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Práxis Educativa

Print version ISSN 1809-4031On-line version ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.15  Ponta Grossa  2020  Epub Mar 26, 2020

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.13397.003 

Artigos

Gênero, sexualidades e educação: cenário das políticas educacionais sobre os direitos sexuais e reprodutivos de jovens e adolescentes*

Gender, sexuality and education: educational policies scenario on the young and adolescents sexual and reproductive rights

Género, sexualidades y educación: escenario de las políticas educativas sobre los derechos sexuales y reproductivos de jóvenes y adolescentes

Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo** 
http://orcid.org/0000-0002-9833-0635

Matheus Estevão Ferreira da Silva*** 
http://orcid.org/0000-0002-2059-6361

Talita Santana Maciel**** 
http://orcid.org/0000-0002-6846-8684

**Professora do Departamento de Administração e Supervisão Escolar (DASE) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) - Campus de Marília. E-mail: <tamb@terra.com.br>.

***Primeiro Secretário do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania de Marília (NUDHUC). Pedagogo pela FFC/UNESP/Marília, Mestrando em Educação pelo PPGE da mesma instituição e Graduando em Psicologia pela Faculdade de Ciências e Letras (FCL/UNESP), Campus de Assis. E-mail: <matheus.estevao2@hotmail.com>.

****Professora do Ensino Fundamental da Rede Municipal de Ensino de Marília. Pedagoga pela FFC/UNESP/Marília, Mestre e Doutoranda em Educação pelo PPGE da mesma instituição. E-mail: <talita.s.maciel@hotmail.com>.


Resumo:

Este artigo tem como objetivo refletir, por meio de revisão bibliográfica e análise documental, sobre o cenário das Políticas Educacionais brasileiras, no que diz respeito às categorias de gênero e sexualidades, especialmente, considerando os direitos sexuais e reprodutivos de jovens e adolescentes. Assim, discute-se primeiramente o contexto histórico de constituição das juventudes e das adolescências, ressaltando-se a necessidade de Educação Sexual a tais públicos. Apresenta-se, em seguida, o delineamento do campo normativo referente aos direitos sexuais e reprodutivos. Após, discorre-se sobre a constituição da Educação Sexual e sobre sua inserção nas Políticas Educacionais, incluindo seus fundamentos iniciais e posteriores. Busca-se, por fim, refletir sobre a atual inserção de gênero e sexualidades nas Políticas Educacionais, diante das conquistas e necessidades explanadas no decorrer do texto.

Palavras-chave: Educação; Gênero e sexualidades; Juventudes

Abstract:

This article aims to reflect, through bibliographic review and documentary analysis, on the Brazilian educational policies scenario, regarding gender and sexuality categories, especially considering the young and adolescents sexual and reproductive rights. So, firstly the youth and adolescence constitution historical context is discussed, highlighting the need for Sexual Education to such audiences. The normative field design regarding the sexual and reproductive rights is presented below. Afterwards, the Sexual Education constitution and its insertion in the educational policies are discussed, including their initial and subsequent fundamentals. Finally, we seek to reflect on the gender and sexualities current insertion into Educational Policies, considering the achievements and needs that have been explained in the text.

Keywords: Education; Gender and sexuality; Youth

Resumen:

Este artículo tiene como objetivo reflejar, por medio de revisión bibliográfica y análisis documental, sobre el escenario de las Políticas Educativas brasileñas en lo que se refiere a las categorías de género y sexualidades, especialmente considerando los derechos sexuales y reproductivos de jóvenes y adolescentes. Así, se discute primeramente el contexto histórico de constitución de las juventudes y adolescencias, resaltándose la necesidad de Educación Sexual a dichos públicos. A continuación, se presenta el delineamiento del campo normativo referente a los derechos sexuales y reproductivos. Después, se discute sobre la constitución de la Educación Sexual y sobre su inserción en las Políticas Educativas, incluyendo sus fundamentos iniciales y posteriores. Se busca, por fin, reflexionar sobre la actual inserción de género y sexualidades en las Políticas Educativas, ante las conquistas y necesidades explicadas en el transcurso del texto.

Palabras clave: Educación; Género y sexualidades; Juventudes

Introdução

Parte-se do pressuposto de que os jovens e adolescentes são pessoas que estão passando por uma fase complexa da vida do ser humano, uma vez que a sociedade realiza cobranças das mais variadas formas e tenta impor padrões preestabelecidos a esses públicos, negando, muitas vezes, sua condição de sujeitos de direitos, pressuposto compartilhado por vários outros autores e autoras da pesquisa sobre juventudes e demais marcadores etários (CALLIGARIS, 2000; GONÇALVES; GARCIA, 2007; BORELLI, 2008).

Na faixa etária em questão, ainda se encontra em curso um processo subjetivo de constituição do “eu”, que é fortemente influenciado pelas determinações sociais. Dessa forma, convém pensar sobre a seguinte questão: em que medida o contexto sociocultural dos dias de hoje tem auxiliado nesse processo no que concerne ao reconhecimento da dignidade e diversidades humanas? Tal questionamento serviu como norte aos escritos que aqui se encontram, especialmente, porque, historicamente, o mundo vem vivenciando um contexto de violências e de preconceitos contra as denominadas minorias1.

Assim, discutem-se categorias diferentes e que não se excluem, mas, pelo contrário, são convergentes e permitem dialogar sobre um recorte da influência das demandas sociais no processo de constituição do “eu” nas fases das adolescências e juventudes, recorte este que, neste texto, diz respeito a gênero e sexualidades: a primeira categoria é a educação escolar, considerando-se a escola como uma das mais importantes instituições sociais; a segunda é a política educacional, enquanto orientação ao processo de ensino escolar; a terceira inclui os direitos sexuais e reprodutivos, enquanto direitos que reconhecem a vivência das sexualidades.

Resultante de uma pesquisa desenvolvida em nível de Estágio Pós-Doutoral junto à Universidade de Valência (UV), Espanha, ao longo do ano de 2018, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)2, e utilizando-se de revisão bibliográfica e análise documental como percursos metodológicos, este texto tem como objetivo refletir sobre o cenário das Políticas Educacionais brasileiras, no que diz respeito às categorias de gênero e sexualidades, especialmente, considerando os direitos sexuais e reprodutivos de adolescentes e jovens.

Por meio de tópicos que buscam esclarecer as categorias demarcadas e com foco nas Políticas Públicas Educacionais, o texto apresenta um olhar, situado entre tantos outros, sobre a situação - no mínimo embaraçosa - que a sociedade brasileira presencia nos dias de hoje com relação às temáticas abordadas. De fato, os jovens e adolescentes são reconhecidos juridicamente como sujeitos de direitos e, portanto, lhes é garantida a participação ativa em discussões que lhes dizem respeito. Como, porém, superar os inúmeros obstáculos sobrepostos a essa participação? Não se tem a intenção de responder diretamente a essa indagação, mas sim a de discorrer sobre assuntos, que possibilitem um esclarecimento sobre os desafios, que a sociedade brasileira ainda há de enfrentar.

Sobre as adolescências e juventudes: conceituando e situando o lócus investigativo

Opta-se neste texto por utilizar, na maioria das vezes, os termos adolescências e juventudes, a fim de se contemplar a pluralidade presente nesses grupos populacionais, isto é, a fim de se reconhecer as diversidades étnico-raciais, religiosas, culturais, de gênero, de orientação sexual, de condições materiais de existência e de tantas outras características que constituem tais públicos, os quais apresentam experiências e significados específicos, considerando-se todas as etapas de vida do ser humano (EISENSTEIN, 2005; SILVA; LOPES, 2009). Assim, mencionam-se as categorias aqui tratadas como adolescências e juventudes, no plural, não apenas para representar uma escolha instrumental de análise desses segmentos populacionais, mas, sobretudo, para dar visibilidade à formação multicultural, que dimensiona a sociedade brasileira.

