SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.15A defesa pela “liberdade de escolha” fortalecendo uma rede empresarial: o homeschooling brasileiroPercursos identitários do início da atividade profissional de uma professora de Matemática índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.15  Ponta Grossa  2020  Epub 04-Jun-2020

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.14881.028 

Dossiê: Homeschooling: controvérsias e perspectivas

Reflexões sobre a proposta de Educação Domiciliar no Brasil: o Projeto de Lei Nº 2401/2019

Reflections about Brasil’s Home Education proposal: the Bill no. 2401/2019

Reflexiones sobre la propuesta de Educación Domiciliaria en Brasil: el Proyecto de Ley Nº 2401/2019

Juliane Morais Wendler* 
http://orcid.org/0000-0003-2073-0257

Simone de Fátima Flach** 
http://orcid.org/0000-0002-9445-0111

*Licenciada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG. E-mail: <juliane_morais@hotmail.com>.

**Doutora em Educação. Docente do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG. E-mail: <eflach@uol.com.br>.


Resumo:

Este texto tem por objetivo apresentar reflexões acerca da polêmica em torno da discussão sobre a regulamentação da Educação Domiciliar ou Homeschooling no Brasil por meio do Projeto de Lei Nº 2401/2019, proposto na Câmara dos Deputados pelo Poder Executivo. Para tanto, a partir de pesquisa bibliográfica e de dados coletados no site da Câmara dos Deputados, são apresentados alguns fundamentos que dão sustentação à proposta, seus principais conceitos; situa-se o Projeto historicamente; e indicam-se possíveis efeitos em caso de aprovação. Por fim, conclui-se que o PL Nº 2401/2019 é medida antidemocrática, pois se situa na contramão da resolução dos problemas sociais e educacionais do país.

Palavras-chave: Educação; Educação Domiciliar; Homeschooling

Abstract:

This text aims to present reflections on the controversy surrounding the discussion on the regulation of Home Education or Homeschooling in Brazil through Bill no. 2401/2019, proposed in the Chamber of Deputies by the Executive Branch. To this end, based on bibliographic research and data collected on the Chamber of Deputies website, some fundamentals that support the proposal are presented, its main concepts; the Project is historically situated; and possible effects are indicated in case of approval. Finally, it is concluded that PL no. 2401/2019 is an anti-democratic measure, as it is against the resolution of the country’s social and educational problems.

Keywords: Education; Home Education; Homeschooling

Resumen:

Este texto en pantalla tiene como objetivo presentar reflexiones sobre la polémica en torno a la discusión sobre la regulación de la Educación Domiciliaria o Homeschooling en Brasil por medio del Proyecto de Ley Nº 2401/2019, propuesto en la Cámara de Diputados por el Poder Ejecutivo. Para ello, a partir de investigación bibliográfica y de los datos recopilados en el sitio web de la Cámara de Diputados, se presentan algunos fundamentos que respaldan la propuesta, sus conceptos principales; se sitúa históricamente el Proyecto e se indican posibles efectos en caso de aprobación. Finalmente, se concluye que el PL Nº 2401/2019 es una medida antidemocrática, ya que está en contra de la resolución de los problemas sociales y educativos del país.

Palabras-clave: Educación; Educación Domiciliaria; Homeschooling

Introdução

Está em tramitação, em regime de prioridade, no Congresso Nacional, o Projeto de Lei N° 2401 de 2019 - PL Nº 2401/2019, que visa instituir a Educação Domiciliar no Brasil por meio de alteração da Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e da Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN).

O Projeto em tela é controverso, visto que gera polêmica entre professores e educadores1, mas, ao mesmo tempo, recebe apoio de grupos conservadores que compõem as duas casas legislativas do Congresso Nacional, fato que indica reais possibilidades de que encontre guarida para aprovação. Além disso, a questão em discussão é objeto de disputa jurídica, social e educacional, visto que sua aprovação pode alterar significativamente o entendimento sobre as responsabilidades da educação de crianças e de adolescentes brasileiros.

Em face dos aspectos polêmicos dessa iniciativa que ganha força e espaço nas discussões políticas, sociais e educacionais, o presente artigo tem por objetivo apresentar reflexões acerca da Educação Domiciliar e do PL Nº 2401/2019, que pretende regulamentar essa modalidade de ensino no Brasil. Para tanto, a partir de pesquisa bibliográfica e busca de dados disponíveis no site da Câmara dos Deputados, este texto apresenta uma discussão sobre o Projeto que pretende instituir a Educação Domiciliar ou Homeschooling no Brasil - o PL Nº 2401/2019, seus principais conceitos e suas abordagens, algumas reflexões históricas e aspectos relevantes do Projeto de Lei que tramita em regime de prioridade.

Notas sobre educação domiciliar

A necessidade de amplo debate sobre o tema é importante não apenas em razão da tramitação em curso no Congresso Nacional, mas também em razão dos possíveis efeitos de uma proposta que pode interferir na oferta educacional de forma imediata, além de que, em médio e longo prazo, poderá aprofundar a divisão social, fortalecendo a dualidade estrutural da sociedade capitalista. Os efeitos de propostas dessa natureza são incomensuráveis no atual momento histórico. Por isso, a tramitação de tal Projeto de Lei não pode se dar sem debate.

