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Práxis Educativa

versión impresa ISSN 1809-4031versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.15  Ponta Grossa  2020  Epub 26-Mar-2020

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.13516.013 

Artigos

Movimentos sociais na cultura digital e formação humana

Social movements in digital culture and human formation

Movimientos sociales en la cultura digital y formación humana

Juliano Carrer* 
http://orcid.org/0000-0002-3839-1372

Graziela Fatima Giacomazzo** 
http://orcid.org/0000-0001-7232-8492

*Professor da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Mestre em Educação pela UNESC. E-mail: <julianocarrer@gmail.com>.

**Professora da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: <gfg@unesc.net>.


Resumo:

Este artigo apresenta o recorte de uma pesquisa1 que analisou a atuação dos sujeitos participantes dos movimentos sociais, na cultura digital, e sua relação com a formação humana cidadã. O conceito de formação humana cidadã é discutido a partir de Suchodolski (2002), Freire (1996), Severino (1994, 2005, 2006, 2010) e Santos (2007). Entende-se que os movimentos sociais são agentes de transformação da sociedade, como apontado por Gohn (2010a, 2010b, 2014), Castells (2013) e Scherer-Warren (1989). Produziu-se, assim, um diálogo com um coletivo feminista. Utilizou-se dos recursos da roda de conversa e análise da mídia social Facebook do grupo pesquisado, no contexto de uma pesquisa qualitativa. Verificou-se que sua atuação possibilita a ampliação da formação humana cidadã em relação à transformação da realidade dos seus participantes. Vive-se a necessidade da existência dos movimentos sociais on-line e off-line como agentes fundamentais de transformação social.

Palavras-chave: Formação Humana; Movimentos Sociais; Cultura digital

Abstract:

This paper presents a research cut-off that analyzed the performance of the subjects participating in social movements, in the digital culture, and its relation with citizen human formation. The concept of citizen human formation is discussed from Suchodolski (2002), Freire (1996), Severino (1994, 2005, 2006, 2010) and Santos (2007). It is understood that social movements are agents of transformation of society, as pointed out by Gohn (2010a, 2010b, 2014), Castells (2013) and Scherer-Warren (1989). Then, a dialogue with a feminist collective took place. The features of conversation wheel and analysis of the social media Facebook of the research group were used, in the context of a qualitative research. It was verified that its performance makes the amplification of the citizen human formation in relation to the transformation of the reality of its participants possible. There is a need for the existence of on-line and off-line social movements as fundamental agents of social transformation.

Keywords: Human formation; Social movements; Digital culture

Resumen:

Este trabajo presenta el recorte de una investigación que analizó la actuación de los sujetos participantes de los movimientos sociales, en la cultura digital, y su relación con la formación humana ciudadana. El concepto de formación humana ciudadana se discute a partir de Suchodolski (2002), Freire (1996), Severino (1994, 2005, 2006, 2010) y Santos (2007). Se entiende que los movimientos sociales son agentes de transformación de la sociedad, como señala Gohn (2010a, 2010b, 2014), Castells (2013) y Scherer-Warren (1989). Se produjo, así, un diálogo con un colectivo feminista. Se utilizaron los recursos de la rueda de conversación y análisis del medio social Facebook del grupo investigado, en el contexto de una investigación cualitativa. Se verificó que su actuación posibilita la ampliación de la formación humana ciudadana en relación a la transformación de la realidad de sus participantes. Se vive la necesidad de la existencia de los movimientos sociales en línea y fuera de línea como agentes fundamentales de transformación social.

Palabras clave: Formación humana; Movimientos Sociales; Cultura Digital

Introdução

Este artigo apresenta o recorte de uma pesquisa que problematizou a atuação dos sujeitos nos movimentos sociais na cultura digital. Busca-se compreender as contribuições para uma formação humana cidadã. Entende-se que pesquisar a formação humana dos sujeitos participantes destes movimentos sociais conectados é pesquisar a formação humana dos movimentos sociais em geral. É por essa razão que, no problema que orienta esta pesquisa, optou-se pela expressão “cultura digital”, que amplia o olhar para além dos espaços on-line. Quando se usa o termo “cultura digital”, não se está retirando a força da definição de cultura, mas acrescentando um elemento que se considera presente nela, o fato de a humanidade expandir sua vivência para espaços digitais e sofrerem interferência dessa lógica. Não se trata de o espaço do off-line ser substituído, mas de entender que, na atualidade, os espaços on-line e off-line dialogam.

Um dos instrumentos de análise, como será visto na discussão metodológica deste trabalho, é a mídia social Facebook. Opta-se assim por um dos elementos da atuação dos grupos na cultura digital. Importante ter clareza de que este espaço virtual não representa toda a cultura digital; outros espaços mais antigos também trazem elementos dessa cultura. Entretanto, como as redes sociais virtuais são, de fato, elementos que surgem na contemporaneidade, optou-se por focar parte do olhar nelas.

Realizado o recorte histórico e tentando responder ao problema levantado, dialoga-se, inicialmente, com Suchodolski (2002), Freire (1996) e Severino (1994, 2005, 2006, 2010) na busca de clarear e definir o que seria uma formação humana. Santos (2007) amplia esse diálogo quando acrescenta a busca constante e própria da humanidade por cidadania desde o seu momento de nascimento. Todos esses autores trazem em suas defesas a possibilidade de transformar a realidade em que se vive.

Após o debate sobre formação humana e tendo clareza de que o foco pretendido são grupos sociais, buscou-se uma definição do conceito de educação não formal. Encontra-se relevante contribuição em Gohn (2010a), ao defender a educação não formal como processo que ocorre contribuindo para uma formação cidadã, dentro da coletividade, e que, nesse sentido, faz parte da educação que ocorre dentro dos movimentos sociais. Gohn (2010a, 2010b) também apresenta o que seriam movimentos sociais e, juntamente a Castells (2013) e Scherer-Warren (1989), aponta que um movimento social existe dentro da possibilidade de mudança da sociedade que temos, lutando assim pela humanidade apontada por Freire (1996), Suchodolski (2002), Severino (1994, 2005, 2006, 2010) e Santos (2007).

É importante perceber que todo esse caminho percorrido traz presente intencionalidade, que se ainda não ficou explícita, ousa-se fazê-lo. Busca-se, na medida em que se compreende melhor o processo formativo dos movimentos sociais na cultura digital, contribuir para transformar a realidade em uma direção cada vez mais coletiva e justa. Justiça esta que, impreterivelmente, passa pela ampliação da cidadania das pessoas.

Para o desenvolvimento da pesquisa, optou-se pelo estudo de caso, considerado por Yin (2005), como um método de investigação empírico capaz de analisar com profundidade um grupo específico, dentro do seu contexto real. Tomando a pesquisa de campo, que, segundo Triviños (1995), possibilita a ida até o local de vivência do grupo e aprofundar o olhar para a realidade, foram adotadas duas fontes de dados para o estudo de caso: um grupo focal, denominado “roda de conversa”2 e análise de conteúdo digital produzido pelo grupo, tendo como suporte a mídia social Facebook do coletivo.

A escolha do grupo deu-se por meio de uma busca aos movimentos sociais na internet. Justifica-se a busca por uma mídia social, neste caso o Facebook, porque esta pesquisa orientou-se na busca do diálogo entre os espaços virtuais e reais (on-line e off-line). Segundo Castells (2013), os sites com redes sociais virtuais possuem grande importância na vida e na organização dos movimentos sociais conectados, sendo espaço propício para o diálogo que se deseja realizar.

A atividade mais importante da internet hoje se dá por meio dos sites de rede social (SNS, de Social Networking Sites), e estes se tornam plataformas para todos os tipos de atividade, não apenas para amizades ou bate-papos pessoais, mas para marketing, e-commerce, educação, criatividade cultural, distribuição de mídia e entretenimento, aplicações de saúde e, sim, ativismo sociopolítico. (CASTELLS, 2013, p. 136).