Assim, como destacam os teóricos Aberastury e Knobel (1981), existem diferentes concepções acerca das adolescências e das juventudes, tanto no que diz respeito aos conceitos, quanto à delimitação cronológica, mas apesar da diversidade de significados, parece existir um consenso literário, na sociedade contemporânea, de que essas fases se referem ao período de transição entre a infância e a vida adulta, nos quais ocorrem transformações biopsicossociais diversas.

Embora seja um fato de que a vida concreta e as experiências individuais das pessoas não podem ser demarcadas segundo uma fronteira fixa e homogênea, o limite de faixa etária se tornou, ao longo do tempo, um marco abstrato essencial para a implementação de Políticas Públicas voltadas aos jovens e adolescentes. Neste texto, pois, entende-se por adolescências, o período entre 10 e 19 anos, enquanto as juventudes são delimitadas pelo período de 15 a 24 anos, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Partindo-se dessa convenção, ainda que essa possa oscilar na literatura pertinente, é possível observar que os primeiros anos das juventudes se configuram ainda como adolescências.

Conforme Sandrini (2009) destaca, em seus estudos, definições de adolescências e juventudes devem perpassar por um caráter cultural e histórico-social, e devem se revestir, ainda, da ideia também colocada por Levi e Schmitt (1996, p. 9) acerca do “[...] entrelaçamento entre as determinações biológicas e as construções simbólicas”. Nessa perspectiva, Sandrini (2009, p. 79) levanta uma consideração com a qual se concorda: “[...] acredito não ser possível falar da juventude como uma unidade, pois juventude não pode ser vista como um bloco homogêneo dentro do qual haja uma unicidade comportamental”.

Isso significa que, ao se conceituarem as categorias juventudes e adolescências, deve-se considerar as múltiplas realidades dos sujeitos de direitos que a essas pertencem, rejeitando-se argumentos sobre a naturalização das características de pessoas jovens, os quais têm suas raízes na sociedade moderna. Segundo Bourdieu (1983), a própria delimitação de segmentos populacionais segundo a idade não é um fato dado naturalmente, mas sim o resultado de construções nas quais estão presentes as lutas entre jovens e adultos, as lutas de classe, entre outros fatores.

Philippe Ariès (1978) afirma que até o século XVIII, a fase das juventudes foi confundida com a infância, pois na organização social dos séculos XVI e XVII não existia uma distinção clara da fase hoje conhecida como adolescência. De acordo com esse intelectual, assim que as crianças deixavam a condição de dependência materna, passavam a integrar o universo dos adultos, compartilhando de seus trabalhos e jogos. Logo, foi a partir das diversas transformações ocorridas durante os séculos XVIII e XIX que as juventudes foram de fato consideradas como uma etapa especial de desenvolvimento humano. Como destaca Schindler (1996, p. 267):

Somente a sociedade dividida em classes da era industrial desenvolve ao máximo a dramaturgia da juventude enquanto portadora enfática de esperanças e ameaças sociais latentes, ao passo que atribui à fase de tornar-se adulto as características de um fenômeno de tipo cultural, com conotações tanto negativas como positivas, mas de todo modo algo determinante.

Ariès (1978) considera, ainda, que a escola, ao substituir a aprendizagem, que ocorria no meio social e em âmbito familiar, determinou o início da separação entre as crianças e o mundo adulto. É importante acentuar que o dever da escolarização nasce ditado pelo surgimento de preocupações científicas com relação às primeiras etapas da vida. Isso acarretou uma redefinição do papel da família e, com o apoio do discurso médico-higienista, a escola passa a ser o local privilegiado da educação sanitária e moral de crianças e jovens. Como coloca César (2008, p. 43, grifo nosso), cuja citação merece destaque, “assim, família e escola, com o auxílio da medicina higienista e das práticas disciplinares da ortopedia educacional, representaram a possibilidade de delinear o modelo do adulto ideal a ser reproduzido”. Ainda, nas palavras da autora:

A novidade instaurada pela sociedade disciplinar foi a noção de um investimento indiscriminado nos corpos, independente da condição social e econômica. O controle da sexualidade foi um alvo fundamental para as políticas de higienização, pois, por meio do controle do sexo, seria realizado um controle efetivo da população: crescimento, declínio, matrimônios, entre outros aspectos (CÉSAR, 2008, p. 16).

Nesse sentido, verifica-se que a preocupação com relação à sexualidade, nesse momento, encontrava-se unicamente vinculada ao controle da natalidade, excluindo-se, pois, o prazer e as relações homoafetivas de qualquer espaço de discussão.

Além de afirmar o caráter moderno da infância, Ariès (1978) acredita que as adolescências também nasceram sob o signo da Modernidade, ou seja, carregam em seu bojo as marcas de uma sociedade, cujas características principais foram a busca pela racionalidade e pela emancipação humana (CAMBI, 1999). No entanto, com a crise pela qual passou a razão moderna, foi crescente o ceticismo com relação à capacidade de se compreenderem as diversidades dentro do paradigma moderno, visto que, na ideia da Modernidade, procura-se ordenar a complexidade humana a partir do que já existe (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003).

Portanto, para Calligaris (2000), a fase da adolescência se torna fantasiosa quando entendida como um dado natural, isto é, quando a essa são prescritas normas de funcionamento e de regras de expressão. A partir, pois, de um olhar pós-moderno:

[...] não existe conhecimento absoluto, realidade cristalizada, esperando para ser conhecida e domada; um entendimento universal, que se faça fora da história ou da sociedade. No lugar disso, o projeto pós-modernista propõe que o mundo e o conhecimento dele sejam vistos como socialmente construídos (FROTA, 2007, p. 3).

Uma vez realizadas essas breves considerações sobre a constituição histórica, social e cultural das adolescências e juventudes, reconhece-se e se concorda com a ideia de que há uma multiplicidade de características que devem compor conceituações e análises sobre as pessoas jovens, já que esse segmento populacional possui singularidades que transcendem discussões meramente biológicas e naturalizantes.

É sabido que, por volta dos doze anos, a criança começa a sofrer modificações em seu corpo, decorrentes da produção de hormônios sexuais, os quais acarretam o aparecimento de caracteres sexuais secundários3 e o amadurecimento da capacidade reprodutiva. Essas mudanças fisiológicas e anatômicas são de caráter universal4 e caracterizam o período chamado puberdade. No entanto, existem fatores que ultrapassam a compreensão de jovens e adolescentes a partir apenas da visão biológica, visão essa que sustenta a ideia de que sexo se relaciona apenas à reprodução, negando as redações sobre sexualidades conquistadas ao longo do tempo, como o Programa de Ação do Cairo - tratado no tópico a seguir. Assim como Levi e Schmitt (1996, p. 11, grifo nosso) afirmam: “[...] no plano individual, a juventude deve ser considerada uma fase crucial para a formação de cada um, quer se trate da maturação do corpo e do psiquismo, quer no que diz respeito às escolhas decisivas que preludiam a inserção definitiva na vida da comunidade”.