A Educação Domiciliar ou Homeschooling consiste no processo educativo realizado fora da escola, no qual pais ou responsáveis assumem a responsabilidade direta pela educação formal dos filhos. Nesse modelo, cabe à instituição familiar a responsabilidade de decisão sobre as formas de educar os menores sob sua guarda ou tutela. Segundo Boudens (2002, p. 10), a Educação Domiciliar caracteriza-se por “[...] alternativa de educação formal, ou, de ensino intencional e sistemático, caracterizado pelo desenvolvimento do currículo escolar fora da escola, em casa”. Entretanto, tal modelo educativo contrapõe-se à Constituição Federal (BRASIL, 2017), a qual destaca que a educação é um direito de todos e dever do Estado e da família.

Nessa modalidade educativa, crianças e adolescentes não precisam frequentar a escola, pois seus pais ou responsáveis organizam o processo educativo, podendo contar também com tutores contratados. Para Murphy (2014), a Educação Domiciliar apresenta as seguintes características: o financiamento da educação é responsabilidade da família e não do Estado, o serviço é ofertado pelos pais e não por um funcionário contratado pelo Estado, e, ainda, a organização do processo educativo é feita pela família, conforme normas específicas. Boudens (2002, p. 10) destaca que: “Em outras palavras, ensino em casa seria uma educação básica formal que independe da frequência da escola, da presença em sala de aula, laboratórios, oficinas e bibliotecas, do convívio com crianças da mesma idade, do contato com professores convencionais”. Desse modo, a Educação Domiciliar é um processo restrito à família, sem a mediação ou custeio por parte do Estado, pois a família define e organiza toda a concepção pedagógica inerente ao processo de educar.

Nesse sentido, Moreira (2017) esclarece que:

A educação domiciliar é uma modalidade de ensino que não obedece a uma lógica única, massificada para todas as famílias, por basear-se no princípio da soberania educacional da família, ou seja, seu fundamento é a liberdade de cada família determinar como será realizada a educação de seus filhos. (MOREIRA, 2017, p. 61).

Cabe ressaltar que a Educação Domiciliar não é um método de ensino, é uma modalidade de educação, com características diferenciadas, na qual cada família organiza, a seu modo, o processo educativo de seus filhos. Além disso, na Educação Domiciliar pode haver a contratação de tutores particulares para auxiliar os pais nesse processo, desde que o custeio seja realizado pela família ou por um grupo de familiares. Silva et al. (2015, p. 98) revelam que, “[...] de acordo com as circunstâncias, também pode receber auxílio externo, como o de tutores particulares para disciplina nas quais os pais se veem incapacitados de ensinar”. Portanto, a Educação Domiciliar ou Homeschooling refere-se a uma modalidade educativa na qual os pais ou responsáveis assumem diretamente o processo educativo dos seus filhos, sem nenhum custeio ou auxílio governamental. No entanto, a questão central que fundamenta as defesas dessa modalidade de ensino “[...] não é onde dar-se-á o processo de ensino, mas sobretudo com quem, em companhia de quem, em que circunstâncias e sob controle de quem” (PICOLI, 2020, p. 4). Segundo o autor, o âmago da questão é a realização de uma “educação sem escola”, e, nesse sentido, evidencia-se um posicionamento conservador que desqualifica a função da instituição escolar. Todavia, o Brasil ainda não tem respaldo legal para sua orientação e regulamentação. O ordenamento jurídico brasileiro estabelece a educação como direito de todos e que este é assegurado por meio da universalização da matrícula em estabelecimentos integrantes dos Sistemas de Ensino.

É importante destacar que, no Brasil, a discussão a respeito da Educação Domiciliar não é recente, mas ganhou força a partir da ascensão do conservadorismo nos campos social e político e se caracteriza como uma modalidade de ensino que se fundamenta na “soberania educacional da família” tendo como maior fundamento “[...] a liberdade de cada família determinar como será realizada a educação de seus filhos” (MOREIRA, 2017, p. 61). Enquanto proposta conservadora, a defesa de Educação Domiciliar se fundamenta em preceitos que enaltecem o poder dos pais não apenas sobre a aprendizagem, mas sobre a vida de seus filhos, visto que direcionam os processos de ensino conforme determinada visão de sociedade, do conhecimento produzido, do modelo familiar e até mesmo da religião, impedindo que crianças e adolescentes convivam com a diversidade social, cultural e de crenças. Tais práticas de ensino podem influenciar a formação de pessoas intolerantes para a convivência em sociedade.

Moreira (2017) aponta algumas razões para a escolha da Educação Domiciliar, as quais se fundamentam em argumentos sobre a deficiência da escola em promover a socialização e impedir possíveis pressões dos grupos, desrespeito à individualidade das crianças, desvalorização da família e trabalho pedagógico pautado no materialismo e cientificismo em detrimento da perspectiva religiosa defendida pelas famílias. Nesse sentido, ao que tudo indica, aqueles que aderem a tal proposta defendem uma educação isolada do contexto social mais amplo, oferecendo formação direcionada para seus interesses, desconsiderando a necessidade de uma formação ampla, de respeito pelo outro e desenvolvimento do conhecimento científico e cultural da humanidade.

Ainda, segundo Moreira (2017, p. 69), a Educação Domiciliar está presente em inúmeros países do mundo, “[...] sendo expressamente legalizada em diversos países, como África do Sul, Canadá, Colômbia, México, Peru, Índia, Indonésia, Israel, Áustria, Espanha e Itália”. Segundo o autor, nos Estados Unidos, há expressão dessa modalidade de ensino desde a década de 1970, sendo “[...] legal em todos os 50 estados da federação americana” (MOREIRA, 2017, p. 69).

