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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.15  Ponta Grossa  2020  Epub 04-Jun-2020

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.14789.032 

Dossiê: Homeschooling: controvérsias e perspectivas

Formação e homeschooling: controvérsias

Education and homeschooling: controversies

Formación y educación domiciliaria: controversias

*Professor da Universidade La Salle. Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: <cledescasagrande@gmail.com>.

**Professora Titular aposentada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutora em Educação pela UFRGS. E-mail: <nadjamhermann@gmail.com>.


Resumo:

Este artigo, em formato de ensaio e orientado no plano da filosofia da educação, discute a questão do homeschooling desde a perspectiva dos processos de socialização e do potencial formativo inerente à interação. Seu objetivo orienta-se em questionar as possíveis implicações de uma formação limitada quanto ao processo de encontro, de abertura e de convivência com o outro. Para tanto, recorre-se aos aportes teóricos de Mead e de Habermas, especialmente às noções de socialização e de individuação, de interação simbólica e de agir comunicativo. Com o auxílio de Waldenfels, explicita-se a dimensão de estranheza advinda do outro, que desafia o sujeito à abertura e ao reconhecimento da alteridade. Por fim, o artigo evidencia que as situações de restrição da formação ao ambiente familiar, ou homeschooling, denotam a perda do potencial formativo inerente à interação e ao encontro com o outro, significando um estreitamento do processo educacional.

Palavras-chave: Formação; Alteridade; Homeschooling

Abstract:

This paper, in essay format and oriented towards the philosophy of education, discusses the issue of homeschooling from the perspective of socialization processes and the formative potential inherent to interaction. Its purpose is to question the possible implications of a limited education regarding the process of meeting, opening and coexistence with each other. Therefore, the theoretical contributions of Mead and Habermas are used, especially the notions of socialization and individuation, symbolic interaction and communicative action. With the help of Waldenfels, the dimension of strangeness from the other is explained, which challenges the subject to openness and the recognition of alterity. Finally, the paper shows that situations of restriction of education to the family environment, or homeschooling, denote the loss of the formative potential inherent to interaction and encounter with others, meaning a narrowing of the educational process.

Keywords: Education; Alterity; Homeschooling

Resumen:

Este artículo, en formato de ensayo y orientado en el campo de la filosofía de la educación, discute la cuestión de la educación domiciliaria desde la perspectiva de los procesos de socialización y del potencial formativo inherente a la interacción. Su objetivo se orienta a cuestionar las posibles implicaciones de una formación limitada con respecto al proceso de encuentro, de apertura y de convivencia con el otro. Para ello, se recurre a las contribuciones teóricas de Mead y de Habermas, especialmente a las nociones de socialización e de individualización, de interacción simbólica y de acción comunicativa. Con el auxilio de Waldenfels, se explica la dimensión de extrañeza surgida del otro, lo que desafía al sujeto a la apertura y al reconocimiento de la otredad. Finalmente, el artículo evidencia que las situaciones de restricción de la formación al ambiente familiar, o la educación domiciliaria, denotan la pérdida del potencial formativo inherente a la interacción y del encuentro con el otro, lo que significa un estrechamiento del proceso educativo.

Palabras clave: Formación; Otredad; Homeschooling

Introduzindo o tema

A verdadeira liberalidade é a capacidade de reconhecimento.

(Johann Wolfgang von Goethe)

Pela insignificância daquilo com que o espírito se satisfaz, pode-se medir

a grandeza que perdeu.

(Georg Wilhelm Hegel)

No Brasil, o tema da educação domiciliar, ou homeschooling, embora ainda não tenha amparo em legislação, apresenta interesse crescente, sobretudo pela reivindicação de famílias, algumas já organizadas em associação1, e também por ser objeto de Projeto de Lei no Congresso Nacional e de apreciação no Supremo Tribunal Federal2. Sendo temática emergente e controversa, sentimo-nos desafiados a participar desse debate, pois sua complexidade requer olhar acurado, maturidade teórica, coragem e discernimento para esmiuçar e ponderar sobre quais elementos do processo formativo entram em jogo nesse enfrentamento, para além dos aspectos jurídicos e ideológicos predominantes e amplamente divulgados pela mídia.

Em sua maior parte, o debate em torno do homeschooling vincula-se ao princípio da liberdade de escolha dos pais em educar seus filhos, baseado em longa tradição ético-política, que tem influência da religião judaico-cristã e do liberalismo. Contudo, esse tipo de argumentação, pautada no direito individual, não nos parece suficiente e satisfatório. Em uma sociedade plural, é preciso um exercício reflexivo ponderado que almeje encontrar razões que esclareçam e abarquem globalmente as posições de um problema. Se considerarmos que a educação é ressonância de amplo contexto histórico, para o qual confluem desde as grandes aspirações da humanidade até um conjunto sistemático de saberes provenientes do conhecimento científico e filosófico, um tema dessa ordem não pode dispensar a força argumentativa da filosofia da educação para pensar a complexidade humana, social e cultural da experiência formativa. Associa-se a isso certa preocupação desconfiada, de nossa parte, com as possíveis consequências de uma educação mais limitada em relação à sua radical dimensão socializadora e de encontro com o outro.

