminatorias y prejuiciosas compartidas en la red, invitándonos, como profesionales de la educación, a reconocer el compromiso ético de estos jóvenes frente a las cuestiones sociales de la vida cotidiana.

Palabras clave: Redes sociales; Resistencia; Educación

Ciberativismo e experiências juvenis invisibilizadas: a rede como dispositivo político

[…] a precariedade, está, talvez de maneira óbvia, diretamente ligada às normas de gênero, uma vez que sabemos que aqueles que não vivem seu gênero de modos inteligíveis estão expostos a um risco mais elevado de assédio, patologização e violência. (BUTLER, 2018, p. 41).

Este estudo assume que corpos juvenis geograficamente dispersos e interconectados encontram possibilidades de (re)pensar suas visões de mundo quando interagem no Facebook por meio de diálogos cotidianos tecidos em/na rede. Muitos desses corpos juvenis estão familiarizados com longos e árduos processos de subalternização e sentiram/sentem na pele a repulsa social que os coloca constantemente na mira dos olhares (cis)heteronormativos. Nosso argumento apoia-se nos estudos de Daniel Borrillo (2010), Judith Butler (2009, 2011, 2015, 2018), Paul Beatriz Preciado (2014) e Valdenízia Bento Peixoto (2018), que vêm analisando cotidianos de injúrias e outras formas de violência (incluindo ameaças e agressões físicas) contra certas vidas. Dito isso, seguimos nos rastros de Peixoto (2018, p. 22), que discute historicamente o contexto sociocultural brasileiro e aponta que nosso “[...] projeto de sociedade engendrado pelos grupos que detêm a hegemonia política, econômica e religiosa está na contramão do que se almeja para uma sociedade socialmente e culturalmente livre de preconceitos, abjeções e estigmatizações”. Nossa bagagem histórica não deixa dúvidas de que a violência cotidiana produzida e direcionada a todos os sujeitos não-heterossexuais revela a supremacia da ordem patriarcal e a construção da noção da homossexualidade ligada ao pavor, à culpa, ao pecado (PEIXOTO, 2018).

Registrados diariamente em todas as regiões do mundo, os inúmeros homicídios motivados por preconceito e discriminação contra as chamadas “minorias” sexuais, de gênero e étnico-raciais revelam que nem todos os corpos são dignos de luto. Conforme pondera Butler (2017, p. 44), “[...] se uma vida não é tratada como se sua perda fosse terrível, então sua perda já está incorporada na noção de vida. É por que isso que uma vida tem de ser considerada primeiramente como digna de luto para ser tratada plenamente como vida”. Os chamados “crimes de ódio”, no território brasileiro, são responsáveis pela eliminação de uma quantidade significativa de pessoas todos os anos que estão em inconformidade com as normas regulatórias de gênero vigentes. Esses crimes envolvem atos extremamente violentos como o estupro, o uso de armas de fogo e objetos cortantes diversos, a desfiguração de rostos por apedrejamento, a retirada dos órgãos genitais de meninos, além de muitos outros exemplos brutais que evidenciam a forma como tantas vidas foram e estão sendo brutalmente dizimadas Brasil afora (EFREM FILHO, 2016).

A condição politicamente induzida em que alguns corpos se encontram mais suscetíveis e expostos à injúria, à violência e à vulnerabilidade é nomeada por Butler (2009, 2011, 2015, 2018) como “vida precária”, ou seja, vidas tidas como inexistentes ou desprezíveis, vidas classificadas como matáveis, vidas não passíveis de luto. Isso indica que sujeitos em situação de vulnerabilidade social - mulheres, negros/as e pobres, pessoas dissidentes das normas sexuais e de gênero, entre outros/as - sofrem por conta de redes insuficientes de apoio social, por estarem enquadradas em condições invisíveis em que parte das minorias recorrentemente se encontra.

As vidas precárias colocam-se no cotidiano de uma sociedade extremamente violenta e de estruturas macroeconômicas que definem nossa própria (des)humanidade. Para Butler (2015, p. 31), a possibilidade de lesar, perder, destruir ou negligenciar uma vida até a morte é “[...] sublinhar não somente a finitude de uma vida (o fato de que a morte é certa), mas também sua precariedade (porque a vida requer que várias condições sociais e econômicas sejam atendidas para ser mantida como uma vida)”. As normas potencializam a condição de precariedade das vidas em vulnerabilidade desses sujeitos e, no caso específico das normas de gênero, subalternizam e marginalizam aquelas/es que não se enquadram no binarismo masculino/feminino e que não se identificam com a heterossexualidade. Assim, as formas diferenciais de distribuição da vulnerabilidade implicam a violência arbitrária direcionada a certos corpos que são socialmente regulados e inseridos em condições sociais desfavoráveis. Tais condições exacerbam a vulnerabilidade dessas populações em condição precária maximizada, direcionando-as à violência, como uma questão naturalizada em suas vidas, restringindo e limitando seus meios de autodefesa.

Frente a esse grave quadro social, consideramos importante historicizar os fenômenos sociais com a intenção de “[...] entender a contingência histórica das coisas, para ver como e por que as coisas se tornaram do jeito que são” (FOUCAULT, 1997, p. 154, tradução nossa). A partir da perspectiva foucaultiana, Fischer (2003, p. 378) reflete sobre a necessidade de situar espaço e temporalmente as práticas sociais, indo na contramão “[...] de uma compreensível economia que nos faz receber as coisas, as pessoas, as palavras e os atos como se eles fossem óbvios, dados, naturais, unívocos, plenos de racionalidade”. Em outras palavras, os atos/discursos precisam ser contextualizados e problematizados, por mais que possam parecer incontestáveis em um determinado contexto sócio-histórico.

Não obstante, muitas/os jovens que fogem aos padrões (cis)heteronormativos vêm encontrando brechas nas relações de poder, (re-)existindo às regulações/normatizações da vida (FOUCAULT, 2014) ao constituírem comunidades online em redes sociais digitais, de forma a favorecer trocas colaborativas capazes de fomentar debates potentes em prol da desestabilização das normas regulatórias de gênero e sexo (COUTO JUNIOR; OSWALD, 2017). Dessa produção da (a)normalidade no contexto social, cabe destacarmos que todas/os aquelas/es “[...] que não se enquadram nas características jovem, homem, magro, branco e de classe média são [...] nomeados como os diferentes, os estranhos que fogem à regra da normalidade e por isso nos incomodam” (GUIZZO; BECK, 2014, p. 302).