No entanto, a questão não é simples e não pode ser tratada de forma célere, a partir de um único ponto de vista, já que a Educação Domiciliar envolve uma complexidade de interesses controversos. No Brasil, a situação segue à margem das previsões legais, não havendo dados oficiais sobre a quantidade de crianças e adolescentes que vivem o fato2. Contudo, há situações em que famílias não matriculam seus filhos na rede regular de ensino, situação que “[...] quase sempre é tolerada pelas autoridades judiciais e administrativas” (MOREIRA, 2017, p. 70), visto serem estas as responsáveis em fiscalizar tais acontecimentos e tomar as providências cabíveis em cada caso.

Nesse sentido, inúmeras ações judiciais já foram impetradas em diversos estados, tanto para assegurar a matrícula de crianças e de adolescentes na rede regular de ensino quanto para garantir o direito das famílias em optar pela Educação Domiciliar. Em decisão sobre Recurso Extraordinário impetrado junto ao Superior Tribunal Federal (STF)3, a corte brasileira decidiu, em 2018, por maioria de votos, que a Educação Domiciliar não é a forma prevista pela Constituição Federal para prover a educação de crianças e de jovens, devendo ser garantida em instituições escolares públicas ou privadas, visto que não há regulamentação sobre regras aplicáveis à essa modalidade de ensino.

Logo, até o presente momento, embora a Constituição Federal reconheça que a educação é dever do Estado e da família, não há qualquer regulamentação legal sobre a possibilidade de efetivação de Educação Domiciliar no contexto brasileiro, fato que coloca a ocorrência dessas situações em situação de ilegalidade. A Constituição Federal (CF) prevê a Educação Básica como obrigatória, conforme disposto em seu art. 206 e reafirmado no art. 4º da LDBEN - Lei Nº 9.394/1996. De acordo com o artigo 208 da CF:

O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria [...]. (BRASIL, 2017, p. 160)

Ainda, a LDBEN - Lei Nº 9.394/1996 - estabelece, no seu art. 6º, que é “[...] dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos 4 (quatro) anos de idade” (BRASIL, 1996, n.p.). A Lei acrescenta, no art. 5º, que:

O acesso à educação básica obrigatória é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída e, ainda, o Ministério Público, acionar o poder público para exigi-lo. (BRASIL, 1996, n.p.)

Desses dispositivos legais, apreende-se que a educação é obrigatória e deve ser suprida pela ação do Estado e da família de forma subsidiária. Nesse sentido, não pode a família, ao seu livre arbítrio, decidir de forma diferente quando o Estado é o responsável, conforme regulamentação expressa. O ECA - Lei Nº 8.069/1990, em seu artigo 55, reafirma que os pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular seus filhos, acrescentando a obrigatoriedade da matrícula na rede regular de ensino (BRASIL, 1990). Esse documento legal deixa clara, portanto, a necessidade de matrícula na rede regular de ensino, ou seja, em escolas públicas ou privadas, conforme estabelecido pela legislação brasileira. Ao que tudo indica, não resta dúvida sobre o direito à educação e da obrigatoriedade dos pais ou dos responsáveis em matricular as crianças e os adolescentes e do Estado em garantir esse direito por meio da oferta de vagas na rede pública ou por meio de autorização e fiscalização da rede particular de ensino.

O não cumprimento desse preceito legal por parte dos responsáveis está sujeito à aplicação do art. 246 do Código Penal - Decreto-lei Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 -, que se refere ao crime de Abandono Intelectual, assim descrito: “Deixar, sem justa causa, de prover a instrução primária do filho em idade escolar” (BRASIL, 1940, n.p.), o qual prevê pena de multa e até mesmo de detenção em caso de descumprimento do preceito legal.

Logo, reafirmado pela decisão do STF em 2018, com base nos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, o ensino domiciliar ainda não é legalmente instituído no Brasil, sendo, para seu reconhecimento, necessária uma lei específica que o regulamente. Sob essa perspectiva, o Projeto de Lei Nº 2401/2019 objetiva regulamentar o exercício do direito à Educação Domiciliar no âmbito da Educação Básica, alterando as leis vigentes e fornecendo fundamentos jurídicos para a efetivação da Educação Domiciliar no Brasil.

O debate sobre educação domiciliar no Brasil

A Educação Domiciliar, mesmo sem regulamentação no contexto brasileiro, é uma prática que existe no arrepio da lei. Não há dados oficiais sobre a existência dessa modalidade de ensino, mas a ANED pleiteia a existência de milhares de casos4. É importante destacar que a ANED tem protagonizado o debate acerca da Educação Domiciliar, tanto por meio de seu site e redes sociais quanto por figurar em ações judiciais que defendem essa modalidade de ensino. Para tanto, coloca-se na defesa dos interesses individualizados das famílias sem qualquer perspectiva de discussão sobre o necessário avanço da educação para a coletividade da sociedade. A esse respeito, Casanova e Ferreira (2020) alertam que:

Os discursos produzidos e divulgados pela ANED em seu site e rede social fundamentam-se em valores que transformam as relações plurais, complexas, de participação, de negociação, de reflexão e de construção coletiva em uma relação individualizada, que concentra os sujeitos no monitoramento e no gerenciamento de metas já estabelecidas, como as provas padronizadas. Os enunciados fortalecem a perspectiva de mercantilização, de ações individualizadas que não visam o bem coletivo. (CASANOVA; FERREIRA, 2020, p. 11).

