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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.15  Ponta Grossa  2020  Epub 04-Jun-2020

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.14817.038 

Dossiê: Homeschooling: controvérsias e perspectivas

Paradoxos e tensões na construção do espaço público da educação: alternativas educativas de escolha parental e desescolarização nos coletivos parentais do Rio de Janeiro

Paradoxes and tensions in the construction of the public space of education: educational alternatives for parental choice and unschooling in parental collectives in Rio de Janeiro

Paradojas y tensiones en la construcción del espacio público de la educación: alternativas educativas para la elección parental y desescolarización en los colectivos parentales de Río de Janeiro

Caroline Montezi de Castro Chamusca* 
http://orcid.org/0000-0003-4200-482X

Teresa N. R. Gonçalves** 
http://orcid.org/0000-0003-0573-1454

*Professora do setor de Educação Infantil do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista de Mestrado da CAPES de agosto de 2017 a março de 2019. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail <chamuscacarol@gmail.com>.

**Professora-adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutora em Educação e Sociedade pela Universidad de Sevilla. E-mail <teresanrgoncalves@gmail.com>.


Resumo:

Este artigo tem como objetivo discutir a linha tênue existente entre movimentos que reivindicam alternativas educativas em relação à instituição escolar - argumentando pela liberdade de escolha em relação aos espaços/tempos de educação - e à precarização das instituições públicas de educação. A partir de Hannah Arendt, António Nóvoa, Jan Masschelein, Marteen Simons e Félix Guattari, assim como da revisão crítica de produções acadêmicas recentes (teses e dissertações) sobre iniciativas de coletivos parentais e seus discursos “desescolarizadores” no contexto brasileiro, discutimos a complexidade da questão do público na educação em meio às disputas de atores privados nas pautas das políticas educativas, de modo a problematizar as relações família-escola e as tensões entre público e privado no campo da Educação Infantil.

Palavras-chave: Desescolarização; Educação domiciliar; Coletivos parentais

Abstract:

This article aims to discuss the fine line existing between movements that claim educational alternatives in relation to the school institution - arguing for freedom of choice in relation to the spaces/times of education - and the precariousness of public educational institutions. Drawing from Hannah Arendt, António Nóvoa, Jan Masschelein, Marteen Simons and Félix Guattari as well as the critical review of recent academic productios (doctoral dissertations and master’s theses) on parental collective initiatives and their “unschooling” discourses in the Brazilian context, we discuss the complexity of the public issue in education amid the disputes of private actors in the education policy agenda, in order to problematize family-school relations and tensions between the public and the private in the field of Early Childhood Education.

Keywords: Unschooling; Homeschooling; Parental collectives

Resumen:

Este artículo tiene como objetivo discutir la línea tenue existente entre los movimientos que reivindican alternativas educativas en relación a la institución escolar - argumentando por la libertad de elección en relación con los espacios/tiempos de educación - y la precariedad de las instituciones públicas de educación. A partir de Hannah Arendt, António Nóvoa, Jan Masschelein, Marteen Simons y Félix Guattari, como también de revisión crítica de la producciones académicas recientes (tesis y disertaciones) sobre iniciativas de colectivos parentales y sus discursos de “desescolarizadores” en el contexto brasileño, discutimos la complejidad de la cuestión del público en la educación en medio de las disputas de actores privados en la agenda de las políticas educativas, de manera a problematizar las relaciones familia-escuela y las tensiones entre público y privado en el campo de la Educación Infantil.

Palabras clave: Desescolarización; Educación Domiciliaria; Colectivos Parentales

Introdução

A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens.

Hannah Arendt (1972, p. 14)

No texto, A crise da educação, Arendt (1972) afirma que a educação é o ponto em que se decide se amamos suficientemente o mundo para assumir responsabilidade por ele e para o salvar da ruína e do esquecimento, mas é também o momento que decidimos se amamos suficientemente as crianças de modo a não as expulsarmos do mundo, nem as impedirmos de fazer coisas novas, de começar e fazer o que não foi ainda feito e previsto. A educação tem a ver com o evento da natalidade, o fato de que os seres humanos nascem no mundo, e a possibilidade de renovação do mundo comum contida na chegada da nova geração. Entendida a partir dessa perspectiva, a educação não pode ser apenas responsabilidade de educadores, de professores, de pais, de pedagogos e de outros especialistas.

Para a autora, a educação permite a pluralidade dos seres humanos e a durabilidade do mundo, ocupando o hiato entre o trabalho e a ação. A educação é uma atividade que revela, aos outros, cada um, e abre o mundo, é ação humana que decorre, e reifica, a esfera pública. A natalidade é um fato que concerne a todos e não é possível ser exclusivo de pedagogos ou de professores especializados, uma vez que diz respeito às relações entre adultos e crianças, velhos e novos (GOMES; GONçALVES, 2015), porque ocorre entre os seres humanos em sua existência plural no mundo. A educação como tal é uma ação humana e, portanto, situa-se na esfera pública.

A esfera da ação é aquela em que se dá a liberdade e a vida pública, é um conceito simultaneamente político e existencial (GOMES; GONçALVES, 2015). O público, que Arendt (2001) distingue tanto do privado como do social, é um espaço temporário que se abre no momento e no lugar onde a ação ocorre, é o lugar dos feitos humanos, do ser-em-comum que pressupõe e permite a pluralidade. Ao conceptualizar a esfera pública como lugar da ação, como espaço de aparição da pluralidade humana, Arendt chama atenção para o fato de que a política não se resume a uma técnica de distribuição de recursos e de autoridade, constituindo também e, principalmente, o exercício da liberdade e da autorrepresentação, implica um espaço de igualdade que emerge da resposta a algo que é do âmbito do comum, uma preocupação com o mundo comum (HIGGINS, 2011). É nessa esfera que podem ser situadas as políticas educativas - no âmbito da preocupação com a preservação e a renovação do mundo comum. Elas se dão na esfera pública, no domínio da ação que acontece e faz acontecer a pluralidade humana.

O conceito de “espaço público da educação”, proposto por António Nóvoa em um texto de 2002, também em resposta aos discursos correntes sobre a “crise da educação”, pode também ser lido nesse sentido, na medida em que o autor afirma que a educação não pode ser percebida como um processo exclusivo dos agentes profissionais e contextos especializados. Perante a falência das políticas e das reformas educativas, o espaço público da educação seria uma zona intermédia, entre o domínio do Estado e o das famílias, que permitiria alargar e aprofundar o compromisso social com a educação, acolhendo iniciativas diversas e de diferentes atores e de organizações, que não apenas as instituições e os atores comumente reconhecidos como responsáveis pela educação das crianças. Seria, tal como em Hannah Arendt, um espaço de pluralidade, de ação humana em função de um interesse comum.

A discussão em torno da desescolarização e da educação domiciliar, hoje, passa necessariamente pela discussão em torno da responsabilidade do Estado pela educação, o papel da escola e seu futuro como instituição, a relação com a família, assim como pelas iniciativas e movimentos que, um pouco por todo o mundo, reivindicam outros modos de pensar e de fazer a educação. A diversidade de perspectivas, de interesses e de propostas em jogo demonstram não só a complexidade da discussão, como também revelam a educação e seu caráter público como um campo de permanentes tensões e disputas relativamente ao entendimento do papel de cada um dos atores envolvidos. Como a própria Arendt chamou atenção, a educação nasce do amor ao mundo, da nossa preocupação e do nosso cuidado com o mundo, e é na educação que reside a possibilidade da sua renovação. Essa renovação, essa (re)construção, é uma operação delicada que, por um lado, requer estruturas que resistam à passagem do tempo e ao nosso próprio sentido de evanescência, e, por outro, devem ser constantemente renovadas, ou estarão condenadas ao colapso. É nesse ponto, nesse entre, que reside o paradoxo da educação e em que se joga a questão da educação e do seu sentido público (PICOLI, 2020).