A princípio, buscaram-se grupos/coletivos juvenis que, a partir da internet, ou com a ajuda dela, se organizavam e tinham origem na cidade dos pesquisadores. Investigou-se, na mídia social Facebook, a partir das seguintes palavras-chave: “coletivo”, “coletivos”, “movimento”, “social”, “movimentos”, “sociais”, “juventude”, “luta”, “grupo”. Dentre os grupos, aqueles que possuíam maior protagonismo juvenil eram dois coletivos feministas; entretanto, apenas o selecionado estava em atuação, motivo da escolha.

Dessa busca, algumas percepções iniciais podem ser apresentadas. Em primeiro lugar, não foi difícil realizar o levantamento, principalmente porque a maioria dos grupos está conectada entre si e se conhece. Outro fator, já apontado, é que todos os grupos possuem como espaço prioritário de comunicação na internet as mídias sociais, especificamente o Facebook, característica da cultura digital. Pouco se encontra de informações desses grupos fora desses canais, e a maioria não possui uma página específica a não ser a página do próprio site das mídias sociais.

O levantamento dos grupos foi realizado a partir das três categorias apontadas por Gohn (2010a, 2010b) para os movimentos sociais, optando-se pela categoria “movimentos identitários”, que “[...] lutam por direitos sociais, econômicos, políticos, e mais recentemente, culturais. São movimentos de segmentos sociais excluídos, usualmente pertencentes às camadas populares (mas não exclusivamente) [...]” (GOHN, 2010a, p. 67).

Também se considerou o conceito de movimentos sociais utilizado para avaliar se os grupos seriam de fato movimentos sociais. Um movimento social, a partir de Castells (2013), Gohn (2010a) e Scherer-Warren (1989), atua na sociedade como seu elemento transformador - sendo elemento essencial na história para construir uma ordem diferente da colocada pelo sistema dominante. Atuam, assim, a partir das lutas levantadas por seus integrantes, na busca do direito à participação nos rumos da sociedade, propiciando, nessa luta, ampliar a formação humana cidadã de seus membros. A partir do exposto, chegou-se ao movimento social objeto de análise deste estudo, que aqui será denominado de “Coletivo Feminista”, cuja contribuição colaborou para compreender em que sentido a atuação dos sujeitos nos movimentos sociais na cultura digital contribui com uma formação humana cidadã.

Assim sendo, este artigo organiza-se a partir desta introdução, apresentando, a seguir, fundamentação teórica pertinente aos conceitos implicados, quais sejam: movimentos sociais na cultura digital e formação humana cidadã. Posteriormente, a análise dos dados, resultado da pesquisa de campo realizada e reflexões possíveis sobre o objeto pesquisado. Registra-se que para este artigo produziu-se uma síntese, não sendo possível, em virtude da sua dimensão, abordar todos os aspectos investigados.

Movimentos sociais e cultura digital

Mobilizações sociais como as de junho de 2013 no Brasil, a primavera Árabe no Oriente Médio e no norte da África, os Indignados na Europa, o Occupy Wall Street nos EUA e, mais recentemente no Brasil, as marchas pelo Impeachment da Presidenta Dilma Rousseff têm trazido à tona a temática das mobilizações sociais3 e, principalmente, a relação destas com a internet. Em todos os exemplos apontados, é possível perceber duas características marcantes: a maioria dos participantes são jovens, e a internet teve papel fundamental nas mobilizações.

No entanto, seria a internet o motivador? Alguns autores discordam disso e apontam que o motivo das mobilizações são as críticas que as pessoas fazem à maneira como a sociedade tem sido conduzida. Deixam registradas e insistem, com as mobilizações, de que os rumos que a sociedade está seguindo não são adequados (CASTELLS, 2013; GOHN, 2010a).

Uma das principais críticas dos movimentos sociais na atualidade é a ausência de uma verdadeira democracia nas instituições existentes. “O que esses movimentos sociais em rede estão propondo em sua prática é uma nova utopia no cerne da cultura da sociedade em rede: a utopia da autonomia do sujeito em relação às instituições da sociedade” (CASTELLS, 2013). Autonomia está ligada diretamente ao que Freire (1996) aponta como caminho a ser percorrido de responsabilidade com a própria vida e com a vida dos outros.

Dentro da atual crise do capitalismo, com as grandes diferenças entre as condições de vida das pessoas no planeta, alcança-se o ápice da indignação social (CASTELLS, 2013), e, se as instituições falharam na solução das crises, a mudança só pode ocorrer fora delas. Na história dos movimentos sociais no Brasil, por exemplo, além da contribuição contra a ditadura militar, eles ajudaram na criação de políticas públicas, controladas pelo Estado. Ajudaram na criação de diversas instâncias governamentais, como os próprios conselhos de direito; entretanto, ficou centrada nos governos a responsabilidade de manterem esses espaços. Dessa forma, distanciaram-se as decisões desses espaços conquistados pela luta social da maior parte da população, dos que mais necessitam dessas políticas públicas. Isso e o atual processo de globalização centrado na economia tem dificultado a atuação dos movimentos sociais existentes na busca de intervenção nas ações governamentais (GOHN, 2010a, 2014).

Freire (1996) e Pinto (2005) apontam um elemento de análise para esta caminhada ao dizer que o opressor não irá voluntariamente ceder de seus privilégios em detrimento da população excluída; ao contrário, irá usar desse espaço de poder para continuar a dominação. Dito isso, pode-se apontar que, se os movimentos sociais representam os anseios da população empobrecida e desatendida nos seus direitos, cabe a eles continuarem atuando na sociedade. Ao se desprenderem de sua função social de insistência na busca de transformação e permitindo que espaços institucionalizados exercem essa transformação, acabam permitindo que a dominação se perpetue.

Como bem lembra Freire (1987), todo ser humano nasce para ser livre, e, consequentemente, nasce para poder sonhar com mudanças em sua vida, seja pessoalmente, seja coletivamente. Não é livre quem segue os caminhos que outros traçaram. Assim como também não é livre quem deseja impor caminhos aos outros. As liberdades vão sendo traçadas na medida em que, coletivamente, respeitamos mutuamente as escolhas individuais e coletivas das pessoas. Contudo, nessa lógica perversa em que as pessoas vivem, a uniformização e a orientação dos caminhos a partir apenas do ponto de vista de poucos têm sido dominantes. Como o atual cenário mundial, governado e orientado pelo mercado financeiro, pouco importando as opiniões dos milhões de habitantes da Terra atingidos pelas decisões tomadas.

Todavia, ao longo da história, sempre foram presenciados grupos e pessoas que se colocam contra a uniformização da sociedade, buscando, assim, mudanças na sociedade e na vida das pessoas. Essa visão contribui para entender o surgimento dos movimentos sociais como coletivos de pessoas que caminham para a liberdade, buscando, desse modo, um mundo em que os seres humanos possam ser mais do que simples peças de um jogo, no qual possam, assim, conduzir os próprios caminhos, seja na esfera local ou global, interpessoal ou coletiva.

Os movimentos sociais surgem quando existe um descontentamento da sociedade com determinada injustiça, que torna incompatível a vivência da maior parte da população. Eles surgem quando as pessoas decidem enfrentar o medo causado pelo opressor. No início, o sentimento que motiva esse enfrentamento é a raiva, mas que, com o tempo e insistência na luta por justiça, essa raiva se transforma em entusiasmo, em luta social (CASTELLS, 2013). Seria o que Freire (1996) chama de justa raiva, quando o oprimido, frente a uma injustiça, geralmente age de forma impulsiva. Com o tempo e a organização, essa justa raiva pode ir sendo organizada e estrategicamente usada para transformar a realidade.

Entretanto, os movimentos sociais não surgem apenas da crise ou da indignação, eles precisam de condições para o surgimento. Exige-se, assim, mobilização e esperança de uma possível sociedade diferente da colocada. Ninguém caminha ou luta por algo que não acredita ser possível (CASTELLS, 2013). Por isso, seja em qualquer época, aqueles que se mobilizam o fazem pois possuem esperança no novo, em um amanhã diferente. Quem ousaria lutar, sabendo que, usualmente, a luta é sempre contra um sistema violento, se não sonhasse com um mundo diferente? Quem ousaria enfrentar a violência simbólica e física das lutas sociais? Afinal, como são tratados aqueles e aquelas que lutam pelo direito à terra? Como são tratados aqueles e aquelas que ousam dizer que não aceitam mais serem tratados com desigualdade? Como são tratadas as mulheres que ousam dizer que os valores democracia e igualdade devem existir também nos lares, nos empregos, nas universidades? Quem ousaria questionar se não visualizasse uma outra maneira de ser das coisas? A esperança é caminho forte de toda e qualquer luta social, assim o são os movimentos sociais, por conta desse enfretamento.