Com este texto, buscamos compreender experiências sociais de pessoas cujos corpos, gêneros e sexualidades são, constantemente, acossados pelas pressões sociais do regime (cis)heterocentrado (COUTO JUNIOR; POCAHY, 2017; COUTO JUNIOR; POCAHY; OSWALD, 2018). Embora comumente invisibilizadas, essas pessoas produzem diferentes possibilidades de resistência e subversão que nos colocam diante da assertiva foucaultiana de que onde há poder, lá está a resistência. Em um contexto (global) nitidamente marcado pela emergência de movimentos sociais conservadores, não podemos ignorar o quanto ainda precisamos nos sensibilizar para as experiências sociais das pessoas que se movimentam em posições dissidentes e “[...] que sempre necessitaram enfrentar os inseticidas morais para sobreviver” (PELÚCIO, 2016a, p. 134). Diariamente, aquelas/es tidas/os como “diferentes” convivem com forças conservadoras, que buscam incansavelmente minar vidas e colocar em xeque determinadas condições humanas.

Reconhecendo que o planejamento de estratégias de resistência é importante na ampliação das margens de liberdade de nossas existências, operamos no texto com a expressão “(re-)existência”, criada a partir da junção dos termos “resistência” e “existência”. O resultado dessa junção diz respeito às liberdades (e às potencialidades) linguísticas que o “português brasileiro” tem lançado mão para desconstruir estruturas do signo, como pensado na visão estruturalista (ARROJO, 2003). A dinamicidade de nossa língua vem sendo incorporada pelas pesquisas alinhadas com a abordagem pós-estruturalista, e isso significa colocar os conceitos em trânsito, de modo a praticar uma escrita que incorpore também a vivacidade de formas com as quais nos comunicamos com outras pessoas. No contexto deste trabalho, colocar em movimento o termo “(re-)existência” implica reconhecer que nossa existência também é uma forma de resistência.

Entendemos como estratégias de (re-)existência as diferentes possibilidades encontradas pelos sujeitos para transgredir normas e convenções socioculturais. Essas estratégias são colocadas em prática quando existe o mínimo de liberdade no contexto das relações de poder, permitindo a reversibilidade de determinadas práticas e estruturas sociais. Com Foucault (2004, 2014), reconhecemos que o poder apresenta caráter instável e polimorfo, não operando simplesmente na perspectiva da repressão “de X sobre Y”, por exemplo, mas movimentando-se de forma capilar, ou seja, para além das definições clássicas de que o poder seria meramente exercido de cima para baixo. Bacchetta (2009), seguindo essa premissa foucaultiana, reitera que o poder tampouco seria universal e organizado homogeneamente no tempo e no espaço, pois age sempre de acordo com as relações sociais de um determinado contexto. Dessa forma, as estratégias de (re-)existência operam no âmbito de uma complexa estrutura social, visando enfrentamentos que promovam (micro)rupturas no cenário contemporâneo.

Nossas práticas cotidianas, cada vez mais mediadas pelas dinâmicas das redes sociais da internet, vêm nos permitindo presenciar uma quantidade considerável de mensagens produzidas e compartilhadas a todo instante que ferem a existência de grupos sociais em vulnerabilidade, as chamadas “minorias” sexuais, de gênero e étnico-raciais, constituída de sujeitos e corpos viventes em condição precarizada. Essas mensagens motivadas por lgbtfobia (ódio e desprezo) são (re)produzidas com grande facilidade nas redes digitais e nos convidam a (re)pensar o quanto nossa luta cotidiana contra o fascismo está longe de ser encerrada, mas vem se intensificando na era do digital em rede. Conforme pondera Primo (2013, p. 15), “[...] agora que as mídias digitais foram de fato popularizadas (para se evitar a simplificação do termo ‘democratização’), será que os relacionamentos realmente se horizontalizaram em um platô sem hierarquias?”. Resistência e subversão constituem-se palavras-chave importantes nesse contexto porque dizem respeito à necessidade de que estejamos atentas/os às novas reconfigurações sociais engendradas pela cibercultura, cuja dinamicidade de interagir em/na rede potencializa a forma como grupos conservadores produzem e difundem discursos de ódio contra determinadas parcelas da sociedade.

Afinal, o que as/os jovens que compõem as chamadas “minorias” sociais têm a nos ensinar sobre as dinâmicas de socialização estabelecidas no contexto das redes sociais da internet? Na cibercultura, as/os usuárias/os são convidadas/os a participar de processos de ensino-aprendizagem colaborativos, garantindo-lhes a oportunidade para que as ideias sejam “[...] debatidas, confrontadas, tecidas e aprimoradas, com vistas a ir além da condição de consumidor de conteúdos, passando também a criar, disponibilizar, discutir e compartilhar suas autorias em rede” (SANTOS; CARVALHO, 2018, p. 34). Nesse cenário, cabe refletirmos sobre as mobilizações políticas de jovens interconectadas/os que, por meio dos usos das tecnologias digitais em rede, organizam-se ética e politicamente em prol de diversas lutas cotidianas que visam melhores condições de existência das suas vidas (CASTELLS, 2013).

Mesmo não se referindo especificamente às dinâmicas sociais que emergem nos contextos online, Flax (1992, p. 220) afirma que “[...] precisamos pensar mais sobre como pensamos acerca das relações de gênero ou de quaisquer outras relações sociais e sobre como outros modos de pensar podem nos ajudar ou atrapalhar no desenvolvimento de nossos próprios discursos”. Diversas pesquisas já discutiram e analisaram relações de gênero no contexto da cibercultura, incluindo organização orquestrada no Facebook por jovens em resposta ao projeto de cunho homofóbico popularmente denominado de “cura gay” (COUTO JUNIOR; OSWALD, 2017), novas sociabilidades (homo)eróticas emergentes no Facebook abarcando grupo de usuários interessados em partilhar desejos, afetos e prazeres (CARVALHO; ROSENO; POCAHY, 2017), investigação do processo de produção de subjetividades de jovens integrantes de uma comunidade da rede social Orkut (já extinta) (SANTO; PARAÍSO, 2007), além de novas possibilidades metodológicas que emergem para o campo das Ciências Humanas e Sociais quando a investigação adota o uso de aplicativos móveis voltados aos relacionamentos amorosos/sexuais (PELÚCIO, 2016b).

As sociabilidades juvenis mediadas pelo digital em rede constituem-se por diálogos online impulsionados por corpos que buscam viver e sonhar, (re)imaginando outras estéticas de (re-)existências para além das normas e das convenções culturais socialmente aceitas. Corpos juvenis que vêm se beneficiando da “liberação da palavra”, uma especificidade dos processos comunicacionais ciberculturais que permite às/aos usuárias/os sair da posição de meros receptoras/es de informação, passando a produtoras/es (em potencial) de informação para a rede (LEMOS; LÉVY, 2010). Com a emergência das práticas sociais ciberculturais, as pessoas deixaram de se contentar “[...] em consumir informações disponíveis, elas querem contribuir, emitir suas opiniões, envolver-se nos debates e ajudar para que outras pessoas possam solucionar seus problemas” (COUTO, 2013, p. 904). Por meio de processos comunicacionais participativos e colaborativos, usuárias/os de todos os cantos do globo vêm constituindo comunidades online dedicadas ao compartilhamento de diversas questões sociais, afetando umas/uns as/aos outras/os de modos diferentes. Reconhecemos que as micropolíticas operam em redes de saber-poder situadas dentro de um espaço-tempo próprio, “[...] sem esquecer que toda epistemologia é desde sempre engendrada politicamente, que é política, que é uma ação sobre o mundo, sobre o fazer-mundo” (POCAHY, 2016, p. 16).

