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Práxis Educativa

versión impresa ISSN 1809-4031versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.15  Ponta Grossa  2020  Epub 04-Jun-2020

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.15017.035 

Artigos

Repensar o conceito de autonomia para uma sociologia dos bens simbólicos*

Repenser le concept d’autonomie pour la sociologie des biens symboliques

Rethinking the concept of autonomy for the sociology of symbolic goods

Repensar el concepto de autonomía para una sociología de los bienes simbólicos

**É diretora de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), diretora de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e membro da Academia Europeae. Produz investigações sobre sociologia dos intelectuais, sociologia da cultura e da literatura, sociologia da tradução e das trocas culturais internacionais, bem como história social das Ciências Humanas e Sociais. E-mail: <sapiro@ehess.fr>.


Resumo:

O que se entende por “autonomia” nas ciências sociais? Esse conceito tem múltiplos significados, fato que chega, às vezes, a motivar confusões no seu uso. Tais significados referem-se a tradições distintas, que vão desde a noção de autonomia política, que remonta à autonomia das cidades da Grécia Antiga, até a ideia de autonomia do indivíduo, que se desenvolveu com a ética protestante e o pensamento humanista, assumindo, posteriormente, o sentido de autonomia da razão na formulação teórica de Kant. Esse conceito está, igualmente, no centro das reflexões sociológicas que tratam das condições de produção e circulação dos bens simbólicos, sobre as quais este artigo se concentra, pois analisa a relação entre esses bens e as condições econômicas, sociais e políticas, mas sem fazer uma abordagem determinista. No âmbito da sociologia, esse conceito ganha visibilidade a partir de três tradições que são utilizadas sistematicamente a partir dos anos 1950-1960: a sociologia das profissões, a teoria do reflexo de origem marxista e a teoria dos campos (Item 1). Apesar desses usos diferenciados e parcialmente incompatíveis, ainda há espaço para cruzamentos e aproximações possíveis entre tais abordagens (Item 2), o que permite propor-se uma síntese com o objetivo de analisar a produção e a circulação dos bens simbólicos (Item 3).

Palavras-chave: Sociologia dos bens simbólicos; Conceito de autonomia; Sociologia das profissões; Teoria do reflexo; Teoria dos campos

Résumé:

Qu’entend-on par “autonomie” en sciences humaines et sociales? Ce concept a des significations multiples qui entraînent parfois des confusions dans son maniement. La raison en est qu’elles renvoient à des traditions distinctes, de la problématique de l’autonomie politique, qui remonte à l’autonomie de la cité grecque antique, à celle de l’autonomie de l’individu, qui se développe avec l’éthique protestante et la pensée humaniste, et que Kant théorise sous le concept d’autonomie de la raison. Ce concept est également au cœur des réflexions sociologiques sur les conditions de production et de circulation des biens symboliques, sur lesquelles on se concentrera ici: il sert à analyser le rapport entre ces biens et les conditions économiques, sociales et politiques, sans les y réduire. Mais là encore, ses acceptions varient entre les trois traditions qui en ont fait un usage systématique à partir des années 1950-1960, et où il a été discuté 2: la sociologie des professions, la théorie du reflet marxiste, et la théorie des champs (1). Nonobstant ces usages différenciés et partiellement incompatibles, il existe des zones de recoupement et des articulations possibles entre ces approches (2). Elles permettent de faire des propositions en vue d’une synthèse raisonnée de ces usages pour l’analyse sociologique de la production et de la circulation des biens symboliques (3).

Mots-clés: Sociologie des biens symboliques; Concept d'autonomie; Sociologie des professions; Théorie du reflet marxiste; Théorie des champs

Abstract:

What is meant by “autonomy” in the human and social sciences? The concept’s multiple meanings make it susceptible to mishandling. These meanings refer to distinct traditions, from the theme of political autonomy, which can be traced back to autonomy in Ancient Greek cities, to that of individual autonomy, a concern that grew along with the development of the Protestant ethic and humanist thought, as theorized in Kant’s ‘autonomy of reason.’ Autonomy also holds a place of choice in sociological reflections on the conditions of production and circulation of symbolic goods, which will be the focus of this paper: it is used to analyse the relationship between these goods and economic, social, and political conditions, without reducing goods to conditions. However, here too, meanings vary between the three strands of research that have systematically used and discussed it 2 since the 1950-1960s: the sociology of professions, Marxist reflection theory, and field theory (1). Despite these differentiated, partly incompatible uses, there are overlap areas and possible bridges to cross between these approaches (2). They suggest proposals for a reasoned synthesis of these uses in sociological analysis of the production and circulation of symbolic goods (3).

Keywords: Sociology of symbolic goods; Concept of autonomy; Sociology of professions; Marxist reflection theory; Field theory

1. Usos e significados do conceito de autonomia no que diz respeito à produção e à circulação dos bens simbólicos

Mais próximo do sentido político da sociologia das profissões, em que designa a forma de organização das profissões liberais que têm sua autonomia “técnica” e organizacional (controle dos recrutamentos e das práticas) reconhecida pelo Estado (Item 1.1), o conceito de autonomia na tradição marxista constitui uma correção à teoria que vê nas obras de arte, assim como na religião e no Estado, uma superestrutura que reflete as relações sociais de produção (Item 1.2), enquanto na teoria dos campos se trata de uma autonomia (relativa) dos universos de produção em relação às restrições externas, políticas, religiosas e econômicas (Item 1.3).

Fonte: Galerie Le Minotaure, Martin e Adam Hoffmeister.

Adolf Hoffmeister, Franz Kafka, 1966 

1.1 Noção de autonomia na sociologia das profissões

O uso que a sociologia das profissões tem feito do conceito de autonomia está associado à sua acepção política de autodeterminação. Esse uso retoma a definição de autonomia profissional, a saber, o direito e o privilégio concedidos por uma entidade governamental a uma classe de profissionais, assim como a prerrogativa de prestar serviços que é conferida a cada um de seus membros. Além de se referir ao exercício da profissão, autonomia diz respeito à organização do grupo profissional, seu recrutamento, suas regras de funcionamento, sua ética, sua disciplina interna. Para as profissões organizadas, a autonomia resulta de uma delegação por parte do Estado às instâncias representativas, em particular do poder de decisão e intervenção requerido para definir as fronteiras de um grupo, a inclusão de novos membros e a exclusão ou a sanção daqueles que violam as regras da deontologia profissional.

A sociologia das profissões anglo-americana define essa autonomia como uma das características próprias às profissões, universalizando os casos estadunidense e britânico, de tradição liberal, nos quais ela é codificada pela lei (para os juristas e os médicos). Esses privilégios foram concedidos, em contrapartida às contribuições desses profissionais ao chamado bem público. Em seu estudo sobre a medicina, Eliot Freidson (1970, p. 71-72) explica que apenas as profissões liberais obtiveram direito de controlar seu próprio trabalho e de declarar ilegítimas as avaliações externas. Segundo Magali Sarfatti Larson (1977, p. xii), “essa autonomia distintiva é, no entanto, apenas técnica e não absoluta. As profissões [liberais] dependem, em última instância, do poder do Estado, e elas emergiram, na sua origem, graças à ajuda de poderosos protetores”.

A história das profissões mostra, todavia, que o exercício dessas atividades tomou diferentes formas nos estados burocráticos e autoritários: nos impérios francês, alemão e habsburgo, uma parte dos serviços intelectuais, tais como o ensino, eram equiparados à função pública, o que permitia libertá-los das restrições do mercado e do clientelismo, impedindo assim que os interesses particulares, notadamente os econômicos, prevalecessem sobre o interesse geral, embora sem deixar de controlá-los no plano ideológico (SIEGRIST, 2004). Essa funcionarização garantia aos especialistas um monopólio, mas subordinava-os à hierarquia. A situação dos docentes na França é semelhante, mas um dispositivo derrogatório os subtrai à apreciação hierárquica em favor de uma avaliação feita por seus pares - sinal da autonomia que lhes foi concedida -; esse procedimento prevalece, também, para o recrutamento de novos integrantes, outro indicador de autonomia concedida pelo Estado. O modelo dos oficiais ministeriais, como notários ou tabeliães e leiloeiros, existente na França, combina autonomia relativa e controle do Estado (QUEMIN, 1997).

Tal perspectiva sócio-histórica comparada (MACDONALD, 1995) convida a inscrever o reconhecimento da autonomia profissional no quadro da história do “desenvolvimento profissional”, tal como concebida por Andrew Abbott (1988): uma história que inclui as lutas da concorrência entre profissões para obter o monopólio de domínios de competência reconhecidos pelo Estado (jurisdição), que está na origem da “divisão do trabalho especializado”.