Quando se trata daquilo que move os movimentos sociais, existe certa ressonância entre os autores Castells (2013) e Gohn (2010a), que referenciam o surgimento dos movimentos sociais, e os autores desta pesquisa que referenciaram o conceito de formação humana cidadã, que será apresentado no próximo tópico deste artigo. Ao apontarem a formação humana como busca pela cidadania, evitam o fatalismo em se aceitar a sociedade como ela está posta, deixando evidente a necessidade em se defender a transformação da sociedade, saindo de um momento histórico conduzido pelo consumo e por poucas pessoas, para uma sociedade centrada no ser humano e conduzida cada vez mais por um maior número de pessoas. Assim, uma formação humana cidadã está intimamente interligada à existência dos movimentos sociais. Uma formação humana cidadã permite claramente visualizar a utopia neste percurso. Assim, partindo da realidade e de um sonho de sociedade utópico, caminha-se nessa busca a partir de situações concretas. Os movimentos sociais surgem e atuam nesse sentido. Dialogando com Gohn (2010a) e Scherer-Warren (1989), podemos ampliar o conceito de movimento social.

Os movimentos sociais são elementos fundamentais na sociedade moderna, agentes construtores de uma nova ordem social e não agentes de perturbação da ordem, como as antigas análises conservadoras escritas nos manuais antigos, ou como ainda são tratados na atualidade por políticos tradicionais. (GOHN, 2010a, p. 65).

Uma ação grupal para a transformação (a práxis) voltada para a realização dos mesmos objetivos (o projeto), sob a orientação mais ou menos consciente de princípios valorativos comuns (a ideologia) e sob uma organização diretiva mais ou menos definida (a organização e sua direção). (SCHERER-WARREN, 1989, p. 20).

Um movimento social, por essência, busca lutar por valores que a priori considerem éticos, tentando, a partir de sua organização, lutar pelas demandas dos seus participantes e de outras as quais se sensibilizam. Possuem caráter transformador, pois agem a partir de uma necessidade de mudança da situação posta, e caminham na busca de concretizar um caminho diferente (CASTELLS, 2013; GOHN, 2010a, 2010b, 2014; SCHERER-WARREN, 1989). Ao requisitarem a partir de suas lutas a mudança, requisitam explicitamente direito a participar da condução das decisões. O simples fato de questionar alguma medida é sintoma desse desejo de participar. Obviamente, não ficam apenas com a crítica, bem como constroem possibilidades a serem trilhadas. A exemplo disso, pode-se retomar a criação de tantos espaços democráticos na sociedade brasileira a partir da luta dos movimentos sociais. Esse conceito apresentado tenta englobar os movimentos sociais em todas as épocas históricas. Contudo, quais seriam as características dos movimentos sociais contemporâneos?

A história do Brasil é acompanhada pela luta dos movimentos sociais, seja na luta pela própria democracia (durante a ditadura civil-militar) ou por direitos trabalhistas, seja pelo direito à terra e à moradia, ou pelo direito ao voto e à igualdade entre as pessoas. Em alguns momentos avançaram e em outros retrocederam. Nessa caminhada, depois da década de 1990, transformaram-se em outras formas de organização, na qual o Estado, a partir de políticas públicas, começou a possuir uma maior “obrigatoriedade” de intervenção na sociedade. Surgem, dessa forma, novos atores e novas atrizes em cena, como Organizações Não Governamentais (ONGs), entidades do Terceiro Setor e os conselhos de direitos, com a função de, em alguns casos, acompanhar a implementação das ações sociais governamentais (GOHN, 2010a, 2014).

Ao longo da história, os movimentos sociais sempre tiveram um fim e não se imagina ser diferente na sociedade contemporânea, seja atingindo seus objetivos, seja tornando-se espaços mais institucionalizados, governamentais ou da sociedade civil (ONGs, partidos políticos), ou, simplesmente, desaparecendo sem muitas conclusões evidentes. Independentemente se o movimento social continua ou tem seu fim, devido a sua existência, deixa na história sua luta por participação.

Afinal, quais seriam as características dos movimentos sociais existentes no século XXI? Na análise que faz dos movimentos sociais na contemporaneidade, Castells (2013) verificou que estes surgem geralmente a partir da internet, mas ultrapassam esse espaço e requisitam os espaços urbanos, atuando, assim, em ambos - o que corrobora com a própria ideia de sociedade em rede apontada pelo autor. A lógica da rede permeia a vida das pessoas, em todos os espaços que atuam, conectados ou não (CASTELLS, 2005). Enfim, se a rede é o espaço que pode possibilitar a horizontalidade, a democracia, é preciso buscá-la, pois nem sempre as pessoas conseguem acessar facilmente espaços institucionais e burocráticos estagnados da sociedade. Ocupar uma praça, uma rua, é simbolicamente dizer que não basta o espaço que encontram na internet. Desejam que aquele lugar, físico, também seja espaço democrático, de busca de igualdade.

Esses movimentos sociais contemporâneos encontram na rede espaços de horizontalidade, de cooperação, de solidariedade. Locais onde lideranças que comandam, que ditam, possuem maior dificuldade de serem aceitas. Aprendem cada vez mais a se organizarem sem a necessidade de alguém que coordene todo o trabalho. Existe uma tendência nas mobilizações virtuais de não se aceitar posicionamentos hierárquicos. Evidentemente, existem pessoas que se destacam nas mobilizações e nos movimentos sociais na internet; entretanto, em geral, o fazem devido ao nível de comprometimento e entrega ao movimento e não por um poder vertical abertamente declarado pelos participantes, pois isso teria certa dificuldade de aceitação pelos seus participantes (CASTELLS, 2013). Entretanto, é preciso cuidado, como nos alerta Pinto (2005), por trás de toda técnica existem as intencionalidades, permitindo que também nesses espaços se objetivem interesses de dominação.

É evidente que a internet e a comunicação sem fio estão presentes nos movimentos sociais atualmente, não sendo elas os motivadores das lutas. Entretanto, não se pode apenas colocar a internet como mera ferramenta, pois ela possibilita outras formas de organização, mais horizontais e igualitárias. Permite também outra forma de acesso à população e aos membros do próprio movimento social, sem intermediários diretos, como via TV, rádio, etc. (CASTELLS, 2013).

Com a globalização, Gohn (2010a) visualiza que o cenário se modificou no Brasil e no mundo para os movimentos sociais. Surgindo novos e continuando alguns, mas todos com uma atuação em rede. A autora aponta um outro detalhe, de que, antes, as ações dos movimentos sociais se davam geralmente de baixo para cima, a partir da mobilização das pessoas por organizações da sociedade civil. Essa característica permanece atualmente, entretanto, com as redes sociais virtuais, essa mobilização pode partir de uma pessoa específica na rede, que desencadeia toda uma organização podendo levar ao surgimento de um movimento social, ou de uma mobilização específica, como uma caminhada no bairro para exigir a reforma da estrada. Para Castells (2013), pode-se dizer que existe uma certa horizontalidade nessa atuação em rede. Afinal, não mais uma ação de determinado movimento social dá-se por determinada liderança que convoca os participantes, mas um participante pode e consegue, por meio da rede, iniciar e, com a ajuda de outros, articular uma mobilização. Se a lógica da sociedade se modifica, as estratégias de mobilização também se modificam. Altera-se, assim, a comunicação na contemporaneidade (GOHN, 2010a).