Todavia, a Educação Domiciliar não é algo novo na realidade brasileira, e sua defesa pode ser caracterizada como resultado da formação histórica e social do país. Para Cury (2006), a questão da educação no lar deriva da formação colonial brasileira, com raízes patriarcais e modelo colonizador. No século XIX, a educação doméstica era amplamente aceita pela elite e reconhecida como a mais adequada para o ensinamento dos seus filhos. Tal entendimento esteve atrelado à ausência do Estado em prover a educação no país, tanto no período colonial quanto imperial. Após a Proclamação da República, os resquícios colonizadores, patriarcais e escravocratas pautaram a política brasileira, relegando o campo educacional às iniciativas isoladas e conforme defesas de grupos minoritários no contexto da economia agrário-exportadora que orientava a organização social.

Além disso, Mendonça e Vasconcelos (2005) acrescentam que: “A escola não era vista como um lugar apropriado, seja por suas instalações deficientes, seja pela diversidade de crianças e jovens que a frequentavam, ou ainda, pelo temor dos efeitos à moralidade que poderia ocasionar tal reunião de meninos e, principalmente, de meninas”. Muitas vezes, as mães eram as responsáveis por ensinar seus filhos a ler, a escrever e a contar, ou havia mesmo preceptoras que educavam e ensinavam nas casas das famílias. Naquele contexto, grande parte da população era educada em casa. Conforme relata Vasconcelos (2007):

Os professores particulares, também chamados de mestres particulares ou mestres que davam lições “por casas”, eram mestres específicos de primeiras letras, gramática, línguas, músicas, piano, artes e outros conhecimentos, que visitavam as casas ou fazendas sistematicamente, ministrando aulas a alunos membros da família, ou agregados, individualmente. [...]. Os preceptores eram mestres ou mestras que moravam na residência da família, às vezes, estrangeiras, contratados para a educação das crianças e dos jovens da casa (filhos, sobrinhos, irmãos menores). (VASCONCELOS, 2007, p. 27-28).

Mesmo tendo raízes históricas e tendo sido amplamente aceita por um período, a Educação Domiciliar nunca foi regulamentada no Brasil. Ao longo da história brasileira, as Constituições sempre oscilaram nas previsões a respeito da responsabilidade do Estado em prover a educação para todos os brasileiros, fatos que podem ser apontados como brechas para que as famílias assumissem a educação de seus filhos, seja no contexto do lar ou em instituições particulares, e o Estado negligenciasse a oferta educacional para a população. Além disso, os dispositivos constitucionais também estiveram atrelados aos interesses da Igreja, mesmo sendo o Estado considerado laico desde o advento da República.

O direito à educação obrigatória, universal e gratuita, também é recente no Brasil, pois somente com a Constituição Federal de 1988 o Ensino Fundamental foi assegurado a todos, mesmo para aqueles que não tiveram acesso em idade própria5. A organização das escolas também esteve atrelada às lutas sociais, às previsões legais e aos interesses políticos em cada momento histórico. A discussão a respeito da Educação Domiciliar, as alterações legais propostas e possíveis implicações também estão vinculadas aos compromissos políticos atuais, os quais seguem a pressão dos interesses de determinados grupos. Assim sendo, o Projeto de Lei Nº 2401/2019 representa determinados interesses, e sua tramitação, suas discussões e seus possíveis embates legislativos serão pautados pela correlação de forças antagônicas, e sua aprovação, ou não, estará vinculada ao processo hegemônico de grupos específicos no contexto legislativo brasileiro.

Segundo Silva et al. (2015), a educação no lar ressurgiu nos movimentos de contracultura, ocorridos nos Estados Unidos a partir de 1960. No Brasil, as primeiras ideias sobre a educação no lar chegaram inicialmente por influência de pastores americanos que transmitiam suas concepções para os fiéis, posteriormente outras famílias, fora do grupo protestante, começaram a se interessar pela questão. O primeiro Projeto de Lei que visava regulamentar tal prática é datado de 19946.

Atualmente, a principal justificativa utilizada na defesa do ensino domiciliar no Brasil é a precariedade do Sistema escolar. Tal justificativa pauta-se em uma visão distorcida da escola, a qual se fundamenta em alguns argumentos, tais como: baixa qualidade, insegurança escolar em razão da violência urbana, manutenção dos princípios e das tradições familiares, além dos argumentos em defesa das religiões cristãs. Tais argumentos desconsideram ou reduzem a importância da escola como espaço fundamental de socialização, de democracia e de pluralismo de ideias, que proporciona o debate, o diálogo, a sociointeração, o convívio com o outro e com as diferenças.

Nessa esteira de pensamento, Sacristán (2001) evidencia que, na escola, existem ricas oportunidades de convivência, onde se podem adquirir atitudes de respeito, de tolerância e de colaboração com as demais pessoas. Logo, a escola tem uma função social que ultrapassa o mero conhecimento científico adquirido de forma individual e restrita; ela amplia o desenvolvimento cultural, científico e humano da coletividade. Para Cury (2006):

A reafirmação do valor da instituição escolar se dá não só como lócus de transmissão de conhecimentos e de zelo pela aprendizagem dos estudantes. Ela é uma forma de socialização institucional voltada para a superação do egocentrismo pela aquisição do respeito mútuo e da reciprocidade. O amadurecimento da cidadania só se dá quando a pessoa se vê confrontada por situações nas quais o respeito de seus direitos se põe perante o respeito pelo direito dos outros. (CURY, 2006, p. 685).