A abordagem comparativa (entre profissões e países) trata, também, da questão da circulação do modelo profissional. Por exemplo, na França, a organização profissional foi importada do mundo anglo-americano durante a Terceira República (1870-1940), no contexto da liberalização (uma lei que autorizava a existência dos sindicatos foi votada em 1884, e as associações foram reconhecidas por lei em 1901) e da laicização, na qual via-se que a religião seria suplantada pelo nacionalismo como vetor identitário e pela ciência como fonte de conhecimento e de verdade (SAPIRO, 2006). Naquela época, os médicos adquiriram uma autoridade social sancionada pelo Estado, notadamente frente ao clero (LÉONARD, 1987, p. 5-19). Na França daquele período, outras profissões se organizaram, particularmente os jornalistas (DELPORTE, 1998) e os engenheiros-consultores (HENRY, 2012).

O grau de autonomia concedido às profissões varia de acordo com os regimes. Os mais autoritários tendem a reduzi-la ao máximo possível, como ilustra o caso das profissões de engenheiro e professor no período do nazismo (JARAUSCH, 1990), ou o dos médicos no regime de Vichy (MUEL-DREYFUS, 1996, p. 301 et seq.).

No seu estudo sobre a medicina, ao analisar os fundamentos da autonomia profissional, Eliot Freidson sugeria que mais do que uma característica intrínseca, ela deveria ser vista como resultado de um processo, uma conquista que permite aos profissionais adquirirem certa independência em relação à ideologia das elites dominantes, mas que não é uma aquisição definitiva e pode ser perdida a qualquer momento, pois trata-se de uma autonomia concedida pelo Estado. Esse autor distingue autonomia técnica, fundada em saberes esotéricos ou complexos, de autonomia ligada às condições socioeconômicas. A primeira delas constitui um critério de diferenciação entre as profissões liberais e os outros ofícios: ela é reconhecida aos médicos independentemente de suas condições de trabalho (inclusive o era na extinta União Soviética), e, em grande parte, condiciona a autonomia socioeconômica (FREIDSON, 1970, p. 23-24, 45).

É necessário dizer que onde existia, essa autonomia frequentemente foi concedida em troca de serviços ao poder: por exemplo, o reconhecimento da medicina como profissão liberal na França está estreitamente ligado ao reconhecimento da perícia dos higienistas e à capacidade dos médicos de assegurar a ordem e a salubridade públicas (GOLDSTEIN, 1984). Assim, a autonomia subentende o poder, a autoridade exercida pelos profissionais sobre os clientes, os “leigos”, como indicaram, após Freidson (1970), os trabalhos críticos dos anos 1970 (SARFATTI LARSON, 1977). De fato, a autonomia técnica concedida pelo Estado permite aos profissionais o exercício do monopólio do poder dentro de seu território de competência, sem se submeter ao controle externo, do ponto de vista dos conteúdos. Esse domínio técnico fundamenta sua autoridade que se exprime numa linguagem particular, chamada “jargão”, a qual tem, segundo Terence Johnson (1972, p. 56), uma dupla função: manter a homogeneidade interna do grupo profissional e aumentar a autonomia em relação aos grupos externos, quer sejam estes formados por especialistas de outros domínios, os concorrentes em potencial, quer por aqueles que são considerados leigos. Desse modo, como sublinha Johnson (1972, p. 57), é o profissionalismo que engendra o charlatanismo (no processo das lutas pela conquista do monopólio de seu domínio de competência), e não o inverso.

Os ofícios de criação não gozam de tal estatuto. Raramente são tomados em consideração pela sociologia das profissões, salvo como um “desafio”, de acordo com a expressão de Freidson (1986). Na verdade, se eles partilham com as profissões organizadas de certos aspectos, como a existência de instâncias representativas, ressentem-se de outros atributos, tais como o de uma formação específica certificada por um diploma, a exemplo da situação dos escritores ou de muitos artistas, ou ainda de um código deontológico, para a maioria delas. Apesar disso, a sociologia da arte se constituiu, em parte, ao abordar as atividades artísticas sob o prisma das carreiras dos criadores (MOULIN, 2009), da divisão do trabalho (BECKER, 1982) e da profissionalização. Raymonde Moulin (1967; 1983) analisou as transformações das instituições da vida artística, da organização corporativa do século XIV ao academicismo do século XVII, após a profissionalização paradoxal com o advento do mercado, o qual substituiu a competência certificada pela Academia de Belas Artes por uma vocação reconhecida pelos intermediários, isto é, pelos galeristas. Philippe Coulangeon (1999) mostra que a profissionalização (inconclusa) dos músicos de jazz e, portanto, a sua diferenciação em relação aos amadores, foi transmitida, no caso francês, por um conjunto de atores externos a essa comunidade.

Essa questão é posta, sob um enfoque completamente diferente, por Robert Merton em suas análises dos cientistas: o da incompatibilidade entre a ética da ciência e a ideologia estatal em regime autoritário (MERTON, 1996). Como a ciência pode permanecer autônoma em tal situação? A ideia de autonomia científica pressupõe que os profissionais possam escapar dos ditames políticos. Isso aproxima Merton da problemática marxista - da qual ele extrai a ideia de uma margem de autonomia da esfera do conhecimento (MERTON, 1996, p. 257) - e da teoria do campo - de que ele é uma das fontes. Com Marx, Karl Mannheim inscreve a autonomia na posição dos intelectuais “que flutuam livremente”, “sem vínculos” com as estruturas sociais (ou: “intelligentsia socialmente desarticulada”, segundo a nova tradução francesa) (MANNHEIM, 2006, p. 128). Essa reflexão inspirou a sociologia do conhecimento de Merton (1996, p. 267-277 - reflexão sobre o ethos dos cientistas) a Bourdieu (1976; 2001 - autonomia relativa do campo científico), mas não foi retomada pelos pensadores marxistas. Merton, em contrapartida, foi criticado pelos defensores do “programa forte” da sociologia das ciências por ter dissociado as dimensões cognitivas da atividade científica de suas dimensões sociais (BLOOR, 1991; CALLON; LATOUR, 2013; ver também a síntese de MARTIN, 2005). É precisamente essa tensão entre as questões sociais e as cognitivas que o conceito de campo busca ultrapassar (BOURDIEU, 2001 - ver Item 1.3).

1.2 Concepção marxista de autonomia das obras

No pensamento marxista, a noção de autonomia apareceu inicialmente como uma forma de correção da teoria do reflexo. Segundo o postulado materialista, a literatura, como a religião, integra a superestrutura, refletindo as relações de produção1. No entanto, a teoria do reflexo, que se mostrava reducionista, deu lugar a uma rica reflexão sobre a autonomia das obras em relação às condições sociais e sobre as mediações entre elas (GOLDMANN, 1970; MACHEREY, 1971; WILLIAMS, 1977; ver a síntese de SAYRE, 2011). A literatura é um simples reflexo do mundo social, como reivindica a literatura realista, ou a expressão de uma ideologia que promove uma “visão de mundo” (Weltanschauung)? Para Mannheim (2006), a ideologia é uma visão de mundo, a estrutura de consciência de um grupo social ou o seu estilo de pensamento; ela se subdivide em duas categorias: a ideologia que legitima a ordem estabelecida, favorecendo sua reprodução, e a utopia que designa as representações que têm uma função subversiva. Outros pensadores se perguntam se a “visão de mundo” promovida pelas obras literárias e artísticas é a manifestação da consciência coletiva da classe dominante ou se ela evoca as contradições que estão presentes nas relações sociais de produção. Expressão dessas contradições, a obra de Balzac pode, assim, expressar um olhar crítico sobre a sociedade, independentemente das posições políticas do autor, explica Georg Lukács (1999).

Apoiando-se nos trabalhos de Lukács, para quem as relações entre as formas literárias e as situações sociais em que nasceram são mediadas pela consciência coletiva, o sociólogo Lucien Goldmann (1955) considera que o verdadeiro sujeito da obra não é o autor individual, mas o grupo social ao qual ele pertence (família, profissão, nação, classe). A visão de mundo do grupo constitui a mediação entre a infraestrutura econômica e social e as obras: “uma visão de mundo é precisamente esse conjunto de aspirações, de sentimentos e ideias que reúne os membros do grupo (mais frequentemente, uma classe social) e que os opõe a outros grupos” (GOLDMANN, 1955, p. 26). Os membros do grupo realizam essa percepção “de uma maneira mais ou menos consciente e coerente”, a partir de uma “situação econômica e social que engendra uma atividade cujo sujeito é a comunidade, real ou virtual, constituída pela classe social” (GOLDMANN, 1955, p. 27). Existe, assim, uma homologia estrutural entre as tragédias de Racine ou Les Pensées [Pensamentos] de Pascal e a visão “trágica” do mundo dos jansenistas, que é uma expressão da consciência coletiva da nobreza de toga. O primeiro jansenista emergiu, de fato, no momento da passagem da monarquia temperada à monarquia absoluta, entre os oficiais (notadamente os advogados) que dependiam do Estado e não podiam, consequentemente, desenvolver uma oposição ativa, embora buscassem certo distanciamento. Sua visão trágica é uma ideologia - ou melhor, “uma visão total”, englobando ideologia, afetividade e comportamento - que afirma “a impossibilidade radical de realizar uma vida significativa no mundo” (GOLDMANN, 1955, p. 117). Goldmann considera a literatura, assim como as artes, a filosofia e, em grande medida, a prática religiosa, como “linguagens”, “meios de o homem comunicar-se com os outros”, cuja especificidade é que elas estão reservadas à expressão de conteúdos particulares, ou seja, às “visões de mundo”, as quais são as “extrapolações conceituais até a extrema coerência das tendências reais, afetivas, intelectuais e mesmo motrizes dos membros de um grupo”2 (GOLDMANN, 1955, p. 347-349). É um conjunto coerente de problemas e de respostas que se exprime, no plano literário, por meio da criação de palavras, de um universo concreto de seres e coisas” (GOLDMANN, 1955, p. 347-349). Por isso, segundo Goldmann (1955, p. 349)

O fato estético consiste em dois níveis necessários de adequação:

(1) Aquele existente entre a visão de mundo como realidade vivida e o universo criado pelo escrito;

(2) Aquele que há entre esse universo e o gênero literário, o estilo, a sintaxe, as imagens, enfim, os meios propriamente literários empregados pelo escritor para expressá-lo.