A partir das conquistas históricas apontadas dos movimentos sociais, na atualidade, percebe-se que eles estão mais autocentrados. Passaram da fase da busca da possibilidade de terem direitos, para a fase de conquistas relacionadas ao vínculo interpessoal. Como, de certa forma, os direitos já foram conquistados, seja concreta ou legalmente, passa-se por um momento de discussões mais locais, mais próximas de questões relacionadas às próprias pessoas (GOHN, 2010b).

Lembrando que mesmo que na sociedade existem diversas formas de lutas sociais, e que nem todas sejam movimentos sociais, sendo algumas inclusive frutos da luta de movimentos sociais no passado, essa existência permite mais parcerias de diversos setores da sociedade. Assim, um movimento social como o Movimento Sem Terra (MST) pode possuir relações com setores governamentais4 e outras organizações da sociedade civil. Muda-se a forma de organização, pois as relações sociais também se transformaram (GOHN, 2010b).

Outro elemento importante, trazido por Castells (2013), é o fato de os movimentos sociais atualmente serem locais e globais.

Começam em contextos específicos, por motivos próprios, constituem suas próprias redes e constroem seu espaço público ao ocupar o espaço urbano e se conectar às redes da internet. Mas também são globais, pois estão conectados com o mundo inteiro, aprendem com outras experiências e, de fato, muitas vezes são estimulados por essas experiências a se envolver em sua própria mobilização. (CASTELLS, 2013, p. 131).

O que reverbera nas características que Giddens (1991) aponta da modernidade, do global e local se interligarem de tal forma que não mais se percebe essa separação. É o que Castells (2013) chama de hibridismo da sociedade. Então, não mais o olhar para um movimento social apenas se dá no contexto local em que atua. As relações de lutas internacionais interferem neste olhar local. Assim, cada vez é mais comum, por exemplo, que lutas de grupos feministas em determinado país desencadeiem outras lutas mundo afora e, não necessariamente, em outro movimento social feminista. Então, um sindicato, que a princípio não tinha como anseio a questão da igualdade de gênero, ao escutar essa luta de outros grupos, acaba por incorporar essa luta na sua vivência sindical.

Os movimentos sociais na contemporaneidade são classificados por Gohn (2010a, 2010b) em três tipos: identitários, de luta por trabalho/melhores condições de vida e globalizantes. Eles são assim categorizados:

[...] os movimentos identitários que lutam por direitos sociais, econômicos, políticos, e mais recentemente, culturais. São movimentos de segmentos sociais excluídos, usualmente pertencentes às camadas populares (mas não exclusivamente). [...]

[...] os movimentos de luta por melhores condições de vida e de trabalho, no urbano e no rural, que demandam acesso e condições para terra, moradia, alimentação, educação, saúde, transportes, lazer, emprego, salário etc.

[...] os movimentos globais, globalizantes, alterglobalizantes, ou transnacionais, tais como o Fórum Social Mundial. São lutas que atuam em redes sociopolíticas e culturais, via fóruns, plenárias, colegiados, conselhos etc. Estas lutas são também responsáveis pela articulação e globalização de muitos movimentos sociais locais, regionais, nacionais ou transnacionais. Na realidade, esta forma de movimento constitui a grande novidade deste novo milênio. (GOHN, 2010a, p. 67).

Com base em Gohn (2010b, 2014), existe uma presença marcante das mulheres nos movimentos sociais na sociedade, superior aos homens. Entretanto, elas geralmente são invisíveis neles; assim, pode-se diferenciar movimento de mulheres de movimentos feministas.

Os primeiros são espaços de luta onde as mulheres, mesmo sendo maioria, ficam invisibilizadas; o segundo são espaços onde as mulheres, além de serem as protagonistas nos espaços, focam suas lutas na questão do feminismo5. Embora a luta dos movimentos feministas ataque aparentemente questões mais individuais, possuem como horizontes valores como a igualdade e a democracia como busca coletiva.

Traço marcante nos movimentos sociais conectados é o fato de alguns começarem a se auto nominarem diferentemente do termo “movimento social”. É muito usual a palavra “coletivo” associada a grupos sociais que surgiram na contemporaneidade. Traz, na nomenclatura, aquilo que Castells (2013) aponta como característica da rede na internet, o fato de não aceitarem mais um “chefe”, um que decida por todos. Não significa que todos os “coletivos” são movimentos sociais, mas, dentre aqueles levantados na cidade investigada, a maioria dos que são considerados movimentos sociais se autodenominam “coletivos”.

Antes de iniciar o próximo tópico, importa reforçar o caráter formativo dos movimentos sociais trazido por Gohn (2010a, 2010b). Independentemente de qual categoria se enquadre, todo movimento social possui um processo de educação não formal, sendo um local privilegiado desse tipo de formação. Assim, propiciam aos seus membros a possibilidade de aprenderem uns com os outros, ampliando suas cidadanias, formando, assim, pessoas para a vida em sociedade.

Formação humana e cidadania: outros espaços

Na tentativa de ampliar o conceito de formação humana, bem como deixar clara que cidadania é esta trazida por Severino (2000) e Gohn (2010a, 2010b), traz-se para este trabalho o diálogo que Santos (2007) apresenta em sua obra O espaço do cidadão. Nela, ele apresenta a visão de uma cidadania que deve ser conquistada, que, independentemente de o fato das pessoas, ao nascerem, fazerem parte dessa sociedade, isto não é garantia de cidadania.

Assim, os seres humanos, mesmo nascendo essencialmente livres, nascem também em uma lógica dominada pelo mercado, a qual desumaniza a pessoa, que a faz acreditar que as possibilidades estão dadas, determinadas. Mesmo sendo detentoras do direito à plena cidadania, não existe lei que garanta essa situação. Cabe lutarem ao longo de suas vidas para ampliarem suas cidadanias. Nesse sentido, fica claro que, para Santos (2007), a cidadania pode existir em diversos níveis. Tem-se pessoas mais cidadãs que outras, países mais cidadãos que outros.

Percebe-se também que esse conceito de cidadania é resultado do momento histórico vivido pela humanidade. Assim, no século XVIII, ele estava associado ao fazer parte de determinada sociedade nacional. Atualmente, além de ser membro de determinada sociedade, ser cidadão está conectado à possibilidade de intervenção política pelo voto e pelo direito de livre associação. Uma característica marcante do último século, que faz parte do conceito de cidadania, são os “direitos sociais”, que tentam garantir uma mínima condição de vida e de participação às pessoas da nação (SANTOS, 2007).

Nessa mutabilidade da história, encontra-se, atualmente, uma sociedade marcada pelo consumo, por isso lutar pela cidadania é lutar contra o consumismo. Existe essa necessidade mundial de ir pautando a cidadania acima do mercado, alguns países com menos barreiras a serem transpostas e outras com várias. No Brasil, infelizmente, as barreiras são gigantescas, instrumentos que se dizem contribuir na busca de cidadania acabam se tornando elementos também do consumo, como o fato de possuir um título eleitoral e votar, que acaba permeado pela lógica do mercado, tratando-se a pessoa como consumidora do processo democrático e não como participante. Debates que deveriam ser pautados pelo viés da busca da cidadania entram na pauta também do consumo, como a questão da moradia. Fala-se pouco do direito à moradia e mais do direito à propriedade, ambos antagonizando propostas (SANTOS, 2007).

Frente a essa barreira para a cidadania das pessoas, Santos (2007) defende que o consumo seja feito criticamente. Que as pessoas sejam consumidores imperfeitos6; entretanto, até o consumo que parece crítico pode estar a serviço do mercado, como exemplo entidades que discutem o consumo “consciente” avaliando a qualidade dos produtos, comparando preços, durabilidade, etc. Esses elementos, por si só, não tornam as pessoas consumidores imperfeitos, apenas dão a impressão disso. Essas entidades possuem sua presença mais forte no exterior; contudo, atualmente, com o uso frequente da internet para compras, podemos dizer que, no Brasil, também existe acesso a essas entidades “críticas”. Não basta o olhar com critérios para o consumo, é necessário que este esteja a serviço da vida humana, e não o contrário, como é praxe.