Pode-se afirmar, portanto, que se encontra em jogo, nas fases das adolescências e juventudes, um processo subjetivo, o qual é profundamente marcado pela demanda social, que, por sua vez, é formulada através das representações que a cultura faz dessas fases. Nesse contexto, é preocupante o fato de que a sociedade contemporânea é pautada (ainda) em princípios do patriarcado, revelando-se culturalmente machista, homofóbica, transfóbica e misógina. Uma vez que a cultura determina a demanda social e essa exige da população jovem os resultados do processo de singularidade constituído ao longo do tempo, é necessário que o pensamento coletivo, progressivamente, se transforme rumo ao respeito às diversidades, visto que, como apontam dados da VIVA5, da Organização das Nações Unidas (ONU), do Movimento LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros, queers, intersexuais, assexuais, etc.) e outras instituições, centenas de pessoas morrem todos os anos como vítimas da intolerância arraigada socialmente.

Essa transformação rumo ao respeito às diversidades precisa passar, sem dúvida, por um difícil e longo caminho de mudança nas representações sociais, inclusive com o engajamento de instituições sociais, das quais se destaca, neste texto, a escola. Afinal, “[...] se esta conquista não depende exclusivamente da educação escolar, certamente não se dará sem ela” (CANDAU et al., 2013, p. 93).

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população total do Brasil é composta por aproximadamente 210.077.6006 pessoas, entre as quais 48,92% são homens e 51,08% são mulheres. Jovens e adolescentes representam 23,45% da população brasileira, entre os quais, 11,91% são homens e 11,54% são mulheres. Embora os dados anteriores evidenciem uma quantidade muito próxima, percentualmente, entre homens e mulheres brasileiros(as), pessoas do sexo feminino representam a grande maioria dos casos de violência doméstica, sexual e outras violências: de acordo com o inquérito da VIVA (BRASIL, 2017), no ano de 2013 foram contabilizadas 188.624 notificações válidas para a análise e, dessas, 56.447 (29,9%) ocorreram entre homens, enquanto 132.177 (70,1%) ocorreram entre mulheres. Do total de casos notificados, 50.634 (26,84%) ocorreram entre adolescentes de 10 a 19 anos.

Aproximadamente 32% das pessoas informaram terem sido vítimas de violência de repetição e, neste caso, a ocorrência variou de 20,8% entre os homens a 36,6% entre as mulheres. Como o texto mesmo do Inquérito discute: “o elevado percentual de violência de repetição entre mulheres adultas demonstra o caráter crônico da violência, especialmente da violência doméstica contra as mulheres, e a dificuldade encontrada em romper o ciclo da violência” (BRASIL, 2017, p. 158). No que diz respeito ao tipo de violência, no sexo masculino se destacaram, em termos de proporção, a agressão física (65,5%), negligência/abandono (22,3%) e a psicológica/moral (13,7%). Já entre as mulheres, além da agressão física (65,7%), foram as violências psicológica/moral (32,6%) e sexual (17,3%) as que apresentaram maior ocorrência.

De acordo com a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais, no ano de 2016, 340 LGBT’s foram mortos no Brasil. Esse número revela que a cada 25 horas uma vítima é assassinada no país, unicamente por sua orientação sexual. Em 2017, até o início do mês de março, 117 pessoas foram assassinadas no Brasil devido à homofobia, conforme informação do Grupo Gay da Bahia (GGB).

O parâmetro atual das juventudes quanto à violência, por si só, releva a necessidade de Educação Sexual (conforme os seus fundamentos atuais) e educação pautada em gênero aos jovens e adolescentes, visto que elucida o preconceito ainda arraigado no que diz respeito às questões de gênero e sexualidades, além de evidenciar a escassez de Políticas Públicas que poderiam diminuir, consideravelmente, tais dados alarmantes. É nesse sentido que se apresenta, nos escritos seguintes, discussões sobre a importância da Educação Sexual na acepção da diversidade e se busca refletir sobre como as Políticas Educacionais brasileiras vêm tratando esses temas, diante dos direitos sexuais e reprodutivos dos jovens e adolescentes.

Sobre o campo normativo referente aos direitos sexuais e reprodutivos

Como colaborar para que homens e mulheres tenham uma vida sexual com responsabilidade e prazer, sem qualquer discriminação? Uma opção nesse sentido é incorporar, nas práticas sociais e Políticas Públicas, as noções de direitos sexuais e reprodutivos. Para além dos significados relacionados ao corpo e ao meio social, os direitos sexuais e reprodutivos comportam a questão da cidadania. São direitos de extrema importância para a garantia e a ampliação dos direitos humanos, pois a vivência plena e consciente das sexualidades proporciona uma vida mais digna, no que diz respeito à individualidade e também à coletividade. Ao passo que se reconhece a legitimidade dos direitos sexuais e reprodutivos, pressiona-se uma reformulação no campo normativo para que sejam consideradas as questões de gênero, de etnia, de faixa etária e de orientação sexual.

A fim de realizar um breve resgate do contexto histórico normativo referente aos direitos sexuais e reprodutivos, apoia-se nos estudos de Mattar (2008), que afirma a existência de um grau maior de formulação e de reconhecimento jurídico dos direitos reprodutivos, em detrimento dos direitos sexuais. Segundo a autora, a construção dos direitos reprodutivos como direitos humanos ocorreu, por um lado, a partir do aumento populacional e, por outro, a partir do Movimento de Mulheres, ou seja, tais direitos surgem ligados a duas noções: o controle de crescimento populacional7 (sem preocupação de fato com as mulheres, sujeitos principais da atividade reprodutiva) e a emancipação feminina. O foco do Movimento de Mulheres estava, como colocam Corrêa e Petchesky (1996), na necessidade de que as mulheres possuíssem e controlassem seus próprios corpos, obtendo conhecimentos sobre sexualidade e estando livres para exercerem a atividade sexual. O lema feminista da década de 1970, “nosso corpo nos pertence”, revelava-se em oposição à interferência da Igreja e do Estado. Assim:

[...] a história dos direitos reprodutivos como direitos humanos - ou seja, com o enfoque na autonomia reprodutiva exercida principalmente pela mulher - supostamente começa na primeira Conferência Internacional de Direitos Humanos, que aconteceu em Teerã (Irã), no ano de 1968. Nessa Conferência, adotou-se, pela primeira vez, o que viria a ser o núcleo dos direitos reprodutivos: “os pais têm como direito humano básico decidir de forma livre e responsável sobre o número e o espaçamento de seus filhos e o direito à educação adequada e informação a este respeito” (MATTAR, 2008, p. 67, grifo nosso).

No ano de 1974, anos após, ocorreu a Conferência Mundial sobre População, na cidade de Bucareste. Nessa ocasião se defendeu a ideia de que o crescimento populacional estava vinculado ao grau de desenvolvimento dos países, mas se reafirmou o direito às escolhas reprodutivas, ampliando a linguagem para incluir a decisão de número de filhos aos casais e indivíduos. Estabeleceu-se, ainda, que as pessoas deveriam ter os meios, bem como informação e educação, para o exercício do direito reprodutivo.

O ano de 1975 representa o marco da década nas Nações Unidas para as Mulheres, pois nesse ano aconteceu a I Conferência Internacional da Mulher, realizada no México. Entre os presentes, pessoas de todo o mundo, setenta por cento eram mulheres, as quais conquistaram a inclusão do direito à autonomia reprodutiva - com a noção de controle do próprio corpo e integridade corporal - no texto da Declaração da Conferência.