Neste artigo, queremos discutir a linha tênue existente entre movimentos que reivindicam alternativas educativas em relação à instituição escolar - argumentando pela liberdade de escolha em relação aos espaços/tempos de educação - e à precarização das instituições públicas de educação. A partir da análise de iniciativas de coletivos parentais e de seus discursos “desescolarizadores” no contexto brasileiro, sustentada em uma revisão crítica da produção acadêmica recente sobre o tema (teses e dissertações), problematizamos a complexidade da questão do público na educação, em meio às disputas de atores privados nas pautas das políticas educativas, as relações família-escola e as tensões entre público e privado no campo da Educação Infantil. Apresentamos uma leitura da política educativa e da escola pública e suas questões no presente, face aos discursos e aos movimentos de desescolarização e educação domiciliar e sua materialização em iniciativas educativas designadas como “coletivos parentais”, no Rio de Janeiro, procurando, a partir de alguns elementos mais relevantes da constituição e do funcionamento desses coletivos, trazer alguns contributos para o debate no campo educativo. O que podemos pensar sobre escola pública, desescolarização e espaço público da educação a partir da experiência dos coletivos parentais no Rio de Janeiro?

Política educativa, escola e desescolarização

Consideramos o campo da política educativa como um espaço de tensão, de alteridade, de relação com outro onde se constrói o ser em comum, um espaço público onde a pluralidade se manifesta, em que diferentes interesses, níveis de decisão e atores se expressam e se relacionam em função do bem comum. Por isso, é no âmbito dessas tensões, nos diferentes níveis e dimensões em que se manifesta e se concretiza que ela pode e deve ser pensada, em função da sua natureza pública. É precisamente o caráter público que parece muitas vezes estar em questão nas políticas educativas e nos debates atuais sobre educação, na medida em que estes se configuram como tentativas de governar e, portanto, limitar o seu caráter democrático, público e renovador. Pense-se nas tentativas de moldar a educação por parte do Estado, pelas corporações profissionais, pelos interesses privados, presentes em mecanismos de controle, mensuração e burocratização, assim como em medidas educativas que definem e limitam o currículo em função de interesses que pouco têm de ver com o bem comum. Pense-se também na defesa por parte de diferentes grupos (religiosos, políticos, sociais) da educação domiciliar como alternativa à intervenção do Estado, ao funcionamento da instituição escolar, seus currículos e suas práticas pedagógicas.

Se é verdade que a educação, e com ela a escola pública, sempre foram alvo de ataques por parte de interesses diversos, precisamente pelas possibilidades que abrem para a construção da democracia, para a construção do espaço público e para a renovação do mundo comum, também parece ser verdade que os movimentos de reapropriação e reprivatização do tempo público, do espaço público e do bem comum que ela torna possível nunca foram tão fortes. Na história da educação pública, têm sido muitas e diversas as estratégias de repressão, de dispersão, de coação, de neutralização e de controle. No entanto, em uma época instrumentalista como a nossa, essas formas têm adquirido novas roupagens e tomado conta dos discursos, das políticas e das práticas. Vejam-se as polêmicas entre os chamados “reformistas” e “tradicionalistas”, ou os discursos em torno da relação entre escola e empregabilidade, que podem ser lidos como tentativas de domesticar a educação pública e que, conjugados com outras estratégias de natureza tática, contribuem para a neutralização da educação como espaço público. Alguns discursos sobre a crise da educação, principalmente aqueles que se dirigem à falência do modelo escolar e que acusam a escola de não cumprir a sua função social, não são mais do que manifestações dessa vontade de domesticação, por parte de corporações, grupos religiosos e coletivos de várias ordens (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013).

Masschelein e Simons (2013) afirmam que a escola, entendida como scholé, é uma invenção da polis grega que surgiu com a intenção de arrogar os privilégios das elites militares e aristocráticas da Grécia antiga. Um lugar que tinha como objetivo proporcionar um espaço de igualdade, de suspensão, isento de atribuições impostas, uma brecha do tempo linear, principalmente para aqueles que devido ao seu lugar na sociedade não tinham o direito legal de reivindicar esse tempo do ócio e de livre criação. Nessa perspectiva, a “[...] invenção do escolar pode ser entendida como democratização do tempo livre” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 26).

A escola, em sua construção histórica, como instituição da modernidade, vem, porém, adotando práticas bem divergentes da sua origem na polis grega. Na sua origem moderna, foi considerada como instância de progresso e emancipação social (VASCONCELOS; BOTO, 2020), mas, a partir da década de 1970, tem o seu valor atribuído ao controle simbólico e à reprodução social da lógica capitalista. Para Arendt (1972), a escolarização constitui uma responsabilidade pública por excelência, assim como o meio pelo qual os alunos se tornam capazes de realizar o mais importante aspeto da existência humana, a ação pública. Para tal, ela precisa ser protegida das ameaças à sua natureza pública, ao seu papel de preservação e à renovação do mundo comum.

É nesse sentido que Masschelein e Simons (2013) criticam a escola tanto como instituição moderna, na medida em que ela representa uma tentativa de dissipar a renovação, o potencial radical e a “capacidade de começar” que ela oferece, assim como a escola atual, entendida como “ambiente de aprendizagem”, centrado nos alunos, que deixa o aluno entregue a si mesmo e em que a sua relação com o mundo (a alteridade, o que foi proposto pela anterior geração) é rompida. Para os autores, em ambos os casos, o caráter público da escola desaparece, e, como tal, a possibilidade de renovação do mundo comum, que reside precisamente no seu caráter paradoxal. Como na perspectiva de Arendt: para que a novidade aconteça, para que venha ao mundo, para que a renovação do mundo pelos novos seja possível, é necessário que a escola, especialmente a sala de aula, seja um refúgio das demandas sociais, isto é, esteja protegida do olhar do público. Podemos encontrar esse mesmo paradoxo na proposta de Biesta (2015), quando propõe um entendimento da escola não só como função social, como também como espaço de liberdade e de resistência às demandas da sociedade.

Esses paradoxos e essas tensões estão presentes também na discussão sobre o unschooling (desescolarização) e o homeschooling (educação domiciliar) trazidas por Ivan Illich e Jonh Holt. Illich (1926-2002), em sua obra Deschooling Society (Sociedade sem Escolas, 1971) argumenta que a escola institucionaliza o conhecimento e sugere o que denominou como desescolarização da sociedade. Defende a desescolarização como um movimento necessário para a libertação humana. Alega que a escola é um espaço de alienação que ensina a necessidade de ser ensinado: “[...] a nova igreja do mundo é a indústria do conhecimento, ao mesmo tempo fornecedora de ópio e lugar de trabalho durante um número sempre maior de anos na vida de uma pessoa” (ILLICH, 1973, p. 87). Propõe uma nova lógica educacional que denomina como teia de oportunidades. A proposta da teia apresentada era estabelecer uma rede em diferentes espaços da cidade para que a aprendizagem ocorresse nas situações cotidianas e sem distinção de público, combatendo qualquer indústria de formação. Sua proposta da teia nunca se materializou, mas Illich continuou com sua crítica radical à escola até a sua morte e seu pensamento teve ecos nos movimentos que procuram alternativas à lógica instituída do funcionamento escolar.

John Holt (1923-1985), bastante influenciado por Illitch, foi um ativista em prol da educação formal fora da escola e se tornou um dos ícones das práticas de homeschooling (educação domiciliar). Sob o argumento de que a escolarização compulsória contribui para que as crianças percam a curiosidade natural de aprender, Holt aponta campos de ação distintos: deschooling (desescolarização) como uma luta a se efetuar nos bastidores do cenário escolar, em territórios outros e em âmbitos governamentais; e unschooling (também traduzido como desescolarização), que seria a criação de uma prática educativa diferenciada das práticas hegemônicas propostas pela escola. Depois, passa a utilizar o termo homeschooling, ao concluir que os outros termos poderiam ser compreendidos como uma recusa à educação. Essas diferenciações entre os termos contribuem para situar tais práticas historicamente, porém não findam as disputas atuais dessas nomenclaturas (GONÇALVES, 2016).