Quando o capitalismo cria sistemas de alienação, cria também as contradições necessárias para que a humanidade o perceba injusto e o ataque. Quando, como e onde essa percepção será ampliada, generalizada, é algo impossível de se dizer. Existe a possibilidade de a cidadania existir em maiores ou menores graus. Assim, o ser humano, ao nascer em determinada sociedade e determinada época, mesmo possuidor de diversos direitos, precisa aprender e agir perante a sociedade para ampliar sua cidadania. Mesmo nascendo com a possibilidade de ser cidadão, a pessoa precisa ir lutando contra os interesses do mercado financeiro para consegui-la; do contrário, a cidadania é posta à deriva (SANTOS, 2007).

Assim, é necessário sair do olhar econômico, que se move a partir do conceito de recursos, para um olhar amplo, em que o conceito de recursos seja trocado pelo conceito de valor. Cria-se, assim, um modelo cívico, com a pessoa no centro, a qual os outros modelos (econômico e político) se subordinem (SANTOS, 2007).

Santos (2007) é enfático ao dizer que o consumidor não é um cidadão, e muito menos o eleitor que termina sua participação no voto. Para ele, o cidadão é um ser multidimensional, que caminha política e livremente na realidade em que vive e traça seu caminho coletivamente com outras pessoas. O cidadão aspira seus próprios sonhos e não aquilo que o mercado impõe. A partir desse olhar, se fosse possível existir uma pessoa sem sonho e sem autonomia, esta não seria uma cidadã.

Dito isso, optou-se por trabalhar o conceito de cidadania neste texto a partir de Santos (2007), para quem os seres humanos ampliam sua cidadania na medida em que ampliam seus direitos. É consenso, para esta pesquisa, que todo direito deve respeitar concomitantemente a coletividade e a individualidade e estar a serviço das pessoas, e não do poder econômico. Entretanto, percebe-se que aquilo que se entende por direito é uma noção construída historicamente, e, para facilitar a leitura desta pesquisa, quando se fala de direitos das pessoas se está considerando os direitos sociais apresentados no art. 6º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela EC n. 90/2015)” (BRASIL, 2018, p. 23).

Há mutabilidade dos direitos; entretanto, a escolha mais palpável dos direitos sociais está longe de ser descartada, haja visto a tendência em diminuição dos direitos das pessoas no Brasil e no mundo. A confecção da lei em nada garante um direito e, consequentemente, a cidadania de ser atingida; é preciso, desse modo, um contínuo processo de busca desses escritos na lei e da ampliação deles. Santos (2007) faz referência à categoria jurídica da cidadania como um elemento estático, fixo, momentâneo, fruto de lutas pela ampliação da cidadania. Todavia, destaca a necessidade de continuar a busca por mais cidadania e pela aplicação dessas leis.

Assim, a busca por ampliação dos direitos é intrínseca à existência humana. Do nascimento até a morte as pessoas devem lutar para terem suas cidadanias ampliadas. Não se nasce cidadão, mas se constrói cidadão na medida em que frente a sua existência a pessoa batalha pela ampliação dos seus direitos, sempre respeitando, nesse processo, a coletividade.

Como o objetivo deste trabalho é olhar para a formação humana dos sujeitos participantes de movimentos sociais, o conceito adotado de formação humana deu-se a partir de Suchodolski (2002), Freire (1996), Severino (1994, 2000, 2005, 2006, 2010), Santos (2007) e Gohn (2010a). Formação humana cidadã é entendida como uma formação para a cidadania, na medida em que possibilita a atuação dos sujeitos em construir algo diferente do que é apresentado. Significa que uma formação humana cidadã deve ir contra o poder hegemônico, que diz existir naturalmente dominados e dominadores, e, portanto, deve apresentar a possibilidade contra hegemônica da mudança. É esperançosa por essência, pois visualiza a possibilidade de transformação. Dessa forma, neste trabalho, para avaliar a formação humana cidadã, olha-se para a busca de ampliação dos seus direitos sociais e pela busca de participação nos rumos da sociedade.

Quando um grupo toma consciência de injustiças e caminha na luta contra elas, amplia, assim, sua formação humana e sua cidadania. Ambas estão entrelaçadas de tal forma que falar da formação do ser humano é também falar da sua ampliação da cidadania. Entendendo que os movimentos sociais são palco privilegiados de uma educação não formal e, com isso, de uma formação cidadã, como aponta Gohn (2010a). É importante dizer que, ao se estudar a formação humana nos movimentos sociais, está-se especificamente estudando a formação via processos de educação não formais.

Cabe colocar que uma formação cidadã também acontece nos espaços formais e informais de educação; entretanto, são nos espaços não formais que uma educação cidadã é centro das atenções na formação da pessoa. Quando se participa de um movimento social pela reforma agrária, se tem como objetivo central a luta pelo direito à terra. Assim, a luta e os mecanismos que são criados para buscar essa transformação são foco da formação das pessoas que participam dele. Ampliam, desse modo, sua formação humana cidadã na medida em que ampliam sua participação na sociedade e a conquista de seus direitos.

Ao se tentar resumir o que seria uma pessoa cidadã, poder-se-ia dizer que, quanto mais participante das decisões da sociedade e quanto mais detentora de direitos, mais humana e cidadã será essa pessoa.

Escuta e diálogo: movimentos sociais, formação humana e cidadania

Todo o diálogo realizado parte dos dados levantados e da base teórica utilizada. Importante relembrar que, na pesquisa de campo, foram utilizados a roda de conversa e a análise de conteúdo da mídia social Facebook do coletivo. Contudo, o recorte apresentado neste artigo são pontos de análise a partir da roda de conversa. Esta foi realizada com a equipe de organização do coletivo, sendo feita referência com as participantes aqui identificadas7 como Malala, Janis, Dorothy e Maya. Sobre o histórico do Coletivo, sua existência na mídia social Facebook aconteceu no dia 22 de março de 2018, e o primeiro encontro presencial ampliado para a participação de outras mulheres se deu no dia 10 de abril, mas muitas participavam de outros movimentos sociais anteriormente.

A criação foi através do ato da Marielle. A gente se juntou e coincidiu essa mesma dor em todas, de que a gente queria fazer mais e não estava conseguindo alcançar os objetivos em outros movimentos sociais, porque o que eles passam não é necessariamente o que a gente passa aqui. [...]. No começo éramos nós quatro, a organização, e a gente entrou em contato com nosso coordenador (da Faculdade onde estudam) pra ver a possibilidade de abrir um coletivo aqui. Ele super apoiou, continua apoiando o projeto até hoje. E a partir deste aval dele, a gente começou a colocar em prática de verdade. Agora nós estamos mais estabilizadas [...]. (Malala).

Atualmente, são 54 mulheres, todas estudantes de uma instituição de Ensino Superior8 (Faculdade), que participam do “Coletivo Feminista”. No seu funcionamento, o coletivo possui dois grupos, um que será chamado de “organização” e o outro de grupo “amplo”. Não existe uma nomenclatura definida pelo coletivo para esses grupos; entretanto, possuem essa estratégia de organização da sua vida como grupo.

Na organização, fazem-se presentes seis mulheres, as já citadas que estavam na fundação do grupo, e duas outras mulheres, Maria e Simone, que somaram à equipe, devido a uma ampliação das atividades em que o coletivo atua. Essas novas integrantes da organização participavam desde o início no grupo amplo, entretanto, apenas no segundo semestre de 2018 entraram para a organização.

O coletivo realiza encontros quinzenais, quando realiza debates e estudos sobre temáticas relacionadas à luta das mulheres na sociedade/feminismo. Essa informação, que origina da roda de conversa, corrobora com o olhar realizado para a página na mídia social, na qual, das 13 postagens que estavam relacionadas aos encontros quinzenais, em apenas uma não foi possível identificar relação com temas da luta feminista. Concordando também com o que afirmam na própria página: “O Coletivo é idealizado por acadêmicas da Faculdade [...] para discutir temas relevantes sobre o empoderamento feminino dentro da instituição” (Fala da página do Coletivo no Facebook, 2018).