Em 1979, a Organização das Nações Unidas (ONU) adotou a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, também chamada de CEDAW, sua sigla em inglês. De acordo com Mattar (2008, p. 68), seu texto:

[...] determina a obrigação dos Estados-Partes em adotar todas as medidas necessárias para eliminar a discriminação contra as mulheres em todos os assuntos relativos ao casamento e às relações familiares e, em particular, de assegurar, com base na igualdade entre homens e mulheres, que elas tenham os mesmos direitos de decidir livre e responsavelmente sobre o número de filhos e o intervalo entre os nascimentos e de terem acesso à informação, à educação e aos meios necessários que lhes permitam exercer esses direitos.

Na II Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, ocorrida em Viena (1993), a sexualidade das mulheres foi citada pela primeira vez. Os parágrafos 18 e 38 da Declaração e Programa de Ação recorrem aos Estados para eliminar a violência baseada no gênero e todas as formas de abuso e de exploração sexual. Ainda em 1993, a ONU adotou a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, que condena, em seu parágrafo 2º, as várias formas de violências: física, sexual e psicológica sofridas pela mulher, afirmando estarem tais direitos e princípios embutidos nos tratados internacionais de direitos humanos.

No ano de 1994, aconteceu a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD), realizada no Cairo, quando as mulheres passaram de objeto a sujeitos dos programas de desenvolvimento e população. Assim, conseguiram uma definição para os direitos reprodutivos, pois, embora com um foco que se difere do movimento populacional, o Movimento Feminista também considera a reprodução um dos elementos centrais.

A Plataforma de Ação elaborada na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em Pequim, no ano de 1995, reafirmou as conquistas em relação aos direitos reprodutivos e conseguiu avançar na formulação dos direitos sexuais como parte dos direitos humanos. O consenso possível, de acordo com Petchesky (1999, p. 21), foi “notável”, já que pela primeira vez na história, as mulheres foram consideradas seres sexuais, além de reprodutivos.

Como coloca Mattar (2008, p. 64):

Os direitos sexuais, por sua vez, começaram a ser discutidos no final da década de 80, com a epidemia do HIV/Aids, principalmente dentro do movimento gay e lésbico, a quem se juntou parte do movimento feminista. Segundo Sonia Corrêa e Maria Betânia Ávila, o termo “direitos sexuais” foi introduzido como estratégia de barganha na CIPD, em 1994, para que os direitos reprodutivos fossem garantidos no texto final da Declaração e Programa de Ação do Cairo - a inclusão do termo “sexual” radicalizava a linguagem de forma que ao conceder sua retirada negociava-se a manutenção de “direitos reprodutivos”. Com isso, o termo “direitos sexuais” não aparece no documento final do Programa de Ação de Cairo.

Mesmo que a discussão em torno dos direitos sexuais tenha sido retomada na IV Conferência Mundial sobre a Mulher se percebe que o texto final decorrente dessa não apresenta uma definição propriamente dita dos direitos sexuais. Nesse sentido, para Petchesky (1999), é preciso que o desenvolvimento dos direitos sexuais aconteça no sentido da ampliação para um conceito positivo, que vá além do combate às discriminações e aos abusos cometidos contra as minorias sexuais, incluindo-se aí as mulheres que não se enquadram nas formas dominantes de seu gênero. Assim, devem englobar as chamadas “titularidades (entitlements) afirmativas”, pois não há como as mulheres usufruírem do próprio corpo sexual, isto é, do prazer, estando constantemente temerosas e submetidas à ideia de abuso.

Segundo Mattar (2008), nesse contexto histórico de conquistas, é importante ressaltar que a vinculação entre o controle de crescimento populacional e o desenvolvimento dos países acelerou, sem dúvida, a positivação dos direitos reprodutivos, o que não ocorreu com os direitos sexuais. Além disso, há outro fator determinante nesse quadro de maior reconhecimento jurídico dos direitos reprodutivos: enquanto esses se constituíram como uma demanda única e exclusiva do Movimento Feminista, os direitos sexuais possuem diferentes públicos em sua defesa (os sujeitos do Movimento LGBTQIA+ juntamente com as mulheres), públicos estes ainda mais discriminados e “mal vistos” que as mulheres. Portanto, a defesa dos direitos reprodutivos esteve mais forte, historicamente, perante a sociedade. A constatação da diferença no reconhecimento jurídico, por si só, já revela que a sociedade ainda possui muitos desafios a serem enfrentados, quando o assunto em pauta envolve sexualidades.

Na página virtual do Instituto Feminista para a Democracia (SOS Corpo)8 se encontram definições para os direitos sexuais e reprodutivos:

Direitos sexuais, são direitos a uma vida sexual com prazer e livre de discriminação. Incluem o direito: 1) de viver a sexualidade sem medo, vergonha, culpa, falsas crenças e outros impedimentos à livre expressão dos desejos. 2) de viver a sua sexualidade independente do estado civil, idade ou condição física. 3) a escolher o/a parceiro/a sexual sem discriminações; e com liberdade e autonomia para expressar sua orientação sexual se assim desejar. 4) de viver a sexualidade livre de violência, discriminação e coerção; e com o respeito pleno pela integridade corporal do/a outro/a. 5) praticar a sexualidade independente de penetração. 6) a insistir sobre a pratica do sexo seguro para prevenir gravidez não desejada e as doenças sexualmente transmissíveis, incluindo HIV/AIDS. 7) à saúde sexual, o qual exige o acesso a todo tipo de informação, educação e a serviços confidenciais de alta qualidade sobre sexualidade e saúde sexual. Os direitos reprodutivos [...] se ancoram no reconhecimento do direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer [...]. Incluem também o direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência. Incluem o direito: 1) individual de mulheres e homens em decidir sobre se querem, ou não, ter filhos/as, em que momento de suas vidas e quantos/as filhos/as desejam ter. 2) de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência. 3) de homens e mulheres participarem com iguais responsabilidades na criação dos/as filhos/as. 4) a serviços de saúde pública de qualidade, e acessíveis, durante todas as etapas da vida. 5) à adoção e ao tratamento para a infertilidade (SOS, 2017).

Os direitos reprodutivos e os direitos sexuais são inseparáveis, já que garantem o livre exercício das sexualidades e a autonomia para as decisões das pessoas no que se refere à vida sexual e à reprodução.

De acordo com Díaz, Cabral e Santos (2004, p. 17): “se por um lado as mulheres adultas têm avançado muito na luta pelos direitos sexuais e reprodutivos, já para a população adolescente [...] essa luta está no início, com alguns movimentos se articulando para divulgar, defender e criar condições para seu efetivo exercício”. O Brasil nunca teve tantos jovens como atualmente e a preocupação com os seus ca minhos passa a ocupar espaço crescente na agenda governamental. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)9 prevê que todas as crianças e adolescentes são sujeitos de direi tos, nas mais diferentes condições sociais e individuais, e que a condição de pessoa em desen volvimento não as priva de gozar de direitos. Entre tanto, o ECA não especifica direi tos em relação ao exercício das sexualidades, quando o que estaria implícito na redação da lei seria a possibilidade de os jovens decidirem sobre sua vida sexual e reprodutiva.