A “coerência” da extrapolação produz, segundo Goldmann, maior valor das obras literárias em comparação a outros escritos: “todas as obras literárias válidas são coerentes e exprimem uma visão de mundo” (GOLDMANN, 1955, p. 349). Essa capacidade de extrapolação, na sua interpretação, é a base da representatividade, condição reservada a alguns indivíduos singulares.

Os teóricos da Escola de Frankfurt, igualmente, enfrentaram o problema da teoria do reflexo. Nas suas Notes sur la littérature [Notas de literatura] (1958), Adorno (2009) constata que a arte mais hermética pode exprimir uma reação contra a língua “degradada pelo comércio”. Mas, ao insistir sobre a ambiguidade dos textos literários, sua polissemia, mostra também que eles resistem à redução ideológica.

Porém, contra a ideia de mistificação das massas pelas produções da indústria cultural, que alienariam a consciência da classe trabalhadora, os fundadores dos Estudos Culturais desenvolveram uma reflexão sobre as relações entre cultura e sociedade, considerando a mediação das condições de produção e de recepção. Se, com a noção de “atenção oblíqua”, Richard Hoggart (1970, p. 296) questiona a concepção de recepção passiva desses produtos pelas classes populares, Williams (1965) estuda os efeitos da revolução industrial sobre a literatura, antes de apresentar um programa de sociologia histórica das instituições da vida literária (WILLIAMS, 1977, p. 1981). Enquanto para Goldman seria a visão de mundo que faria a mediação entre a infraestrutura econômica e social e a obra, para Williams, são as condições sociais de produção das obras que desempenham esse papel. Ou seja, Williams nega a distinção entre a literatura e as outras formas de escrita.

O conceito de “produção” se difunde para substituir a ideologia romântica de produção. Para Pierre Macherey (1971, p. 53-54), a obra é, de fato, o “produto de um trabalho” e o escritor, um “trabalhador de seu texto” que “não fabrica os materiais com os quais trabalha”. No entanto, ele concebe a obra como um “espelho quebrado” que não reflete perfeitamente a realidade. Macherey recusa, assim como seu mestre Louis Althusser, uma abordagem puramente materialista das condições de produção. Ele defende a elaboração de uma reflexão científica sobre “os processos que produzem ‘o efeito estético’ de uma obra de arte”, como explica no número de abril de 1996, da revista La Nouvelle Critique [A Nova Crítica] (MATONTI, 2005, p. 174). Claude Prévost conduz uma reflexão sobre a crítica literária, visando deixar a problemática do realismo para ultrapassar a teoria do reflexo, identificada a Lukács, e focada sobre o conteúdo das obras, em detrimento da forma (ver MATONTI, 2005, p. 172-175). Ele recusa, também, a noção de “fato artístico”, convidando a crítica a recentrar-se na análise da linguagem. No número de abril de 1967 de La Nouvelle Critique, então engajado no aggiornamento teórico (MATONTI, 2005), ele publicou o artigo intitulado “Marx et les mythes” [Marx e os mitos], criticando a interpretação que Roger Garaudy faz da Introdução geral à crítica da economia política, texto em que Marx questiona a perenidade da emoção estética, o “charme” persistente da obra de arte para além das condições de produção. De acordo com Garaudy, Marx introduziu uma “autonomia relativa” da obra, permitindo ultrapassar a noção do reflexo. Mas Prévost vê na interpretação de Garaudy uma forma de idealismo que enfatiza a função “desmistificadora” da literatura e da linguagem literária.

Em Ler o capital (1965), o filósofo marxista Louis Althusser e seus discípulos, Étienne Balibar, Roger Establet, Pierre Macherey e Jacques Rancière, recusam as noções de causalidade subjacentes nas análises marxistas: de um lado, a causalidade mecânica pressuposta pela teoria do reflexo, de outro, a causalidade expressiva implícita pelo conceito de “visão de mundo”, de modo que os textos sejam lidos como modelos alegóricos da sociedade como um todo (em Lukács, por exemplo). Associado à causalidade expressiva, o próprio conceito de mediação é problemático do ponto de vista deles, à medida que estabelece as relações entre diferentes níveis (superestrutura e infraestrutura, texto e sociedade). Eles propõem substituir esses dois tipos de causalidade pela ideia de uma “causalidade estrutural”, a saber, a presença da estrutura, sua imanência, nos seus próprios efeitos, seguindo o exemplo do conceito de Darstellung na teoria marxista de valor. A noção de “aparelhos ideológicos do Estado”, proposta por Althusser (1976), permite teorizar a ideia de autonomia relativa da superestrutura em relação à infraestrutura que a determina e o efeito que ela exerce sobre esta última, notadamente a “reprodução” que ele ilustra por meio do papel da escola.

Em The Political Unconscious [O inconsciente político], o crítico marxista estadunidense Fredric Jameson (2012) demonstra, no entanto, que nos domínios literários, esses dois tipos de causalidade questionados por Althusser conservam uma validade local: a substituição do modelo dominante do romance em três volumes por um formato de volume único mais barato, após a crise atravessada pelas publicações no final do século XIX (causa externa) não levou a uma modificação da própria forma de narrativa romanesca? E se a causalidade expressiva ou alegórica funciona em certo nível, é porque as grandes narrativas ou as concepções predominantes da história estão, frequentemente, inscritas nos próprios textos. Estes últimos, sustenta Jameson, são nosso principal intermediário para uma historicidade inacessível de outro modo, que funciona como uma causa ausente (é assim que Althusser interpreta o imanentismo de Spinoza: os efeitos são inerentes à estrutura - ou a Deus). Desse modo, eles constituem as fontes para apreender nosso “inconsciente político”, o qual deve ser objeto do trabalho de interpretação. Segundo Jameson, a principal contribuição de Althusser reside na autonomia relativa que ele reconhece às diferentes esferas sociais, contra a causalidade expressiva que tende à reduzi-las umas às outras por meio dos conceitos de homologia estrutural (por exemplo, em Goldmann, entre a situação de classe, a visão de mundo e as formas artísticas, ou entre o romance como forma e a vida cotidiana da sociedade individualista nascida da economia de mercado) ou das mediações (a instituição familiar como mediação entre a experiência da criança e a estrutura de classe na biografia que Sartre escreve sobre Flaubert). Mas, como destaca Jameson, a própria noção de autonomia relativa não pode prescindir de uma reflexão sobre as formas de mediação entre as diferentes esferas.

1.3. Conceito de autonomia na teoria dos campos

Foi Pierre Bourdieu quem teorizou plenamente a noção de autonomia relativa das diferentes esferas de atividades, com o conceito de campo. Se ele o toma emprestado da reflexão marxista, é para dar-lhe um sentido diferente, articulando-o com a concepção weberiana de diferenciação dos espaços sociais em razão da emergência de corpos de especialistas (os juristas no caso do direito) e com a análise durkheimiana da divisão do trabalho. Bourdieu inspira-se, igualmente, no programa traçado por Levin L. Schücking (1966) que, em sua obra The Sociology of Literary Taste [A sociologia do gosto literário], interessa-se pelas instâncias próprias do mundo das letras. Destacamos que nenhum desses autores emprega o conceito de autonomia. Essa noção parece incompatível com a concepção funcionalista da solidariedade orgânica, subjacente à divisão social do trabalho de Durkheim. Em contrapartida, ela é inteiramente conciliável com o conceito weberiano de diferenciação dos domínios dotados de referências e regras próprias, que Parsons (1939) e depois Luhmann (2011) desenvolveram numa abordagem sistêmico-funcionalista. A noção de Eigengesetzlichkeit de Weber, por meio da qual ele caracteriza os Wertsphären, esferas de valor (religiosa, econômica, política, estética, erótica na “consideração intermediária”, “Zwischenbetrachtung”, surgida em 1915 e retomada nos seus escritos sobre sociologia da religião) ou Lebensordnungen (ordens da vida), refere-se a uma lógica intrínseca ou, segundo Roth (1992, p. 457), a uma “autonomia” que emerge do processo de diferenciação dessas esferas de valores - suscetíveis de entrar em conflito - e das instituições (ver também a entrada “valores-esferas” em SWEDBERG; AGEVALL, 2016). A reflexão de Ernest Cassirer (outra fonte da teoria dos campos) sobre as formas simbólicas - linguagem, ciência, religião, mitos, artes - postula também sua autonomia e sua incompatibilidade parcial, tornando-os irredutíveis à lógica (ele fala, por exemplo, do “sistema conceitual” - “Begriffswelt” - da física como um “mundo inteiramente fechado sobre si mesmo”) (CASSIRER, 1972, p. 26).