Em média, participam 15 mulheres dos encontros quinzenais, os quais são pensados e preparados na sua maioria pela equipe de organização. Entretanto, foi apontado que sempre que alguém consiga, é dada abertura para outras mulheres conduzirem a conversa. Além disso, também trazem outras pessoas de fora do grupo para falar sobre alguns temas específicos. Essa equipe de organização reúne-se presencialmente uma vez por mês e possuem um grupo específico delas no aplicativo WhatsApp9, para questões mais imediatas. O grupo amplo também possui um grupo no aplicativo. Cabe ressaltar que, além do Facebook, possuem uma conta no Instagram10. Dentro da organização, existem quatro mulheres estudantes de publicidade e propaganda e duas do curso de design gráfico. A maioria do coletivo segue na mesma linha, sendo composto, em sua maioria, dos cursos da área da comunicação. Existem poucas mulheres no grupo amplo que são dos cursos de engenharia da faculdade. Esse acesso do coletivo mais facilitado nos cursos de comunicação da faculdade se dá pelo apoio dos coordenadores e pela presença maior de mulheres nesses cursos.

Ao serem questionadas sobre a existência de uma liderança, apontaram que não existia, tendo cada uma um papel dentro do grupo, como traz Malala a seguir: “Eu acho que a gente nunca impôs cargos hierárquicos. Cada uma tem a sua função, mas nenhuma é a autoridade da outra” (MALALA). Entretanto, Malala acaba se destacando, tanto na representatividade do coletivo, como nas próprias falas durante a roda de conversa. Cerca de 53% das intervenções na roda de conversa foram feitas por ela. Janis fez um total de 41% das falas e Simone, 6% das falas11. Esses dados confirmam o que Castells (2013) aponta sobre os movimentos sociais conectados, em que existe uma tentativa em se evidenciar horizontalidade no grupo, mas, na atuação, algumas pessoas acabam se destacando e figurando como representante.

Como cor para o logotipo do coletivo, escolheram o amarelo. Foi uma tentativa de não estigmatizar o coletivo com uma cor que perante a sociedade estivesse mais marcada por um gênero específico. “A gente quis escolher uma cor que fosse mais neutra” (Janis). Foi uma tentativa de ampliar a abertura das participantes, permitindo que mais mulheres se identifiquem com a atuação no coletivo.

Quando Simone foi questionada sobre como se sentia ao entrar para a organização do coletivo, ela trouxe elementos interessantes:

Eu me surpreendi com o convite para fazer parte. Quando a Dorothy me chamou, eu fiquei muito feliz, porque mesmo eu estando no encontro com vocês da Marielle, e [o coletivo] foi uma ideia que vocês comentaram aquele dia, e também comentaram comigo. E mesmo eu participando dos encontros, do grupo, mesmo assim eu não senti que eu fazia alguma coisa de fato. Eu estava ali, mas não estava. E agora eu estou! Me sinto um pouco mais parte. (Simone).

Quando se discute uma formação humana cidadã, existe a necessidade de participação dentro do movimento social. Não se exercita a autonomia se não é possibilitado atuar frente a algo. Essa busca pela participação de todas e a fala da Simone, que apresenta um sentimento de pertencimento no momento no qual começa a atuar na condução do Coletivo, vem ao encontro do que Gohn (2010a, 2010b) aponta da necessidade dos movimentos sociais exercitarem a autonomia dos seus participantes e da natureza humana, trazida por Freire (1996), de que as pessoas são seres de prática e, portanto, seres de esperança. Na medida em que à Simone foi possibilitada atuar no coletivo, exercita algo intrínseco a sua existência, a sua possibilidade de interferir no mundo.

Frente aos dados coletados, percebeu-se como centrais as seguintes motivações/necessidades que levaram as mulheres da organização a estarem no coletivo: necessidade de lutas específicas no local onde estudavam; necessidade de um espaço onde possam contribuir para transformar a sociedade; necessidade de colocar em prática a luta feminista, com a qual já se identificavam; e necessidade de um espaço que permita atuação, participação.

Essa síntese das motivações que levaram as mulheres do coletivo a participarem dele será desenvolvida a seguir, com algumas falas delas. A busca por uma atuação mais próxima à realidade foi um dos elementos desencadeadores do coletivo. Essa necessidade pode ser apontada nesta fala de Malala:

E começou a perceber que os problemas que o outro coletivo enfrenta, que ele tenta combater, não são os problemas que a gente enfrenta aqui. Porque a universidade (espaço de outro coletivo na cidade), ela tem um espaço muito mais aberto para a discussão social. E a faculdade aqui, é muito masculina, engenharia basicamente. Então a gente teve essa ideia no dia do ato e resolveu levar para frente. (Malala).

Janis acrescenta a necessidade de usar sua própria formação acadêmica na transformação da sociedade:

O que me deu vontade de participar foi sempre a vontade de usar a minha formação, contribuir para alguma coisa que eu acredito, social. Não usar a propaganda pra vender, mas para ajudar a transformar a sociedade, alguma coisa assim, com as coisas que a gente acredita [...]. A gente gosta de fazer esse tipo de coisa mesmo. Não só se indignar com o que tu vês, mas fazer um grupo para tentar mudar isso (Janis).

Ambos olhares, de atuar no seu local e de transformar a realidade, podem ser mais bem percebidos com a necessidade que traz Santos (2007) e Severino (1994, 2001) de nossa vivência buscar uma ampliação da cidadania. Afinal, ao buscar transformar a realidade, amplia-se a cidadania das pessoas participantes desse ato. Outro elemento relevante é sobre a formação acadêmica em si, em que sentem não ser suficiente, e, por isso, buscam ir além dela. Seria como se a humanidade presente nelas, trazido ao olhar de Freire (1996), buscasse retomar aquilo que lhe é essencial, a possibilidade de interferir eticamente no mundo. Buscando, assim, sair da possibilidade da domesticação para a decisão de interferência no local onde vivem. Simone e Maria trazem também outros fortes elementos ligados a essa necessidade de intervenção no mundo:

Eu também participava do outro coletivo, eu também estive no ato da Marielle, mas eu nunca senti que eu fiz, fazia algo de fato, pelo que eu acreditava. Nunca. Eu queria fazer mais do que eu achava que fazia, e foi isso assim, foi o principal motivo. (Simone).

Eu amo essa causa, amo lutar por nós mulheres. Quando vi a ideia do coletivo, automaticamente pensei “preciso pertencer a isso” e desde então estou aqui. (Maria).

Ambas retomam a necessidade humana dos espaços que participam se abrirem à participação delas. Isso traz forte um dos elementos humanos, apontado por Freire (1996), bem como dos movimentos sociais, apontado por Gohn (2010a, 2010b), a capacidade de conduzirem suas vidas.

Em síntese, as mudanças que a participação no coletivo proporcionou às participantes foram: ampliou sentimento de pertencimento/identificação a uma luta social; ampliou a possibilidade de transformar a realidade; ampliou o conhecimento sobre a luta social de que participam (feminismo); ampliou o vínculo interpessoal das participantes do coletivo; ampliou a percepção das pessoas ao redor da luta social que participam. Viraram referências na luta feminista dentro e fora da faculdade12.

Apontadas as mudanças, trazem-se as falas das participantes para corroborar com essa síntese. Em primeiro lugar, com a Malala e a Maria, pode-se perceber fortemente os elementos de ampliação da compreensão da luta feminista e de possibilitar uma ampliação na transformação da realidade:

Desde os 15, 16 anos eu já me intitulo feminista, mas eu não entendia tão bem do movimento. Daí desde que a gente abriu o coletivo eu me aprofundei muito mais nas causas e também eu me sinto muito mais parte de uma comunidade. [...]. É como se a gente tivesse uma probabilidade maior de fazer diferença e ajudar as garotas que realmente não tinham para onde correr. Agora elas têm o coletivo, que é como se fosse um grupo de apoio. (Malala).

Mudou muita coisa! Me compreendi mais dentro da causa feminista, comecei a expor meus desenhos e encontrei neles minha forma de militar - essa foto aqui de cima foi minha primeira exposição. (Maria).