Não há como negar, portanto, a importância da escola como promotora da socialização e da coletividade. Restringir esse contato apenas ao convívio da família é privar a criança de desfrutar de um ambiente marcado pelo pluralismo de ideias, do debate, da troca de conhecimentos, da interação e do aprendizado com o outro. De acordo com Barbosa (2011), o principal argumento contrário à regulamentação da Educação Domiciliar é a restrição da socialização, tão necessária para o desenvolvimento da criança.

Sacristán (2001) ainda alerta que a inexistência de escolarização obrigatória ou a diferença na quantidade da escolarização recebida pode conduzir a uma desigualdade ainda maior na sociedade. O isolamento de determinados indivíduos para o processo de aprendizagem condena-os ao individualismo de forma a impedir que os problemas coletivos sejam visualizados, pensados e resolvidos de forma conjunta. Nessa lógica, toda a sociedade sofre as consequências dessa prática.

O Projeto de Lei Nº 2401/2019 e seus possíveis desdobramentos

É importante destacar que a regulamentação da Educação Domiciliar é um dos compromissos assumidos por grupos que apoiam o Governo Federal, cuja gestão iniciou em 2019. Tais grupos são formados principalmente por indivíduos defensores de uma moral cristã, que, em geral, propugnam que a escola se pauta em ações que descontroem crenças cristãs, que minam os alicerces morais de famílias tradicionais por meio do incentivo de ações lascivas. Nessa linha de pensamento, o Executivo Federal, por meio dos titulares do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos7 e, também, do Ministério da Educação (MEC)8, propôs o Projeto de Lei Nº 2401/2019, que visa regulamentar a Educação Domiciliar ou Homeschooling no Brasil, por meio de alteração da Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - ECA, e da Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. O projeto assim descreve a Educação Domiciliar:

A educação domiciliar consiste no regime de ensino de crianças e adolescentes, dirigido pelos próprios pais ou pelos responsáveis legais. [...]. A educação domiciliar visa ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, nos termos do disposto no art. 205 da Constituição. (BRASIL, 2019, p. 1).

Em sua justificativa, o PL Nº 2401/2019 indica, equivocadamente, estar em consonância aos dispositivos constitucionais, sem os considerar na totalidade, conforme abordado anteriormente. Segundo o PL Nº 2401/2019, a Educação Domiciliar visa o pleno desenvolvimento da pessoa. Entretanto, alguns questionamentos se fazem necessários no contexto de defesa de uma Educação Domiciliar em contexto desigual como o brasileiro: Como assegurar que os pais ou responsáveis tenham o devido preparo para a formação acadêmica de seus filhos? Como garantir a qualidade desse processo educativo?

Tais questionamentos são importantes porque o PL Nº 2401/2019 não prevê exigência de formação específica para o atendimento educacional, sendo necessário apenas um cadastro, apresentação de documentos pessoais e de certidões de antecedentes criminais, entre outros documentos, como descrito a seguir:

Art. 4º A opção pela educação domiciliar será efetuada pelos pais ou pelos responsáveis legais do estudante, formalmente, por meio de plataforma virtual do Ministério da Educação, em que constará, no mínimo:

I - documentação de identificação do estudante, na qual conste informação sobre filiação ou responsabilidade legal;

II - documentação comprobatória de residência;

III - termo de responsabilização pela opção de educação domiciliar assinado pelos pais ou pelos responsáveis legais;

IV - certidões criminais da Justiça Federal e da Justiça Estadual ou Distrital;

V - plano pedagógico individual, proposto pelos pais ou pelos responsáveis legais; e

VI - caderneta de vacinação atualizada. (BRASIL, 2019, p. 2).

O processo educacional é complexo, para lecionar nas escolas, a legislação garante uma formação mínima e investimento em formação continuada de professores, mas, no ensino domiciliar, não há essa previsão. Logo, um Plano Pedagógico individual será construído e definido somente pela família, sem a necessidade de consulta de profissionais especializados, podendo comprometer o processo educativo dessas crianças e adolescentes. Nesse sentido, Pereira (2011) destaca que a docência

[...] é uma atividade complexa porque a realidade na qual o professor atua é dinâmica, conflituosa, imprevisível e apresenta problemas singulares que, portanto exigem soluções particulares. Exige mobilizações de saberes para o cumprimento do objetivo de educar que é: o desenvolvimento das diferentes capacidades - cognitivas afetivas, físicas, éticas, estéticas, de inserção social e de relação interpessoal dos educandos, que se efetiva pela construção de conhecimentos. (PEREIRA, 2011, p. 69).

Transferir a docência aos familiares, portanto, pode comprometer o processo educativo. Além disso, nas escolas, há um processo de socialização e de inserção social, destacado anteriormente, e essa é uma das questões que o Homeschooling recebe mais críticas. Sobre essa questão, o PL Nº 2401/2019 apresenta que:

É dever dos pais ou dos responsáveis legais que optarem pela educação domiciliar assegurar a convivência familiar e comunitária, nos termos do disposto no caput do art. 227 da Constituição e no caput do art. 4º da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente. (BRASIL, 2019, p. 1).