Em Bourdieu, a reflexão sobre a autonomia nasceu de uma questão metodológica: podemos autonomizar os domínios culturais como objetos de estudo? Ou uma tal operação somente é possível se estudar-se o processo histórico de autonomização desses espaços de atividades (quer trate-se do campo literário, do campo artístico, do campo científico etc.)? Sobre essa questão Bourdieu escreve desde seu primeiro artigo, intitulado “Champ intellectuel et projet créateur” [Campo intelectual e projeto criador] (BOURDIEU, 1966, p. 866).

Uma tal abordagem se justifica na medida em que o objeto ao qual ela se aplica, a saber, o campo intelectual (e, por consequência, o campo cultural), seja dotado de uma autonomia relativa, autorizando a autonomização metodológica que opera o método estrutural, tratando o campo intelectual como um sistema regido por suas leis próprias.

Se a estrutura do campo é variável “de acordo com as sociedades ou as épocas”, “não resta dúvida que algumas relações sociais fundamentais estão presentes desde que exista uma sociedade intelectual dotada de certa autonomia perante o poder político, econômico e religioso”: relações entre os criadores e o público, e com as “instâncias de legitimação” (BOURDIEU, 1966, p. 892). Posteriormente, Bourdieu reavaliará esse artigo e o considerará excessivamente interacionista, apresentando uma abordagem topológica mais objetivista; no entanto, constatamos que essa primeira reflexão já continha os princípios da teoria do campo: autonomia relativa que traduz-se por um “efeito de refração” que a estrutura do campo exerce sobre as determinações externas, instâncias específicas de legitimação e de transmissão (ainda não há menção à questão da “reprodução”). O efeito de refração se manifesta, por exemplo, na

relação que um intelectual mantém com sua classe social de origem ou de pertencimento, [e que é] mediatizada pela posição que ele ocupa no campo intelectual […]. Assim, os determinismos tornam-se determinação especificamente intelectual que se insere numa lógica específica do campo intelectual, num projeto criador, [que] faz passar [os acontecimentos econômicos e sociais] por uma conversão de sentido e de valor, transformando-os em objetos de reflexão. (BOURDIEU, 1966, p. 903-904).

Assim, enquanto para Goldmann, o verdadeiro sujeito da obra é o grupo de pertencimento do criador, para Bourdieu é o campo (BOURDIEU, 1984, p. 212; 2001).

Como ele explica em seu artigo de 1971 sobre “Le marché des biens symboliques” [O mercado dos bens simbólicos], três condições são necessárias para que um campo se forme: a emergência de um grupo de especialistas da atividade em questão; a existência de instâncias específicas (instâncias de consagração); e a formação de um mercado. Nesse artigo, Bourdieu analisa a forma como as atividades literárias e artísticas se autonomizaram do clientelismo e do mecenato graças ao mercado, embora se tenha introduzido um novo tipo de restrição, próprio da lógica mercantil. É por isso que Bourdieu reconhece o princípio de autonomia na própria recusa da lógica comercial, e de modo geral, na recusa dos critérios de julgamento extraliterários (notadamente ideológicos e morais) sobre as obras. A primazia dos critérios estéticos sobre todos os outros significa que apenas o julgamento dos pares é reconhecido como válido, por oposição à sanção do público tal como se traduz nos números de venda. No curso do Colégio da França sobre Manet3, Bourdieu (2013) mostrará o papel do mercado na conquista da autonomia em relação ao Estado, que garantiria o monopólio da academia de belas artes na formação dos artistas e o acesso das obras ao espaço público (selecionando aqueles que seriam expostos ao Salão). O processo de autonomização deve sempre reportar-se às restrições que se exercem numa configuração dada: com efeito, se o mercado permitiu que essas atividades se autonomizassem frente ao Estado, este permite hoje a garantia de uma certa autonomia perante o mercado (SAPIRO, 2003a). No âmbito do problema da autonomia, o campo científico é um dos mais autonomizados, de tal forma que seu público principal é composto por pares, mas ele pode igualmente estar submetido aos constrangimentos políticos, religiosos e econômicos, de acordo com as conjunturas (BOURDIEU, 2001).

Além do estudo do processo de autonomização frente aos poderes políticos, econômicos e religiosos, os quais determinam as condições de produção e de recepção, a autonomia, sempre relativa, implica que o campo tem um efeito de refração variável sobre as restrições externas, econômicas ou políticas, embora não cessem de exercer seu peso. Como vimos, é por meio da posição que os criadores ocupam no campo que se exerce o efeito de refração sobre os determinismos sociais, os quais se manifestam sob a forma de disposições de acordo com a teoria do habitus. Assim, contrariamente ao que frequentemente se diz nos comentários sobre a teoria do campo, a relação entre habitus e campo não tem nada de mecânico: as disposições orientam as escolhas que os produtores culturais fazem num “espaço dos possíveis” estruturado, referindo-se à sua própria história, que constitui o campo. Essas escolhas e a socialização no campo conduzem a uma “transubstanciação” das disposições ético-políticas que as tornam, às vezes, irreconhecíveis, notadamente nas obras literárias, artísticas ou teóricas, como mostra Bourdieu (1988) no caso de Heidegger.

Enfim, Bourdieu (1979) interrogou-se sobre as condições sociais do julgamento estético, definido por Kant como julgamento subjetivo, sem conceito e desinteressado. Essa pureza do julgamento estético, sua autonomia, oculta as condições “impuras” de produção de tal julgamento, ou seja, as condições sociais e o efeito de distinção que produz a afirmação da superioridade das classes dotadas de capital cultural. Além disso, os usos das produções culturais e científicas estão longe de limitar-se às apropriações desinteressadas, fundadas num julgamento autônomo em relação aos critérios sociopolíticos ou econômicos.

2. Possíveis articulações dessas definições

Embora essas abordagens e os usos do conceito de autonomia sejam em grande parte incompatíveis, é possível articulá-los. As teorias sociológicas, seja a das profissões ou a dos campos, tomam como ponto de partida a emergência de corpos de especialistas habilitados a produzir julgamentos competentes em certos domínios, cujo horizonte comum é a autoridade social que eles adquirem, condição de autonomização de sua atividade, assim como a ruptura que esta instaura com os leigos ou não especialistas (Item 2.1). A teoria marxista aborda as produções culturais nas suas relações com o mundo social, como reflexo, expressão de uma visão de mundo ou ideologia; Bourdieu introduz a mediação do campo para pensar essas relações (Item 2. 2).

2.1. Condições sociais da autonomia do julgamento dos especialistas

A sociologia das profissões, ao pressupor a autonomia dos julgamentos de especialistas garantida pelo Estado, enfatiza a organização interna das atividades especializadas, ou seja, o controle do acesso ao grupo, a socialização pela formação, a deontologia, a disciplina interior (ver, por exemplo GOODE, 1957; ABBOTT, 1988; FREIDSON, 2001). A teoria dos campos centrou-se, por sua vez, na autonomia em relação à demanda ideológica e econômica, garantida pela avaliação das obras por pares (BOURDIEU, 1992; SAPIRO, 2003a). Porém, essas abordagens têm em comum o princípio de autonomia fundado numa ética de desinteresse e de responsabilidade, cujas condições devem ser asseguradas.

A vantagem da teoria dos campos é que ela considera a heterogeneidade dos grupos profissionais. Essa heterogeneidade, amplamente constatada pela sociologia das profissões (SMITH, 1958; ver a síntese de CHAMPY, 2012, p. 95-142), quer se trate do recrutamento social, quer das condições de exercício do ofício, quer das formas de especialização, não foi teorizada enquanto tal, exceto neste último aspecto (ABBOTT, 1988, p. 100-106 e 126; para uma articulação da questão da especialização com a teoria dos campos, ver PINELL, 2005). Do mesmo modo, como indicavam Bucher e Strauss no seu artigo de 1961, ao insistirem sobre os princípios de coesão, a abordagem estrutural-funcionalista negligenciou os conflitos internos das profissões, igualmente desconsiderados pela abordagem em termos de “mundos” (BECKER, 1982), que enfatiza a divisão do trabalho e a cooperação. Contudo, a teoria dos campos busca identificar, de forma relacional, os princípios de oposição estrutural que regem a atividade e a competição específica, notadamente entre os grupos estabelecidos que detêm o monopólio de definição da atividade (os “dominantes”) e os novos integrantes que contestam essa definição ou outros grupos que ocupam posições dominadas (BOURDIEU, 1984; 1992). A autonomia relativa é um preceito metodológico que convida a relacionar as questões internas das lutas mais ou menos abertas às oposições estruturais, pelas quais as questões socioeconômicas e políticas são mais ou menos traduzidas ou “refratadas”: o grau de mediação indica o grau dessa autonomia. Ela é menor, por exemplo, nos regimes autoritários ou em situações de crise, onde as clivagens internas são determinadas pelas relações de poder (SAPIRO, 1999; DRAGOMIR, 2007; LEPERLIER, 2018).