Quando o coletivo contribui para a ampliação do conhecimento da luta feminista, bem como possibilita aprenderem via processos de educação não formal, apontados por Gohn (2010a) e trazidos no subtítulo anterior, está contribuindo para a libertação dessas mulheres da domesticação. Ao fazerem isso, as mulheres participantes do coletivo ampliam seus entendimentos dos sistemas abstratos, conforme Giddens (1991), ou da técnica, conforme Pinto (2005), ampliando a capacidade de perceberem as estratégias de domesticação existentes na sociedade.

A seguir, Janis, além de apontar a possibilidade de interferirem na sociedade, traz a transformação que o coletivo realizou nelas, tornando-as referências dessa luta feminista. Assim, a simples existência do coletivo já traz mudanças nas pessoas ao seu redor, mesmo não participando do grupo. Poder-se-ia escrever essa análise da seguinte forma: a participação no coletivo produz mudanças pessoais, e a presença delas nos seus espaços interfere positivamente, fazendo delas referências da luta social feminista.

Então a gente parou só de refletir “nossa, como é errado aquilo que acontece!” e começou a tentar transformar essas coisas que são erradas em coisas boas. E isso é interessante. E até as pessoas que talvez tenham um pouco de preconceito, como o pessoal das engenharias. É legal saber que eles sabem da nossa existência. Sabem o que a gente está fazendo. Porque antes eles só ignoravam o fator “mulher e preconceito”. Agora não, agora eles já nos conhecem e pelo menos vão refletir um pouco mais, mesmo que ainda com preconceito. (Janis).

Em todas as falas trazidas, fica evidente a percepção de que agora se sentem parte de um espaço de luta, percebe-se essa importância aos vínculos interpessoais que se ampliaram. Traço marcante dos movimentos sociais contemporâneos, segundo Gohn (2010b). Pode-se avaliar isso no seguinte diálogo:

Uma coisa que eu percebi também, na faculdade, é que agora a gente conhece muitas meninas que têm por aqui. Meninas que talvez nos quatro anos de faculdade a gente pudesse só passar reto ou dar um oi, ou "ah, conheço de vista". E agora não, tá com esse nível de saber o que que ela pensa, o que as outras meninas estão passando. A gente consegue conversar bastante no grupo sobre esse tipo de coisa. (Janis).

É. Criou uma rede afetiva. (Malala).

O olhar profissional também foi trazido por Malala, quando contava da experiência que teve ao participar de um evento em que o coletivo foi convidado a falar sobre “mercado criativo”. Na fala, ela traz a diminuição de preconceitos neste espaço para com as mulheres.

Eu pelo menos percebi uma mudança drástica. A gente trouxe questões que as pessoas não pensavam. O mercado criativo é muito masculinizado e preconceituoso. E muitas das pessoas que estavam lá assistindo a gente eram homens. Então a gente trouxe um olhar feminino pra esse meio profissional, para que eles começassem a pensar um pouco mais, de como é ser mulher dentro de um mercado que, por ser criativo, deveria ser mais aberto, mas na verdade não é. (Malala).

Sobre a ampliação do vínculo interpessoal já levantado, é importante refletir que é natural que um grupo, quando recém-criado, busque, em um primeiro momento, se conhecer mais. Assim como o faz o ser humano em qualquer situação de uma nova aproximação com outras pessoas, ao menos quando desejam atuar juntos. Resta saber se, em um próximo passo, o coletivo partiria para lutas mais amplas, globais, ou se isso é evidência de um movimento social dentro da cultura digital, como aponta Castells (2013) e Gohn (2010b), com foco maior no local e nos vínculos pessoais.

Quando perguntadas sobre as mudanças pessoais, todas trouxeram elementos que consideravam positivos. Não foram questionadas se existia algo que mudou “para pior”. Apenas na análise dos dados que se percebeu essa necessidade, ficando a análise focada nas ampliações, nos elementos que avançaram pessoal e coletivamente.

Outro detalhe é que, de certa forma, algumas mudanças nas mulheres se interligaram com as motivações apresentadas anteriormente da entrada ao coletivo. Isso evidencia que atingiram parte desses objetivos, ou que, ao responder, levaram em consideração aquilo que estavam vivenciando. Como se existisse uma mistura das lembranças das motivações com as lembranças do que sentiam no momento da roda de conversa.

Essa identificação com o espaço de transformação que o coletivo tem proporcionado na vida delas dialoga harmoniosamente com a natureza humana que Freire (1996), Suchodolski (2002) e Severino (1994, 2005, 2006, 2010) trazem, de um ser para atuar, de um ser para transformar a realidade, de um ser que se coloca no mundo. E mesmo existindo, como traz Freire (1987) e Pinto (2005), forças que tentam domesticar essa atuação, ou até controlá-la, pode-se perceber que o coletivo tem feito um olhar mais voltado à libertação do que à domesticação.

Iniciou-se esta pesquisa com a necessidade de se compreender a formação humana cidadã desenvolvida nos movimentos sociais dentro da cultura digital. Uma das percepções que se foi desenvolvendo ao longo da pesquisa é a necessidade de, para além de entender essa problemática, perceber que em todos os espaços que as pessoas vivenciam existe imbricada uma formação humana. Essa formação nesses espaços pode levar o ser humano a desenvolver sua autonomia ou agredir seu desenvolvimento, privando-o da liberdade de escolha e de um olhar crítico para a realidade.

Em tempos em que se exaltam atrocidades entre países e entre pessoas, quando o conservadorismo se faz forte, sempre surgem, dialeticamente, a presença de forças que apontam para uma formação da pessoa como ser para a liberdade e para os outros, que amplia sua vida em conjunto com a coletividade da humanidade.

Dentro da cultura digital, na qual o local e o global trazidos por Giddens (1991) se conectam à sociedade em rede apontada por Castells (2005), negar a existência de forças conservadoras que continuam dominando a partir das técnicas, como nos alerta Pinto (2005), é deixar que a domesticação continue sendo realidade. Os movimentos sociais e, nesse caso, o coletivo estudado, na medida em que possibilita ampliar a leitura de mundo das mulheres que participam dele, permite que estas diminuam as possibilidades de domesticação. Entretanto, é inegável que, mesmo com a proposta do coletivo sendo libertadora, acaba que, dialeticamente, as forças domesticadoras também existem dentro dele, fato evidenciado na tentativa do coletivo em se adaptar à lógica de mercado trazida pela faculdade onde atuam, quando uma parte da força de atuação do coletivo vai ao encontro da lógica tecnicista da faculdade, em vez de questionarem essa lógica. Deixam-se, assim, neste ponto, sofrerem uma pressão da sociedade de consumo, diminuindo a possibilidade de ampliação da cidadania que Santos (2007) traz. Embora aponta-se essa força domesticadora presente na vida do coletivo, todos os outros elementos que a análise dos dados possibilitou apontam para o seu contrário. O coletivo tem demonstrado ser elemento que possibilita a ampliação da cidadania e, consequentemente, a ampliação dos direitos das mulheres que participam dele, bem como da possibilidade de elas interferirem na sociedade em que vivem.

Quando foram questionadas sobre qual a relação que faziam entre o movimento feminista e os direitos sociais da constituição, algo que chamou atenção foi a capacidade de rapidamente relacionarem para cada ponto uma pauta feminista. Foram respondendo e rapidamente citaram vários exemplos de como pode-se relacionar o feminismo com a constituição nesse quesito. Essa capacidade de relacionar os direitos sociais com a luta feminista, bem como as diversas possibilidades de atuação transformadora na sociedade trazidas pelo coletivo apontam, dentro da perspectiva de Santos (2007), para uma cidadania ampliada do grupo.

Atualmente, a maioria das intervenções do coletivo atingem a própria instituição de ensino em que vivenciam. Entretanto, apontam expectativas de ampliarem a autonomia delas na busca de irem além da própria faculdade daqui a alguns anos. Esse elemento forte em toda a análise, a de transformar a realidade em que vivem e de tentarem ampliar essa construção da maneira mais coletiva possível, corrobora com a concepção de movimento social deste trabalho trazida por Castells (2013), Gohn (2010a, 2010b) e Scherer-Warren (1989). Assim como o Coletivo Feminista também traz elementos que apontam para as características de movimentos sociais na cultura digital, como a busca pelo horizontalidade trazida por Castells (2013), a lógica em rede apontada por Gohn (2010a, 2010b) e Castells (2013), bem como a busca por vivenciarem discussões mais ligadas aos vínculos interpessoais, como aponta Gohn (2010b).