Importa referir que, no que diz respeito à discussão sobre a desescolarização e a educação domiciliar, no seu cerne está a tensão entre os interesses das famílias, das crianças e do Estado presente nas iniciativas de movimentos que vêm reivindicando que existe educação para além da escolarização institucional e que é preciso alargar o conceito de educação a outras experiências e contextos de aprendizagem. Como afirma Kunsman (2012), os defensores da educação domiciliar são muito diversos entre si no que diz respeito aos seus posicionamentos políticos, culturais, ideológicos e práticos. No caso dos Estados Unidos da América (EUA), existem movimentos que abarcam todo o espectro político, desde a extrema esquerda à extrema direita, tal como no Brasil, onde recentemente têm crescido as reinvindicações do direito de escolha das famílias, no campo de grupos políticos e religiosos ligados ao neoliberalismo e à extrema direita.

Em um contexto de políticas educacionais pautadas pela lógica da autonomia, da competitividade, da privatização e da descentralização, a educação domiciliar apresenta-se como uma via sedutora para responder às demandas econômicas, sociais e políticas trazidas pela falência do Estado-providência e a exigência de respostas rápidas e eficientes às demandas do mercado e do capital. Da mesma forma, por trás da bandeira da liberdade de escolha, podem existir interesses que pouco têm a ver com o bem comum ou com o bem-estar das famílias, mais ligados a formas de controle social, político, ideológico do que o que pode transparecer à partida (VASCONCELOS, 2017). Como movimento radical de privatização da educação, nas suas diferentes expressões, a educação domiciliar apaga as distinções de tempo e de espaço da educação; nesse sentido, a escola, entendida como scholé, como suspensão das demandas sociais, como espaço de liberdade e de construção do comum, pode estar em causa, pelo desaparecimento da fronteira entre família e escola e entre público e privado.

O histórico norte-americano onde o niilismo de Illich em relação à escola contribuiu para a criação e propagação de “[...] argumentos aos chamados administradores-renovadores, com destaque para Toffler, Drucker e Senge no sentido de que a educação não poderia mais ser monopólio da escola” (DI PIETRO, 2008, p. 156). Os então “neoeducadores” afirmavam que todas as instituições sociais, inclusive as empresas deveriam se transformar em “organizações de aprendizagem”.

O discurso de Illich foi apropriado por e tomou força por meio da ação de movimentos conservadores e liberais. Hoje, nos EUA, onde a educação domiciliar (homeschooling) é bem difundida, esta é uma prática educativa entre outras escolhas possíveis, como consequência da reforma escolar que aconteceu no país a partir da década de 1980. Destaca-se, nesse contexto, a school choice (escolha de escola), programa que vende a ideia de que as famílias têm a opção de escolher a modalidade de ensino que melhor atende às necessidades de seus filhos, movimento no qual se inserem os vouchers, as charters schools e o próprio homeschooling. Segundo Gaither (2008), os intitulados homeschoolers religiosos norte-americanos pontuaram o movimento em prol da legalização da educação domiciliar na década de 1980. O casal Raymond e Dorothy Moore, ativistas que são referência do movimento - influenciados por Holt, que, por sua vez, se inspirou em Illich - da Igreja Adventista do Sétimo Céu, dedicou suas vidas elaborando pesquisas publicadas em livros e artigos em defesa do homeschooling. Em suas produções, divulgaram que 70% dos problemas comportamentais eram apresentados por jovens que frequentaram a escola muito cedo. O casal liderou o movimento aproximando-se de outros religiosos - com destaque ao líder evangélico James Dobson - e pregavam os valores familiares como base para o ensino em casa dos filhos. O casal Moore influenciou a criação da Homeschool Legal Defense Association (HSLDA), para prover amparo legal às famílias protestantes (LYRA, 2019).

Segundo Reich (2002), é possível observar as mudanças das motivações das famílias que optam pela educação domiciliar nos Estados Unidos. Na década de 1970, traziam um discurso libertário, humanista e até pedagógico. No período seguinte, entre 1980 e 1990, as narrativas tornaram-se mais conservadoras atreladas a fundamentos religiosos que ecoam nos dias atuais por meio do argumento central quanto à opção por essa modalidade de educação: as instituições escolares não acolhem as concepções morais e religiosas das famílias. Por outro lado, ainda no contexto norte-americano, de acordo com Davies e Aurini (2003), a conjuntura política de abertura para a implementação dos vouchers e das charters schools impactaram a prática do homeschooling. O movimento passou a ser uma entre as diferentes opções possíveis de educação, retirando o foco dessa modalidade como a única exceção de ensino além da escola tradicional. Os autores afirmam que a política de escolha de escolas também promoveu uma ampliação e diversificação quanto às práticas do homeschooling dentro do próprio movimento, em relação aos objetivos, às metodologias e ao público atendido.

Há, no Brasil, certa glamourização e exaltação sobre essas propostas educativas sem que haja um verdadeiro debate sobre o tema. Adrião (2018) alerta que a intensificação da gestão corporativa da educação potencializa a transposição de políticas produzidas em outros países. No Brasil, essa transposição revela-se, por exemplo, por meio de proposições de reformas curriculares sugeridas pelo Instituto Ayrton Sena (IAS) “[...] financiadas por fundos de investimento ou por empresas que comercializam insumos tecnológicos” (ADRIÃO, 2018, p. 24). A autora aponta para três dimensões de privatização da educação: gestão da educação, oferta educacional e currículo que são aparelhadas por intermédio do financiamento público, aumento das matrículas em estabelecimentos particulares e introdução de políticas ou programas de escolha parental.

Na conjuntura atual, a privatização da oferta educacional é então associada às políticas de “escolha parental” por meio da “[...] introdução de charter schools; a adoção de cheque-educação ou voucher e a educação domiciliar ou homeschooling” (ADRIÃO, 2018, p. 11). Essa política é difundida como uma ampliação de um direito individual de escolha das famílias contribuindo para um movimento de privatização da educação que cresce cada vez mais no Brasil do pós-golpe institucional, intensificando a tese dos reformadores empresariais sob o discurso de que o Estado não tem competência para administrar a educação. Uma redução da esfera pública em favor do mercado e dos interesses individuais das famílias que esvazia os princípios básicos da educação pública democrática.

A ideia de conceder um cheque-escola, vale ou voucher, para o ensino seduz parte dos liberais brasileiros e no contexto atual tem um poderoso incentivador, o ministro da economia Paulo Guedes. Milton Friedman, americano “nobel da economia” lançou a ideia dos vouchers na década de 50, uma bolsa de estudos custeada integralmente ou em parte pelo Estado. Pinochet comprou a ideia na década de 1980 e, hoje, o Chile e os EUA são os países onde essa modalidade de ensino é adotada em maior escala. O discurso anunciado é que o voucher oferece às famílias a opção de escolher entre uma instituição pública e uma particular. Nesse caso, o Estado pagaria a mensalidade do aluno com o dinheiro que deixou de gastar com ele na rede oficial. Com maior participação de instituições privadas, o Governo, segundo a tese dos defensores do modelo, economizaria dinheiro com a manutenção de escolas. Contudo, há mais complexidades nessa modalidade do que os argumentos anunciados pelos entusiastas liberais. A começar pelo fato de ovouchernão ser uma garantia de que o aluno seja aceito na escola subsidiada pelo Estado escolhida. Além do fato de que o valor do voucher possui um teto específico que também restringe, para as famílias menos favorecidas financeiramente, a anunciada possibilidade de escolha.