Essas questões se refratam também de forma específica nos subcampos que constituem as especialidades, as disciplinas ou os gêneros (literários, musicais etc.). Na sociologia das profissões, a noção de “segmento” foi proposta por Bucher e Strauss (1961) a fim de considerar essas subdivisões e as tensões geradas, incluindo as clivagens metodológicas, tensões e lutas que podem levar à mudança (por exemplo nos métodos ou na deontologia). No entanto, o conceito de campo sistematizado pela abordagem relacional, subjacente à dinâmica de concorrência entre inter ou intrassegmentos para acumulação de capital simbólico específico (ou a construção das reputações), permite considerar, ao mesmo tempo, as atividades menos organizadas como campos de produção cultural. A noção de subcampo tem a vantagem, em comparação à acepção funcionalista e estática de segmento, de refletir de maneira específica e dinâmica sobre como as oposições estruturantes do campo reverberam nos diferentes subespaços.

As divisões internas são eclipsadas pelas instâncias profissionais que visam unificar a profissão para defender seus interesses frente às forças externas (SMITH, 1958), tendendo a funcionar como “corpo” (BOURDIEU, 1985a). Apoiando-se sobre o livro de Ernest Kantorowicz, Les deux corps du roi, Bourdieu refere-se aos canonistas medievais (os teólogos do direito da Igreja) que refletiam sobre a noção de corporatio, também traduzida como universitas. Entende-se por “corpo” ou “corporação”, uma entidade constituída jurídica ou simbolicamente que serve aos seus membros (KANTOROWICZ, 1989, p. 200 et seq.), isto é, um grupo profissional, ligado por uma atividade comum, que cria algum grau de solidariedade em torno de direitos ou de privilégios obtidos ou reivindicados como entidade: o maior ou menor sucesso do grupo está em associar os seus interesses ao que seria o bem da sociedade como um todo - e assim universalizar os seus interesses particulares - protegendo-o ou expondo-o à acusações de corporativismo, isto é, de privilegiar os interesses particulares em contraposição ao interesse geral ou a causas universais. Segundo Bourdieu (1999a, p. 11), “há corpo quando um conjunto de indivíduos é relativamente homogêneo, do ponto de vista dos princípios de diferenciação que prevalecem num universo social considerado, e está unido por uma solidariedade fundada na participação comum no mesmo capital simbólico”.

Quando uma instância atinge alto grau de monopólio em certo campo, a ponto de poder formar um “espírito de corpo”, podemos empregar o termo “corpo” em lugar de “campo”: a limitação do recrutamento por meio de concurso, numerus clausus etc., é uma modalidade de controle do acesso ao campo, que pode conduzir à sua transformação em corpo, como no caso dos filósofos profissionais na Terceira República (FABIANI, 1988). As profissões organizadas são as que mais obedecem às lógicas de corpo, enquanto naquelas menos organizadas as lógicas do campo são mais visíveis através das disputas internas (SAPIRO, 2003b). Os “efeitos de campo” que se produzem opõe resistências às tentativas de unificação da profissão como corpo, conforme mostramos a partir do caso dos escritores (SAPIRO, 2003c; SAPIRO; GOBILLE, 2006).

As diferentes abordagens sociológicas constatam a fronteira entre especialistas e leigos, quer seja esse corte considerado legítimo (como na perspectiva weberiana ou mertoniana) ou criticado (como no ponto de vista marxista e/ou dos Estudos Culturais). A noção de desinteresse serviu frequentemente para justificar esse corte (PARSONS, 1939), enquanto a de responsabilidade definiu a relação entre especialistas e leigos (JOHNSON, 1972, p. 57). Essas noções circularam entre as profissões intelectuais, constituindo sua autonomia em referência e em concorrência entre si (SAPIRO, 2017; sobre a ética do desinteresse reivindicada pelos juristas no século XVIII, ver KARPIK, 1995, p. 89-91, 158).

Além da dimensão técnica ou especializada relativa ao controle dos conteúdos4, sobre a qual a sociologia das profissões e a teoria dos campos convergem - mas também o espaço dos possíveis que sustenta esses conteúdos, de acordo com a teoria do campo -, a problemática da autonomia postula uma tripla questão: a da relação da atividade específica face às restrições externas; a das condições organizacionais que a garantem; a da deontologia ou ética do desinteresse na prática profissional.

É em relação às restrições externas que constatamos os pontos de divergência. Ao reproduzir a ideologia profissional, a sociologia das profissões silenciou-se por longo tempo a respeito do serviço do Estado e dos interesses das classes dominantes, que eram a contrapartida da autonomia estatutária. Contudo, os trabalhos de Freidson, Larson e de tantos outros têm minimizado esse problema, analisando a autonomia como uma reivindicação dos profissionais e não como uma essência de sua atividade.

De acordo com Terence Johnson (1972, p. 41-43), a especialização cria um sistema de interdependência que abre as “potencialidades para a autonomia”, para a “estrutura da incerteza” ou para a “indeterminação” das relações entre produtores e consumidores, incerteza essa que as instituições podem reduzir. Em função da relação de força, essa incerteza será reduzida em benefício do produtor ou do consumidor. O modelo de análise de Johnson permite considerar as diferentes formas de relações entre produtores e consumidores, sejam elas determinadas pelos primeiros (profissionalismo), pelos segundos (mecenato ou grandes empresas com quase-monopólio sobre alguns serviços), ou por um terceiro (Estado ou empresários). A autonomia dos produtores é elevada no primeiro caso, fraca no segundo, negociada no terceiro. Essas três formas de relação implicam diferentes níveis de indeterminação entre oferta e demanda e, portanto, de incerteza, segundo Johnson (1972, p. 41-43).

As condições organizacionais que garantem a autonomia técnica foram bem estudadas pela sociologia das profissões, em particular o papel das associações (MILLERSON, 1998). Porém, a ligação pressuposta entre instâncias profissionais e autonomia, mesmo técnica, é questionada pelos trabalhos empíricos que tratam dos regimes autoritários, como o de Jarausch (1990) sobre os engenheiros e professores no nazismo, ou aqueles sobre o papel das associações dos escritores (GARRARD; GARRARD, 1990; DRAGOMIR, 2007; essa ideia é desenvolvida por SAPIRO, 2003a). Com efeito, mesmo que os profissionais tenham sido capazes de negociar ou obter a manutenção de um estatuto particular nesses regimes, a autonomia técnica é limitada devido à censura ideológica que se exerce sobre os produtores intelectuais. Os conceitos de autonomia e de heteronomia, tais como os define Bourdieu, oferecem um quadro heurístico para apreender as relações mais ou menos ambíguas entre as instâncias profissionais e os poderes existentes. A mesma coisa ocorre com as instâncias de consagração, negligenciadas pela sociologia das profissões e estudadas pela teoria dos campos, mas cujo papel de manutenção da autonomia pode ser tão ambíguo como o demonstrado na atuação da Academia Francesa e da Academia Goncourt no regime de Vichy; paradoxalmente, é uma instância clandestina criada pelo Partido Comunista, o Comitê Nacional dos Escritores, que defendeu os princípios da autonomia literária nessa conjuntura de crise (SAPIRO, 1999). Como destacava Alain Viala (1988), as instituições da vida literária exercem um papel central entre o campo e os poderes, e seu funcionamento e seu papel devem ser objeto de estudos empíricos concretos, antes de se determinar o tipo de autonomia (ou de heteronomia) que elas garantem.

No que diz respeito à deontologia, é necessário, do ponto de vista metodológico, fazer uma distinção entre o discurso sobre a autonomia e a sua prática, pois esta pode contradizer aquele. Isso se aplica tanto à sociologia das profissões, em que se pode constatar que as práticas indicam a prevalência dos interesses profissionais em face dos interesses dos consumidores, contrariando o próprio código de ética profissional (FREIDSON, 1970, p. 360-362), como à teoria dos campos: assim, por exemplo, sob a ocupação alemã, La Nouvelle Revue Française, relançada por sugestão do embaixador da Alemanha, Otto Abetz, exibia um discurso sobre a autonomia da arte, dizendo que esta deveria ser mantida em todas as circunstâncias, mas ao mesmo tempo excluía de suas edições os antigos colaboradores, por razões que não tinham nada a ver com a arte, mas sim com suas origens religiosas (judaicas) ou suas opiniões políticas (comunistas ou antinazistas) (SAPIRO, 1999, p. 402-408).

2.2. Autonomia relativa das obras

Os usos marxistas do conceito de autonomia enfatizam a autonomia relativa das obras em relação às condições em que estas são produzidas. Essa ideia pode aproximar-se da acepção de autonomia técnica, mas tal como essa última, levanta a questão das condições que a tornam possível.