Mostrou-se que, com a atuação da equipe de organização, estas mulheres do coletivo vivenciam principalmente processos de educação não formal, como apontados por Gohn (2010a), na medida em que não possuem “professores”, e acabam aprendendo com o próprio processo autônomo de condução do coletivo, seja na condução dos encontros quinzenais, seja na realização dos eventos, ou, ainda, nas outras atividades em que o coletivo se envolve.

Considerações finais

Fica claro que as mulheres do coletivo, dentro dele, vivenciam principalmente uma formação humana que privilegia a autonomia, com a possibilidade de transformação da realidade e ampliação da cidadania. Tendo-se em vista o sonho delas em ampliar o coletivo para as mulheres dos cursos de engenharia que ainda não participam dele, trazendo presente uma necessidade de as conquistas e as percepções que possuem se estenderem para além delas. Isso, casado à insistência em atuarem, de criarem esse espaço de luta, e de irem participando na qualidade de detentoras do direito à voz na faculdade em que vivenciam, corroboram a visão que este trabalho possui sobre formação humana cidadã e, de certa forma, responde ao problema de pesquisa.

Assim, a partir de Freire (1987, 1996), Suchodolski (2002), Severino (1994, 2005, 2006, 2010)0 e Santos (2007), entende-se que uma formação humana cidadã ocorre na medida em que as pessoas atuam em uma realidade na perspectiva de modificá-la na busca de ampliação da cidadania das pessoas. Com a consciência de que a ampliação da cidadania só é possível na medida em que se busca um diálogo harmônico entre as necessidades individuais e coletivas dos humanos e humanas. Os movimentos sociais, ao atuarem na busca da transformação da realidade, corroboram a ampliação da cidadania de seus participantes, na medida em que estes ampliam seus conhecimentos das técnicas usadas para a dominação e lutam por mais direitos.

Mesmo os movimentos sociais sendo palco de processos educativos não formais e, consecutivamente, contribuindo teoricamente para uma formação humana cidadã, não significa que ela também não possa ser desenvolvida nos espaços educacionais formais e informais. Isso pode ocorrer desde que se possibilite perceber com mais clareza as estruturas de domínio existentes na cultura digital, propiciando às pessoas se colocarem como agentes transformadores da realidade. O próprio surgimento do coletivo permite visualizar esse elemento; afinal, para tal, precisa de algumas condições prévias, como a crença de que a sociedade pode ser diferente, como trazida por Castells (2013). Isso se deu anteriormente à existência do coletivo, significando que os espaços formais e informais nos quais as mulheres participaram/participam deram suas contribuições também.

Feito essa retomada dos movimentos sociais na cultura digital e do que seria uma formação humana cidadã, chegou-se à pergunta central deste trabalho, em que se busca perceber a contribuição da vivência no Coletivo para uma formação humana cidadã. Toda essa visão conclusiva da base teórica construída, em diálogo com os dados da pesquisa de campo, aponta que o Coletivo é um movimento social que existe dentro da cultura digital e, como tal, se evidenciam os elementos apresentados nesta base teórica. Buscam ainda ampliar os direitos para além das suas participantes, tentando atingir outras mulheres, que não estão envolvidas com o coletivo, dentro da faculdade e fora. Mostram, assim, na maneira como conduzem e atuam, que possibilitam a ampliação da formação humana cidadã de suas participantes, de acordo com o conceito construído com Freire (1987, 1996), Suchodolski (2002), Severino (1994, 2005, 2006, 2010) e Santos (2007).

Como uma das percepções finais da pesquisa, visualiza-se que, para aprofundar a resposta ao problema levantado inicialmente, necessitar-se-ia mais acompanhamento da vivência delas cotidianamente, algo processual, que consiga perceber mudanças históricas na vida delas e no local onde atuam. Um olhar acompanhando com mais cautela a vida cotidiana do coletivo pode ampliar a percepção de como se dá a interferência desta atuação na formação humana cidadã de suas participantes.

Por fim, assim como Gohn (2014), concorda-se com a necessidade da existência dos movimentos sociais nesta sociedade e em outras, como agentes fundamentais de transformação. Aqueles e aquelas que ficam à margem da lógica dominante precisam pautar a ampliação de suas cidadanias e, consequentemente, das cidadanias de todas as outras pessoas.

1Pesquisa realizada no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação - Mestrado da Universidade do Extremo Sul Catarinense - UNESC.

2Será utilizada como metodologia o grupo focal; no entanto, optou-se pelo uso do termo roda de conversa visto as características do que se busca no diálogo com o coletivo, tais como igualdade de falas, autonomia do grupo no diálogo e o próprio posicionamento das mulheres em roda para realizar a conversa.

3 Gohn (2010a) traz que as categorias redes e mobilizações sociais não substituem a categoria movimento social, podendo atuar de forma conjunta, ou isoladamente, embora as redes e as mobilizações têm sido ambientes fortes de atuação dos movimentos sociais na atualidade.

4A exemplo disto pode-se apontar diversas parcerias do MST com universidades federais na oferta de cursos superiores específicos para integrantes do movimento.

5Entende-se o feminismo como uma luta social das mulheres por igualdade de gênero. Feminismo é práxis na medida em que não pode apenas ficar no debate teórico, indo de encontro da transformação da sociedade com bases patriarcais em um novo mundo. Para compreender melhor o feminismo, sugere-se a leitura da filósofa Marcia Tiburi (2015) - O que é feminismo?. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/o-que-e-feminismo>. Acesso em: 1 nov. 2018.

6Consumidor imperfeito seria aquele que não entra no jogo do mercado, buscando nas suas compras colocar e priorizar mecanismos de comércio que coloquem a vida das pessoas acima do consumo. Exemplos, no Brasil, desse tipo de relação comercial, seria a chamada economia solidária, que tenta, a partir do trabalho de seus membros, expandir cidadania para cada vez mais pessoas.

7Os nomes adotados são fictícios para preservar a imagem das mulheres do coletivo. Como substituição, optou-se por referências da luta feminista trazidas ao longo das próprias postagens do Facebook, a saber: Janis Lyn Joplin, Malala Yousafzai, Marguerite Ann Johnson (Maya Angelou), Maria da Penha Maia Fernandes, Dorothy Mae Stang, Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir. Declara-se que esta pesquisa seguiu todos os princípios éticos e de anuência dos sujeitos envolvidos; optou-se por cuidar da imagem do coletivo desde a escolha das perguntas a serem usadas, ao contato realizado, na clareza do que constaria na pesquisa e inclusive no cuidado com os nomes das participantes visto a pressão histórica que as mulheres enfrentam ao se organizarem para reivindicar direitos. Assim, dentro do que estes pesquisadores compreendem e visualizam como ético, declara-se os cuidados necessários (MAINARDES; CARVALHO, 2019).

8Essa Instituição localiza-se em uma cidade no estado de Santa Catarina, Brasil.

9O WhatsApp é um aplicativo de troca de mensagens de texto, voz, imagens, vídeos e arquivos. Muito utilizado na contemporaneidade para a comunicação entre as pessoas.

10Trata-se de outra mídia social. Entretanto, como o Facebook contempla todas as postagens dela, optou-se por não analisá-la.

11Importante que nesses dados não constam o tempo de fala de cada uma, mas o número de intervenções.

12Tanto em um caráter de ajuda, em que as pessoas sabem a quem recorrer com relação à luta feminista, como também em um caráter de enfrentamento, quando as pessoas sabem que, se “vacilarem”, existe um grupo que vai fazer um enfrentamento.

Referências

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Recebido: 31 de Março de 2019; Revisado: 29 de Agosto de 2019; Aceito: 02 de Setembro de 2019; Publicado: 01 de Outubro de 2019

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