Já as chamadas charter schools são escolas administradas por organizações civis contratadas pelo Governo que estão em expansão nos EUA. Surgiram na década de 1980, lideradas por professores que queriam poder experimentar outras metodologias de ensino com estudantes que apresentavam dificuldades em se adequar às instituições de ensino tradicionais. O que, à partida, se revelava uma causa nobre, hoje se mostra problemático porque uma das questões que coloca essa modalidade de ensino é a vulnerabilidade a que a própria categoria de professores está exposta. Se os docentes acreditavam que seria possível experimentar diferentes abordagens de ensino devido à flexibilidade das regras administrativas em relação às instituições públicas de educação, o que ocorreu foi o oportunismo de uma indústria que vislumbrou se beneficiar dos recursos públicos destinados à educação. A introdução de programas dessa natureza amplia a segregação no interior de um mesmo sistema de ensino e acentua a precarização do trabalho de docentes e de gestores (ADRIÃO, 2018).

Esse exemplo em relação à proposta inicial das charters schools foi absorvido por forças políticas que as desviaram das expectativas fundacionais. Por isso, é fundamental compreender as complexidades conjunturais que estão para além dos espaços/tempos institucionais já que estes são constituídos por pessoas que existem dentro de um sistema capitalista. A falácia dessa política de escolha ignora questões sociais como: dinheiro, tempo, deslocamento e conhecimento. Para fazer escolhas ou ter opções, é necessário um capital social, cultural e financeiro que possibilite o usufruto dessa “oportunidade” diante das complexidades que envolvem as políticas de “escolha”. Ball (1993) afirma que o processo de escolha sob o argumento de prover maior protagonismo das famílias pode deslocar a responsabilidade pela qualidade do processo educativo do Estado para as próprias famílias. Nesse sentido, a educação é deslocada de um âmbito democrático, público e político para um caráter mercantil ou mesmo um bem privado a ser alcançado no plano individual.

Essas questões estão presentes em diferentes iniciativas, contextos e movimentos educativos que defendem a desescolarização ou a educação domiciliar. Tendo em conta a diversidade de movimentos e o amplo leque de reivindicações e interesses em disputa, nem sempre compatíveis, focaremos a nossa atenção nos chamados “coletivos parentais”. O nosso objetivo é pensar as questões em discussão a partir de um movimento concreto, problematizando alguns aspectos e implicações das suas demandas e práticas, principalmente em relação à questão da relação público-privado e escola-família. Enquanto a maioria dos estudos se centram em aspectos e experiências de educação domiciliar referentes à Educação Básica, aqui nos centraremos em um movimento relativo à Educação Infantil, com as suas especificidades, mas também com seus pontos de convergência com outras experiências em outros níveis de ensino.

Os coletivos parentais e a desescolarização no contexto brasileiro atual

Foi no emblemático ano de 1968, período de ebulição mundial de diversos movimentos sociais que, no decurso do maio de 1968, na Universidade de Paris, La Sorbonne, surgiram as “crèches sauvages”. A iniciativa emergiu a partir das demandas de jovens militantes universitários que se organizavam para cuidar de seus filhos durante as assembleias estudantis onde se alternavam, em um esquema de rodízio, nos cuidados de seus bebês. Desse improviso emergencial no bojo da militância, surgiu a ideia de se organizarem continuamente nos cuidados com as crianças seguindo essa perspectiva comunitária de autogestão (KNIBIEHLER, 2017).

Segundo Favre (2015), a motivação das famílias a se integrar a uma crèche sauvage era um reflexo da falta de vagas nas creches públicas e a não identificação das famílias com o atendimento oferecido nas creches francesas, entendidas como espaços de normatização e controle, além do distanciamento imposto aos pais nas creches institucionais da época. A alcunha “selvagem” ressaltava a qualidade fora das normas e das regras vigentes na época. As críticas às instituições convencionais de atendimento à primeira infância eram relacionadas às concepções higienistas presentes nesses espaços (KNIBIEHLER, 2017). O movimento, então oriundo de Paris, expandiu-se por toda França e por outros países como a Alemanha, após o ano de 1968, ostentando seus objetivos anti-institucionais (PASSARIS, 1984). Para Chamusca (2019):

Com a disseminação das creches selvagens, duas vertentes se firmavam no movimento: uma mais ancorada na concepção original, de autogestão com viés mais anárquico e outra com o desejo de receber subsídios estatais, na intenção de municipalizar o serviço, popularizar e organizar esses espaços. A segunda vertente criou então uma associação (Cadart, 2014), a ACEP (Associacon des Collectifs Enfants Parents), em 1980, associação representativa dos coletivos parentais da França e desde então assumiu a organização do movimento, que se fortaleceu e entrou como pauta nas políticas públicas do país. Em 1990 a ACEP (Associacon des Collectifs enfants parents) se tornou ACEPP (Associacon des Collectifs enfants parents professionnels) por reconhecimento a contribuição dos profissionais nessas iniciativas e com objetivo de promover parceria pais/profissionais que se expressa através do termo “coeducação”, bastante utilizado quanto a descrição desses espaços. Hoje são reconhecidas e subsidiadas pelo Estado francês como estabelecimentos de gerenciamento parental. (CHAMUSCA, 2019, p. 26).

Sandrine Garcia (2014), em um estudo recente, contribui para compreensão do que são as creches parentais francesas hoje. Segundo a autora, nas configurações atuais dessas creches, as famílias são oficialmente membros da equipe educativa e sua presença conta com os subsídios concedidos pelo Estado. Contudo, diferentemente das creches selvagens que eram iniciativas mobilizadas pelas famílias, nas estruturas atuais, embora ainda existam creches criadas por pais, outras configurações se instauraram, muitas das creches surgem a partir da demanda de profissionais e instituições (CHAMUSCA, 2019). Nas gestões atuais, as famílias passam pelas creches onde já há um desenho estrutural preestabelecido dos profissionais que ali atuam, creches que já existiram com outras famílias e assim prosseguirão, uma organização que situa as famílias no lugar de usuários desses espaços. Fato que se distancia do objetivo inicial das creches selvagens quanto ao protagonismo das famílias no caminho pedagógico do espaço. Nesse sentido, as crèches parentales têm mais semelhanças com as creches institucionais francesas contemporâneas do que com as creches selvagens das quais se originaram: “[...] tanto pelo fato das creches tradicionais de hoje terem uma estrutura menos rígida do que na década de 70, quanto pela padronização que a regularização das creches parentais acarretou” (CHAMUSCA, 2019, p. 29).

No Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, o movimento dos coletivos parentais traz a referência francesa como inspiração. Domingues (2019) compara diversas vezes ao longo de seu texto o movimento carioca com as iniciativas francesas. As comparações vão desde as motivações que levaram essas famílias a optarem por essa alternativa de educação, como os arranjos nos quais famílias se agrupam para cuidar coletivamente das crianças. Leite (2018) traz a referência francesa por meio dos relatos dos sujeitos implicados no movimento brasileiro explanados nas redes sociais. A autora argumenta que a informalidade dos coletivos brasileiros dificulta a comparação com as creches parentais francesas que hoje são subsidiadas e reconhecidas pelo Estado. Também problematiza a identificação com o modelo francês afirmada por muitos coletivos, porém pouco fundamentadas. Alega que há um discurso de identificação, mas não se sabe muito da prática francesa.

Salgado (2018) relata, por meio da sua experiência em um coletivo, que essa iniciativa não se inspirou nas creches parentais francesas. Alega que, além de não ter conhecimento sobre o movimento francês no período em que surgiu o coletivo no qual se insere, também não há identificação com as motivações que levaram famílias francesas a se articularem em creches parentais: “[...] suprir a falta de vaga nas creches convencionais a um baixo custo para familiares” (SALGADO, 2018, p. 95). Mesmo a argumentação da autora sobre a animosidade com o modelo francês ressalta que há um senso comum que vincula a sua experiência educativa com as crèches parentales.