Como vimos, nessas abordagens marxistas, centradas nas obras, está ausente a ideia de mediação exercida pelas condições de produção e circulação. Porém, nós a encontramos em outra tradição marxista, aquela que vai de Gramsci aos fundadores dos Estudos Culturais, especialmente Raymond Williams (1981). Esse autor não emprega o termo autonomia nesse sentido, mas seu programa de pesquisa sobre as instituições da vida literária - editoras, revistas, academias, círculos - comportava esses aspectos (ele se refere a Bourdieu). Incluir a tese de Goldmann sobre a visão de mundo jansenista da nobreza de toga no caso de Racine não é totalmente incompatível com a teoria do campo. De fato, ainda não podemos falar de campo literário autônomo no século XVII, embora, como sublinha Viala (1985), vejamos aparecer um grupo de especialistas e uma instância de consagração, a Academia Francesa (ver também SAINT JACQUES; VIALA, 1994). Mas o clientelismo ainda prevalecia, o que condicionava fortemente a produção das obras, associado à ausência de um mercado de bens simbólicos que emergiu apenas no século seguinte. Em contrapartida, Bourdieu critica Sartre em razão de este ignorar a mediação do campo em sua magistral biografia de Flaubert, O idiota da família (1971-1972), cuja centralidade consistia em relacionar a obra à história familiar e a uma análise de classe, sem abordar as condições de produção literária da época. Especificamente, em As regras da arte (1992), Bourdieu mostra a formação de um polo de produção restrita que consistia em defender os princípios de autonomia do julgamento dos pares e dos especialistas, frente à lógica mercantil que prevalecia no grande polo produtor do mercado livreiro em expansão.

3. Proposições para uso heurístico do conceito de autonomia

A partir dessas possíveis articulações, propomos distinguir três níveis de autonomia, ainda que eles se encontrem imbricados: o das condições de produção, o das práticas e o da recepção e dos usos.

3.1 O grau da autonomia das condições de produção

Voltemos às três configurações de relações entre produtores e consumidores distinguidos por Johnson. Como vimos, a autonomia dos produtores é elevada quando eles determinam as relações que estabelecem com os consumidores: é o modelo das profissões liberais, tal como se desenvolveu nos Estados Unidos antes de circular para outros lugares. Os profissionais se beneficiam de uma autonomia técnica elevada, garantida pelas instâncias profissionais (ordens ou associações dotadas de poder), mas conferida pelo Estado, que se ampara sobre o grau de liberalismo do regime (nos regimes autoritários, as ordens ou as associações profissionais são supervisionadas e controladas pelo poder) e jamais é absoluta (como observa Freidson [2001], a formação que condiciona o acesso à profissão em questão não é assegurada por tais instâncias, mas por estabelecimentos cujos diplomas são credenciados pelo Estado).

Além disso, é necessário considerar o preço dessa autonomia técnica em termos de serviço prestado em favor do poder estabelecido, o que leva à questão da autonomia em relação à ideologia dominante e à demanda estatal, destacada por Merton e Bourdieu. As profissões organizadas podem ser concebidas como campos fortemente centrados em instâncias profissionais que, segundo uma lógica de “corpos”, controlam o acesso e as regras do jogo, e têm o poder de sancionar os “hereges” que se desviam da ortodoxia. Esse controle, destinado, em princípio, a garantir o interesse dos consumidores, é suscetível de ser desviado para atender aos interesses do poder (como vimos acontecer com os médicos higienistas no século XVIII), das grandes empresas (os advogados, os engenheiros ou os cientistas trabalham, frequentemente, para por sua autonomia técnica a serviço dos interesses financeiros; sobre o caso dos economistas que trabalham para os bancos, ver LEBARON, 2000), das classes dominantes, ou de alguns grupos étnicos ou religiosos prevalecentes. O numerus clausus imposto aos médicos e advogados judeus na Europa Oriental entre as duas grandes guerras, ou o período de dez anos imposto aos médicos estrangeiros na França dos anos 1930 para que pudessem exercer a profissão, visava limitar as condições de concorrência com os profissionais originários do grupo étnico ou nacional predominante. Algo semelhante se observa na exclusão das mulheres do exercício dessas profissões (RENNES, 2007). Essas práticas revelam as formas de heteronomia dos profissionais em relação aos diferentes componentes do campo de poder, quando eles estão em posição de regular as relações com os consumidores. As instâncias profissionais constituem um lugar de observação das negociações com esses diferentes componentes e, por consequência, das traduções dessas formas de heteronomia em regras e em práticas profissionais, mas a oposição entre autonomia e heteronomia é, precisamente, entre dominantes e dominados (segundo o volume de capital específico), um princípio de estruturação dos campos e uma cadeia para analisar as próprias práticas.

Quando os consumidores dos serviços ou dos produtos são os mecenas, como no caso das artes no Antigo Regime da França, ou as grandes empresas que quase detêm o monopólio de demanda, como no dos engenheiros-consultores (HENRY, 1992; 2012), a autonomia dos profissionais é baixa, pois sua produção é fortemente dependente da demanda. Nesse caso, a produção já é largamente determinada pela recepção e pelos usos que podem ser feitos das produções simbólicas.

Mesmo que Johnson não os mencione, a configuração em que a autonomia dos produtores é negociada por meio da intermediação de um terceiro (Estado ou empresário) corresponde fortemente aos mercados de arte, contando, de um lado, com auxílios estatais e com o papel dos intermediadores, de outra parte (editoras, agentes literários, galeristas, companhias produtoras cinematográficas e musicais). Nos estados autoritários, como nos regimes comunistas e fascistas, a autonomia dos produtores culturais é baixa, embora os criadores sejam altamente profissionais e as organizações sirvam de instância de controle ideológico, como já o dissemos. Nas economias de mercado, sua autonomia é enfraquecida pela dependência à lógica do lucro, que motiva muitos empreendedores culturais - agentes “duplos” que devem conciliá-la com as lógicas específicas dos universos culturais (BOURDIEU, 1977) -, sujeitando a produção ao interesse do mercado. Os estudos empíricos sobre as evoluções recentes do campo editorial na França e no mundo anglo-americano revelam o peso crescente das restrições de ordem econômica (BOURDIEU, 1999b; THOMPSON, 2010). Daí a estrutura dual identificada por Bourdieu entre um polo de grande produção e um polo de produção restrita, caracterizando todos os mercados de bens simbólicos. Em relação às restrições econômicas, o Estado pode assumir um papel corretivo, concedendo ajuda à parte de produção em que a procura é menor, mas cujo elevado valor é estimado pelos especialistas, aos quais é delegado o trabalho de avaliação, uma forma de reconhecimento da sua autonomia de julgamento (SAPIRO, 2003a).

Essas três configurações das relações entre produtores e consumidores são bastante úteis para se compreender o grau e o tipo de autonomia do ponto de vista das condições de produção, mas não são totalmente suficientes para determiná-las, na medida em que devem ser inscritas em uma configuração sociopolítica e econômica mais ampla, de acordo com o tipo de regime e de controle ideológico das práticas, o que nos conduz ao segundo nível.

3.2 Autonomia das práticas

Se os discursos dos produtores sobre a autonomia são úteis para determinar suas reivindicações em função das condições de produção, é necessário confrontá-los às práticas, como já vimos.

Desde o advento do mercado de bens simbólicos no século XVIII, alguns homens de letras, como Karl Philipp Moritz, inspirador de Kant, alertavam os produtores culturais (em particular os artistas) contra o risco de atender à demanda do público em detrimento das exigências próprias de sua arte e da sua ética profissional. Contra a ideia, defendida por Moses Mendelssohn, de que a unidade das artes reside nos seus efeitos, isto é, nas emoções produzidas pelas obras a partir das relações de harmonia e simetria, Moritz a situa também na perfeição formal que subentende o belo ideal, sem deixar de insistir na ausência de finalidade, contrapondo-se, assim, a Kant, que teorizava a obra como uma finalidade sem fim (WOODMANSEE, 1994). É por isso que algumas produções culturais de grande sucesso padecem da suspeita de resultarem de compromisso, ou mesmo de comprometimento (facilitação, demagogia), para com o produtor, com o objetivo de seduzir um público estranho e pouco familiarizado com os cânones estéticos. Quando não se trata de categorias altamente codificadas, como filmes de gênero, de romance sentimental ou de suspense, determinados intermediários (editores, agentes, produtores cinematográficos - sobre o problema da autonomia no cinema, ver DUVAL, 2016) interferem no trabalho de criação, a fim de assegurar rentabilidade econômica ao projeto, e trabalham na sua divulgação, um aspecto a ser retomado na próxima sessão deste artigo. A lógica de mercado pode, igualmente, interferir nas práticas científicas ou profissionais suscetíveis de servir aos interesses econômicos, como já vimos. Muitos grupos industriais têm advogados trabalhando para eles. No entanto, para além das práticas heterônomas, os produtos científicos, a priori os mais autônomos e abstratos, como a economia altamente matematizada, podem também ser instrumentalizados para fins “impuros”, servindo como justificativas de políticas de austeridade (LEBARON, 2000).