Esse panorama supracitado constitui o cenário de pesquisa de Doutorado recentemente concluída no campo da Educação (COUTO JUNIOR, 2017). O presente trabalho é um recorte dessa pesquisa de Doutorado e apresenta como objetivo explorar a forma como um grupo de jovens internautas apropria-se do Facebook como estratégia de (re-)existência à regulação das vidas precárias. Reconhecemos os sujeitos da pesquisa como cidadãs/os da era da informação porque, conforme sugere Castells (2013, p. 14), são pessoas que participam das redes de colaboração para (re)inventar “[...] novos programas para suas vidas com as matérias-primas de seu sofrimento, suas lágrimas, seus sonhos e esperanças. Elaboram seus projetos compartilhando sua experiência”. Essas redes de solidariedade e colaboração vivenciadas com as/os participantes do estudo apontam para o protagonismo político de jovens que buscam, no espaço do Facebook, a possibilidade para trocar afetos, ideias, mobilizando também o planejamento de práticas de (re-)existência.

Como profissionais do campo Educacional, voltados principalmente à análise de questões do campo de estudos de gênero e sexualidade, interessa-nos investigar a constituição das redes de colaboração online por jovens que integram as chamadas “minorias” sexuais, de gênero e étnico-raciais. Essas redes online extrapolam os muros da escola e convidam-nos a perceber os processos de interação/comunicação das juventudes contemporâneas, que encontram na internet diferentes possibilidades de ser-viver, diferentes estratégias de aprender-ensinar e de promover mais vínculos sociais e afetivos com seus pares. São jovens que, por meio das dinâmicas ciberculturais, (re)criam estratégias de (re-)existência, ousam colocar em debate seus silêncios, suas dores e, ao mesmo tempo, suas aspirações e vontades por novas mudanças sociais.

A juventude é entendida aqui como uma categoria social que, devido a diversos fatores histórico-culturais que a compõem, comumente vem sendo empregada no plural pelas pesquisas em educação voltadas ao estudo das práticas sociais juvenis (DAYRELL, 2003; CARRANO; 2000). As diversas singularidades juvenis evidenciam a forma com a qual as/os jovens constituem-se como sujeitos por meio de “condições sociais (classes sociais), culturais (etnias, identidades religiosas, valores) e de gênero, e também das regiões geográficas, dentre outros aspectos” (DAYRELL, 2003, p. 42). A forma como as/os jovens produzem linguagem e cultura com seus pares nos convida a ir na contramão de um pensamento que, não raramente, associa esses sujeitos aos diversos problemas sociais da vida cotidiana (violência, doenças sexualmente transmissíveis, uso de drogas, para citar alguns) (PAIS, 1990; ABRAMO, 1997).

Somando-se a isso, como pesquisadores implicados com as questões juvenis contemporâneas, cabe questionarmos, com Pais (1990), se o pessimismo das pesquisas “[...] sobre a juventude não será uma ressonância do discurso que atravessa o olhar das gerações adultas sobre as gerações jovens” (PAIS, 1990, p. 144, grifo nosso). Esse olhar pessimista, muitas vezes atribuído aos jovens pelos adultos, desqualifica as práticas juvenis, que passam a ocupar um lugar de desprestígio social. Estaremos mais próximos de desconstruir esse pessimismo ao debruçarmo-nos sobre toda a riqueza das práticas e das ações culturais que as/os jovens vêm produzindo, buscando pesquisar em parceria com elas/es mediante um olhar sensível e alteritário. Isso significa adotar um olhar cuja dimensão de alteridade seja sensível o suficiente para permitir ao pesquisador (a tentativa de) colocar-se no lugar do outro, de forma a conhecer outros pontos de vistas na medida em que a pesquisa de campo é realizada em parceria com as/os jovens.

A seguir, dedicamo-nos a apresentar brevemente algumas considerações sobre o campo empírico da pesquisa, a participação dos sujeitos no estudo, além dos procedimentos teórico-metodológicos adotados no desenvolvimento do estudo.

Algumas notas sobre o campo, os sujeitos da pesquisa e os procedimentos teórico-metodológicos

O trabalho de campo da pesquisa foi conduzido no Facebook por meio de conversas online entre 2013 e 2015, com membros de um grupo de cerca de 70 jovens autodeclaradas/os não-heterossexuais que integram uma comunidade na referida rede digital. O grupo existia antes do início da pesquisa, o que implicou na necessidade de que os sujeitos fossem convidados a participar da investigação, sendo o trabalho de campo conduzido pelo pesquisador, que já fazia parte do grupo durante alguns meses. Participar como membro do grupo antes do início do trabalho de pesquisa de Doutorado forneceu ao pesquisador um panorama geral dos assuntos tratados e que puderam, posteriormente, se constituir em questões de pesquisa importantes à medida que as interações online ocorriam. Durante os três anos imersos no grupo, praticamente todos os sujeitos participaram das conversas, muitas das quais envolvendo mais de duas pessoas ao mesmo tempo, possibilidade interativa proporcionada pelas dinâmicas comunicacionais online.

Nesse grupo, muitas das conversas apresentaram o intuito de tensionar os pilares que sustentam o regime (cis)heterocentrado, colocando em debate alegrias, tristezas, sonhos etc., ou seja, suas próprias experiências sociais. Por constituir-se um grupo fechado no qual muitas/os de suas/seus participantes ainda encontravam no “armário” formas de se protegerem contra os olhares (cis)heteronormativos, foi acordado com elas/eles o quão importante seria o uso de pseudônimos (escolhidos pelas/os próprias/os) para serem identificadas/os no texto da pesquisa. A pesquisa de campo no Doutorado voltou-se a investigar as experiências da abjeção desses sujeitos a partir de conversas no Facebook sobre (cis)heteronormatividade (COUTO JUNIOR, 2017). Em relação ao presente texto, conforme já enunciado, nossa proposta foi investigar como parte do grupo de jovens pesquisado apropria-se da rede Facebook como estratégia de (re-)existência à regulação das vidas precárias.

Em 2013, ano de entrada em campo, as/os jovens apresentavam idade variando entre 16 e 35 anos e eram estudantes de Graduação de uma universidade pública localizada no Rio de Janeiro (RJ). Em relação aos procedimentos metodológicos, foram realizadas conversas online na página do grupo no Facebook, muitas vezes abarcando a participação de dezenas de pessoas em uma mesma postagem, além de conversas individuais no chat da rede. Essas conversas, focalizadas em problematizar os regimes de verdade impostos pelos discursos engendrados pelas normas regulatórias de gênero, foram analisadas interpretativamente pelas teorizações de pesquisadoras/es do campo de estudos de gênero e sexualidade alinhadas/os com a perspectiva pós-estruturalista. A pesquisa empírica estabeleceu como recorte analisar o atravessamento dos marcadores sociais de gênero e de sexualidade nos cotidianos dos sujeitos participantes do estudo, focalizando, principalmente, a forma com a qual os discursos (cis)heteronormativos são colocados em funcionamento e manutenção em seus respectivos âmbitos familiares e escolares.