Pretende-se, desse modo, neste ensaio, acrescentar contribuições filosóficas, particularmente fenomenológicas, da dimensão interativa da educação para demarcar algumas controvérsias do debate. Apesar de ser possível realizar formação humana em ambientes restritivos, projetam-se perspectivas mais abertas e condizentes com a sociedade democrática quando ela acontece em um ambiente de múltiplas experiências, pois, como assevera Humboldt (2010, p. 64), “[...] o mais livre e independente dos homens será obstruído em sua formação se colocado em situações uniformes”. Desse modo, a formação fecunda-se na pluralidade de situações que exigem um confronto do sujeito consigo mesmo e com os outros, no sentido do amadurecimento de sua própria identidade, capacidade de deliberação e abertura ao outro. Hoje, estamos mais conscientes de determinados problemas formativos, como, por exemplo, o papel da interação simbólica na constituição da identidade pessoal dos diversos sujeitos sociais, e a importância do outro na formação de mentalidades abertas3. Questões dessa natureza incitam a problematizar o projeto de formação do homeschooling e a avaliar as implicações de uma educação restrita ao ambiente domiciliar.

Para contextualizar o tema, devemos destacar que existem razões aceitáveis, desde o ponto de vista lógico e argumentativo, tanto a favor quanto contra a modalidade de ensino domiciliar, embora o que se constata é a dificuldade de diálogo entre os defensores e os críticos de tal posição. O ensino domiciliar encontra respaldo em associações civis, que são dedicadas à sua disseminação, como é o caso da já referida Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED) e da Home School Legal Defense Association (HSLDA)4. Os argumentos favoráveis a essa prática, encontrados nos discursos correntes sobre o tema, são: a melhor qualidade do ensino ofertado às crianças no ambiente familiar; o direito e a liberdade de escolha dos pais; a possibilidade de supervisão direta da família; a segurança, o conforto e a baixa mobilidade.

No campo da pesquisa e da Pós-Graduação em Educação brasileira, esse tema também adquiriu notoriedade e importância nos últimos anos, como demonstram o crescente número de publicações, de debates e de manifestações de especialistas sobre o assunto5. As pesquisas e as produções sobre homeschooling abordam aspectos como: os dados históricos da sua emergência e crescimento em países como Estados Unidos da América (GAITHER, 2017) e Portugal (VASCONCELOS; MORGADO, 2014); aspectos ligados ao processo de desescolarização (VASCONCELOS, 2017); análise do desempenho escolar de alguns estudantes em educação domiciliar (RAY, 2017); reflexões sobre posições legais e ideológicas, que advogam em favor da liberdade pessoal de escolha e do livre mercado da educação (BARBOSA, 2016; CURY, 2017).

Como já referido, este artigo, de caráter ensaístico, se orienta no plano da argumentação filosófica para discutir a questão do homeschooling desde a perspectiva dos processos de socialização e do potencial formativo inerente ao convívio e ao encontro com o outro. Nosso objetivo consiste, primariamente, em questionar as possíveis implicações de uma formação limitada quanto ao processo de encontro e de convivência com o outro. Tal questionamento parte do pressuposto de que a educação consiste em um processo vital que implica socialização e individuação como dimensões complementares, promovidas de modo mais efetivo em um ambiente aberto à pluralidade de perspectivas e crenças. Secundariamente, almejamos argumentar que as posições correntes que defendem o homeschooling, sob a égide de liberdade de escolha e de decisão restrita à família, pode ensejar uma perspectiva formativa de fechamento do sujeito sobre si mesmo, o que traria implicações éticas como a desconsideração da pluralidade e da diversidade social e a consequente negação do outro.

No que segue, apresentamos, no primeiro momento, alguns pressupostos teóricos sobre educação, abordando a sua vinculação com os processos de individualização e de socialização, com ênfase na teoria de George Herbert Mead e de Jürgen Habermas. No segundo momento, explicitaremos a dimensão de estranheza do outro, que, pela sua capacidade de confronto com algo desconhecido, desafia a ampliarmos nossas crenças e nos prepara para o reconhecimento da alteridade. Por fim, apontamos algumas implicações inerentes às situações de restrição da formação ao ambiente familiar, ou homeschooling, que denota a perda do potencial formativo provindo da interação e do encontro com o outro.

Formação, socialização e individuação

A educação, enquanto ação formativa sistemática da comunidade humana sobre seus novos membros, implica processos de humanização, de socialização e de individuação. Para Charlot (2006, p. 15), “[...] educa-se um ser humano, o membro de uma sociedade e de uma cultura, um sujeito singular”. Tais processos, como veremos na sequência, possuem historicidade e correlacionam-se, necessariamente, com as tradições culturais, com o pertencimento a grupos sociais específicos e com a participação em interações socializadoras e individuadoras.

  • Educação: breves esclarecimentos conceituais

O que hoje compreendemos por educação é fruto de experiências históricas e de longo processo de problematização da questão formativa humana, que levaram Gadamer (2000, p. 11) a condensar seu significado no epítome “educação é educar-se”, referindo-se à radicalidade do processo em que o sujeito cria a si mesmo a partir de uma dinâmica própria entre socialização e individualização, em uma abertura ao mundo e ao outro. O núcleo das teorias que adensaram tal sentido da educação se encontra na busca da autonomia e no desenvolvimento máximo das capacidades humanas, como anunciado em Rousseau, Kant, Herder, Schiller, Hegel e Humboldt. Tal núcleo pode ser expresso em dois princípios que orientaram a Bildung alemã6: o princípio da autonomia ou autodeterminação e o princípio da unidade das diferenças. Nessa concepção, a educação consiste no processo de desenvolvimento da capacidade de autodeterminação racional, uma espécie de liberdade do sujeito na criação de si mesmo.