Logo, evidencia que os pais, de algum modo, deverão oportunizar, além da convivência familiar, a comunitária. Nesse sentido, o projeto acaba reconhecendo que, nessa modalidade de ensino, o processo de socialização do aluno fica restrito, pois não promove o contato com a diversidade, assim destaca a necessidade dessa convivência. Segundo Cury (2006, p. 685): “Um processo de educação escolar limitado ao âmbito familiar corre o risco de reduzir o campo de um pertencimento social mais amplo e de petrificar a interiorização de normas”. O que se apreende de tal proposição é a busca pela perpetuação dos valores e dos princípios familiares. Cabe destacar que o PL Nº 2401/2019 não descreve como esse processo de socialização será garantido ou acompanhado. Assim, sem a descrição legal que responda a essa dúvida, há o risco de que tais alunos tenham esse processo de socialização prejudicado e limitado ao ambiente familiar, não promovendo o desenvolvimento integral dessas crianças e desses jovens.

No limite das previsões da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), é primordial:

Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza. (BRASIL, 2018, p. 10)

Desse modo, o exercício do diálogo, da cooperação e da empatia é fundamental para uma sociedade que acolha e respeite as diferenças. Outro ponto que cabe destacar é que o texto apresenta brechas para que empresas privadas obtenham lucro com produção de material didático, possibilidade de venda de videoaulas e, até mesmo, a contratação de tutores particulares. Nessa esteira de pensamento, a justificativa da proposta de lei assim descreve a organização da Educação Domiciliar:

Destacamos que a própria definição da expressão “educação domiciliar”, do ponto de vista jurídico, é uma questão relevante, uma vez que há diversas possibilidades em sua concretização. Em muitos casos, os pais realizam diretamente as atividades educacionais com seus filhos, sem contar com outras pessoas; em outras situações, além dos pais ou responsáveis, também profissionais especializados cooperam em atividades específicas. (BRASIL, 2019, p. 6-7).

O texto indica que o PL Nº 2401/2019 é uma proposta restrita a um grupo seleto de brasileiros, os quais teriam condições de arcar com os custos, evidenciando a divisão social que orienta o modo de produção capitalista. Nessa perspectiva, ao retirar determinados indivíduos do Sistema oficial de ensino, a lógica também o fragiliza, visto que desobriga o poder público de garanti-lo para todos e, consequentemente, fragiliza a luta por uma educação de qualidade para todos.

Cury (2006, p. 679) revela sua preocupação, ao destacar a seguinte indagação: “[...] não retornaríamos a um quadro por muito tempo existente no Brasil: elites educando seus filhos em casa e revelando uma histórica negligência com o acesso de todos a uma escolarização institucionalizada”. Trata-se, por conseguinte, de um modelo educativo que se adapta melhor a grupos que exercem o domínio social, político e econômico e subjugam o restante da população.

É importante refletir também sobre a segurança dessas crianças e desses jovens. O PL Nº 2401/2019 cita a importância da proteção às crianças e aos adolescentes. No entanto, a educação no lar acaba restringindo a proteção aos alunos que porventura enfrentem ambientes familiares abusivos, pois tais situações não seriam conhecidas pelo poder público, visto que a maioria das situações é identificada na escola pelos professores, e, provavelmente, seu atendimento seria negligenciado, contribuindo para a perpetuação de casos de abuso e violência familiar em contextos específicos. O PL Nº 2401/2019 descreve que:

No que diz respeito a uma especial proteção às crianças e aos adolescentes em circunstâncias que possam ensejar maiores riscos, nesse primeiro momento de implantação da modalidade, entendemos ser conveniente que seja vedada a educação domiciliar nos casos em que o responsável legal que deverá prover o ensino estiver cumprindo pena em razão de determinados crimes. Em especial, trata-se dos crimes previstos na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990; na Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006; no Título VI da Parte Especial do Código Penal; na Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006; e na Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990. (BRASIL, 2019, p. 8).

O PL Nº 2401/2019 apenas prevê impedimento para a solicitação de Educação Domiciliar de pais ou de responsáveis que já estejam cumprindo pena, sem considerar que o risco de violência doméstica é potencial. Tal previsão restringe a identificação de abuso e de maus tratos, uma vez que, na maioria das vezes, essas situações acontecem no seio familiar ou seu entorno, e as crianças e os adolescentes em processo de Educação Domiciliar terão o convívio social mais restrito, não tendo possibilidade de procurar auxílio fora da família. No mesmo sentido, é preciso lembrar que o ECA (BRASIL, 1990, n.p.) determina que: “Os dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental comunicarão ao Conselho Tutelar os casos de: I - maus-tratos envolvendo seus alunos [...]”, sendo a escola um ambiente que, muitas vezes, identifica e comunica tais situações. Com a convivência restrita ao lar, ficará difícil perceber tais casos e, efetivamente, proteger crianças e adolescentes.

Nesse sentido, Picoli (2020, p. 8) alerta que, com a ausência da instituição escolar, “[...] os dispositivos de proteção da integridade física e emocional de crianças e adolescentes ficam severamente comprometidos”, pois desobriga o poder público do zelo, da segurança e da integridade de grupos vulneráveis por sua condição de não adulto. O risco é, portanto, eminente já que:

O império da esfera privada pode fazer desta uma terra sem lei em que tudo pode acontecer. Nesses cenários, os mais vulneráveis, que ainda não podem se proteger porque ainda não são adultos, podem ser expostos a situações que em muito prejudicariam a qualidade de seu crescimento, já que, como crianças e adolescentes que são, são seres humanos em desenvolvimento. (PICOLI, 2002, p. 9).