Privilegiamos as conversas online como procedimento metodológico para interagir com os sujeitos no Facebook porque entendemos que o diálogo com o outro na internet, “[...] ao ser cultivado pelas relações de amizade, de cumplicidade e da horizontalidade da palavra, é capaz de transformar pesquisador e sujeitos, porque cada palavra escrita torna-se um convite para que [...] novos sentidos sejam produzidos sobre as diversas experiências cotidianas” (COUTO JUNIOR; FERREIRA; OSWALD, 2017, p. 31). Nessa dimensão colaborativa da partilha, cuja relação “horizontal” com o outro é privilegiada, o pesquisador não é o único a fazer perguntas, tampouco os sujeitos são meramente colocados na posição de meros “informantes” de dados que são solicitados. Dessa forma, as experiências cotidianas compartilhadas no grupo do Facebook foram discutidas/problematizadas em parceria com os sujeitos pesquisados a partir de debates lançados pelo pesquisador e pelas/os próprias/os jovens. Assim, os mais diversos conteúdos foram compartilhados - imagens, vídeos, links, para citar alguns -, e potencializaram as conversas online tecidas com as/os jovens pesquisadas/os. Temas como a (cis)heteronormatividade, o dispositivo do “armário”, família e escola foram um dos mais recorrentes e proporcionaram discussões importantes que obtiveram certa centralidade de análise na pesquisa de Doutorado.

A investigação adotou o Facebook como lócus de pesquisa e foi amparado pelos pressupostos teórico-metodológicos de dialogismo e alteridade de Mikhail Bakhtin e as/os interlocutoras/es dele. Nessa perspectiva, pesquisador/a e sujeitos são reconhecidas/os como pessoas expressivas e falantes (BAKHTIN, 2011), o que significa que a relação estabelecida no campo de pesquisa não pode se limitar à mera contemplação, pois as/os participantes têm voz que precisam ser ouvidas para que o diálogo se estabeleça (FREITAS, 2002). Para Bakhtin (2011), toda linguagem produzida leva em conta outras enunciações anteriormente produzidas e busca dialogar com outras que se supõe que serão produzidas posteriormente, o que faz locutor e interlocutor agirem e atuarem ativamente no diálogo proferido. O locutor interpela o interlocutor prevendo, em alguma medida, o que ele pode vir a responder ou antecipando uma compreensão ativa na resposta, assim como o locutor leva em consideração - ainda que não de forma explícita - identificações do interlocutor, tais como classe social, formação acadêmica, grau de proximidade e intimidade, para escolher o melhor recurso linguístico para a interpelação, o que podemos reconhecer como exemplo da materialização de espaços de dialogicidade.

Dessa forma, a perspectiva bakhtiniana convida-nos a reconhecer a importância de que a relação construída com o outro ocorra de forma alteritária e dialógica, favorecendo colocar em prática a dimensão da horizontalidade das vozes, ou seja, uma dimensão que coloca pesquisador/a e sujeitos negociando sentidos de forma permanente e em pé de igualdade (COUTO JUNIOR; FERREIRA; OSWALD, 2017). Nem todas as experiências intercambiadas entre pesquisador/a e sujeitos necessariamente convergem, com muitas ideias compartilhadas por ora divergindo, o que revela, na perspectiva bakhtiniana, o entendimento do diálogo como uma “arena” (AMORIM, 2008). Isso significa que os momentos de interação com a/o outra/a envolvem negociação de sentidos por vezes conflituosos, com argumentos que precisam ser ouvidos e que apontam para outras formas de pensar-ver o mundo. Essa tentativa de interagir com a/o outra/o é necessária para estabelecer a comunicação dialógica, apesar do grande desafio que é olhar o mundo buscando colocar-se no lugar da/o outra/o.

A pesquisa em questão oferece-nos importantes contribuições que sugerem apontamentos inconclusivos, haja vista que as dinâmicas sociais mediadas pelo digital em rede se encontram em plena reconfiguração social, com mobilizações ativistas organizando-se quase que diariamente por meio das redes online. Escrever sobre um tema que acompanha as transformações e as reconfigurações do digital em rede confere-nos o desafio de analisá-lo com o cuidado redobrado. Dito isso, optamos por caminhar com a perspectiva de Louro (2007, p. 237), pois a autora argumenta que, “[...] quando ‘recheamos’ nossos textos de questões, provocamos um deslizamento na fonte de autoridade e instigamos ou convidamos o/a leitor/a a formular respostas às indagações feitas”. Que essas questões tecidas ao longo do texto possam provocar novas reflexões para a educação, permitindo-nos avançar com a articulação entre os campos da cibercultura e o campo de estudos de gênero e sexualidade.

A seguir, apresentamos e discutimos alguns dos momentos de interação entre/com os sujeitos no Facebook realizados durante o trabalho de campo da pesquisa. Os temas levantados durante as conversas online com os sujeitos, envolveram a discussão em torno do reconhecimento e da legitimação do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e a denúncia de postagens discriminatórias e preconceituosas compartilhadas na rede.

Continue sempre com as ‘verborreias’ porque elas rendem boas discussões e boas reflexões”: refletindo sobre o casamento civil igualitário

Durante o trabalho de campo da pesquisa, houve a oportunidade para que as/os jovens participantes do estudo compartilhassem e discutissem na rede o casamento civil igualitário (Projeto de Lei No 5.120/2013), de autoria de Jean Wyllys (Partido Socialismo e Liberdade - PSOL/RJ) e Erika Kokay (Partido dos Trabalhadores - PT/DF). Ian McKellen mostrou-se empenhado em conversar melhor com o grupo sobre o casamento civil igualitário, ao compartilhar uma imagem que vinculava dados da candidatura de Jean Wyllys a Deputado Federal, com os seguintes dizeres: “Casamento civil igualitário: legaliza o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, acabando com a discriminação legal contra os casais homossexuais e garantindo a igualdade plena de direitos para suas famílias”.

Ian McKellen: O que vos mercê sabe sobre isso [casamento civil igualitário]?

Pesquisador: estou lendo/estudando um pouco sobre o tema e alguns pesquisadores me colocaram p pensar algumas coisas... será que só seremos legitimados pelo estado quando casarmos? E quem nunca desejou casar? Eu não tenho muitas respostas para essas e outras tantas questões, mas isso tirou um pouco o "meu chão" pq a gente cresce ouvindo falar que "depois da fase do namoro vem casamento!". Meus amigos até hoje me cobram isso e ainda me perguntam se eu vou "adotar filhos". Como assim? Além de casar, preciso adotar?! rsrsrsrs eu “rio” agora no FB, mas as conversas às vezes são meio tensas...

