Desde as últimas décadas do século XX, tem-se presenciado profundas modificações econômicas, culturais e políticas na sociedade global (GANDIN; HYPOLITO, 2003), marcadas por políticas e programas com orientação daquilo que Apple (2003) denomina de aliança conservadora. Tal aliança se dá pelo esforço bem sucedido da direita e tem entre seus grupos centrais os neoliberais e os neoconservadores. Chama atenção a força que essas políticas vêm tomando em vários países do mundo, como será possível verificar ao longo desta seção temática. Nesse contexto, a educação tem sido alvo de diversas políticas propostas por tais grupos, tanto no intuito de enfraquecer ações educativas contra-hegemônicas, quanto para criar espaço para produzir um novo senso comum alicerçado em pautas conservadoras.
No Brasil, temos vivido o que alguns autores chamam de uma “onda conservadora” (MIGUEL, 2016; PIAIA, 2019), com consequências para a área educacional. Dentre possíveis consequências, pode-se destacar um ataque aos/às professores/as, que são constantemente chamados/as de doutrinadores/as e incompetentes (PENNA, 2017, 2019), o que tem justificado, assim, a criação de materiais didáticos e currículos à prova de professores/as (LIMA, 2011), a fim de que o trabalho docente se torne cada vez mais mecanicista. Outra pauta que merece destaque é a discussão do ensino domiciliar (CECCHETTI; TEDESCO, 2020), defendido como uma suposta forma de os pais e as mães ensinarem seus/suas filhos/as a partir daquilo que entendem como a melhor educação e protegendo-os/as do ambiente contaminado por crianças de outros grupos “culturais”, assim como da ação de professores/as doutrinadores/as. Há, ainda, a militarização das escolas (SOARES et al., 2019), que promete trazer o retorno de uma educação embasada em princípios políticos, sociais e morais conservadores. Por fim, pode-se destacar a emergência de um discurso contra aquilo que grupos conservadores chamam de “ideologia de gênero” (MIGUEL, 2016; PENNA, 2019), com grande relevo e alcance no debate público. Contudo, conforme mencionado, este não é um movimento isolado no contexto brasileiro. É um processo de mobilidade de políticas (ver, por exemplo, AVELAR; BALL, 2017; BALL, 2013), em que políticas de países capitalistas centrais migram, são disseminadas e atuam em países “periféricos”, como é o caso do Brasil e de outros países da América Latina, são políticas replicadas, reinterpretadas, recontextualizadas e traduzidas em contextos variados.
Essa correlação de forças gera novos regimes de poder, que estão, por sua vez, relacionados àquilo que o autor chama de redes de governança, que “[...] é baseada em relações de rede dentro e por meio de novas comunidades políticas, destinadas a gerar nova capacidade de governar e aumentar a legitimidade” (BALL, 2013, p. 180). Assim, essas redes trazem à cena novos atores em relação aos processos políticos, validando discursos sobre as políticas e permitindo com que sejam experienciadas novas formas de influência e vivência das políticas, ao mesmo tempo que passam a incapacitar ou privar de direitos alguns agentes políticos já antes estabelecidos (BALL, 2013). Um importante alerta de Ball (2013) é que as redes de governança não implicam que o Estado tenha abandonado a sua capacidade de conduzir a política: o que passa a existir é uma “[...] nova modalidade de poder público, agência e ação social e, na verdade, uma nova forma de Estado” (BALL, 2013, p. 180). De acordo com Ball (2013), essas redes abrem espaço para novos tipos de debate nas políticas, os quais - em função dos atores que passam a compor tais redes - “[...] incorporam e disseminam narrativas de soluções empresariais e empreendedoras para problemas sociais e educacionais” (BALL, 2013, p. 181).
Estamos atentos, em nossos estudos mais recentes (HYPOLITO; LIMA; SILVA, 2019; LIMA; HYPOLITO, 2019; LIMA; HYPOLITO, 2020; SILVA; LIMA; SILVA, 2019), a essas redes de governança, especialmente como forma de estudar os movimentos conservadores, seus atores e pautas. Para tanto, nossas análises têm sido realizadas, centralmente, por meio do conceito de Modernização Conservadora ou aliança conservadora (APPLE, 2000, 2003), que inclui análises das políticas compreendidas por articulações complexas entre diferentes grupos, que podem ter objetivos contraditórios. Como destaca Apple (2000, 2003), os neoliberais representam a liderança dessa aliança. Assim, é importante ter em conta que, quando nos referimos à Modernização Conservadora, não estamos tratando apenas de tradições culturais conservadoras ou interesses religiosos conservadores, mas também de interesses econômicos neoliberais, como parte de um espectro conservador - o que tem relação com a incorporação e a disseminação de narrativas de soluções empresariais. O conceito de Modernização Conservadora tem sido uma lente teórica bastante profícua em nossos estudos; desse modo, na sequência, apresentamos brevemente os grupos que compõem essa aliança.
