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Práxis Educativa

versión impresa ISSN 1809-4031versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.15  Ponta Grossa  2020  Epub 02-Sep-2020

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.16197.062 

Artigos

Transformações educativas em tempos de pandemia: do confinamento social ao isolamento curricular

Educational transformations in pandemic times: from social confinement to curriculum isolation

Transformaciones educativas en tiempos de pandemia: del confinamiento social al aislamiento curricular

* Docente do Instituto de Educação, Universidade do Minho (UMinho), Braga, Portugal. E-mail: <jmorgado@ie.uminho.pt>.

** Investigadora do Centro de Investigação em Educação (CIEd), Universidade do Minho (UMinho), Braga, Portugal. E-mail: <jsousa@ie.uminho.pt>.

*** Docente do Instituto de Educação, Universidade do Minho (UMinho), Braga, Portugal. E-mail: <jpacheco@ie.uminho.pt>.


Resumo

A educação confronta-se hoje com uma série de desafios, resultantes da crise provocada pela pandemia COVID-19. A mudança da forma de trabalho dos professores é um bom exemplo, já que, por causa do confinamento social que essa crise gerou, e no contexto de medidas de emergência, o ensino presencial deu lugar ao ensino online, uma modalidade que é acelerada de modo intenso em transição para a sociedade digital ou para o predomínio da subjetividade digital. É, pois, sobre essa mudança de paradigma, bem como sobre o papel das tecnologias digitais na realização das atividades pedagógicas a distância e seus reflexos em termos curriculares que refletimos neste texto. Nessa reflexão, não descuramos a influência que a digitalização das relações e o zoomismo assumem nesse novo modo de pensar a escola, que é um “novo normal”, embora o digital não venha a substituir a relação pedagógica, como se tem pretendido com os sucessivos recursos introduzidos na escola.

Palavras-chave: Mudanças sociais; Transformações educativas; Zoomismo; Isolamento Curricular

Abstract

Education today faces a series of challenges, resulting from the crisis caused by the pandemic COVID-19. The change in the way teachers work is a good example, because of the social confinement that this crisis has generated, and in the context of an emergency, classroom teaching has given space to online teaching, a modality that is accelerated in a way intense in the transition to the digital society or the predominance of digital subjectivity. It is, therefore, about this paradigm shift, as well as about the role of digital technologies in carrying out distance learning activities and their reflexes in curricular terms that we ponder in this text. In this reflection, we do not neglect the influence that the digitalization of relations and zoomism assume in this new way of thinking about the school, which is a “new normal”, although digital does not come to replace the pedagogical relationship, as has been intended with successive ones resources introduced at school.

Keywords: Social changes; Educational transformations; Zoomism; Curriculum Isolation

Resumen

La educación hoy enfrenta una serie de desafíos, como resultado de la crisis causada por la pandemia COVID-19. El cambio en la forma en que trabajan los docentes es un buen ejemplo, ya que, debido al encierro social que ha generado esta crisis, y en el contexto de las medidas de emergencia, la enseñanza en el aula ha dado paso a la enseñanza en línea, una modalidad que se acelera de manera intensa en la transición a la sociedad digital o el predominio de la subjetividad digital. Por lo tanto, se trata de este cambio de paradigma, así como del papel de las tecnologías digitales en la realización de actividades de enseñanza a distancia y sus reflejos en términos curriculares que reflexionamos en este texto. En esta reflexión, no descuidamos la influencia que la digitalización de las relaciones y el zoomismo asumen en esta nueva forma de pensar sobre la escuela, que es una “nueva normalidad”, aunque lo digital no reemplaza la relación pedagógica, como se pretendía con los sucesivos recursos introducidos en la escuela.

Palabras clave: Cambios sociales; Transformaciones educativas; Zoomismo; Aislamiento Curricular

Introdução

Não existem crises fáceis. Toda a sociedade se depara com problemas diversos quando a anormalidade impera. Para os/as professores/as e educadores/as esses problemas multiplicam-se pela ansiedade dos quase dois milhões de alunos/as e crianças de que são responsáveis e que, na maioria, estão nas suas respetivas casas.

Mais do que nunca a educação está a passar por um momento de grandes desafios. Nos últimos meses, a comunidade educativa tem sofrido imensas alterações nas suas práticas, agudizadas pela ausência física e pela presença invisível a que o mundo da digitalização nos foi habituando. Estamos perante uma situação que requer grande capacidade de colaboração, partilha e inovação entre os atores da comunidade educativa.

Com este texto pretendemos refletir sobre o que aprendemos neste estado de crise pandémica. Que transformações curriculares ocorrem perante a necessidade de confinamento social? Na esteira de Santos (2020, p. 13), a realidade que vivemos é uma excecionalidade da exceção, e refletir sobre esse tempo de anormalidade reveste-se de uma enorme complexidade, pois “o problema é que a prática caótica e esquiva dos dias foge à teorização e exige ser entendida em modo de sub-teorização”. Qualquer análise do momento de exceção que vivemos estará aprisionada em si própria, pois o tempo da realidade não é o mesmo tempo da perceção dessa mesma realidade; tal como a Teoria da Relatividade de Einstein demonstrou, não há um tempo absoluto. Ainda que não sejamos especialistas da Física, esta ciência que estuda a natureza e os seus fenómenos, neste caso o espaço e o tempo, serve de alegoria para compreender que a análise da realidade emergente é cruelmente ambígua, “como se a claridade da pandemia criasse tanta transparência que nos impedisse de ler e muito menos reescrever o que fôssemos registando no ecrã ou no papel” (SANTOS, 2020, p. 14). Apesar de todas estas limitações, este texto procura, de alguma forma, compreender os fenómenos curriculares em tempos de crise pandémica.