Ian McKellen: a questão de casar talvez seja pelos direitos... Se você, por exemplo, independente de casar em algum momento por algum motivo quiser garantir os direitos do seu parceiro aos bens que conquistaram mutuamente, mas estava legalmente registrado no nome de apenas um de vocês.

Estou tendo um pensamento burocrático. Mas um cara que, por exemplo, tenha sido deserdado da sua família, encontrado ou parado com um único homem e construído carreira e bens e etc... pode querer (sem ter de correr atrás de testamentos e etc., etc..) que, ao acontecer alguma coisa inesperada (assassinato por homofobia, sei lá), seu parceiro tenha direito (legalmente falando) àquilo que ele de fato tem direito.

Sem falar outros direitos simples, mas que existem por um motivo. Como o tempo de luto e resguardo, ou de se afastar de trabalho sem perder emprego em casos onde a vida do parceiro possa depender disso. Pode não ser uma pauta real pra nós, jovens, viris, por desbravar o mundo e ainda sem posses... Mas o casamento é uma instrumento legal que concede direitos que não existem por acaso....

[...]

Enfim... CLARO que existe uma discussão MAIS DO QUE VÁLIDA sobre isso ser parte de uma autoimposição de uma cultura que tem origem nas nossas raízes heteronormativas e monogâmicas, etc....

Mas se existe o direito para uns, que exista para todos e que NÃO USUFRUIR dos direitos seja fruto de escolhas pessoais e não de imposições, discriminação etc....

Desculpe o analfabetismo e a verborragia, mas a comunicação via Facebook, em especial nesses temas, é algo tão visceral para mim que digito na velocidade que penso.

Pesquisador: o que você destacou sobre o Facebook é o que eu vejo de tão interessante nele para conversar com as pessoas. Não precisamos escrever de forma formal para que os outros nos entendam. Essa dinamicidade da rede para conversar com um monte de gente ao mesmo tempo é muito rica. E, claro, caso alguém não entenda alguma coisa sempre é possível perguntar. [...] continue sempre com as "verborréias" porque elas rendem boas discussões e boas reflexões.

Com Ian McKellen, percebemos a preocupação do jovem em torno dos direitos sociais que são garantidos por lei em um contexto no qual ainda há a “autoimposição de uma cultura que tem origem nas nossas raízes heteronormativas e monogâmicas”. Esse aspecto sócio-histórico mencionado não pode ser negado, principalmente quando consideramos, no Brasil, grupos conservadores que vêm colocando em funcionamento um projeto de sociedade que mostra a força da supremacia da ordem patriarcal e, consequentemente, relegando ao segundo plano todos os sujeitos que integram as chamadas “minorias” sexuais (PEIXOTO, 2018).

Em uma época marcada por essa ordem patriarcal, consideramos o casamento civil igualitário como uma conquista importante, um primeiro passo para desestabilizar o que Preciado (2014, p. 143) denomina de “paraíso da reprodução”, no qual há uma ênfase no papel de um relacionamento sexual meramente reprodutivo, ou seja, um relacionamento envolvendo única e exclusivamente duas pessoas do chamado sexo oposto. Todavia, embora essa conquista possa desestabilizar a ideia de que apenas seria legitimado e reconhecido o relacionamento/casamento entre homens e mulheres, questionamo-nos, também, sobre quantos homens gays e mulheres lésbicas não almejam casar e quantos relacionamentos formados por mais de duas pessoas ainda não podem usufruir dos direitos proporcionados pela lei do casamento civil igualitário. Nesse contexto, indagamo-nos ainda sobre o fato de que o casamento muitas das vezes é considerado o “ponto de chegada” dos relacionamentos afetivos/amorosos julgados como bem-sucedidos, como se as demais reconfigurações afetivas/sexuais fossem qualitativamente inferiores.

Ainda que nem todas as questões no parágrafo anterior tenham sido problematizadas na conversa, elas se encontram alinhadas à crítica de Ian McKellen sobre nossa sociedade ainda ser (hetero)normativa e desvalorizar todas as relações afetivas/amorosas que diferem dos relacionamentos monogâmicos heterossexuais. Por um lado, preocupa-nos que “[...] o direito à parceria civil corre o risco de se tornar uma norma e a única maneira de legitimar a sexualidade” (MISKOLCI, 2007, p. 122). Por outro lado, a conversa tecida com Ian McKellen levantou a questão de reconhecimento de uniões homoafetivas pelo Estado para a garantia de direitos, reivindicação mais do que legítima para sujeitos que não se enquadram na orientação heterossexual e muitas das vezes são impedidos de usufruir de determinados direitos. De acordo com o jovem, não podemos ignorar o quão importante é o casamento civil igualitário para todos os casais frente às questões cotidianas envolvendo a aquisição de bens (imóveis, por exemplo), nos casos em que uma das pessoas adoece e, até mesmo, em caso de morte.

A violência de Estado é um dos princípios que fundamentam a noção de vidas precárias, que se torna mais aguda quando direcionada a pessoas cujas identificações de gênero e orientação sexual são tidas como ininteligíveis. Nessa discussão, Butler (2015) defende uma democracia radical como instrumento de enfrentamento à questão. O paradoxo dessa discussão é que as populações expostas à violência arbitrária de Estado, em condição politicamente induzida de maximização da condição precária, buscam, nesse próprio Estado, sua proteção, quando deveriam, em muitos aspectos de sua vida social, serem protegidas dele. A principal tarefa de uma democracia radical seria, então, a oposição à violência de Estado que se fundamenta na força de exploração da precariedade de sujeitos tidos como fora da norma, por meio do reconhecimento como sujeitos de direito pelas diferentes instituições sociais. Interpretamos que a democracia radical, defendida pela teórica feminista, seria uma estratégia potente para desestabilizar práticas sociais hegemônicas.

A ideia inicial da conversa anteriormente apresentada era discutir com o grupo sobre o casamento civil igualitário; entretanto, o convite feito por Ian McKellen desencadeou outras reflexões porque, como todo e qualquer diálogo, não há como prever o rumo das interações dadas pelos participantes. A possibilidade de Ian McKellen para expressar-se com outras/os internautas pelo Facebook fornece uma melhor compreensão da comunicação em/na rede quando o jovem ressalta que a escrita na internet, “em especial nesses temas, é algo tão visceral para mim que digito na velocidade que penso”. A dinamicidade da escrita online favorece a criação de uma linguagem “[...] cheia de símbolos, de abreviaturas, mais coloquial, própria para a comunicação livre, sem amarras e regras, muito ágil, potencializando a agilidade de pensamento e permitindo que a pessoa se solte, dê vazão às suas emoções, às suas fantasias” (BONILLA, 2004, p. 13). Considerando que as interações ocorrem por meio da linguagem, percebemos a rica oportunidade que emerge em muitos grupos de discussão nas redes sociais ao valorizarem a dimensão dialógica e de alteridade na escuta atenta do outro, compreendendo a importância do compartilhamento e da produção colaborativa de informações.