Entretanto, essa autonomia não tem valor apenas para o indivíduo singular, mas para a humanidade como um todo, pois a história tende à perfectibilidade do homem como ser social. Daí que a educação não se define apenas subjetivamente, mas mediada na relação com o mundo social e cultural; e a reconciliação entre indivíduo e sociedade, ou a harmonia, é o telos das experiências contraditórias, a unidade conciliadora das diferenças, como propôs o idealismo hegeliano. O indivíduo, enquanto ser racional, é capaz de se elevar ao universal e interiorizar a ideia de humanidade. Por isso, Gadamer (1990) dirá que Hegel desenvolveu com agudeza o conceito de formação (Bildung), associando as ideias de ser espiritual e racional, o que tornaria o sujeito capaz de romper com o imediato e o natural para chegar ao mais alto nível de abstração, integrando-o na totalidade.

Para Humboldt, um dos importantes formuladores da teoria clássica de educação, o ser humano forma a personalidade livre e singular em uma multiplicidade de experiências autodeterminadas, em uma ação recíproca entre o homem e a cultura. Assim se expressa Humboldt: “O verdadeiro fim do homem [...] é a formação máxima e o mais proporcional possível de suas forças, para integrá-las num todo. Para isso a liberdade é a condição primeira e indispensável”. No entanto, essa liberdade deve estar associada a uma “multiplicidade de situações”, pois mesmo “o mais livre e independente dos homens” (HUMBOLDT, 2010, p. 64), quando lhe é oferecido apenas situações restritivas e acanhadas, terá uma educação igualmente mais limitada.

Nietzsche (1988) também destacou os problemas decorrentes de uma educação restritiva, apontando que o indivíduo que tem poucas oportunidades de escolha torna-se cativo de suas crenças. Para Nietzsche (1988, p. 192): “O ambiente em que é educada tende a tornar cada pessoa cativa, ao lhe por diante dos olhos um número mínimo de possibilidades”. Para esse autor, o homem forma-se no confronto de suas experiências, não sendo determinado nem pela natureza nem pelo fundamento teológico, mas pelas suas próprias ações e escolhas, por meio do pleno desenvolvimento de suas forças - uma experiência de si.

Essa herança da Bildung, que recortamos e apresentamos brevemente, foi reinterpretada por muitos pensadores, os quais teceram críticas ao seu caráter excessivamente idealista, sem, contudo, eliminar seu núcleo referente à liberdade na criação de si mesmo. Merece destaque a contribuição de John Dewey (1959, p. 83), que definiu a educação pelo princípio da “reconstrução ou reorganização da experiência” e a liberou dos aprisionamentos metafísicos que ainda pairavam sob inspiração do idealismo, especialmente do ideal de que haveria um telos transcendente no processo formativo. Na proposta pragmatista de Dewey, a educação prepara para a convivência com o pluralismo de ideias e de crenças, assim como para o desenvolvimento de capacidades pessoais, intelectuais, éticas e políticas, ou de participação social, que permitem articular processos de aprendizagem individual e social, sem os quais não se viabiliza a formação da vontade necessária à sociedade democrática.

  • Educação, socialização e formação do eu

Neste artigo, centramos nossa argumentação na correlação necessária entre educação-formação, socialização e individuação. Desde a perspectiva dos processos de socialização, educar denota o ingresso do sujeito em determinada sociedade, com suas estruturas, seus costumes, suas regras, suas formas de vida, suas culturas e seus modos de organização. Para que isso ocorra, há um conjunto de competências sociais, habilidades, valores e conhecimentos que necessitam ser aprendidos, internalizados e desenvolvidos pelos novos membros da comunidade. Na perspectiva da individuação ou singularização, educar pressupõe o desenvolvimento de autoentendimento, de uma identidade pessoal cada vez mais descentrada e a competência de assumir a própria vida de modo responsável. E isso somente é possível no encontro e na convivência com o outro. Desse modo, do processo educativo, que pressupõe interação e convivência entre os diversos sujeitos sociais, resulta a formação da subjetividade. Em outros termos, a socialização é desencadeadora da individuação e da formação da identidade pessoal, como podemos constatar na argumentação de George Herbert Mead e de Jürgen Habermas, que passamos a explicitar na sequência.

Mead e Habermas possuem uma compreensão complementar quanto à formação da identidade pessoal e apontam o processo de socialização como o desencadeador da individuação, uma vez que “[...] as pessoas se individualizam apenas por meio da socialização” (HABERMAS, 2004, p. 326). Ambos concordam que a interação simbólica7 e a aprendizagem contínua são as responsáveis pelo desencadeamento do processo de estruturação da identidade de cada um dos sujeitos sociais. Tais aspectos são consonantes com as formulações originárias da Bildung alemã e da versão pragmatista de Dewey.

Nos escritos de Mead (1967, 1981), encontra-se uma leitura original da formação do self, distinta das concepções antigas e modernas de autocompreensão. Lembramos que o modelo mais conhecido de autocompreensão, oriundo do pensamento moderno, é aquele que entende a autoconsciência como uma relação reflexiva do sujeito com ele mesmo; em outros termos, é o sujeito que se representa com um ser que pensa e age autonomamente. Para Mead (1981), a gênese e a estrutura do self são sociais porque estão intimamente relacionadas com a intersubjetividade e a comunicação simbólica. Isso o leva a afirmar que “[...] os indivíduos se convertem em um objeto para si mesmos, precisamente, porque descobrem a si mesmos adotando a atitude dos outros que estão envolvidos nas suas condutas” (MEAD, 1981, p. 283-284). Ao assumir os papéis sociais disponíveis, o sujeito internaliza as estruturas do self, permitindo o desenvolvimento de um autoentendimento mediado pela figura do outro8. Essa posição teórica de Mead leva Sass (2004, p. 237) a afirmar: “O self individual é organizado no interior do processo social”.