De acordo com Apple (2000), a aliança conservadora é formada por quatro grupos: neoliberais, neoconservadores, populistas-autoritários e nova classe média profissional. Como já referido, predominantemente, os neoliberais constituem a liderança dessa aliança e representam o grupo que se preocupa com a orientação político-econômica atrelada à noção de mercado. Os neoconservadores são aqueles que definem os valores do passado como melhores que os atuais e lutam pelas “tradições culturais”. Os populistas-autoritários são, em geral, grupos de classe média e de classe trabalhadora que desconfiam do Estado e se preocupam com a segurança, a família, o conhecimento e os valores, considerados como tradicionais e são, majoritariamente, formados por grupos evangélicos (APPLE, 2013). Por fim, o grupo constituído por uma nova fração de classe média profissional está preocupado com a mobilidade social e tal segmento “[...] pode não concordar totalmente com esses outros grupos, mas [...] [seus] interesses profissionais e progresso dependem da expansão de sistemas de prestação de contas, da busca da eficiência e de procedimentos gerenciais [...]” (APPLE, 2000, p. 32).
É importante destacarmos que Michael Apple dedica suas análises ao contexto estadunidense. Há de estar-se atento, portanto, para que suas proposições não sejam tomadas como um modelo, pois é uma análise construída para compreender as tendências dessa aliança nos Estados Unidos da América (EUA). Todavia, o autor captura elementos importantes que contribuem para análises específicas em cada contexto, nos quais características desses grupos já podem ser identificadas em políticas educacionais, o que poderá ser observado ao longo desta seção temática em relação ao Brasil e a outros países da América Latina.
O tema da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um exemplo de como os interesses neoliberais e neoconservadores podem confluir para interesses comuns, envolvendo aspectos curriculares e de formação docente (HYPOLITO, 2019). O próprio “Movimento pela Base Nacional Comum - MBNC” forma uma rede de atores com relações entre si. Forma uma rede de influências interna e externa ao movimento, constituída por pessoas e instituições que atuam na área da educação, como parceiros na produção de conhecimento para orientar as políticas que podem influenciar as tomadas de decisão, em especial a proposta de elaboração de um currículo nacional (AVELAR; BALL, 2017; SILVA; HYPOLITO, 2019). A defesa da padronização e da unificação dos processos de ensino e de aprendizagem nas escolas brasileiras, típico de uma proposta de base curricular nacional, visa de fato o vasto mercado educacional e a imposição de uma agenda conservadora.
Foi pensando em contribuir para a identificação de atores e pautas presentes nas redes de governança do movimento conservador que se faz presente globalmente, que, no ano de 2019, organizamos um evento intitulado “I Encontro do CEPE: Políticas Conservadoras na Educação Básica”, organizado pelo Centro de Estudos em Políticas Educativas, vinculado à Faculdade de Educação e ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel)1. Nosso objetivo, nesse encontro, foi promover um espaço de discussão e de reflexão a respeito das atuais políticas conservadoras e suas implicações para a Educação Básica, em especial para o currículo, a gestão e o trabalho docente. Para tanto, foram convidados pesquisadores e pesquisadoras brasileiros/as e de outros países da América Latina (Argentina, Uruguai e Chile), com o intuito de propiciar trocas de experiência, divulgação de pesquisas desses países, interlocução entre os estudos que vêm sendo desenvolvidos acerca desse tema e articulação de redes de intercâmbio com pesquisadores e pesquisadoras de outras instituições nacionais e internacionais.
Tendo em vista as profícuas discussões que foram realizadas no evento e a emergência dessa temática, conforme referido anteriormente, entendemos que seria importante ampliar a divulgação desses debates. Assim, surgiu a ideia de organizar esta seção temática para trazer à cena o tema das políticas conservadoras na Educação Básica. Foram inúmeros artigos submetidos à seção, mostrando, assim, a emergência desse tema.
Várias temáticas estão presentes nos artigos que compõem a seção, apontando que há variadas questões que podem ser lidas com a lente do conservadorismo. Gênero, reforma do ensino médio, programas políticos, formação de professores, trabalho docente, neoliberalismo e gerencialismo, militarização da educação e educação domiciliar são alguns dos focos presentes nos textos. Esperamos que esta seção temática contribua para as análises que se fazem tão importantes nesta onda conservadora que temos vivenciado no Brasil.