Os coletivos parentais são espaços em geral mobilizados por famílias que se articulam com educadores para criarem espaços educativos para seus filhos. A maioria atende à primeira infância e tem como estrutura física suas residências, em um esquema de revezamento de casas para receber as crianças. O fato de essas iniciativas majoritariamente se organizarem em domicílio - embora utilizem com frequência os espaços públicos da cidade com passeios constantes - e atenderem a bebês implica um quantitativo pequeno de famílias e de crianças para se efetivar. Em alguns casos, alugam espaços ou funcionam ao ar livre, ocupando museus, centros culturais e parques da cidade. Esses coletivos são espaços não formais de educação que não se caracterizam como cooperativa, escola, associações ou pessoas jurídicas, sendo a regularização um caminho possível; no entanto, a especificidade desse espaço, que difere das cooperativas de educação, mesmo que sejam geridas por famílias, é seu caráter não formalizado (CHAMUSCA, 2019; DOMINGUES, 2019).

O movimento dos coletivos parentais é recente no Brasil. Especificamente, no Rio de Janeiro, de acordo com os estudos de Domingues (2019) e Chamusca (2019), está em expansão, embora ainda esteja restrito a um recorte da classe média composto majoritariamente por habitantes dos bairros mais centrais da zona sul carioca. Esse movimento é atravessado pelo questionamento quanto à educação institucionalizada nas escolas, por meio de debates e encontros onde a temática da desescolarização permeia muitos dos discursos. A escassa produção acadêmica sobre o movimento dessas iniciativas no Brasil reitera sua relação com o termo se revelando até na estratégia de busca na base SciELO e no Banco de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) em que é possível encontrar mais produções sobre os coletivos parentais utilizando a palavra “desescolarização” como busca do que os termos “coletivos parentais” ou “creches parentais”.

Domingues (2019) aponta como um dos objetivos de sua pesquisa avaliar se a expansão dessas iniciativas está relacionada ao que identifica como um fenômeno, a desescolarização, porém não se debruça sobre as narrativas dos sujeitos inseridos nos coletivos investigados sobre esse processo. Aponta que “[...] não há antipatia pela instituição escola, mas os envolvidos com os coletivos idealizam essa instituição de outras formas e gostam do movimento de ocupação do espaço público e da relação com a comunidade” (DOMINGUES, 2019, p. 140). Em outro trecho de seu trabalho, afirma que, de acordo com os dados recolhidos, uma das maiores motivações para as famílias estarem inseridas em um coletivo está relacionada à insatisfação com as propostas pedagógicas desenvolvidas nas escolas; no entanto, não há um discurso de defesa da educação domiciliar, como acontece com adeptos do homeschooling. Se não há antipatia pela escola e, sobretudo, uma idealização que essa instituição exista de outras formas, entende-se que há muitas possibilidades de se ocupar esse espaço. Então, por que adotar uma palavra com um prefixo que enuncia separação e afastamento da escola, enaltecendo um discurso de depreciação e não outro que anuncie a ideia de reinvenção desse espaço?

A dissertação de Leite (2018) é o único trabalho encontrado a partir da busca pelo termo “coletivo parental”. A autora pesquisou o movimento dos coletivos a partir da internet. Leite (2018) não traz nenhuma discussão sobre a desescolarização, e a palavra só aparece uma única vez em seu texto como uma inspiração de um coletivo parental pesquisado. A experiência desse coletivo, citado por Leite (2018), foi relatada nos trabalhos de Ferreira (2019) e Fernandes (2015) em que as autoras escrevem sobre suas experiências como mães e educadoras nesse espaço específico. Ambas apontam a desescolarização como uma inspiração teórica na criação dessa iniciativa. Na dissertação de Fernandes (2015), já no índice, a desescolarização é enunciada como uma escolha coletiva desse espaço. Ao longo do texto, a autora relaciona o termo desescolarização com a ideia de gesto dançado do filósofo José Gil, contrapondo com a ideia do gesto comum que se apresenta como um movimento reativo a uma imposição externa, enquanto o gesto dançado parte de uma necessidade interna do indivíduo. A autora faz uma analogia entre esses dois gestos como diferentes maneiras de se colocar no mundo: enquanto o gesto comum reproduz padrões, o gesto dançado se manifesta com autoria e criatividade “[...] como forma de suplantar o gesto comum institucionalizado” (FERNANDES, 2015, p. 23). Traz também Ana Thomaz1, como referência quanto ao processo de desescolarização diante da necessidade de desconstruir padrões e se manter atento aos vícios que são incorporados nos processos de criação e educação dos sujeitos. Fernandes (2015) traz uma citação de Thomaz2 em que esta narra o processo de desescolarização de uma escola: “[...] um cotidiano escolar que segue totalmente as leis de diretrizes e base do governo, mas que desinveste completamente os hábitos e crenças da escolaridade” (THOMAZ, 2014 apudFERNANDES, 2015, p. 24). Uma escola que não possui classes, currículos e “ensino vazio”. Thomaz complementa apontando que existe muita presença e trabalho com os adultos: “[...] não existem ameaças, nem recompensas, tampouco explicações especuladoras mas existe muito acolhimento, limites, inspirações, conexões, existe antes de tudo um amor incondicional e aceitação plena por cada criança” (THOMAZ, 2014 apud FERNANDEZ, 2015, p. 24).

Embora existam alguns elementos compreendidos como universais da categoria escola: aula, salas de aula, mesas, alunos e professores, a forma de ocupar esse espaço escolar, mesmo que previsível, está sujeita a muitas variáveis, inclusive a ausência de alguns desses elementos considerados universais. Esse espaço é ocupado por pessoas, protagonizado por professores e alunos. Todos esses sujeitos estariam alienados, vivenciando um processo de ensino vazio à base de ameaças e de recompensas? Essa escola, citada por Thomaz como desescolarizada e que segue a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), como indicou a autora, está totalmente alheia a ameaças, recompensas e explicações especuladoras? É possível afirmar que há tamanha estabilidade nas relações dos sujeitos desse espaço escolar citado em que todas as crianças são aceitas plenamente?

Rolnik (2018, p. 96) coloca essa questão quando alerta para a necessidade de se “[...] desfazer a crença do delírio de um controle permanente e definitivo das engrenagens sociais que levaria a uma suposta plena realização do potencial humano”. A autora afirma que essa crença salvacionista revela uma herança colonial, que ressalta tanto a ideia de paraíso quanto a de apocalipse, renegando o embate de forças infindáveis na qual todos estão sujeitos. Thomaz (2014 apudROLNIK, 2018), em seus apontamentos supracitados, traz um discurso de alguém de fora que chega em um espaço “apocalíptico”, no trecho citado, um espaço de “ensino vazio” e o transforma em paraíso de amor incondicional. Afirmação que subestima a história e experiência dos sujeitos inseridos nesses espaços, professores e alunos, diante de um discurso que ignora as complexidades das relações humanas e suas implicações políticas. Paradoxalmente, Ferreira (2019), quatro anos depois, escreve uma dissertação sobre a mesma iniciativa da pesquisa de Fernandes (2015) e reconhece a desescolarização como uma inspiração inicial do coletivo, embora ressalte que o amadurecimento da iniciativa trouxe a necessidade de ampliar as epistemologias e perspectivas. Thomaz também é citada por Ferreira (2019) como referência de desescolarização, porém, em sua pesquisa, a autora faz uma comparação do termo com a ideia de desmassificação ou descolonização. Desescolarização como “[...] necessidade de tirarmos a escola de dentro de nós. As práticas que tentam homogeneizar, apagar as diferenças e silenciar identidades” (THOMAZ, 2014 apudFERREIRA, 2019, p. 55).

Outra produção acadêmica quanto à ideia de desescolarização que atravessa o movimento dos coletivos parentais é a de Coelho (2017). Em sua dissertação, a autora propõe o anarquismo como estratégia de descolonização do senso comum do que é ser criança. Há um questionamento na iniciativa em que está inserida quanto à alcunha creche parental sob o argumento que a utilização do termo traz “[...] o risco de fazer alusão, mesmo que indiretamente, à um passado a contextos políticos de negação aos direitos das mulheres e da cidadania das crianças pequenas e bebês no que diz respeito ao direito à educação” (COELHO, 2017, p. 82). Entretanto, enuncia desescolarização como “[...] uma prática intrinsecamente anarquista de auto-gestão educacional” (COELHO, 2017, p. 72). Entende o termo como uma proposta de tensionamento do que nomeia como “grandes falhas” da escolarização por meio da desintoxicação dos corpos e das mentes submissas.