Habermas acolheu a perspectiva teórica de Mead e elogiou a sua originalidade, especialmente por apontar “o entrelaçamento de individuação e socialização” (HABERMAS, 2004, p. 96). Ademais, afirmou: “Na psicologia social de G. H. Mead vejo esboçada a única tentativa com perspectiva de êxito para reproduzir no plano conceitual o pleno teor significante da individuação” (HABERMAS, 2010, p. 213). Isso é possível porque “[...] Mead analisa fenômenos da consciência sob o ponto de vista de sua formação, que tem origem em estruturas da interação mediada pela linguagem e pelos símbolos” (HABERMAS, 2012b, p. 8).

O ser humano não nasce predefinido e pronto; ele necessita formar-se e desenvolver-se. Além disso, ele se diferencia das outras espécies animais por desenvolver-se simbolicamente, dotando de sentido a própria existência e o mundo ao seu redor. E isso somente é possível pela linguagem, a qual pode ser, ao mesmo tempo, “[...] meio do entendimento, meio da coordenação da ação e meio da socialização dos indivíduos” (HABERMAS, 2012b, p. 45), o que nos leva a constatar que, além dos elementos biológicos e hereditários, confluem e contribuem com o processo de humanização elementos simbólicos, culturais e sociais. Ao nascer, o ser humano adentra em um mundo simbolicamente estruturado, no qual entrará em contato com outros seres humanos e com uma cultura específica. Desse contato, e mediante processos de aprendizagem, singulariza-se ao mesmo tempo que se socializa.

[...] as pessoas, enquanto sujeitos dotados da capacidade de linguagem e de ação, só se individualizam por via da socialização. Transformam-se em indivíduos na medida em que crescem no seio de uma comunidade linguística e, por conseguinte, num universo partilhado intersubjetivamente. [...]. A pessoa só forma, por isso, um centro de interioridade, na medida em que, a um mesmo tempo, se expõe às relações interpessoais estabelecidas a nível da comunicação. (HABERMAS, 1999, p. 69-70).

Um sujeito humano desenvolve uma noção de si mesmo, ou um self, ao interagir com outros membros de seu grupo social; pela interação, o indivíduo passa a adotar as atitudes do outro, internalizando, desse modo, o mecanismo que possibilita a utilização dos papéis comunicativos do falante e do ouvinte. Com isso, os sujeitos abrem a possibilidade de interagirem como “um ego que dá a entender algo a um alter ego” (HABERMAS, 2012b, p. 27).

A infância é período fecundo para a criança apreender a estrutura simbólica da linguagem, internalizando a lógica normativa de agir conforme o rol de papéis sociais disponíveis no contexto no qual ela está inserida. É exatamente neste período que “[...] entra em jogo a progressiva apropriação moral e sociocognitiva da estrutura de papéis que permitem regular legitimamente relações interpessoais” (HABERMAS, 2012b, p. 63). Por isso, Mead (1967, 1981) aponta que o brincar (play) e o jogar (game) são analogias do modo como ocorre o processo de desenvolvimento da noção de “outro generalizado” e a consequente estruturação do self. Para Casagrande e Hermann (2017):

Ao brincar, a criança adota vários papéis, um depois do outro, de pessoas ou animais, que de algum modo se fazem presentes em sua vida. A vivência de outros papéis possibilita-lhe transcender a barreira de si mesma, em direção a uma organização de atividades sociais, nas quais a centralidade no próprio ego começa a ser rompida pela existência de uma noção de um ‘outro’ e de um ‘nós’. [...]. Esse brincar livre, sem regras aparentes e por um período temporário, organiza uma estrutura de conversação interior. Ao dizer algo, assumindo uma personagem, e ao responder em outra personagem, a criança experimenta uma estrutura organizada de papéis sociais. (CASAGRANDE; HERMANN, 2017, p. 49).

A capacidade de brincar, e de adotar diferentes papéis disponíveis socialmente, é precursora de um segundo estágio, a participação em jogos organizados (game). Nesse tipo de atividade, cada jogador deve ser capaz de representar um papel em um contexto coletivo e com regras próprias que devem ser seguidas. É importante notar que, em jogos coletivos, como o beisebol, o futebol ou o basquete, a vitória de uma equipe sobre a outra depende do nível de organização e de coordenação de seus membros, do atendimento às regras do jogo e da articulação dos papéis dos envolvidos. Dessa forma, cada um deve ser capaz de agir individual e coletivamente ao mesmo tempo, coordenando as próprias ações de acordo com o agir dos demais membros da equipe. Além disso, deverá ser capaz de antecipar o que os membros da equipe adversária planejam e realizam em termos de estratégias de ação. Isso leva Mead (1981) a afirmar que

[...] em um jogo (game) há um procedimento regulado e normas. A criança deve adotar não somente o papel do outro, como ela faz no brincar, mas deve assumir os vários papéis de todos os participantes do jogo e governar suas ações de acordo com isso. [...]. E essas reações organizadas se convertem no que denominamos de “outro generalizado” (generalized other), que acompanha e controla sua conduta. A presença desse outro generalizado em sua experiência é o que proporciona um self para si. (MEAD, 1981, p. 285).

A internalização da noção de “outro generalizado” por parte do sujeito é central para a emergência do self. O “outro generalizado” condensa as expectativas de comportamentos normatizadas pela comunidade, conformando aquilo que pode ser denominado de vontade coletiva, a qual pode ser expressa em termos de regras, convenções, leis e costumes. Ao ser internalizada, essa vontade coletiva (generalized other) configura-se em uma estrutura que Mead (1967) denomina de “me/mim” (me). O self é o resultado do confronto ou da reação do “eu” (I) e do “me/mim” (me)9.