Os serviços de saúde e educação, quando deixam de advogar por uma política de atendimento dirigida especificamente à/ao jovem, reforçam a posição dominante de que as pessoas em desenvolvimento não devem controlar questões correlatas a sua própria sexualidade. A sociedade brasileira se depara, portanto, com um problema sério, porque ao mesmo tempo em que tal posição dominante não colabora no apro fundamento de um debate mais específico sobre essa questão (na qual inclui necessariamente o debate de gênero), contribui para inibir uma atitude de maior autonomia dos(as) adolescentes em relação a sua saúde sexual e reprodutiva, bem como em relação à livre expressão da sexualidade. Como coloca Ventura (2002):

É preciso então ter consciência de dois aspectos que permeiam a relação entre a cultura, a sociedade e o Direito. O primeiro é perceber que o Direito é um reflexo direto da cultura, e a elaboração das leis é influen ciada pela história da sociedade, incluindo aí os valores nela dominantes. Contudo, lutar para melhorar a sociedade é um dever de todas as pessoas que não estão satisfeitas com a situação em que vivem.

Nesse sentido, para que os jovens e adolescentes tenham condições de lutar, antes necessitam conhecer seus direitos sobre sexualidades e reprodução. Cabe aos jovens e adolescentes se organizarem, tornarem-se sujeitos da transformação social e se expressarem sobre como desejam ser tratados, mas, para isso, é fundamental que a educação propicie adequada in(formação) nessa direção. No entanto, de que forma as categorias sociais de gênero e sexualidades vêm sendo inseridas na Política Educacional brasileira? As condições para que haja efetiva in(formação) escolar são favoráveis?

A inserção da Educação Sexual nas Políticas Educacionais: alguns esclarecimentos

Desde a década de 1970, os debates em torno da inclusão de temas na educação escolar relacionados ao corpo e aspectos que o acompanham durante seu desenvolvimento, como a sexualidade, gênero e sexualidades10, têm-se fortalecido, principalmente, por se tratarem de questões evidenciadas pela transição de fases explícitas que os corpos de alunos e alunas vivenciam durante a escolarização. Dessa forma, tais questões relacionadas a essa transição do corpo, assim como de sua descoberta, fazem-se eminentes no ambiente escolar.

A curiosidade despertada, gradativamente, por crianças e jovens sobre esses temas se torna visível cotidianamente nas escolas e, muitas vezes, acarreta implicações no trabalho pedagógico que nessas é desenvolvido. Assim, a inserção do tema sexualidade no currículo das escolas ocorreu na medida em que sua necessidade de abordagem foi constatada, com grande influência do contexto histórico.

Discussões e trabalhos desenvolvidos nas escolas sobre sexualidade estão registrados na história nacional desde a década de 1920 (BRASIL, 1998), porém, as articulações para inserção desse tema no currículo foram desenvolvidas somente a partir dos movimentos sociais, com maior veemência após o período da Ditadura Militar e redemocratização do país. A partir da década de 1960, sob a influência das denominadas revoluções comportamentais, sexuais e estético-culturais (BORELLI et al., 2008) e das reivindicações dos movimentos sociais emergentes naquela época, primordialmente pelo Movimento Feminista, despontou-se um aumento dos trabalhos sobre sexualidade nas escolas junto a uma literatura a respeito do papel da educação diante das demandas sexuais de crianças e jovens, sob o nome de Educação Sexual.

Mais adiante, já na década de 1980, tais demandas sexuais se agravaram, principalmente, pelo advento de pandemia do HIV/Aids, fato que intensificou a preocupação com a incidência das doenças sexualmente transmissíveis na população em geral. Assim, pelo aspecto formativo da escola, a Educação Sexual passou a ser fomentada nos meios normativos educacionais, isto é, “oficializada”, visando inserção de discussões e de trabalhos sobre sexualidade nas escolas, os quais se ativeram, principalmente, à prevenção da gravidez precoce e da infecção pelo HIV/Aids e demais doenças sexualmente transmissíveis.

Assim, conforme os escritos de Furlani (2005, p. 195), a Educação Sexual no currículo escolar brasileiro foi:

[...] tornada oficial e institucionalizada com o lançamento dos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), do Ministério da Educação, no ano de 1997. Com os PCNs, temáticas extra-disciplinares consideradas de relevância na educação da criança cidadã (preconizada e idealizada pela política educacional brasileira de inclusão) foram reunidas nos chamados Temas Transversais: ética, pluralidade cultural, meio ambiente, saúde, estudos econômicos e orientação sexual (FURLANI, 2005, p. 195).

Apesar do uso predominante do termo Educação Sexual para se referir ao trabalho sobre sexualidade na escola, ao final da década de 1990, quando finalmente ocorreu a institucionalização desse tema, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) houve uma mudança terminológica, de Educação para Orientação Sexual. A intenção de mudança no texto oficial foi, segundo Furlani (2005, p. 196), a de explicar: “[...] o desgaste pedagógico de uma ‘Educação Sexual’, até então, evidenciada por um caráter excessivamente biológico, médico, higienista e moralista”. Porém, tal caráter essencialista ainda assim se manteve no próprio documento e na representação social do termo sexualidade.

A professora Jimena Furlani (2005) chama a atenção ao fato de que os termos Educação Sexual e Orientação Sexual não devem ser utilizados como sinônimos, uma vez que possuem significados diferentes11. Ao realizar a troca terminológica entre os termos se vê que os PCNs instauraram uma determinada confusão pelo uso de “Orientação Sexual”, já que esse termo se caracterizou, mais adiante, em outro sentido: além de se referir à orientação dada por educadores e educadoras na escola sobre sexualidade, posteriormente, foi adotado para representar a categorização do desejo sexual humano, com destaque nas seguintes orientações sexuais: heterossexualidade, homossexualidade e bissexualidade12.

Enquanto a sexualidade é compreendida hoje de forma mais ampla e abrangente, referindo-se, conforme entendimento, a todo o universo sexual que cerceia o corpo e as inúmeras relações e fenômenos intra e extracorpóreos de sensações e de pulsões sexuais, a Educação Sexual (denominada Orientação Sexual pelos PCNs) institucionalizada pelos PCNs, por sua vez, diz respeito às discussões desencadeadas na escola, exclusivamente, sobre a heterossexualidade. Apesar das doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) serem passíveis de transmissão por quaisquer relações sexuais, que não sejam necessariamente heterossexuais, ao destacar a gravidez precoce juntamente com a prevenção das DSTs, os PCNs envolvem fatores diretamente relacionados apenas à relação heterossexual reprodutiva. Embora a proposta do documento seja realizável sob propósitos plausíveis, esse exclui as demais formas de se vivenciar a sexualidade humana.

Assim, há de se reconhecer que a proposta dos PCNs é pioneira e, portanto, de grande importância para inserção de discussões sobre sexualidade na educação brasileira. No entanto, por outro lado, evidencia-se nos dias de hoje como uma proposta distante em vários aspectos que permeiam o tema, em primeiro lugar em função da renovação teórica e conceitual que esse vem sofrendo ao longo do tempo e, em segundo lugar, devido à defesa de uma abordagem biologizante e higienista, a ponto de incluir conotações incertas e normativas para a formação ofertada na escola:

Se por um lado a ideia de serem visibilizadas outras maneiras de expressão do desejo sexual pode representar avanços e vitórias em um terreno ainda ‘pantanoso’, o modo como o assunto está sendo abordado recai novamente em mecanismos de regulação da sociedade. Esses mecanismos ainda mantêm a heterossexualidade como compulsória tratando, por exemplo, de ‘transexualismo’ e ‘hermafroditismo’ com sufixos que denotam doença, em documentos federais (PALMA et al., 2015, p. 734).