A partir das questões expostas, é possível inferir possíveis desdobramentos da aprovação do PL Nº 2401/2019: acirramento da divisão social, visto que haverá uma incomensurável distância entre a educação oferecida na escola e aquela desenvolvida na clausura do lar; distância entre os conhecimentos adquiridos; dificuldade de identificação e denúncias relativas à violência doméstica; falta de convívio social e, consequentemente, desrespeito à diversidade; ampliação do mercado editorial para a venda de materiais didáticos e pedagógicos com fins específicos para a Educação Domiciliar; e, quiçá, negligência do poder público pela garantia do direito à educação a todos os cidadãos, visto que haverá uma “opção” das famílias por essa modalidade e que essa “opção” poderá, em alguns casos, se constituir em obrigatoriedade. Além disso, poderá haver consequências individualizadas, pois, na prática, crianças e jovens enclausurados no lar estarão alienados em “[...] nome de um conservadorismo de normas e de valores competitivos e privatizados” (CASANOVA; FERREIRA, 2020, p. 12).

Essas foram algumas reflexões, preocupações e lacunas identificadas no PL em tramitação em regime de prioridade, uma das pautas consideradas essenciais pela atual gestão do país. Cabe destacar que o PL Nº 2401/2019 é um projeto que contempla uma minoria da população brasileira, defende interesses particulares de determinadas famílias e colabora para a negligência do atendimento educacional amplo para a totalidade da população.

Considerações finais

Diante do atual cenário brasileiro e o destaque do PL Nº 2401/2019, que busca regulamentar a Educação Domiciliar, é necessário uma análise e reflexão sobre o tema, uma vez que o projeto de lei de Educação Domiciliar apresenta uma série de lacunas e de deficiências que não garantem a efetivação de uma educação integral que valorize o pluralismo de ideias, a socialização, a capacitação dos professores, o acesso de toda a população e a proteção integral de crianças e de adolescentes.

Os adeptos e os defensores do projeto colocam a escola como ineficaz, realçam os problemas que a educação pública enfrenta, porém não há como negar que a escola tem importante função na sociedade, pois, além de promover o conhecimento, é um espaço fundamental de socialização, um ambiente que proporciona o debate, o diálogo, a sociointeração, o convívio com o outro e com as diferenças. A educação domiciliar torna esse processo mais restrito aos valores e aos princípios familiares

A escola para todos é uma conquista recente no Brasil e se caracteriza como um dos pilares da igualdade e da dignidade. A regulamentação da prática de educação domiciliar pode caracterizar-se como um retrocesso social e colaborar para o aprofundamento da desigualdade social, cultural e econômica que sempre imperou nesse país de origem escravocrata e patrimonialista. Conclui-se, portanto, que o PL Nº 2401/2019 é medida antidemocrática, pois se se situa na contramão da resolução dos problemas sociais e educacionais do país. Caso seja aprovado, e se transforme em Lei regulamentadora da Educação Domiciliar, o PL Nº 2401/2019 carregará consigo a responsabilidade por um retrocesso sem precedentes na história da educação brasileira.

1Os termos “professores e educadores” são aqui utilizados para enfatizar que a controvérsia sobre a Educação Domiciliar atinge não apenas os profissionais da educação que atuam na escola no exercício da docência, mas também todas as pessoas que entendem que a educação é uma prática social que ocorre por meio da problematização da realidade vivida, do diálogo e da construção coletiva do conhecimento, de forma a superar o intelectualismo alienante, o autoritarismo e a falsa consciência do mundo, tal qual abordado por Freire (2003).

2Embora não existam dados oficiais, a Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED, 2019) indica que, atualmente, cerca de 7.500 famílias praticam essa modalidade de ensino no Brasil.

3Cabe aqui ressaltar que esse processo, referente ao RE 888815 RG/RS, foi reconhecido como caso de Repercussão Geral, conforme previsto no § 1º do art. 1035 do Código de Processo Civil - Lei Nº 13.105, de 16 de março de 2015, o qual prevê o reconhecimento de repercussão geral quando há “[...] questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa” (BRASIL, 2015a, n.p.). Sobre a repercussão geral, o relator Ministro Luis Roberto Barroso fez a seguinte manifestação: “[...] o debate apresenta repercussão geral, especialmente do ponto de vista social, jurídico e econômico: (i) social, em razão da própria natureza do direito pleiteado, tanto que previsto no art. 6º, caput, c/c art. 205, da Constituição, como direito de todos e meio essencial ao exercício da cidadania e à qualificação para o trabalho; (ii) jurídico, porque relacionado à interpretação e alcance das normas constitucionais que preveem a liberdade de ensino e o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas (art. 206, I e II, da CRFB/1988), bem como à definição dos limites da relação entre Estado e família na promoção do direito fundamental à educação; e (iii) econômico, tendo em conta que, segundo os estudos acima citados, o reconhecimento do homeschooling poderia reduzir os gastos públicos com a educação” (BRASIL, 2015b, p. 4-5).

4Segundo Casanova e Ferreira (2020, p. 4), a atuação da ANED capitaneia um movimento contraditório, o qual, ao mesmo tempo que defende a desresponsabilização do Estado pela Educação Básica, procura aliar-se a ele destacando-se como uma nova “[...] voz de interesse representada também no processo político”.

5A Emenda Constitucional Nº 59, de 11 de novembro de 2009, alterou o inciso I do art. 208 da Constituição Federal de 1988, estabelecendo “[...] educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria” (BRASIL, 2009, n.p.).

6Em 1994, o Deputado João Teixeira apresentou o Projeto de Lei Nº 4657, que foi rejeitado pela Comissão de Educação, Cultura e Desporto. Atualmente, o PL Nº 2401/2019 tramita apensado a outros Projetos de mesma natureza: o PL Nº 3179/2012, o PL Nº 3261/2015 e o PL Nº 10185/2018.