Essa compreensão do self como construção histórica, interativa e simbólica resguarda a liberdade, a autonomia e o caráter social da vida do ser humano, recolocando o problema da formação como tarefa individual e coletiva, ao mesmo tempo. Se cada ser humano necessita participar de uma comunidade e vivenciar um processo de socialização para individuar-se, ficam evidentes a importância e o papel do “outro” na formação do “eu”, sem demérito para os processos individuais e subjetivos.

Além disso, é importante destacarmos que, embora o ser humano constitua sua própria identidade em uma relação com outros seres humanos, no recurso à comunidade comunicativa, ela somente poderá ser estabilizada por meio da construção de sentido para a própria existência. Mediante a assunção da própria biografia, a pessoa pode se autorrealizar e pressupor uma pretensão de originalidade e de insubstituibilidade, elementos fundamentais para o reconhecimento de si mesmo enquanto ser individuado e distinto dos demais. Isso leva Habermas (2004) a afirmar que:

“Eu” me compreendo como “pessoa em geral” e como “indivíduo inconfundível” que não se deixa substituir por ninguém em sua biografia. Sou pessoa em geral na medida em que tenho em comum com todas as outras pessoas as propriedades essenciais de um sujeito que conhece, fala e age. Sou ao mesmo tempo um indivíduo inconfundível, que responde, de maneira insubstituível, por uma biografia tão formadora quanto singular. No entanto, não adquiri essa autocompreensão como pessoa em geral e como indivíduo, senão por ter crescido numa determinada comunidade. (HABERMAS, 2004, p. 195-196, grifos do autor).

Todo ser humano, para desenvolver um self ou uma identidade pessoal, deverá construir uma autorreferência simbólica de si mesmo mediada pelo outro, em um mundo simbolicamente compartilhado. Além disso, necessitará integrar a própria história pessoal, sendo capaz de olhar para a própria existência, dotando-a de sentido e decidindo-se acerca de que tipo de ser humano quer ser no futuro. Com isso, ao referir-se a si mesmo como um “eu”, o ser humano demonstra que pode ser identificado como um ser genérico, membro da comunidade, um ser capaz de fala e de ação e, ao mesmo tempo, um indivíduo circunstanciado, capaz de agir autonomamente e de dar continuidade à sua própria vida, assumindo-a e responsabilizando-se por ela.

A questão do outro na formação

A compreensão acerca do caminho interativo de constituição do self, por meio do outro, faz parte do amplo movimento de crítica ao modelo cartesiano, que postulava a construção de um eu desapegado do mundo social. Afinal, como pergunta Habermas (2005, p. 19), “[...] não será verdade que nós só nos tornamos conscientes de nós mesmos nos olhares que um outro lança sobre nós?”. Além da constatação sobre o papel relevante da alteridade na formação do eu, como abordado no item anterior, devemos considerar que o outro introduz na cena filosófica da modernidade, com amplas repercussões para a educação, a dimensão do estranho, aquilo que não é reconhecido pelo pensamento da identidade, e que é heterogêneo em relação a nós. Dessa forma, com a questão do outro, surge a consciência da não identidade, porque o outro “nos surpreende”, está “além de nossas expectativas” (WALDENFELS, 2007, p. 2). A tendência metafísica10 induz a bloquear esse caráter surpreendente, a desconhecer tudo aquilo que não se ajusta ao nosso modo de pensar. O interesse aqui é ressaltarmos a dimensão de estranheza advinda do outro, que traz novos aportes para a formação, sobretudo a possibilidade de desbloquear rígidas estruturas que aprisionam os pensamentos, impedindo um exame crítico das próprias ações, que escape à autorreferência.

A abordagem fenomenológica, na tradição de Bernhard Waldenfels (1997, 1998, 2007), permite compreender a alteridade em sua radical estranheza, a partir dos caminhos abertos pela suspeição da autossuficiência da razão, mostrando que o outro não pode ser interpretado somente a partir do si mesmo, em outras palavras, a partir de suas próprias estruturas cognitivas que tendem a enquadrá-lo em esquemas conceituais pré-estabelecidos, em uma espécie de egocentrismo, como pode ser exemplificado pelo processo de colonização, no qual o outro é deslegitimado. A estranheza do outro tem origem na diferença dos nossos padrões culturais interpretativos, também observado nos casos de racismo e de homofobia. O estranho é relativo a nós, pois o que é bom e verdadeiro o é para nós, e, fora disso, se encontra a estranheza absoluta, em uma espécie de mundo invertido, pois tudo que é estranho é visto como desrazão, caos ou mal. Nessa perspectiva, o estranho seria um déficit, algo a superar.

É preciso registrarmos que o pensamento ocidental fez algumas tentativas de reconhecer o outro, como Hegel (1992) demonstra na Fenomenologia do espírito, pela famosa dialética do senhor e do escravo11. Nessa proposta, contudo, o reconhecimento do outro e sua estranheza se constituem apenas em um momento da consciência de si. A sensação aprazível, porém estéril, de estar em identidade consigo mesmo, fechado em si, necessita do movimento de saída para fora, que provoca o conflito entre o desejo de si mesmo e o desejo do outro, entre o desejo de ser reconhecido por outrem e também de destruí-lo. O doloroso conflito que Hegel aponta é o confronto de si com o outro. Embora relevante, tal abordagem hegeliana resulta em uma reconciliação que, de acordo com a crítica de Waldenfels (1998, p. 90), concede ao estranho apenas um “direito parcial”. Esse filósofo, por sua vez, propõe a experiência do outro como estranheza radical que “sacode as raízes” e que não mais é submetida ao próprio, nem remetida a um lugar ou a um determinado ordenamento simbólico tido como correto. Assim, o estranho não aparece por um mero processo de delimitação, como distinguimos uma maçã de uma pera, ou marcas de carro, mas ele realiza simultaneamente uma “inclusão (Eingrenzung) e uma exclusão (Ausgrenzung)” (WALDENFELS, 2007, p. 7), do mesmo modo que nós não podemos estar dormindo e acordados ao mesmo tempo. O estranho está assim em uma assimetria impossível de ser eliminada, pois nunca estamos nos dois lados de um limiar “[...] que separa o próprio do estranho, e nenhum intérprete pode construir uma ponte sobre esse precipício, nenhum árbitro pode compensar esta diferença inscrita em nossa existência corporal” (WALDENFELS, 1998, p. 92).