Por muito tempo, a Educação Sexual foi tratada apenas como um momento para se discutir a reprodução humana e outros aspectos que dizem respeito à sexualidade - heterossexual reprodutiva - na escola, e com o objetivo de prevenir a gravidez precoce e a infecção de doenças sexualmente transmissíveis. Isso ocorreu pelo fato de que, conforme Ribeiro (2005, p. 16) afirma, a sexualidade a que essa educação/orientação escolar se referiu é, em sua essência: “[...] biológica, e tem como objetivo primordial - aqui com o significado de fonte, princípio, origem - a perpetuação da espécie”. A compreensão de sexualidade se evidencia, pois, limitada e estrita a determinado tipo de desejo, no caso, a heterossexualidade. Partindo desta compreensão, Ribeiro (2005, p. 16) diz que: “[...] o ser humano, com o uso da razão e das outras faculdades mentais, pode ir além do impulso biológico e usar a manifestação da sexualidade para outros fins”, pressupondo-se que a prática homoerótica, a relação sexual entre pessoas do mesmo sexo, assim como de outras manifestações (orientações) sexuais, são controláveis e/ou voluntárias, e não inerentes ao ser humano.

A partir da renovação teórica e conceitual de (e sobre) sexualidade, com o tempo outros objetivos e enfoques foram atribuídos a essa perspectiva de educação, acompanhando, assim, as várias propostas de educação instituídas em sua sequência. Nesse sentido, ainda segundo Palma et al. (2015, p. 737), sobre essa primeira proposta contida nos PCNs:

A temática da sexualidade, que poderia ser trabalhada através da estimulação da reflexão sobre uma “norma” heterossexual existente em nossa sociedade, que elimina a existência de uma diversidade de relacionamentos, não é mencionada. Quando se trata de diversidade nos PCNs, o que aparece é a palavra como sinônimo de “múltiplas facetas” e nunca relacionada à sexualidade. Homossexualidade vai aparecer de modo rápido e vinculado com a ideia de que não devemos ter preconceitos nem discriminar o diferente. Em nenhum momento aparece a necessidade de promover momentos de reflexão para que possa ser pensado o desejo direcionado para a pessoa do mesmo sexo. Muito menos que existem diversas maneiras de se constituir uma família, e dentre elas famílias constituídas por dois pais ou duas mães.

Se, de um lado, em 1970 se cogitava a formação de uma Educação Sexual, e essa veio a ser contemplada nas décadas seguintes pelo currículo escolar, de outro lado, na mesma época, um campo de estudos, que ainda se afirmava, se apropriava e trabalhava no desenvolvimento de uma categoria analítica-social, a qual abarca vários aspectos pertinentes à educação tratada neste texto, principalmente, diante das demandas de crianças e jovens sobre a sexualidade e seu próprio corpo: categoria denominada, então, de gênero.

Gênero foi designado como uma categoria social que distingue os caracteres sociais, construídos cultural e historicamente, daqueles caracteres biológicos, pertencentes ao aparato corpóreo-biológico das pessoas. Tem suas origens na Antropologia da década de 1930 e 1940 (SUÁREZ, 1995) e, mais adiante, apoiou-se na explicitação da ideia principal de Simone de Beauvoir, que escreveu em 1949, no livro O Segundo Sexo: “Não se nasce mulher, torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade [...]” (BEAUVOIR, 1975, p. 9).

O conceito de gênero foi assentado apenas na década de 1970, em articulações com o Movimento Feminista, momento em que a categoria foi adotada pelas teóricas feministas e, posteriormente, pelo Movimento LGBTQIA+. Vários campos de estudos acadêmicos foram estabelecidos e a categoria passou a ser utilizada para analisar e explicar a situação subalterna que os grupos/sujeitos protagonistas desses movimentos permaneceram durante a história (MACIEL; SILVA; BRABO, 2017). Gênero, portanto, se encontra relacionado à sexualidade, porque ambos os termos tratam de categorias que constituem a identidade humana. Referem-se a duas dimensões identitárias dialógicas expressas pelo corpo e que, ao mesmo tempo, envolvem vários aspectos que as constituem.

A dimensão da sexualidade diz respeito à orientação (do desejo) sexual, isto é, a “tipificação” do desejo tratando da ordenação/organização da manifestação do desejo sexual de acordo com o direcionamento à pessoa de um determinado gênero. Diz respeito ainda ao:

[...] erotismo- capacidade humana de experimentar respostas subjetivas que evocam os fenômenos físicos percebidos enquanto desejo sexual, excitação sexual e orgasmo -,vínculo emocional- estabelecimento de laços com outros seres humanos que se constroem e sem mantém mediante emoções -, atividade e práticas sexuais- expressão em que o componente erótico é evidenciado [...]. Dessa forma, a sexualidade é experienciada ou expressada em pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, atividades, práticas, regras, relacionamentos (TONIETTE, 2004, p. 1, grifos do autor).

A dimensão de gênero, por sua vez, inclui aspectos como: a identidade de gênero, os papéis de gênero e as relações de gênero. A identidade de gênero é definida como a maneira com que uma pessoa se reconhece e se identifica como sujeito. Foi histórica, social e culturalmente estabelecida em um binarismo de gênero (homem/mulher), de acordo com o sexo biológico (macho/fêmea), porém, pelas teorizações de gênero (principalmente, aquelas sob um viés pós-estruturalista), surge a ideia de uma pluralidade identitária: antes se fazia referência à feminilidade e masculinidade, e agora se faz referência às feminilidades e masculinidades (SILVA; BRABO, 2016).

Os papéis de gênero são um: “[...] conjunto de comportamentos e condutas que foram reproduzidos por um longo período na história da humanidade pelas mulheres e pelos homens, compreendidos como naturais, adequados, próprios ou desejáveis para uma pessoa de acordo com seu sexo” (SILVA; BRABO, 2016, p. 131). As relações de gênero, por fim, referem-se ao: “[...] conjunto de relações sociais - as maneiras como as pessoas, grupos e organizações estão conectados e divididos” (CONNELL; PEARSE, 2015, p. 155).

O conceito de sexualidade, ao contrário de como é trazido por Ribeiro (2005), não se limita mais à reprodução ou à “perpetuação” da espécie. A palavra sexualidade - referente à heterossexualidade e aspectos que a definem, como a reprodução se expandiu, pois, para sexualidades, conceito que agora compreende as inúmeras formas de expressão e de vivência da sexualidade humana, inserindo-se as ideias de diferença e de diversidade. A Educação Sexual, assim, inclui os referidos novos objetivos e enfoques, ampliando seu atendimento e propósitos na educação escolar.

É nesse sentido que nasce, na abordagem da sexualidade na escola, outra perspectiva, um novo olhar: de uma educação voltada para a reflexão sobre 1) o corpo e seus demais aspectos; sobre 2) os significados instituídos ao tema ao longo da história; sobre 3) a promoção de direitos sexuais e reprodutivos; e sobre a 4) promoção da dignidade humana. Nasce uma perspectiva voltada para os direitos das pessoas, historicamente hostilizadas, pela sua orientação sexual e identidade de gênero destoante daquela considerada normal. Esse novo olhar se concilia, então, a outras propostas de educação, como a educação em direitos humanos13, que integra a sexualidade como uma das temáticas a serem desenvolvidas no trabalho pedagógico, não a partir da compreensão biológica/normativa, mas a partir do princípio da diversidade humana, das inúmeras maneiras de se viver a própria sexualidade, gênero e exploração/descoberta do próprio corpo.