Por intermédio das práticas colaborativas das redes sociais, incontáveis ideias emergem entre as/os internautas e podem concretizar-se em uma ação humana de considerável visibilidade. O espaço comunicacional da internet permite a qualquer usuária/o a participação como coaprendiz e coautor/a crítico/a (OKADA, 2011), cujo engajamento em processos abertos de aprendizagem garante a oportunidade para dialogar com nossos pares. A relação dialógica e de alteridade estabelecida com as/os participantes da pesquisa mostram que o sentimento de afeto ocorre pelo “[...] simples fato de que é bom estar junto, ainda mais quando o compartilhamento, a reciprocidade e a cumplicidade não têm outro destino ou finalidade a não ser o puro, singelo e radical prazer de estar junto” (SANTAELLA; LEMOS, 2010, p. 25-26). Esse sentimento de pertencimento impulsionou as/os participantes do estudo a se engajarem na tarefa de, juntas/os, mobilizarem-se eticamente em torno de ações ciberativistas que buscam garantir estratégias de (re-)existência em prol do reconhecimento e da legitimidade de vidas que, historicamente, vêm sendo silenciadas e apreendidas em condição de precarização. Essas ações ativistas incluem a “denúncia” de determinadas postagens online, conforme discutiremos a seguir.

Devíamos todos fazer e mandar os amigos também denunciarem”: responsabilidade ética e rede social

Reconhecer a rede como um amplo campo de possibilidade de criação e de troca de conhecimento e cultura (SANTOS; WEBER, 2013) significa perceber sua potência política no compromisso ético de enfrentar os mais perversos discursos discriminatórios e preconceituosos que emergem cotidianamente nas dinâmicas sociais mediadas pelo digital em rede. Um dos desafios que temos hoje pela frente é o de nos apropriar dos diferentes espaços da rede, engajando-nos coletivamente no planejamento de estratégias de resistência que possam, ainda que minimamente, subverter os tantos discursos que almejam desqualificar corpos, gêneros e sexualidades, colocando em suspenso outras possibilidades de existência para além do modelo (cis)heterocentrado (COUTO JUNIOR; OSWALD, 2017). Conforme enuncia Foucault (2004, p. 277), “[...] se não houvesse possibilidade de resistência - de resistência violenta, de fuga, de subterfúgios, de estratégias que invertam a situação -, não haveria de forma alguma relações de poder”. Essas possibilidades de resistência são apresentadas a seguir, em dois momentos de interação com as/os jovens participantes do estudo de campo e incluem os atos de denúncia e as trocas colaborativas, cujas reflexões nos permitem (re)pensar nos tantos corpos renegados à condição precária.

1

Nogan:

“Mulheres são seres puramente sexuais”. denunciado. Sugiro que todos façam o mesmo.

http://homemdebem.org/mulheres-sao-seres-puramente-sexuais/

Para quem ainda não conhece: site da Safernet do Brasil para crimes humanos na internet: http://www.safernet.org.br/site/denunciar

Jorge: denunciei!

Pesquisador: me too. Barbaridade o que o pessoal posta na rede! :/

2

Dalton: “Jovem negra coloca foto com namorado branco no Facebook e sofre racismo” :/ Eis a reportagem:

http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/08/28/jovem-negra-coloca-foto-com-namorado-branco-no-facebook-e-sofre-racismo.htm

Cara pessoas da idade dessa menina 20a, nasceram em 1994!!! Eu já tinha 10 e a escravidão já tinha acabado fazia tempo! Como podem desferir assim publicamente palavras de tal ódio e conteúdo?! *choro.

Pesquisador: eu vi aquela foto dos namorados! é muita crueldade mesmo, e a internet é um prato cheio para propagar esse tipo de preconceito/discriminação (vide a página do Facebook "#Orgulho de ser hetero", que hoje em dia, agosto de 2014, já tem cerca de 1 milhão e 700 mil curtidas - ou seja, pessoas acompanhando a página).

Dalton: Eu entrei lá e denunciei como ofensiva a página, já tem tempo acho q vou fazer outra vez! Devíamos todos fazer e mandar os amigos também denunciarem.

Pesquisador: [...] Eu lembro que o Polobio disse que denunciava essa página constantemente. Eu já denunciei algumas vezes... mas ao mesmo tempo fico me perguntando: a gente denuncia e aí? Se tudo der certo como a gente quer, a página acaba. Mas precisamos lembrar que as relações na internet são dinâmicas e não é difícil criar outras páginas semelhantes. Claro que sou contra este tipo de página que prega dizeres horríveis! Mas eu acho mais produtivo interagir com o povo dessas páginas horríveis e tentar plantar algumas boas ideias do que simplesmente "denunciar para acabar". Eu acho que antes de enfrentar os dizeres homofóbicos/racistas, é preciso conhecê-los melhor, conhecer essas pessoas que têm tanto ódio no coração, e nada como ver tudo isso nessas páginas horríveis. Eu li muita coisa navegando no "#Orgulho de ser hetero", e confesso que tem horas que dá vontade simplesmente de mandar o povo de lá pra M.

Dalton: Fui lá agora e não vi post homofóbicos, mas sim machistas.

Pesquisador: Isso mesmo! em uma das discussões que participei, mandaram eu procurar a cura p minha homossexualidade e disseram p eu costurar meu cu e parar de veadagem! gente, aquilo lá não é brincadeira não!

Dalton: [resposta do Facebook após a denúncia da página] Obrigado por dedicar tempo para comunicar algo que você acha que possa violar a nossa comunidade. Relatórios como o seu são uma importante parte do que torna o Facebook um ambiente seguro e acolhedor.

Na tessitura das reflexões apresentadas neste texto, entendemos a importância de nosso papel social como pesquisadoras/es na desconstrução de crenças que buscam validar regimes de verdade (FLAX, 1992). Indo nessa mesma linha de pensamento, reconhecemos que, em um determinado tempo e espaço, nossa posição no mundo nos confere responsabilidade com a forma como o conhecimento é produzido e difundido socialmente (AMORIM, 2013). Cabe destacarmos que a verdade é uma invenção forjada no campo social (PARAÍSO, 2014), muito embora determinados grupos de sujeitos busquem validar preceitos que colocam em funcionamento a naturalização de processos normativos/excludentes na vida cotidiana.

Pesquisar questões envolvendo gênero, sexualidade e raça/etnia inspira-nos a buscar entender como os discursos são produzidos, mantidos e desconstruídos nas dinâmicas sociais. Conforme revelam as conversas realizadas com as/os jovens, mostradas anteriormente, “denunciar” postagens online vai muito além de uma tentativa de retirar da rede conteúdos que colocam em xeque determinadas formas de ser e de estar no mundo. Mais do que isso, essas denúncias constituem-se como atitudes responsáveis/éticas capazes de encorajar debates em torno dos mais variados temas, como a homofobia, o racismo, o machismo, dentre outros.