Entretanto, não há apenas fronteiras externas ao estranho, há também o estranho em nós mesmos, evidenciado na afirmação de Freud de que o homem não é dono de sua própria casa. O estranho não emerge de fora, mas “em termos de uma intrassubjetiva e intracultural outreidade” (WALDENFELS, 2007, p. 9), observada desde o nome que cada um recebe de outro ao nascer. O outro e sua estranheza estão em nós e descubro a mim mesmo pelos olhos de um outro. Nesse sentido, Waldenfels (2007, p. 11) afirma: “Alguém que despreza sua própria alteridade, encontra somente as mesmas coisas e o mesmo self em toda a parte, não importando quantos países ou mares são cruzados”.

Evidencia-se, assim, possíveis repercussões para um processo formativo que deve ser suficientemente alargado para que a experiência radical do outro aconteça. O desprezo à alteridade e a denegação do outro encontram-se de modo proporcional ao fechamento da experiência formativa que, realizada de modo seletivo e restrito ao ambiente familiar, impõe estreitamento de mentalidade em relação às questões do mundo histórico, social, cultural e científico. É nessa medida que a análise fenomenológica do outro pode evidenciar os riscos da educação que opera apenas com conhecimentos, códigos morais e culturais vinculados a um contexto social muito específico, e que não promova autêntica abertura ao outro.

Nos processos formativos, há a necessidade de abertura ética, na qual o sujeito deve se expor à desorientação provocada pelo outro, à sua interpelação, que se situa fora do âmbito de qualquer intencionalidade, e que se abre para que o estranho aconteça. Isso pressupõe a promoção de atitudes e de emoções favoráveis ao reconhecimento do outro, que pode ser pessoa, etnia, religião ou até mesmo determinado acontecimento histórico. O desafio provocado pelo outro exige reelaboração de nossas compreensões e valores, em uma contínua aprendizagem. Nessa medida, a estranheza do outro revela seu caráter formativo, porque solicita resposta, transformação do nosso eu e novas formas de pensar e agir, nova ordem simbólica e novas obrigações, para além daquilo que nos é dado pelas normas vigentes. Assim, o acesso ao outro, na perspectiva de Waldenfels,

[...] está na resposta provocada pelo acontecer do outro, que rompe com as respostas que temos disponíveis, embebidas de costumes e regras morais. A aproximação do estranho se efetiva como algo para o qual respondemos e, inevitavelmente, temos que responder como convite ou como desafio. Ele projeta novas questões morais e novas exigências. (HERMANN, 2014b, p. 89).

A questão do outro no processo formativo mostra-se central, especialmente pela necessária abertura, escuta e acolhida do estranho e daquilo que é diferente do si mesmo. A radicalidade do outro nos bate à porta, nos desacomoda e nos forma, visto que não há processo formativo legítimo sem a mediação e a presença do outro. Isso nos leva a apontar que, mesmo reconhecendo a legitimidade da argumentação favorável ao homeschooling, essa tipologia de educação carrega déficit formativo, que é retratado pela perda do potencial interativo e de encontro com o outro, como veremos na sequência.

Algumas implicações do homeschooling à formação

Como argumentamos no decorrer deste ensaio, apoiados em Mead e Habermas, a individuação dos sujeitos, ou o desenvolvimento de um centro de autorreferencia subjetiva, não ocorre de modo automático na vida das pessoas, nem mesmo por herança genética ou inatismo. Os sujeitos humanos sofrem processo de individuação na medida em que se tornam membros de uma comunidade de linguagem e de um mundo da vida partilhado intersubjetivamente. Viver a experiência da vida em comunidade, do contato com o outro e da interação são condições para o pleno desenvolvimento da identidade pessoal e para a estabilização do autoentendimento. Essa compreensão de desenvolvimento do ser humano e de formação da identidade pessoal permite-nos reinterpretar o conceito de educação e o papel da escola desde a perspectiva da intersubjetividade e dos processos interativos nela implicados. Ademais, habilita-nos a afirmar que, para esses autores, a educação e os processos de aprendizagem nela implicados são centrais para a manutenção da vida e, em certo sentido, alinham-se ao conceito de interação.

Mead (1967, p. 261) caracteriza a escola como uma importante instituição social, pois ela “[...] representa uma resposta comum por parte de todos os membros de uma comunidade a uma situação particular”. As instituições sociais são importantes porque garantem a experiência da vida em comunidade, com a aprendizagem de valores, de regras e de modos de ser (CASAGRANDE, 2016). A escola, como uma instituição social, é resposta concreta às necessidades e à situação das crianças que precisam ser educadas. Isso ocorre porque, diferentemente de outros animais, os novos seres humanos dependem do cuidado, da proteção e do ensino dos membros mais velhos do seu grupo social para que sobrevivam e se desenvolvam. Além disso, “[...] a escola é o mais importante instrumento de que dispõe uma comunidade se ela realmente quiser dotar seus jovens das aptidões cognitivas e morais necessárias para o exercício esclarecido da cidadania” (SILVA, 2009, p. 197).