Os poderes políticos e religiosos procuram, frequentemente, subordinar as ciências, assim como as artes e as letras, para torná-las instrumentos de propaganda: o realismo socialista como método de criação é um exemplo (ROBIN, 1986; ARON; MATONTI; SAPIRO, 2003; sobre a ciência, ver MATONTI, 2002). Todavia, mesmo quando se traduzem por proibição e censura, essas restrições não excluem as práticas heterodoxas, sob forma codificada (por exemplo, a “poesia de contrabando” durante a ocupação alemã na França, ou a interpretação teatral dos atores poloneses no regime comunista), clandestina (os samizdat5), ou deslocamento ao exterior (sobre essas opções, ver SAPIRO, 2003a).

Para além dessas restrições, as abordagens marxistas indicam, por meio da noção de “visão de mundo”, de “ideologia” ou de “hegemonia”, as dimensões ético-políticas das produções culturais. Como vimos, Althusser e seus discípulos questionam a noção de “visão de mundo” promovida por Goldmann, optando pela acepção de ideologia, restituindo assim a função de reprodução que exercem tais produções. Raymond Williams utiliza a noção de “hegemonia” de Gramsci (WILLIAMS, 2009). Pierre Bourdieu forjou o conceito de “poder simbólico”, insistindo sobre as funções cognitivas estruturantes dos bens simbólicos preconizadas pela tradição neokantiana, mas sem deixar de dialogar com Weber e Marx para restituir suas funções sociais nas relações de dominação, as quais se exercem de forma mais eficaz quando não são reconhecidas como tais (BOURDIEU, 1977). Na verdade, quer reproduzam a ideologia dominante ou a questionem em proveito de visões de mundo alternativas, as produções culturais jamais são “neutras”, uma vez que seu significado é oriundo das relações mantidas com o espaço das representações e formas simbólicas existentes em uma determinada circunstância, tanto do ponto de vista das condições de produção quanto das de recepção. Segundo a teoria dos campos, o seu grau de autonomia deve-se ao efeito de refração operado pelo trabalho de formação, inscrito em um espaço dos possíveis historicamente constituído. A reprodução ou a renovação dessas formas simbólicas é um desafio num universo onde a originalidade é um valor primordial (Lucien Karpik [2007] a chama de “economia das singularidades”).

A questão é saber se essa autonomia formal - próxima da autonomia técnica da sociologia das profissões - é suficiente para garantir uma autonomia em relação à ideologia dominante ou às funções sociais das obras de arte. Deve-se dizer que um trabalho com caráter mais “autônomo” não impede que uma obra veicule esquemas ético-políticos associados a um ou a outro grupo ou classe, como o demonstrou Bourdieu (1988) no caso de Heidegger. A leitura política que Jeffrey Mehlmann (2003) faz do poema Cimetière marin [Cemitério marinho] de Paul Valéry detecta no sintagma “cabeças desabitadas” uma reminiscência do treinamento em craniometria feito pelo poeta com o raciólogo Vacher de Lapouge, quando o poeta desenterrou e mediu 600 crânios num cemitério abandonado. Sem chegar ao ponto de converter o poeta em um autor racista, Mehlmann mostra como a visão de mundo transmitida por sua obra está imbuída da ideia de superioridade do homem ariano.

Assim, o conceito de autonomia remete ao processo de retradução das questões extraliterárias segundo as lógicas do campo. A noção de “monologismo” proposta por Bakhtin em oposição à de “dialogismo” (heterogeneidade dos pontos de vistas, dos estilos etc.), e empregada por Régine Robin (1986) para analisar o realismo socialista põe a questão dos limites da autonomia, bem como a da disposição dos produtores culturais e intelectuais à heteronomia.

Em contrapartida, contrariamente ao que é frequentemente pressuposto, a politização dos produtores de bens simbólicos não é, em si, contraditória com a autonomia: na verdade, as diferentes formas de seu engajamento estão geralmente ligadas à sua atividade e posição no campo, de modo que o grau de autonomia está ligado à sua independência em relação a uma demanda exterior, proveniente dos grupos sociais ou de seus porta-vozes (organizações políticas) (SAPIRO, 2009, 2018). As vanguardas do século XX imaginavam revolucionar o mundo por meios artísticos (BRUN, 2014; GOBILLE, 2018).

Ademais, mesmo as obras mais formais ou abstratas podem servir a objetivos políticos, independentemente das intenções do autor. Foi o caso da arte abstrata, instrumentalizada no quadro da política estrangeira norte-americana para encarnar sua concepção do liberalismo nas artes, frente ao realismo socialista figurativo (GUILBAUT, 2006). Porém, essa dimensão revela ainda os usos e as apropriações das obras, respondendo em parte à questão de Marx sobre a autonomização destas em relação a suas condições de produção, notadamente via processo de canonização.

Antes de tratar dessa última questão, é necessário relembrar a distinção que Williams (2009) faz entre as formas culturais residuais (surgidas numa formação social anterior, elas subsistem na conjuntura atual, embora marginais em relação à cultura dominante) e as formas culturais emergentes, entre as quais ele destaca as que seriam alternativas e oposicionistas. Poder-se-ia sugerir o cruzamento dessas distinções (que nos parecem mais heurísticas que a simples bipartição proposta por Mannheim entre ideologia e utopia), com o exame da natureza mais ou menos autônoma ou heterônoma das práticas (autorreferencialidade, inscrição na história do campo, capacidade de renovar as formas, autonomia do projeto em relação a uma demanda pré-formatada etc.). A noção de forma simbólica poderia articular os aspectos formais com os esquemas de percepção e de avaliação veiculados pelas obras.

3.3 Autonomia do julgamento crítico ou técnico

A autonomia técnica se fundamenta na avaliação por pares, tanto na sociologia das profissões como na teoria dos campos. Embora não seja uma medida destinada a impedir as apropriações e usos ideológicos das produções ou dos serviços, ela pode opor-lhes os seus próprios critérios de julgamento, centrados em aspectos “técnicos” que requerem um conhecimento especializado, quer se trate da ciência, quer das práticas profissionais ou das produções artísticas.

De acordo com a lógica de mercado, é a rentabilidade, mensurada pelos números de obras vendidas ou de serviços prestados, que introduz os princípios heterônomos capazes de afetar a qualidade dos produtos, resultando em compromissos para com o gosto de um público leigo. Nesse momento, é necessário distinguir as três configurações definidas por Johnson. No caso do profissionalismo, o argumento da autonomia pode ser utilizado em proveito dos profissionais e em detrimento dos consumidores, pois como já vimos esses últimos têm pouco poder frente à autoridade dos especialistas. Já a condição da forte dependência em relação a empresas ou ao Estado é um caso de heteronomia estrutural. É no terceiro tipo, cuja relação entre produtores e consumidores é mediatizada pelos intermediários (sobre essa categoria, ver LIZÉ; NAUDIER; ROUEFF, 2011; JEANPIERRE; ROUEFF, 2014), que se coloca a questão da autonomia, na medida em que esses últimos manifestem interesses econômicos que interfiram na seleção dos produtos ou serviços, assim como sobre o próprio processo de produção, como já dissemos.

O uso frequente que os intermediários fazem do argumento das preferências dos consumidores, apresentado como democrático em contraposição ao pretenso elitismo dos criadores experimentais e seus defensores, é um subterfúgio retórico desenvolvido pelas indústrias culturais, a fim de justificar as escolhas orientadas mais ao lucro que à preocupação de satisfazer à demanda do mercado, o que confirma as estratégias agressivas de ocupação de espaço nas redes de livrarias pelos grandes grupos editoriais (lugares pagos nas vitrines ou próximos dos caixas) para superar seus concorrentes (THOMPSON, 2010). A concentração nesses grandes grupos, nas indústrias cinematográfica, musical e editorial, ameaça as lógicas autônomas dos campos de produção cultural, relegando-as às margens do sistema e relativizando o veredito das instâncias específicas de consagração (BOURDIEU, 1999b; DUVAL, 2016). Já se demonstrou que os prêmios literários, eles próprios acusados de se comprometerem para conservar sua ressonância mediática, têm um impacto menor sobre as listas de best-sellers nos Estados Unidos, país em que o processo de racionalização das edições é muito mais avançado que na França, onde os prêmios ainda têm uma grande reverberação (VERBOORD, 2011). Esse fenômeno revela as estratégias de alguns intermediários para contornar o veredito das instâncias específicas, a fim de promover a lógica de mercado.

As interpretações, as apropriações e os usos políticos das produções culturais e científicas têm sido objeto de muitos estudos. Os produtores culturais dizem lutar para conquistar sua autonomia frente à censura e ainda enfrentar restrições à liberdade de expressão em muitos lugares (sobre o caso dos escritores na França desde o início do século XIX, ver SAPIRO, 2011). No que tange à sua recepção, observamos que, embora os produtores culturais possam ter interesse em manter alguma ambiguidade para esquivar-se das sanções ou ampliar seu público, as apropriações se mostram recorrentemente descoladas do seu contexto de produção, por meio de deslocamentos no espaço e no tempo (BOURDIEU, 2002). O exemplo de uso político das teorias da justiça na França é paradigmático, como indica a integração de Rawls ao cânone filosófico francês, que foi feita através de um processo de despolitização (HAUCHECORNE, 2019).