Por um lado, há uma incoerência por parte da autora quanto à resistência em utilizar o termo “creche parental”; e, por outro lado, apropriar-se do termo “desescolarização”. Esse termo carrega a palavra “escola” - independentemente dos significantes atribuídos à desescolarização - e levanta questões muito próximas às que foram colocadas pela própria autora acerca do termo creche parental. A universalização do acesso à escola pública, o direito de estudar é uma conquista, fruto de muita luta de diversos movimentos sociais. A afirmação de que a instituição escola intoxica os corpos e produz mentes submissas endossa um “[...] discurso de desvalorização a profissão da docência, já que é nas escolas ou demais instituições escolarizadas que atuam esses profissionais” (CHAMUSCA, 2019, p. 22).

Coelho (2017) afirma que desescolarização é uma forma de experimentar criações educativas. Já que a intenção é de criação, não seria mais interessante criar um outro nome para esse processo e não um termo que carrega um prefixo de negação a um outro espaço de educação que já foi inventado? Há uma incoerência nas afirmações citadas por esses autores quando ressaltam que desescolarização não está contra a escola, mas atribui a ela questões que atravessam todas as instituições inseridas em uma sociedade capitalista, inclusive a instituição família. Há, por um lado, uma romantização do que seria a família; e, por outro lado, uma demonização do que seria escola. Discursos que generalizam a instituição escola a um padrão que não possui tessituras possíveis de serem burladas, transgredidas e reinventadas. Além de que a escola como scholé, na sua origem, afirma a potência do que ela tem de público e de comum, muitas das condenações atribuídas hoje à escola vão de encontro ao que não é escolar, no sentido do scholé:

O que, frequentemente, aconteceu e continua a acontecer é que a quinta-essência do escolar muitas vezes é completamente expulsa da escola. Na verdade podemos ler a longa história da escola como uma história de esforços continuamente renovados para roubar da escola o seu caráter escolar, isto é, como tentativas de “desescolarizar” a escola - que vão muito mais longe no tempo do que os “descolorizadores” da década de 1970 podiam perceber. Esses ataques contra a escola derivam de um impulso para tornar o tempo livre oferecido por ela novamente produtivo e, desse modo, impedir a função de democratização e equalização da escola. O que queremos enfatizar é que essas versões domadas da escola (isto é, escola como família estendida, ou a escola produtiva, aristocrática ou meritocrática) não deveriam ser confundidas com o que realmente significa estar “dentro da escola” e “na escola”: tempo livre. O que muitas vezes chamamos de “escola” hoje em dia é, na verdade a escola desescolarizada. Assim queremos reservar a noção de escola para a invenção de uma forma específica de tempo livre não produtivo, tempo indefinido para o qual a pessoa não tem outra forma de acesso fora da escola. (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 28).

Embora não seja à escola na sua origem grega a que as autoras que propõem a desescolarização estejam se referindo, esse espaço no sentido do scholé é utópico tanto quanto o discurso da desescolarização. Ambos afirmam uma suspensão dos atravessamentos políticos sociais que marcam os corpos daqueles que ocupam o espaço escolar. Outra questão problemática nas narrativas sobre a desescolarização é a figuração da escola e do que é escolar de modo pejorativo, enunciando um modelo específico e estático de escola e a partir dele a generalização do que significa ser escola e do processo de escolarização. Um processo tão nocivo, de acordo com essas narrativas, que a principal pauta da desescolarização propõe se livrar do que denominam como escolar. A desescolarização não indica que o processo educativo se dê no âmbito familiar, porém “[...] muitos dos espaços de educação ‘desescolarizadores’ são mobilizados por famílias que depreciam o que é escolar e de certa forma romantizam o que é familiar” (CHAMUSCA, 2019, p. 48).

A dissertação de Gonçalves (2016) é outro trabalho que aborda a questão da desescolarização em relação aos coletivos parentais. A autora discute as formas de governo vigentes na atualidade que atravessam as práticas educativas escolares e, também, espaços de educação não institucionalizados. Um trabalho que parte da experiência da autora como mãe em dois espaços educativos: um coletivo parental paulista e a creche da Universidade de São Paulo (USP), instituição em que defendeu sua dissertação pelo Instituto de Psicologia. Nesse trabalho, a pesquisadora enuncia desescolarização como processos que evocam duas questões centrais “[...] que instituem modos de vida, portanto, positivos, afirmativos, criadores e produtivos; e processos que permitem contraposições ao funcionamento escolar e que se instituem, entre outras propostas, como maneira alternativa de educação formal” (GONÇALVES, 2016, p. 19). Outra autora, Salgado (2018), também entende a desescolarização no âmbito de uma alternativa, como uma proposta que ajuda a deslocar a ideia do alternativo como uma micropolítica em contraponto com a escolarização no sentido macro. A pesquisadora traz como uma de suas referências a filósofa Carla Ferro3, a qual entende esse processo de desescolarização “[...] como uma alternativa à educação e não uma proposta de educação alternativa, não é a recusa de estar na escola, é a recusa de um caminho único problematizando que a educação seja sinônimo de escola” (FERRO apudSALGADO, 2018, p. 118).

Nessas duas últimas produções citadas, a desescolarização mostra-se como uma outra possibilidade educativa. É importante ressaltar a incoerência com a utilização do termo já que a ideia de alternativo tem o caráter somativo, como mais uma possibilidade. Portanto, diante da possibilidade de vivenciar e criar, outras práticas acabam ancorando seus discursos em um modelo escolar tradicional de forma pejorativa, negligenciado lutas e corpos que ocuparam e ocupam as instituições escolares quando poderiam adotar outros nomes, outras pautas e criar outros léxicos. É importante ressaltar que o “alternativo” não está livre de ser capturado pelas normas instituídas, assim como as instituições são constantemente atravessadas por experiências e práticas transgressoras que fogem e burlam as normas impostas nesses espaços.

Desescolarização como alternativa para quem?

As iniciativas de educação nomeadas como alternativas, de acordo com Revah (2007), surgiram, no contexto brasileiro, na década de 1970, abrangendo características bem distintas. Segundo o autor, “[...] nas camadas médias o que predominava era o atendimento à criança pequena em instituições pré-escolares. Nos setores populares havia creches e pré-escolas, mas também núcleos de alfabetização de adultos e outras formas da chamada educação popular” (REVAH, 2007, p. 93). De acordo com Revah, essas diferentes possibilidades de educação alternativa correspondiam em geral às modalidades de ensino menos sujeitas ao controle e às regulamentações oficiais. Nesse período de surgimento de práticas educativas denominadas como alternativas, segundo Revah (2007), as iniciativas de educação de caráter experimental ocuparam predominantemente espaços de primeira infância formais e não formais. Em um contexto em que a frequência escolar até os seis anos de idade não era obrigatória na legislação brasileira, havia a possibilidade de maior liberdade burocrática e pedagógica. Na conjuntura atual, em que é obrigatório que crianças a partir dos 4 anos de idade estejam matriculadas em uma instituição escolar, o fator que favorece a experimentação de outras práticas pedagógicas de caráter alternativo às práticas tradicionais é o currículo desse segmento, mais aberto a linguagens diversas em relação às outras etapas de escolaridade, fazendo desses espaços terrenos férteis para vivenciar práticas educativas diferenciadas.