Nos escritos de Mead, percebemos um alinhamento entre os conceitos de educação e de interação. Para Mead, educar é ou implica interagir. Biesta (1998, p. 93) entende que “[...] a principal conclusão pedagógica a ser extraída dos escritos de Mead é o argumento de que educação é interação social”. Exemplo disso está na importância atribuída por Mead aos atos de brincar e de jogar, enquanto atividades sociais por excelência.

Com referência ao brincar, enquanto princípio a partir do qual a educação deveria ser conduzida, nós não entendemos que a criança deveria ser abandonada à própria influência em relação a si mesma, mas que nós deveríamos organizar esses estímulos para que eles respondam ao crescimento natural do organismo da criança, tanto com relação aos objetos pelos quais se interessa, quanto nas relações que ela possui com os outros no processo de vida que ela tem de pôr em prática. (MEAD, 2006, p. 42).

Como visto, o brincar e o jogar são considerados como instâncias fundamentais para os processos de socialização e individuação. Ainda hoje, no contexto escolar, o brincar e o jogar consistem em estratégias pedagógicas válidas para a consecução das intencionalidades de qualquer projeto educativo, isso porque é facultado à criança, por meio de atividades lúdicas, vivenciar e desenvolver a espontaneidade, a imaginação e a criatividade. Além disso, o brincar permite o contato direto com os objetos, com a natureza e com formas de organização e de coordenação social. Já os jogos organizados permitem a aprendizagem de regras, de noções de colaboração e de coordenação das ações da equipe em vista de um objetivo comum.

Além disso, se concordamos com a afirmação de que a educação é interação, ou pressupõe, necessariamente, a interação e o contato com o outro, então qualquer projeto pedagógico que vise a formação integral dos seres humanos não pode prescindir do contato com o outro e da convivência enquanto instâncias fundamentais à aprendizagem, ao desenvolvimento dos educandos e à estruturação da identidade pessoal de cada um deles. Apenas um espaço social como a escola oportuniza contato com crianças de diferentes grupos sociais, favorecendo o confronto de perspectivas e de crenças, de outro modo, a aprendizagem daquilo que é diferente e estranho ao vivido no seio familiar.

Como temos argumentado, a interação permite a aprendizagem de estratégias de entendimento acerca de coisas, de fatos e de situações do mundo objetivo, subjetivo e social. Além disso, a convivência interpessoal consiste em condição à socialização e à individuação. Por isso, no ambiente escolar, ela se torna pressuposto à formação de uma identidade do eu mais autônoma, madura e descentrada. E essa importância se acentua sobretudo se considerarmos que todas as exigências de reciprocidade de qualquer moral dependem da capacidade de reconhecimento do outro. Além disso, é apenas mediante a resposta dada ao outro que ampliamos nossas crenças e aprimoramos nossa capacidade de deliberação moral.

Opções e práticas pedagógicas que incentivem o individualismo, a falta de convivência social e o fechamento em si mesmo não se sustentam se confrontadas com os pressupostos que temos aqui defendido. Este é o caso das práticas do homeschooling, nas quais, por distintas motivações, famílias optam por educar seus filhos em casa, dispensando a escola e fomentando certo modo de isolamento social e de distanciamento da alteridade. Entendemos que a prática da educação domiciliar, mesmo diante da legitimidade da argumentação contrária, restringe o desenvolvimento de dimensões fundamentais da identidade do ser humano, especialmente no que tange aos processos de socialização e de individuação, e o real contato com o outro.

Agir e interagir em contexto comunitário, como o caso de uma escola, pressupõe o desenvolvimento da empatia, da reciprocidade e o reconhecimento da existência do outro enquanto ser livre e distinto. Exige, por parte de cada ser humano, aprendizagem dos próprios limites, saída de si mesmo e aceitação de que o outro pode possuir perspectivas e sentidos distintos.

Considerações finais

O termo “controvérsia”, citado no título deste artigo, refere-se ao debate sobre o direito dos pais à escolha da educação de seus filhos em casa, ao qual se interpõe a reivindicação histórica de realizá-la pela escolarização. O que está em jogo nessa controvérsia é uma longa tradição que entende a formação humana - inicialmente sobre responsabilidade exclusiva dos pais - como uma radical experiência de si mesmo, mediada pelo outro e pelo mundo em suas representações simbólicas, que se realiza para além do âmbito domiciliar. A ideia de que a educação dá acesso ao mundo foi justificada por um conjunto de pensadores que compartilham um consenso quanto ao irrenunciável caráter social da educação para formar a si mesmo, e defendida pelos primeiros movimentos republicanos em favor da escolarização. Nos termos de Mead, uma formação do eu mediada pela socialização, e nos termos de Humboldt, uma formação que se dá pelo desenvolvimento mais alto das forças humanas, que dependem da liberdade e da variedade de situações.

A complexidade desse processo formativo não se deixa apreender por medições estatísticas, por isso não podemos asseverar que há educação de melhor qualidade na homeschooling, como amplamente divulgado (RAY, 2017), nem podemos reconhecer como justificável filosoficamente uma educação que minimiza a inserção social e cultural, e o reconhecimento do outro facilitados pela escolarização. As reivindicações e as vantagens alegadas pelos defensores do homeschooling valem-se, sobretudo, de indicadores do âmbito cognitivo e epistemológico, segundo os quais os alunos obtém o mesmo desempenho em conhecimentos e competências que os que frequentam a escola e têm êxito no prosseguimento dos estudos.