Ademais, a ação de denunciar uma postagem compartilhada na internet pode ser entendida como uma estratégia de resistência que visa assegurar nosso direito de lutar por meio das vias democráticas, o que implica nosso papel de praticar, de forma responsável e ética, a reflexão em torno de atos/discursos que colocam determinados grupos de sujeitos na condição de subalternos. Reiteramos aqui a necessidade dessas denúncias, ainda mais considerando nosso tempo presente, nitidamente caracterizado “[...] pelo ódio consentido, autorizado e incitado por (des)governantes-tempo-discurso que fere e posiciona a diferença como o signo material da morte. Diferença letalizada, tomando o corpo como campo de batalha. Máquina-de-morte social, máquina-cancro” (POCAHY, 2018, p. 11). Nesse sentido, o processo da diferença - o jogo do diferir - encontra pouca ou restrita margem de diferenciação, acossado por forças de exceção - como os totalitarismos, o racismo, a (cis)heteronormatividade.

Conforme foi levantado na conversa anteriormente apresentada, a denúncia é importante, ao mesmo tempo que também é “produtivo interagir com o povo dessas páginas horríveis e tentar plantar algumas boas ideias do que simplesmente ‘denunciar para acabar’”. Afinal, concordamos que seja “preciso conhecê-los melhor, conhecer essas pessoas que têm tanto ódio no coração, e nada como ver tudo isso nessas páginas horríveis”. Dessa forma, com as dinâmicas comunicacionais digitais, não há dúvida de que podemos conhecer melhor o outro e estabelecer novos laços sociais (RECUERO, 2013); entretanto, diante da proliferação de uma quantidade significativa de discursos preconceituosos e discriminatórios compartilhados na rede, é exigido de nós a reinvenção das estratégias de enfrentamento ao racismo e a lgbtfobia (COUTO JUNIOR; POCAHY; CARVALHO, 2019).

Deparamo-nos, então, com um desafio: buscar de forma dialógica e alteritária uma aproximação com determinados grupos de sujeitos que insistem em desqualificar as vidas das pessoas que integram as chamadas “minorias” sociais, de modo a reforçar a precarização de suas existências. Como profissionais do campo da Educação, estamos eticamente implicados na melhoria do quadro social do Brasil hoje; nessa perspectiva, entendemos o quanto essa aproximação com grupos de internautas que produzem postagens preconceituosas e discriminatórias não é tarefa fácil, principalmente quando reconhecemos o quanto o diálogo entre duas ou mais consciências é tecido em meio a uma “arena” (AMORIM, 2008).

As conversas online nem sempre se enredam com reflexões convergentes, pelo contrário, “[...] a conversação em rede é um espaço frutuoso para a emergência de discussões inflamadas, discursos agressivos e ofensivos e, mesmo, pela propagação da violência” (RECUERO, 2013, p. 62). As postagens realizadas por Nogan e Dalton em prol da denúncia das páginas mencionadas evidenciam o convite feito por eles a outras/os internautas para engajarem-se ética e politicamente no enfrentamento às diversas intolerâncias sociais que vêm ganhando destaque na internet. Na tentativa de encontrar brechas que possam promover fissuras rompantes aos discursos hegemônicos, julgamos importante a necessidade de, na qualidade de pesquisadoras/es, sermos autocríticas/os com a forma como pensamos as relações entre pessoas envolvendo marcadores sociais de identidade e diferença diversos; caso contrário, “[...] corremos o risco de reproduzir as próprias relações sociais que estamos tentando entender” (FLAX, 1992, p. 236).

Conforme argumenta Butler (2009), o direito de reconhecimento de uma vida passível de luto perpassa as diferentes reivindicações, em suas especificidades, de categorias sociais apreendidas como minorias, tais como mulheres, negros/as e pessoas LGBTs, pois

[...] vale tanto para o direito a estar livre de ataques racistas, físicos e verbais, como para a reivindicação feminista da liberdade reprodutiva, assim como vale também para todos aqueles cujos corpos trabalham sob coação política e econômica, sob condições de colonização e ocupação. (BUTLER, 2009, p. 52, tradução nossa).

Nesse contexto, a mobilização em rede para a denúncia das postagens de assédio das páginas mencionadas são legítimas e constituem uma ação de resistência à condição de precarização de corpos e de sujeitos tidos como não normativos na ordem social.

As relações de saber-poder adentraram agora as dinâmicas sociais das redes digitais, cujas interfaces interativas vêm permitindo a interconexão entre uma quantidade significativa de usuárias/os, conectadas/os a uma mesma rede de transmissão/acesso. Conforme reiteram D’Ávila e Santos (2014, p. 113), “[...] a cibercultura não é uma cultura própria de um segmento, não escolhemos se queremos estar dentro ou fora dela porque trata de uma revolução paradigmática”. Ainda que porventura seja nossa opção não alimentar as redes sociais com nossas próprias palavras-pensamentos, não podemos ignorar o fato de que a produção e o compartilhamento de ideias são realizados intensamente por internautas de todos os cantos do globo. Parece-nos uma opção interessante adentrar a cena digital contemporânea com um olhar atento que busque tentar entender o que faz um/a usuária/o pensar diferente de nós, com o intuito de identificar quais argumentos são acionados para que as reflexões sejam tecidas. Afinal, conforme pondera Butler (2011, p. 14), “[...] alguém ainda sustenta as palavras que profere? Podemos rastrear essas palavras a um falante, ou mesmo a um escritor? E qual mensagem, exatamente, está sendo enviada?”.

Concordamos com Fischer (2003, p. 380), para quem se inspira na perspectiva foucaultiana e argumenta que “[...] nossas análises precisarão dar conta das pequenas lutas, das lutas por imposição de sentidos, das lutas pelo poder da palavra, num certo foco específico de relações de poder; ora, essas lutas [...] existem lado a lado, por todos os lados, e não são linearmente compreensíveis”. Que nossos textos possam dar conta de registrar/analisar as (micro)políticas cotidianas, dando lugar à construção de argumentos potentes na dissolução de discursos de ódio proferidos contra os grupos historicamente subalternizados que compõem as “minorias” sexuais, de gênero e étnico-raciais.

Redes sociais, (re-)existência e educação: breves notas (in)conclusivas

Pesquisar com jovens nas redes sociais convida-nos a refletir sobre os modos pelos quais esses sujeitos emergem nas dinâmicas ciberculturais, aprendendo-ensinando com seus pares a produzir e a compartilhar novos conhecimentos (FERREIRA; COUTO JUNIOR, 2018). No que diz respeito aos compartilhamentos realizados pelos sujeitos, cabe refletirmos sobre o que se produz e vem sendo produzido em termos de crítica e oposições no bojo das questões sociopolíticas contemporâneas. O campo da Educação pode encontrar pistas na construção de estratégias de (re-)existência a partir da ideia de que somos produzidos como sujeitos da/na cultura e que as práticas de significação envolvem aprendizados-ensinanças que têm possibilitado a criação de uma rede de discursos e antagonismos políticos.