Enquanto os processos de consagração e/ou de construção de reputações são muito estudados, é menor o número das investigações sobre a canonização, a qual assegura às obras o estatuto de clássicos, que lhes permite manter suas condições de produção, apesar da reflexão pioneira do formalista russo Victor Chlovski sobre a estratificação dos sistemas literários em elementos canônicos e não canônicos. Devemos a Alain Viala (1993) uma reflexão sobre o que é um clássico. Todavia, a desconstrução do cânone europeu, desde os anos 1980, deu lugar às pesquisas sobre as condições desiguais de acesso ao conhecimento (sobre o caso dos escritores francófonos originários da África subsaariana, ver o estudo muito significativo de Claire Ducournau, [2017]).

Com efeito, a reivindicação da autonomia, tal como a da profissionalização, serviu em inúmeros casos de justificativa para excluir do cânone os produtores marginalizados em razão de seu sexo e/ou origem social, étnica, religiosa ou nacional, ou ao menos como meio de minimizar suas contribuições (sobre a exclusão das mulheres escritoras francesas do cânone literário no período entre as duas guerras mundiais, ver MILLIGAN, 1996). Assim, a autonomização do campo filosófico, na segunda metade do século XVIII, faz-se por meio da invenção pelos kantianos de uma nova forma de escrita da história da filosofia, que a dissocia das doutrinas de redenção, excluindo, por sua vez, toda a herança não ocidental (PARK, 2014).

Às vezes, essa mesma forma de elitismo distintivo reivindica certa ruptura para com o público dos profanos em nome da autonomia, fazendo prevalecer o desinteresse do julgamento estético dos detentores de capital cultural, em conformidade à teoria kantiana, em contraposição ao utilitarismo daqueles que são desprovidos de um juízo especializado (para o caso da leitura, ver SAPIRO, 2011). As abordagens marxistas falavam, a esse respeito, de mistificação das classes populares e de alienação da consciência, à exceção dos fundadores dos Estudos Culturais, que retomaram essas teses para distinguir, de um lado, cultura de massa e cultura popular (WILLIAMS, 1974), e de outro, para contestar a tese da identificação que subjaz à ideia de alienação (HOGGART, 1970). Além do mais, a sociologia do gosto e dos usos põe em xeque essa dicotomia, propondo uma reflexão sobre as homologias estruturais (LIZÉ; ROUEFF, 2010) e a diversidade dos usos sociais das produções culturais: Gérard Mauger e Claude Poliak (1998) mostram que a leitura estética não é mais que uma forma de apropriação entre outros interesses: entretenimento, educação e redenção.

4. Conclusão

Se o conceito de autonomia se origina de diferentes tradições que guardam significativas incompatibilidades, uma síntese fundamentada dessas abordagens pode revelar-se fecunda para explorar o funcionamento dos espaços de produção dos bens simbólicos. É, igualmente, interessante para examinar as zonas onde essas definições estabelecem concorrência. Por exemplo, entre autonomia profissional e autonomia no sentido da teoria dos campos (ver artigo de Myrtille Picaud neste número). Desse modo, a tensão entre reivindicações profissionais e aspirações à autonomia em relação ao Estado e ao mercado entra em contradição no campo literário, onde o reconhecimento profissional repousa sobre o rendimento e não sobre o julgamento de qualidade (SAPIRO; GOBILLE, 2006; SAPIRO, 2016).

De modo geral, como já sugerimos (SAPIRO, 2006), não há vínculo necessário entre profissionalização e autonomia, pois a primeira está associada a lógicas corporativas que podem ser mais ou menos contrabalançadas pelos efeitos do campo. O exemplo dos engenheiros e professores do Terceiro Reich, ou o dos produtores intelectuais e artísticos na antiga União Soviética, profissionalizados pelo Estado, que centralizou e estatizou sua produção para melhor controlá-la e subordiná-la aos fins de propaganda, mostram que seria mais pertinente nos afastarmos da ideologia profissional para estudar mais concretamente a organização e as práticas, incorporando os casos de exclusão ou de restrição de indivíduos em razão de seu sexo ou de suas origens geográficas, nacionais, sociais e étnicas. A mesma medida se aplica às restrições impostas pelo mercado, haja vista que a heteronomia pode favorecer a profissionalização, como ilustra o caso paradigmático dos blockbusters ou dos best-sellers.

Ademais, para além das restrições exteriores, a autonomia da razão e da criação pode ser posta a serviço dos poderes e ser invocada para justificar a dominação, como a fizeram inúmeras profissões organizadas (médicos, juristas) ou ideólogos e especialistas, tanto recrutados nas fileiras do serviço público, nas universidades, quanto produtores “independentes”. Consequentemente, a autonomia da razão crítica, não respondendo a uma demanda externa, mas agindo em nome da sua consciência e de seus valores próprios (verdade, justiça), deve ser distinguida como uma forma específica de exercício da autonomia intelectual, suscetível de fazer emergir formas simbólicas alternativas ou de oposição6.

Por fim, a reflexão sobre as profissões, assim como aquela sobre os campos, propõe não apenas a questão das lutas de concorrência ligadas à divisão do trabalho e ao reconhecimento social de um domínio de competência (processo de especialização), mas também o aspecto das fronteiras geográficas. Ora, a autonomia nacional nem sempre é sinônimo de autonomia do campo em relação ao poder. Certamente, tal como a organização profissional, a autonomização dos campos foi associada à emergência dos estados-nações e à concorrência entre eles. Mas, ao mesmo tempo, ela os transborda, pela lógica de mercado para a produção cultural, pela circulação dos saberes e modelos para as profissões, embora esta última seja mais ou menos regulada pelos Estados (equivalências), tanto por acordos internacionais como a convenção de Berna sobre o direito autoral7, ou por organizações internacionais como a Unesco, quanto por associações profissionais internacionais (SAPIRO, 2013). No entanto, Pascale Casanova (1999) mostrou que é por meio do afastamento de seu envolvimento com as construções de identidades nacionais que os escritores afirmaram sua autonomia, geralmente graças à importação de modelos estrangeiros. E, como afirmam Bourdieu (1985b) e Paul Aron (2005) a propósito da literatura belga, não basta haver instâncias de difusão e consagração nacionais para que se constitua um campo autônomo, pois o polo mais autônomo do campo belga buscava ininterruptamente a consagração parisiense.

*Este artigo é resultado de uma reformulação de comunicação apresentada na jornada de estudos “Autonomia em questão”, da Rede Temática 27 da Associação Francesa de Sociologia, em fevereiro de 2015, versão retomada para uma palestra no Colóquio “Autonomia presumida: literatura e arte na teoria e prática”, realizada na Universidade de Estocolmo (Suécia), de 10 a 13 de maio de 2016. Agradeço a David Armitage, Mathieu Hauchecorne e Richard Swedberg pelas leituras e preciosos comentários sobre as versões que resultaram neste texto. Tradução do Prof. Dr. Névio de Campos (PPGE/UEPG). Revisão técnica de Francisco Roberto Szezech Innocêncio. Trata-se de uma tradução da versão francesa do artigo publicado na revista Biens Symboliques (Revista de Ciências Sociais sobre Artes, Cultura e Ideias), n. 4, 2019, onde é possível acessá-lo também em inglês (<https://www.biens-symboliques.net/327?file=1>). A Imprensa Universitária de Vincennes concedeu os direitos de tradução à Língua Portuguesa. (N. do T.).

1O leitor poderá consultar um livro de Gisèle Sapiro recentemente traduzido no Brasil: SAPIRO, G. Sociologia da literatura. Tradução: Juçara Valentino. Belo Horizonte: Moinhos; Contafios, 2019. (N do T.).

2Salvo indicação contrária, grifos do original.

3Em 2013 foi publicada a obra Manet. Une révolution symbolique. Cours au Collège de France 1998-2000. (N. do T.)

4Devemos acrescentar a margem de interpretação e hierarquização dos fins deixada aos profissionais, como sugere Florent Champy, que também propõe a questão de saber se se trata de uma autonomia de reflexão ou de decisão (CHAMPY, 2012, p. 191-230).

5Estratégia utilizada por escritores para copiar e distribuir livros que eram censurados na antiga União Soviética. (N. do T.).

6O leitor brasileiro poderá acessar artigo de Gisèle Sapiro em Língua Portuguesa: SAPIRO, G. Modelos de intervenção política dos intelectuais: o caso francês. Revista Pós Ciências Sociais, São Luis, v. 9, n. 17, p. 19-50, 2012. Tradução: Ernesto Seidl. (N. do T.)

7Convenção ocorrida no ano de 1886, na cidade de Berna, Suíça. (N. do T.)

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Recebido: 10 de Fevereiro de 2020; Aceito: 15 de Março de 2020; Publicado: 21 de Março de 2020

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