No livro Micropolítica. Cartografia dos Desejos, Guattari e Rolnik (1996), em um pequeno trecho, discutem as pré-escolas alternativas de São Paulo na década de 1980, experiências pedagógicas “[...] no bojo de um movimento micropolítico - movimento de questionamento do cotidiano que então se expandia entres setores da classe média progressista e intelectualizada” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 99). Guattari, em conversa com Suely Rolnik, aponta com clareza as potências e as tensões desses espaços na reunião em que esteve presente junto a iniciativas alternativas de São Paulo em 1982:

Parece haver vários personagens em jogo nesses empreendimentos: dá para entrever, ao menos, três personagens importantes. Ou quatro, na verdade: as crianças, antes de mais nada, que são as personagens principais. Há também o personagem alternativo, que se situa em relação às suas próprias expressões, que quer criar um mínimo de espaço de liberdade e que - exatamente por isso - está correndo o risco de criar um gueto, isto é, de não conseguir articular seu espaço de liberdade com o que se passa no campo social, como que se passa ao nível do Estado. O terceiro personagem seria o Estado, que está sempre disposto, pelo menos nos contextos que eu conheço, a querer colonizar tudo, serializar tudo, recuperar tudo (inclusive as experiências alternativas), desde que isso seja possível. E o quarto personagem é o bairro, a população, o meio ambiente. (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 100).

Guattari, no trecho citado (GUATTARI; ROLNIK, 1996), fala com Suely Rolnik sobre a possibilidade de que espaços de educação alternativos que existem no sentido de promover um lugar de liberdade se tornarem guetos diante da impossibilidade de articular o espaço de liberdade criado com o que acontece no campo social. Nessa perspectiva, faz-se necessário problematizar o fato de o movimento dos coletivos parentais enunciarem a desescolarização como uma inspiração e não assumir um discurso de renúncia à escola. A ideia de experimentar outra possibilidade de educação pode ser muito potente e necessária, desfrutar da oportunidade de criar espaços de experimentação sem as demandas e as amarras institucionais em coletivo com uma gestão horizontal possibilitada por um movimento de micropolítica, não é um problema. A questão é ecoar discursos descontextualizados com a realidade, diante de um lugar de privilégio e irresponsavelmente corroborar políticas neoliberais e conservadoras de precarização do ensino público. Na ausência de estudos e de regulação, essas iniciativas ficam à mercê de perspectivas pouco fundamentadas e interesses pouco claros, quando não obscuros, relativamente à educação das crianças. As condições dos espaços, a natureza das relações que aí se estabelecem, seja ao nível pessoal como profissional, são algumas das questões que emergem de uma análise da pesquisa recente produzida sobre essas iniciativas.

Apesar dos coletivos representarem um quantitativo ínfimo em relação à quantidade de espaços institucionalizados de educação, um aspecto importante são as da formação, relações e condições laborais dos educadores que atuam nesses espaços. Trata-se de um novo campo de trabalho que se abriu: todos os coletivos mapeados contam com a presença de pelo menos uma educadora, além do suporte das famílias. Domingues (2019) fez um levantamento por meio de um questionário divulgado em um grupo sobre coletivos parentais na rede social Facebook e mapeou 17 coletivos existentes em 2018. Chamusca (2019), em sua pesquisa, levantou 21 coletivos parentais ativos em 2018 e mais 14 coletivos que existiram em outros períodos. De acordo com os levantamentos, todos os coletivos existentes em 2018 contavam com a presença de pelo menos um educador e, entre os 14 coletivos existentes em outros períodos, podemos afirmar que 13 contavam com a atuação desses trabalhadores. A formação desses educadores é muito diversa, segundo Chamusca (2019), dentre os 43 educadores que atuaram em coletivos em 2018, dois estão cursando pedagogia e nove são pedagogas. Interessante observar a heterogeneidade de graduações nas quais os educadores dessas iniciativas percorreram, como Teatro, Cinema, História, Direito ou Psicologia. Muitos passaram por diferentes formações além da academia que não foram especificadas nessa pesquisa.

O fato de essas iniciativas não exigirem formação específica pode ser até considerado coerente por serem espaços informais criados em detrimento das instituições formais de educação. Segundo Domingues (2019), uma das questões apontadas pelas famílias inseridas nessas iniciativas quanto às instituições formais de educação aponta para “[...] a necessidade de espaços educativos repensarem suas propostas pedagógicas e formativas com os profissionais” (DOMINGUES, 2019, p. 140). De acordo com essa afirmação, há nesse movimento uma crítica às práticas escolares institucionalizadas, principalmente ao professor, já que há um questionamento sobre a formação e as práticas desse profissional que está na linha de frente das propostas pedagógicas vivenciadas nesses espaços. Não deixa de ser curioso, e algo paradoxal, que, apesar da maioria não ser pedagogo, muitos são licenciados em diferentes áreas de conhecimento, portanto têm uma formação pedagógica universitária que os habilita a trabalhar na escola. Tanto mais se pensarmos na formação desses profissionais; nas implicações da sua presença relativamente ao desenvolvimento do trabalho pedagógico juntamente às famílias; ou nas questões relativas às suas motivações para trabalhar nesses espaços.

A vulnerabilidade do trabalho dos educadores nos coletivos parentais traz tensões que estão, para além das questões trabalhistas, mas também afetam a categoria dos professores, os profissionais formados para atuar com crianças nos espaços formais de educação. Mais especificamente o pedagogo, profissional habilitado para atuar na Educação Infantil, segmento que equivale à faixa etária contemplada nos coletivos, categoria que diante de uma luta histórica de movimentos sociais teve como conquista recente a exigência de formação específica para trabalhar em creches e escolas com a primeira infância. Há na trajetória do educador que atua com crianças de 0 a 6 anos, uma naturalização desse trabalho, desde o surgimento da categoria, que ainda tem reflexo nos dias de hoje, uma ambiguidade na caracterização do professor da Educação Infantil que oscila entre o âmbito doméstico da mulher/mãe e o trabalho educativo (CHAMUSCA, 2019).

Nessa perspectiva, o aspecto não formal, livre de normas, não institucionalizado, apesar de ser uma qualidade considerada interessante nesse movimento para o processo educativo, pode prejudicar, mesmo que indiretamente, uma conquista histórica da categoria do professor de Educação Infantil. A não exigência de um profissional formado para atuar com a primeira infância, o aspecto privado e doméstico dessas iniciativas, em que a maioria utiliza suas próprias casas como espaço ocupado pelo coletivo parental, de acordo com os estudos de Domingues (2019) e Chamusca (2019), de certa forma contribuem para uma naturalização do trabalho com a primeira infância, apontado por Arce (2001) como o mito da educadora nata. Para a autora, ao longo da história, tem-se “[...] reforçado a imagem do profissional dessa área como sendo a da mulher naturalmente educadora, passiva, paciente, amorosa, que sabe agir com bom senso, é guiada pelo coração, em detrimento do profissional” (ARCE, 2001, p. 167).

Os discursos que produziram o mito da educadora nata (ARCE, 2001) são representações do exercício do magistério que se organizam na dicotomia público/privado, no qual as mulheres se encarregam das atribuições domésticas e os homens do exercício público da política. Tais representações indicam diretamente um processo social por meio do qual uma dada posição é produzida. A vinculação do trabalho com a primeira infância ao âmbito doméstico, ao amadorismo e ao improviso, afasta essa categoria da condição de professor. A existência dos coletivos parentais, de certa forma, contribui para a naturalização do trabalho com essa faixa etária, já que essas iniciativas em geral atendem à primeira infância, utilizam como espaço físico as casas das famílias e pagam um ou mais trabalhadores para atuarem com as crianças. Pelo caráter informal dos coletivos, não há exigência de uma formação específica para esse trabalho. Portanto, esse aspecto quanto ao trabalho da educação nesses coletivos somado à condição privada e doméstica, além da temática da desescolarização que atravessa esse movimento, traz tensões em relação às instituições públicas de educação e os profissionais que nelas atuam.