Mobilizar-se politicamente por meio das redes sociais, de modo a focalizar no questionamento aos diferentes regimes de verdade que buscam dinamitar determinadas formas de ser e de estar no mundo, permitiu-nos perceber uma profunda implicação ética das/os participantes da pesquisa com as questões sociais que a vida cotidiana atualmente nos apresenta. A rede é um espaço de intensa produção e disseminação de discursos de ódio e, ao mesmo tempo, um espaço frutífero com amplas possibilidades de se planejar estratégias de resistência e subversão aos regimes de verdade que normatizam modos de ser-viver, precarizando-os. Não há como negar que, como educadoras/es, nosso desafio hoje também é buscar ocupar os diferentes espaços das redes na esperança de perceber a forma como os movimentos conservadores vêm atingindo em cheio os diferentes espaços institucionais, incluindo escolas e universidades Brasil afora.

Nesse contexto, não poderíamos deixar de reiterar aqui nossa preocupação com os discursos preconceituosos e discriminatórios produzidos e amplamente difundidos cotidianamente por meio das dinâmicas comunicacionais online. Por outro lado, encoraja-nos a pensar no quanto determinadas manifestações juvenis na internet trazem implicações importantes no que diz respeito à forma como muitas/os jovens vêm ocupando as redes sociais digitais, evidenciando uma mobilização social potente em resposta aos acontecimentos contemporâneos relacionados ao gênero e à sexualidade no Brasil. Frente a isso, vem sendo necessário ocuparmos também as redes sociais na tentativa de enfraquecer determinados discursos conservadores que reforçam os alicerces que sustentam a supremacia das normas regulatórias de gênero.

Os sujeitos participantes da pesquisa apontam para o desejo de permanecerem interconectadas/os, interagindo cotidianamente por intermédio da participação em processos de ensinar-aprender envolvendo a construção de ideias engendradas por múltiplos pontos de vistas. Esses sujeitos convidam-nos a pensar que, como profissionais da Educação, nosso desafio também vem sendo (re)agir frente às barbaridades de nosso tempo, e isso inclui planejarmos de forma criteriosa a construção de estratégias de enfrentamento que sejam orquestradas também nas redes sociais online, garantindo que nossas vozes mobilizem o maior número de pessoas possível na luta contra o regime (cis)heterocentrado. Em tempos de profundas violências contra as chamadas “minorias” sociais, não há como negar o quão imprescindível é o engajamento coletivo em prol de ações que provoquem fissuras em uma ordem sociocultural que policia corpos, viola direitos e é responsável pela produção e reiteração de práticas preconceituosas e discriminatórias dirigidas a diversos grupos de pessoas que desafiam as normas regulatórias de gênero, ousando (re-)existir (SALGADO; MARTINS-GARCIA, 2018).

O futuro talvez não traga boas notícias para todas/os aquelas/es que lutam em defesa da escola/universidade laica, gratuita e de qualidade, porém não podemos ficar à deriva de todos os acontecimentos sociais que hoje estão sendo orquestrados nas redes sociais digitais. Embora possa parecer que estejamos imobilizadas/os devido a tantas formas de violência e opressão vividas cotidianamente, não podemos ignorar a premissa foucaultiana (FOUCAULT, 2004) de que se estamos conseguindo resistir é porque apresentamos o mínimo de liberdade para encontrar brechas capazes de possibilitar nosso engajamento político com as atuais questões sociais. Que possamos cavar cada vez mais brechas de (re-)existência em parceria com outras/os internautas geograficamente dispersas/os, fazendo também da internet nosso dispositivo político em prol do alargamento de nossas margens de liberdade.

1(Cis)heteronormatividade diz respeito a um regime político colocado em prática e manutenção por normas regulatórias de gênero e orientação sexual que buscam desqualificar todas/os aquelas/es que “desviam” dos padrões sociais hegemônicos (COUTO JUNIOR; POCAHY, 2017). As/os “desviantes” incluem sujeitos não-heterossexuais e aquelas/es que fabricam masculinidades e feminilidades em desconformidade com o gênero atribuído no momento do nascimento.

2A dissidência refere-se a práticas políticas e culturais constituídas por tudo aquilo que escapa aos movimentos de captura que ensejam certa hegemonia (COUTO JUNIOR; POCAHY; OSWALD, 2018).

3Tradução de: “[…] to understand the historical contingency of things, to see how and why things got to be as they are” (FOUCAULT, 1997, p. 154).

4Trata-se da pesquisa Marcas da abjeção expressas em conversas sobre heteronormatividade com jovens no Facebook: em defesa de uma pedagogia queer, de Dilton Ribeiro Couto Junior, concluída em 2017, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPEd/UERJ).

5Na próxima seção do texto, apresentamos, com mais detalhes, quem são os sujeitos participantes do estudo.

6A condução desse trabalho foi realizada pelo primeiro autor do texto. Os demais autores deste artigo, pesquisadores do campo de estudos de gênero e sexualidade, auxiliaram no aprofundamento de questões teóricas. O segundo autor centralizou seus esforços na discussão da precariedade em Judith Butler, enquanto o terceiro e o quarto autores partiram das contribuições de Michel Foucault para aprofundar as noções de resistência e poder.

7Nem todos os temas mencionados são discutidos/analisados no presente texto, mas foram abordados em outros artigos já publicados e que também são fruto da tese de doutorado de Couto Junior (2017).

8Não é nosso objetivo com este texto discutir as repercussões sociais desse projeto criado há 6 anos. Nosso interesse analítico recai sobre as trocas colaborativas realizadas entre as/os jovens na conversa online. Para mais informações sobre esse Projeto de Lei, acesse: <https://bit.ly/1wxcHlh>. Acesso em: 5 fev. 2015.

9De acordo com as informações do sitehttp://www.safernet.org.br/site/denunciar, a “SaferNet Brasil oferece um serviço de recebimento de denúncias anônimas de crimes e violações contra os Direitos Humanos na Internet, contanto com procedimentos efetivos e transparentes para lidar com as denúncias. Além disso, contamos com suporte governamental, parcerias com a iniciativa privada, autoridades policiais e judiciais, além, é claro, de você usuário da Internet. Caso encontre imagens, vídeos, textos, músicas ou qualquer tipo de material que seja atentatório aos Direitos Humanos, faça a sua denúncia”. Acesso em: 20 ago. 2014.

10Tradução de: “Thank you for taking the time to report something that you feel may violate our Community Standards. Reports like yours are an important part of making Facebook a safe and welcoming environment”.

11Tradução de: “Vale tanto para el derecho a estar libre de ataques racistas, físicos y verbales, como para la reivindicación feminista de la libertad reproductiva, así como vale también para todos aquellos cuyos cuerpos trabajan bajo cacción, política y económica, bajo condiciones de colonización y ocupación” (BUTLER, 2009, p. 52).

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Recebido: 31 de Março de 2019; Revisado: 01 de Junho de 2019; Aceito: 04 de Junho de 2019; Publicado: 11 de Junho de 2019

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