Atual cenário de inserção (e exclusão) de gênero e sexualidades na agenda das Políticas Educacionais

Embora a institucionalização da Educação Sexual, bem como de outras perspectivas de educação voltadas para a diversidade humana, tenha sido contemplada nas últimas décadas pelas Políticas Públicas Educacionais brasileiras, vista desde a proposta pioneira dos PCNs até a educação em Direitos Humanos, observa-se, hoje, um panorama nocivo em que as Políticas Públicas têm se configurado em resposta à tal institucionalização. A interpelação do adjetivo nocivo para o referido panorama assume, aqui, o sentido de causar dano, prejuízo ao que se havia conquistado nas Políticas Públicas Educacionais e, por conseguinte, na formação oferecida pela educação e pelo currículo formal do país.

Por um lado, vê-se que as articulações entre a atuação dos movimentos sociais (datada desde a segunda metade do século passado), as teorizações acadêmico-científicas sobre temas pertinentes a tais movimentos e entre as mobilizações no meio normativo (inclusive no que diz respeito à esfera educacional), vêm sendo favoráveis no processo de implementação de Políticas Públicas que abrangem as demandas reivindicadas. Por outro lado, assiste-se à inquietude daqueles descontentes e discordantes para com esses acontecimentos. Enquanto os avanços na educação vêm sendo celebrados, suas consequências não estão agradando toda a população, pois:

[...] na medida em que se ampliaram os impactos desta formação na sociedade brasileira, também se ampliaram as reações a este movimento, que passaram da mera indisposição de um ou outro professor quanto ao conteúdo trabalhado a efusivas manifestações de parlamentares em plenário e mesmo à elaboração de diversos projetos de lei coibindo e até buscando punição de caráter penal contra quem, na escola, se vinculasse a tais temas (DESLANDES, 2015, p. 15).

Apesar da manifestação dos PCNs, na década de 1990, provocada por pressões populares advindas dos movimentos sociais e do meio acadêmico, naquela época já se pôde notar determinados empecilhos para a concretização dos pressupostos e orientações trazidos pelo documento, conforme ressaltam Perovano e Sousa (2016, p. 6-7) sobre a “[...] resistência dos professores em abordar os temas sexualidade e gênero, alegando que essa é uma função da família, além dos [...] pesquisadores da área acadêmica [que] pautaram suas críticas no enfoque biologizante do material em relação a sexualidade e ao gênero”. Tratam-se de reações já esperadas de uma hegemonia popular que apresentou, historicamente, um tratamento excludente e discriminatório para com esses temas e tudo o que representam.

Com o passar dos anos, outras reações foram sendo constatadas a respeito das demais Políticas Públicas desenvolvidas, gradativamente, na sequência dos PCNs, como ocorreu com o Programa Brasil sem Homofobia (JUNQUEIRA, 2009) criado no ano de 2004, em conjunto com a Secretaria Especial de Direitos Humanos e com o Movimento LGBTQIA+ brasileiro, “[...] visando garantir a cidadania da comunidade LGBTT no Brasil através da criação de políticas afirmativas dos direitos dos homossexuais” (ROSSI, 2008). No caso, a maior aversão da sociedade civil foi direcionada ao Projeto Escola sem Homofobia, enquanto parte das ações do Programa Brasil sem Homofobia. A manifestação popular desse momento serviu de anúncio para o fatídico panorama que as Políticas Públicas têm testemunhado.

O referido projeto contou com a elaboração de cadernos didáticos para uso em sala de aula, intitulados de Kit de Combate à Homofobia nas Escolas (OLIVEIRA JÚNIOR, 2017), auxiliando o trabalho pedagógico de abordagem e discussão do tema na escola. Porém, antes que pudessem chegar às escolas, os cadernos foram vetados pelo Congresso Nacional, sob influência de grupos religiosos, em sua maioria. Na época, uma campanha foi elaborada para difamar e deslegitimar os cadernos, nomeando-os de “kit gay” e enunciando que seriam responsáveis pela estimulação do “homossexualismo” e da “promiscuidade”, utilizando-se propositalmente o sufixo “-ismo” na palavra homossexualidade, denotando-a como doença, perversão.

Iniciava-se, ali, a formação de um movimento nada positivo no que concerne à consagração de uma sociedade mais justa e favorável ao cumprimento e promoção dos direitos sexuais, reprodutivos e da dignidade humana. Pelo contrário, tal movimento, aqui citado como o conjunto de mobilizações distribuídas sistematicamente pelo país, representa retroação de Políticas Públicas e de representação social sobre gênero e sexualidades.

Já em 2014, outro episódio surgiu mediante a atualização do Plano Nacional de Educação (PNE) para o decênio 2014-2024, documento promulgado pela Lei nº 13.005 de 25 de junho de 2014: uma de suas metas foi severamente atacada pelo movimento reacionário, qual seja, “[...] a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual” (BRASIL, 2010, p. 1, grifos nossos).

A simples menção gerou um debate em âmbito nacional, retomando o mesmo cenário político e social de anos antes, quando do Projeto Escola sem Homofobia, só que agora ainda mais acalorado e sob alianças entre políticos e (grupos) religiosos, firmadas de forma mais veemente e autodeclarada. Nunes (2015, p. 1243) relembra que grupos religiosos estiveram presentes em massa nas votação e discussões sobre o documento e promoveram uma campanha de difamação e de divulgação de concepções deturpadas sobre os temas. Grupos esses firmemente:

[...] contrários à inclusão de gênero e dos direitos LGBT presentes à sessão da Comissão especial sobre o PNE, da Câmara dos Deputados que apreciou e votou o projeto de lei, portavam cartazes de explícito repúdio à ‘ideologia de gênero’. Alguns deles diziam: ‘Gênero não!’ ou ‘Não à ideologia de gênero!’.

Após o conturbado episódio, prescindivelmente prolongado, o texto final do documento foi reformulado, em redação genérica, prevendo na mesma meta “[...] a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação” (BRASIL, 2014, p. 43). Assim, ficou estipulado que os Estados e Municípios optariam por contemplar ou não os termos reclusos do PNE em seus Planos de Educação locais.

Dessa forma, a supressão dos termos gênero e orientação sexual por meio de uma redação mais genérica suscitou para a sociedade, em geral, a impressão de que as instituições de ensino estão proibidas de trabalharem e intimadas a censurarem os temas, ainda que ambos estejam incluídos como formas de discriminação pelos aspectos referentes aos preconceitos e violências que os envolvem: a homofobia, a transfobia e o sexismo. De qualquer forma, dependendo da leitura - tendenciosa - esses aspectos podem não ser considerados como formas de discriminação, seja por desconhecimento ou, propriamente dito, implicitação demasiada no texto para restrição dos temas propositalmente.

Cabe, também, referenciar a narrativa elaborada por tal movimento intitulada “ideologia de gênero”, a qual é utilizada para se referir aos pressupostos trazidos por gênero, porém analisada por Furlani (2016) como uma deturpação dos estudos e teorizações de gênero, criada por setores da Igreja Católica - e continuada pela Evangélica -, pelo Movimento Pró-Vida e Pró-Família e tencionada para ridicularizar os campos de estudos dedicados aos gênero e sexualidades e às pessoas que se amparam nesses, conforme discutido anteriormente em outras propostas de análise da conjuntura (SILVA; BRABO; MORAIS, 2017; SILVA; MACIEL, BRABO, 2019), com tematizações e recortes diferentes ao feito aqui.