As denúncias são fundamentais para movimentar e transgredir as engrenagens. As escolas têm muitos problemas, mas também podem abrir muitos caminhos. Como qualquer outra instituição pública em uma economia capitalista, as escolas têm suas contradições, podem ser alienantes para alguns estudantes e para outros um espaço de mobilização social. Um espaço que pode possibilitar outras formas de existir, tanto para aqueles que possuem saúde em suas relações familiares, mas que, em suas casas, vivenciam um repertório cultural restrito ou posições radicais e conservadoras. Também pode ser o espaço de acolhimento e de visibilidade para crianças que são expostas a abusos físicos e psicológicos em seu âmbito familiar. Diferentemente do que defendem os discursos em prol da desescolarização relatados até aqui, se é verdade que muitas vezes na escola são naturalizados preconceitos, abusos e discriminações, não convém reduzir a escola a esse mecanismo, nem negligenciar as possibilidades dessa instituição de muitas vezes desnaturalizar preconceitos, abusos e discriminações perpetuadas nas famílias de muitos estudantes. Assim como é impossível afirmar e garantir que todas as escolas proporcionem vivências saudáveis, felizes, éticas e coerentes com um senso comum do que seria sua função social, também não são todas as famílias que necessariamente garantem a integridade física, moral e ética daqueles que estão sob a condição de tutelado nesse âmbito doméstico. Portanto, há, muitas vezes, nas narrativas “desescolarizadoras”, uma romantização da instituição família e uma demonização da instituição escola.

Algumas notas finais

A possibilidade de construção do espaço público da educação, tal como proposto por Nóvoa, talvez resida na possibilidade de pensar e fazer a educação pública a partir de lógicas não dicotômicas, a partir da complexidade da questão do público em educação e da pluralidade e da singularidade das experiências educativas dentro e fora da escola. É preciso problematizar o discurso de mais uma alternativa de educação quando respaldado em argumentos que, mais do que anunciar suas propostas, enunciam a escola como um espaço nocivo, a exemplo das narrativas das produções acadêmicas citadas neste artigo, em que há um deslocamento da narrativa de que “[...] não se aprende somente na escola para não se aprende na escola” (BARRETO et al., 2006, p. 40). Da mesma forma, também é preciso pensar a potência de algumas experiências educativas não-institucionais para abrir possibilidades de renovação da escola e com ela da renovação do mundo comum por meio da educação proposta por Arendt.

A escola como uma grande arena política, um lugar de encontro e de atravessamentos de diferentes forças em disputa, em que há a possibilidade de muitos caminhos apesar das normas instituídas, é um campo de possibilidades. Essa instituição como um ponto de interseção de diferentes corpos que carregam suas marcas e ocupam esse lugar cotidianamente é um espaço potente para produzir outras subjetividades. Inventar outras formas de vida e releituras de mundo em um espaço suspenso como buscava a scholé ou em um espaço alternativo como os coletivos parentais pode ser possível, problematizando o sentido público da escola, afirmando a sua abertura à imprevisibilidade movimentada pelos diferentes corpos que nela habitam, e que, ao mesmo tempo que está submetida às normas que buscam prever e controlar um cotidiano que é vivo e aberto, se apresenta como um terreno fértil para inventar outras formas de vida.

É importante ressaltar a diferença quanto aos anseios do movimento da desescolarização e da educação domiciliar. No contexto dos coletivos parentais aqui apresentado, a desescolarização tem o caráter mais anárquico e busca romper majoritariamente com a estrutura institucionalizada e o currículo escolar, além de se organizarem em coletivos, enquanto a educação domiciliar ou homeschooling tem em geral um caráter mais conservador, há uma reprodução do currículo escolar que é ministrado pelos pais ou professores contratados e não há necessariamente a intenção de se articular com outras famílias. Contudo, muitos dos argumentos contra a escola apresentados por ambos os movimentos se dirigem ao modelo da escola moderna e seus rumos na sociedade do conhecimento no contexto do capitalismo global, e não à forma da escola, como propõem Masschelein e Simons (2013). A questão que se coloca é até que ponto esses mesmos argumentos não servem à lógica capitalista, mercantilista e produtivista que supostamente pretendem combater. Principalmente, se pensarmos como alguns desses argumentos, como a liberdade de escolha das famílias e a possibilidade de criar formas alternativas de educação, se enquadram em uma lógica individualista, competitiva e privatista que mais do que pluralizar apenas fragmenta, atomiza e dicotomiza, dificultando a discussão sobre a questão do público na educação. Por isso, perspectivas com as de Arendt, Nóvoa ou Masschelein e Simons podem nos ajudar a produzir deslocamentos que potencializem o debate em torno do público em educação, pluralizando as relações entre público e privado e família e escola.

No caso dos coletivos parentais, é preciso ter em conta que, dada a especificidade dessa faixa etária e da natureza do atendimento existente, algumas experiências educativas no âmbito da desescolarização podem se efetivar de uma forma mais livre porque caem fora do âmbito da obrigatoriedade escolar e, consequentemente, sua relação com a escolarização - por exemplo, relativamente ao processo de alfabetização - é mais ténue e menos regulada, criando uma margem de liberdade, tanto do ponto de vista legal como pedagógico, mais ampla do que no caso do ensino obrigatório. No âmbito legal, no entanto, a existência dos coletivos à margem da lei, sem qualquer regulação ou reconhecimento legal, coloca questões relativamente à garantia dos direitos das crianças, privilegiando o direito de escolha das famílias em relação à sua educação. Também coloca questões voltadas à situação profissional dos pedagogos que atuam nesses espaços.

Do ponto de vista pedagógico, alguns aspetos interessantes podem ser identificados na relação que os coletivos privilegiam com a cidade e outros espaços públicos que não os espaços escolares institucionalizados. Ainda sobre o trabalho pedagógico, a relação de proximidade do trabalho educativo desenvolvido em conjunto por profissionais da educação e famílias pode ser um aspecto interessante a considerar, devido às possibilidades que abre à relação educativa e ao trabalho educativo na Educação Infantil.

Outro aspecto que importa questionar é até que ponto iniciativas como as dos coletivos parentais podem contribuir, ainda que involuntariamente, para a demissão do Estado em relação às políticas educativas de atendimento à primeira infância. Nesse sentido, uma lógica de tensionamento voltada ao papel e à intervenção do Estado nessa faixa etária poderia ser mais interessante e produtiva do que uma simples lógica dicotômica, abrindo espaço para a emergência de outras possibilidades para a educação pública, veja-se o caso das creches parentais francesas. Da mesma forma, a efemeridade dos coletivos parentais (CHAMUSCA, 2019), que existem apenas durante o período de tempo necessário para responder às necessidades das famílias envolvidas no coletivo, coloca em questão a possibilidade de construir estruturas estáveis que assegurem renovação do mundo comum e o impeçam da ruína, de que nos fala Arendt. O fato de existirem quase exclusivamente em famílias de classe média, branca e com níveis altos de escolarização também coloca algumas questões relativamente à possibilidade da sua guetização, como já alertava Guattari, no texto que referimos, e à sua natureza pública, na medida em que contemplam os interesses, as preocupações e as aspirações de um nicho privilegiado da população.

Na nossa perspectiva, nenhuma dessas questões tem uma resposta única, simples ou imediata, apenas pretendemos trazer alguns elementos para o debate que possam tensionar e ampliar o âmbito da discussão, abrindo possibilidades outras para pensar a educação em tempos de forte pressão de privatização do espaço público da educação e de captura dos sentidos do público por interesses privados.

1Ana Thomaz é educadora, professora da técnica Alexander e mãe de três filhos “desescolarizados”. Uma das principais referências da desescolarização no Brasil. É idealizadora do projeto AMALAYA em Piracaia, São Paulo.

3Carla Ferro é filósofa e pesquisadora e difusora do movimento da desescolarização no Brasil. Disponível em: <https://medium.com/@carlaferro>. Acesso em: 10 dez. 2019.

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Recebido: 10 de Janeiro de 2020; Revisado: 18 de Março de 2020; Aceito: 20 de Março de 2020; Publicado: 01 de Abril de 2020

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