7A titular dessa pasta é a Pastora Evangélica Damares Regina Alves.

8O titular do MEC é o economista e professor universitário Abraham Bragança de Vasconcellos Weintraub.

Referências

ANED. Associação Nacional de Educação Domiciliar. ED no Brasil. 2109. Disponível em: <https://www.aned.org.br/conheca/ed-no-brasil>. Acesso em: 3 ago. 2019. [ Links ]

BARBOSA, L. M. R. Ensino em casa no Brasil: reflexões a partir da experiência canadense. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO, 24.; CONGRESSO IBERO-AMERICANO DE POLÍTICA E ADMINISTRAÇÃO DA EDUCAÇÃO/JUBILEU DE OURO DA ANPAE, 2., 2011, São Paulo. Anais [...]. São Paulo: PUC-SP, 2011. v. 11. p. 1-5. [ Links ]

BOUDENS, E. Ensino em casa no Brasil. Brasília: Câmara dos Deputados, 2002. [ Links ]

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Ensino Médio. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 2018. [ Links ]

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Supremo Tribunal Federal, Secretaria de Documentação, 2018. Atualizada até a EC n. 99/2017. [ Links ]

BRASIL. Decreto Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília: Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, [1940]. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 20 jun. 2019. [ Links ]

BRASIL. Emenda Constitucional Nº 59, de 11 de novembro de 2009. Acrescenta § 3º ao art. 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para reduzir, anualmente, a partir do exercício de 2009, o percentual da Desvinculação das Receitas da União incidente sobre os recursos destinados à manutenção e desenvolvimento do ensino de que trata o art. 212 da Constituição Federal, dá nova redação aos incisos I e VII do art. 208, de forma a prever a obrigatoriedade do ensino de quatro a dezessete anos e ampliar a abrangência dos programas suplementares para todas as etapas da educação básica, e dá nova redação ao § 4º do art. 211 e ao § 3º do art. 212 e ao caput do art. 214, com a inserção neste dispositivo de inciso VI. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 216, p. 8, 12 nov. 2009. [ Links ]

BRASIL. Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, [1990]. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm#art266>. Acesso em: 2 ago. 2019. [ Links ]

BRASIL. Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, [1996]. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em: 2 ago. 2019. [ Links ]

BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília: Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, [2015a]. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 1 dez. 2019. [ Links ]

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Direito Constitucional. Educação. Ensino Domiciliar. Liberdades e Deveres do Estado e da Família. Presença de Repercussão Geral. Acórdão em Recurso Extraordinário 888.815 - Rio Grande do Sul e V D representada por M P D. Relator: Luís Ministro Roberto Barroso. 04/06/2015. 2015b. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=307023273&ext=.pdf>. Acesso em: 1 dez. 2019. [ Links ]

BRASIL. Projeto de Lei Nº 2401, de 2019. Dispõe sobre o exercício do direito à educação domiciliar, altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, e a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Câmara dos Deputados, [2019]. Disponível em: <https://bit.ly/2Tvj76L>. Acesso em: 1 ago. 2019. [ Links ]

CASANOVA, L. V.; FERREIRA, V. S. Os discursos da Associação Nacional de Educação Domiciliar do Brasil. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 15, e2014771, p. 1-17, 2020. DOI: https://doi.org/10.5212/PraxEduc.v.15.14771.025 Links ]

CURY, C. R. J. Educação escolar e educação no lar: espaços de uma polêmica. Educação & Sociedade, Campinas, v. 27, n. 96, p. 667-688, 2006. DOI: https://doi.org/10.1590/s0101-73302006000300003Links ]

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 36. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. [ Links ]

MENDONÇA, A. W. P. C.; VASCONCELOS, E. C. A gênese do conceito de educação pública. In: RAMOS, L. M. P. (Org.). Igreja, Estado e educação no Brasil. Rio de Janeiro: Virtual, 2005. p. 9-27. [ Links ]

MOREIRA, A. M. F. O direito à educação domiciliar. Brasília: Monergismo, 2017. [ Links ]

MURPHY, J. Homeschooling in America: capturing and assessing the movement. New York: Skyhorse Publishing, 2014. [ Links ]

PEREIRA, C. J. T. A Formação do professor alfabetizador: desafios e possibilidades na construção da prática docente. 2012. 130 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho, 2012. [ Links ]

PICOLI, B. A. Homeschooling e os irrenunciáveis perigos da educação: reflexões sobre as possibilidades de educação sem escola no mundo plural a partir de Arendt, Biesta e Savater. Práxis Educativa , Ponta Grossa, v. 15, e2014535, p. 1-22, 2020. DOI: https://doi.org/10.5212/PraxEduc.v.15.14535.023 Links ]

SACRISTÁN, G. A Educação obrigatória: seu sentido educativo e social. Porto Alegre: Artmed, 2001. [ Links ]

SILVA, C. O. et al. Funcionamento da educação domiciliar (homeschooling): análise de sua situação no Brasil. Pedagogia em Ação, Belo Horizonte, v. 7, n. 1, p. 96-119, dez. 2015. [ Links ]

VASCONCELOS, M. C. C. A educação doméstica no Brasil de oitocentos. Educação em Questão, Natal, v. 28, n. 14, p. 24-41, jan./jun. 2007. [ Links ]

Recebido: 31 de Dezembro de 2019; Revisado: 24 de Fevereiro de 2020; Aceito: 25 de Fevereiro de 2020; Publicado: 09 de Março de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.