Nesse sentido, em proveito dos males causados por esse enunciado questionável (ideologia de gênero) e pela repercussão do movimento contra gênero e sexualidades, pouco depois do PNE, aprovou-se na Câmara dos Deputados outro documento intitulado Estatuto da Família, o qual “[...] postula que família se define pela união de um homem com uma mulher por meio de casamento ou comunidade formada por qualquer um dos pais com filhos” (SILVEIRA, 2016, p. 21), configurando-se como um ato de contestação à aprovação da união homoafetiva, no ano de 2011, e conversão para casamento em 2013. Tal documento resgata o “[...] modelo da família patriarcal, formada por um homem e uma mulher” e opõe-se à “concretização da educação na perspectiva da igualdade de gênero” (SILVA; BRABO, 2016, p. 129).

As ações retrógradas apenas se mantêm em ascendência, e agora, contemporaneamente a esse escrito, vê-se que a Educação Sexual, a educação em direitos humanos e outras propostas que integram os temas então repudiados se restringem cada vez mais, pois como Lorenzi e Gagliotto (2016, p. 5) expõem:

[...] vivenciamos a construção de um novo documento, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Neste documento, observamos que a Educação Sexual, contemplada nos PCNs, como um dos temas transversais, intitulada de “orientação sexual”, atualmente, não é mensurada entre os chamados temas integradores do novo documento, ou seja, foi suprimida da BNCC. Os temas integradores, em substituição aos temas transversais, contemplam aspectos para além da dimensão cognitiva, dizem respeito a questões que atravessam as experiências dos sujeitos em seus contextos de vida, dando conta da formação política, ética e identitária dos estudantes.

Por último, sobre o desafio do presente momento, Klein (2015, p. 154) provoca com as seguintes indagações: este momento histórico se trata de um “[...] retrocesso na BNCC em relação ao que já foi incluído nos Parâmetros Curriculares Nacionais há dezoito anos?” e, talvez, vivencia-se um retrocesso já determinado como um “reflexo do embate ideológico ocorrido na elaboração e na aprovação dos Planos de Educação nos diferentes níveis em 2014 e 2015?”. Sobretudo, resta levar em consideração que a necessidade de continuação na luta independe das possíveis respostas.

Considerações Finais

Como foi possível verificar nos escritos de César (2008), há muito tempo, quando da instauração da sociedade disciplinar (que passou a se preocupar com a educação escolar), surgiu a noção de investimento nos corpos, por meio de políticas de higienização, isto é, a noção de controle da sexualidade para que houvesse declínio de crescimento populacional mundial. Que mudanças significativas em relação a esse momento histórico se podem observar nos dias de hoje? Constatou-se, por meio deste breve estudo, que o contexto contemporâneo da sociedade brasileira não se afasta totalmente do momento citado.

E desse questionamento inicial sobre a influência do contexto sociocultural atual, no processo de reconhecimento da dignidade e diversidades humanas, fio-condutor das reflexões aqui postas, pode-se apenar inferir sobre uma conjuntura que enfrenta desafios, cada vez mais verossímeis, diante de uma agenda progressista que, em função de alguns de seus êxitos nos últimos anos se submete a constantes e deliberados ataques, o que ameaça a continuidade dessa agenda ou, até mesmo, os êxitos com essa conquistados.

Ou seja, ao mesmo tempo em que se tem avançado quanto à implementação de Políticas Públicas Educacionais devido às pressões dos movimentos sociais e do meio acadêmico, tem-se retroagido por pressões de movimentos reacionários. Triste é esse fato considerando-se a lógica que permitiu a estrutura deste texto: jovens e adolescentes são sujeitos de direitos em processo de construção, que necessitam da educação escolar para serem in(formados) sobre seus direitos sexuais e reprodutivos, e a Política Educacional deve (ou deveria) ir ao encontro dessa demanda. Triste é esse fato se pensar, ainda, em um novo questionamento decorrente do primeiro: como os jovens e adolescentes terão condições de se reconhecerem como diferentes e de respeitarem a diversidade humana, constituindo seu “eu” em um contexto sociocultural tal qual o dos dias de hoje?

*Este texto é resultante de uma pesquisa desenvolvida em nível de Estágio Pós-Doutoral junto à Universidade de Valência (UV), Espanha, ao longo do ano de 2018, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) - Processo n.º 2017/21711-3.

1A terminologia minorias se apresenta ambígua e, por isso, com histórico muito conturbado na literatura pertinente, visto que frequentemente deixa de exprimir a quantificação numérica evocada pela palavra para se referir à desvalorização direcionada por grupos dominantes a outros grupos, atribuindo a estes uma importância menor, secular ou nula. Sobre isso, consultar Louro (2008) e Jorge (2013).

2A pesquisa tem como título Mediação, Direitos humanos, Gênero e Cidadania: políticas educacionais, concepções e ações em escolas públicas estaduais paulistas e espanholas e vincula-se à FAPESP pelo processo de número 2017/21711-3 na modalidade de Programas Regulares de Bolsas no Exterior em Fluxo Contínuo.

3Chama-se aqui caracteres sexuais secundários, com relação aos meninos: o surgimento de pelos nas regiões axilares, inguinais e torácicos; aumento em volume dos testículos e tamanho do pênis; crescimento de pelos faciais; oscilação com posterior entonação da voz; alargamento da omoplata; desenvolvimento da massa muscular; aumento de peso e estatura; início da produção de espermatozoides. Já com relação às meninas: expansão óssea da cintura pélvica; princípio do ciclo menstrual; surgimento de pelos nas regiões axilares e inguinais; depósito de gordura nas nádegas, nos quadris e nas coxas; desenvolvimento das mamas.

4Ocorrem variações determinadas no processo de maturação biológica devido a fatores diversos, mas a puberdade é comum a todos os seres humanos, por isso se pode dizer que são de caráter universal.

5Vigilância de Violências e Acidentes. Trata-se de um sistema criado por iniciativa do Ministério da Saúde (MS) para monitorar a ocorrência de violências e acidentes no país e gerar dados que podem servir para a elaboração de novas políticas públicas.

6Os números são atualizados a cada 20 segundos no site do IBGE. Informação disponível em: <https://www.ibge.gov.br/>. Acesso em: 21 jun. 2019.

7Nessa época, surgiram estudos sobre as formas de se reduzir a fertilidade, que dão origem aos anticoncepcionais. A chegada dos métodos contraceptivos, que poderiam ser instrumentos de libertação feminina, já que separaram a atividade sexual da reprodução, passaram a ser vistos como um dispositivo de controle.

8Disponível em: <http://soscorpo.org/>. Acesso em: 15 jun. 2019.

9Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990.

10Gênero e sexualidades são categorias que passaram a ser discutidas somente após a sexualidade. A fim de expressar as diversas possibilidades de vivência da sexualidade, nos dias atuais, a palavra sexualidade é utilizada por muitos(as) estudiosos(as) no plural (sexualidades), evidenciando o fator da diversidade e da pluralidade no que diz respeito à expressão e vivência da sexualidade humana.

11Foge do escopo deste texto retratar as diferenças epistemológicas, teóricas e etimológicas contidas nos termos, preferência de uso por parte de autoras e autores do campo e sua trajetória de adoção nos documentos oficiais. Para aprofundamento, ler Furlani (2005) e Fiorini (2013).

12Tratam-se, respectivamente, do desejo sexual por uma pessoa do gênero oposto, do mesmo gênero, e por ambos os gêneros.

13Proposta oficializada com o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos do ano de 2006 - documento atualizado em 2013 (BRASIL, 2007; 2013).

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Recebido: 11 de Março de 2019; Revisado: 21 de Junho de 2019; Aceito: 24 de Junho de 2019; Publicado: 25 de Julho de 2019

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