Todavia, nada disso se refere ao ponto central do processo de formação, que é capacidade de os sujeitos conduzirem suas vidas de forma autônoma e assumirem reciprocidades morais, compromissos com o mundo comum e o reconhecimento do outro. O estatuto das medidas estatísticas não é superior à argumentação filosófica e esta, se não é superior, pelos menos não deve ser dispensada na consideração da mais difícil das tarefas que é educar, como afirmou Kant (2004). O tema torna-se controverso porque, hermeneuticamente, não podemos tomar a parte pelo todo. Desse modo, argumentar em favor do desenvolvimento cognitivo e das competências tem sentido, mas não compreende a amplitude do problema, que envolve a criação de si, o desenvolvimento de consciência ética preocupada com o bem comum e o próprio desabrochar humano; segundo Humboldt (2010, p. 66), “[...] o ponto mais alto da existência humana”.

O recurso ao argumento filosófico, na controvérsia em questão, evita que o pensamento se enclausure e assuma liberdade do pensar, o que nos permite a conclusão honesta de que não podemos furtar às futuras gerações a riqueza de uma formação em toda a amplitude humana. Isso porque as situações de restrição da formação ao ambiente familiar, ou homeschooling, denotam a perda do potencial formativo inerente à interação e ao encontro com o outro, significando estreitamento do processo educacional.

1Ver site da Associação Nacional de Educação Domiciliar - ANED: <https://www.aned.org.br>.

2No Congresso Nacional, tramita o Projeto de Lei Nº 2401/2019, do Poder Executivo (BRASIL, 2019a). O Supremo Tribunal Federal julgou o tema em setembro de 2018 e negou provimento ao Recurso Extraordinário 888815, no qual se discutia a possibilidade do ensino domiciliar (homeschooling) ser considerado como meio lícito de cumprimento, pela família, do dever de prover educação (BRASIL, 2019b).

3Este ensaio alinha-se às pesquisas que temos realizado, nos últimos anos, no campo da filosofia da educação, bem como à atuação como docentes e pesquisadores em Programas de Pós-Graduação em Educação. Ele segue a linha argumentativa de publicações anteriores, nas quais afirmávamos que a educação é uma tarefa intersubjetiva (HERMANN, 2001, 2005, 2010b, 2014a e 2014b; CASAGRANDE, 2009, 2014, 2016), que pressupõe uma abertura ética e estética ao outro. Queremos destacar especialmente o artigo intitulado Identidade do eu em contextos plurais: desafios da formação (CASAGRANDE; HERMANN, 2017), escrito em conjunto pelos autores, que antecipa algumas das posições teóricas e questões de fundamentação da educação que expressaremos neste artigo.

4Acesso disponível no link: https://hslda.org/content/

5Nesse contexto, destacamos o Dossiê “Homeschooling e o direito à educação”, lançado pela Revista Proposições, em 2017 (disponível no link: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0103-730720170002&lng=en&nrm=iso>) e outros artigos que referenciaremos no decorrer deste ensaio.

6Como esse tema específico já foi objeto de estudos em outras oportunidades, retomamos, com breves modificações, parte das análises desenvolvidas sobre o conceito de formação nos seguintes textos: À procura de vestígios da formação (HERMANN, 2009) e Formação e experiência (HERMANN, 2010a).

7 7 Podemos identificar e aproximar o conceito de interação simbólica, de matriz pragmática e presente na obra de Mead, ao conceito de agir comunicativo ou ação comunicativa, central na obra de Habermas (2002, 2012a, 2012b).

8Os principais escritos de Mead sobre esse tema estão compilados nas seguintes obras: Mind, self, and society (MEAD, 1967); Selected writings (MEAD, 1981); On Social Psychology (MEAD, 1984); The Philosophy of the present (MEAD, 2002); Play, school, and society (MEAD, 2006); The Philosophy of education (MEAD, 2008).

9Os conceitos de “generalized other” e de “estrutura dialética do self”, que implica uma bipartição em “I” e “me”, foram melhor apresentados nos seguintes textos: G. H. Mead & Educação (CASAGRANDE, 2014) e Interacionismo simbólico, formação do self e educação: uma aproximação ao pensamento de G. H. Mead (CASAGRANDE, 2016). Uma boa introdução ao pensamento de G. H. Mead, em língua portuguesa, pode ser encontrado também em Sass (2004) e Silva (2009).

10A metafísica é uma área bastante complexa do pensamento filosófico ocidental, com muitas diferenciações, que pode ser amplamente caracterizada como aquele pensamento voltado à unidade, à identidade e à totalidade. O uno é o princípio de identidade e a origem de todo ser, tanto no plano lógico como no ontológico; a diferença, por sua vez, se estabelece em relação à identidade, o que exerceu profunda influência na constituição de nossa compreensão sobre o que seria o homem e sua relações com o outro. A metafísica favoreceu a dominação e a apropriação do outro e da cultura, porque seu modo de conhecer opera com estruturas cognitivas incapazes de reconhecer a diferença. Assim, o outro aparece associado ao estranho da identidade, a tudo que lhe é contrário, distinto e inverso. Na concepção metafísica, o eu e a consciência de si costumam opor-se ao outro para demarcar antagonismo, em uma tendência de eliminá-lo para afirmar a própria identidade, como se percebe no etnocentrismo, na homofobia, na xenofobia. É nesse contexto que se gera o equívoco de que o eu poderia se constituir sem apelo à alteridade.

11Ver parágrafos 189 a 196 (HEGEL, 1992, p. 129-134).

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Recebido: 30 de Dezembro de 2019; Revisado: 05 de Março de 2020; Aceito: 06 de Março de 2020; Publicado: 15 de Março de 2020

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