Transformações sociais, risco e incerteza

Vivemos numa época em que o fluxo de informações é volumoso e o conhecimento “um recurso flexível, fluido, sempre em expansão e mudança” (HARGREAVES, 2003, p. 33), o que permite reconhecê-lo como uma das principais forças motrizes das sociedades contemporâneas, uma vez que contribui para o desenvolvimento de áreas tão importantes como a saúde, a alimentação, o ambiente, a economia, entre outras. Assim se justificam os sucessivos investimentos que os governos de vários países têm feito no domínio da produção científica, o que torna evidente o reconhecimento de que a ciência é um bem público, essencial para a melhoria da qualidade de vida das populações e para o seu enriquecimento intelectual e cultural.

Contudo, esses investimentos nem sempre têm sido canalizados para a consecução de propósitos que referimos. Tendo em conta que “o conhecimento é tanto saber quanto força produtiva”, Giannotti (2002, p. 222) afiança que a ciência se tem subordinado “ao movimento do capital, na medida em que este se torna processo reflexivo inteligente”, já que, no âmbito da estrutura concorrencial típica do mercado capitalista, importa a cada empresa, para além da obtenção de mais lucro, “ocupar uma posição estratégica face aos aliados e concorrentes”, mas também “obter conhecimento global do campo da sua atuação”. É essa relação que tem permitido reconfigurar o mercado de trabalho, agora em simbiose com a Sociedade da Informação e do Conhecimento, exigindo trabalhadores qualificados, predispostos para a aprendizagem contínua.

Este cenário de mudança contou com a colaboração da tecnologia, que foi alvo de uma profunda revolução e contribuiu para que, nos anos mais recentes, tivéssemos sido rapidamente invadidos por uma torrente de transformações em diversas áreas, fazendo eclodir dinâmicas cada vez mais frenéticas, num clima de hiperatividade que, em muitas situações, permitiu confundir o mito da velocidade com o sucesso garantido. De facto, o ritmo da mudança intensificou-se de forma acelerada, contribuindo para que o futuro se passasse a circunscrever mais ao imediato, permitindo a Innerarity (2009) falar em tirania do presente para identificar a sobrevalorização que hoje fazemos do curto prazo e do aqui e agora (just in time), provocando a desestruturação da nossa relação com o tempo e uma efetiva miopia temporal que, em conjunto, nos impedem de projetor o futuro a longo prazo.

Na opinião de Lipovetsky (2016, 2019), essa tirania não pode dissociar-se do que designa por economia consumista para caracterizar um modelo de mercado que tem inundado o nosso quotidiano de atrativas e exóticas ofertas comerciais e se estruturou de modo a captar a nossa atenção, os nossos desejos e os nossos afetos, dando corpo ao que designa por Sociedade da Sedução. No fundo, um modelo de sociedade que, na ótica do autor se estruturou com base numa lógica hedonista, fez do prazer um bem supremo, da febre do conforto a paixão das populações e da sedução uma das principais forças estruturantes da nossa vida individual e coletiva.

Numa análise às mudanças nas duas últimas décadas do Século XX e nas primeiras do Século XXI, Han (2014, p. 9) considera que estamos perante dois paradigmas sociais distintos: (i) o primeiro, que denomina paradigma imunológico, baseado numa “clara distinção entre interior e exterior, amigo e inimigo, próprio e estranho”, garantindo essa dicotomia através de uma relação de alteridade entre negatividade e positividade, o que motivou que tudo fosse estranho ao organismo era eliminado por ser negativo para o mesmo; (ii) o segundo, que emerge à medida que o anterior se definha e que identifica como paradigma neuronal, por se basear na permissividade e corporizar a perda de relevância das questões imunológicas a favor de questões do foro neuronal, tais como “a depressão, o transtorno por défice de atenção, a hiperatividade (TDAH) ou certas perturbações da personalidade”. No fundo, um conjunto de doenças típicas de um panorama patológico característico do Séc. XXI e que permite constatar que deixámos de estar perante infeções para passarmos a estar perante “enfartes, originados não pela negatividade do outro imunológico, mas por um excesso de positividade”.

Estes paradigmas tiveram uma ampla projeção social, visível, no primeiro caso, pela disciplina e pelo controlo que caracterizaram a sociedade da época, determinando o que não se devia fazer, numa lógica de não-poder típica dos sistemas que produzem sujeitos de obediência; no segundo caso, pela implementação de um novo arquétipo, fundado numa lógica de produção, marcada pela afirmação da positividade do poder face à negatividade do dever (HAN, 2014, p. 19), o que condicionou bastante os ritmos de trabalho, provocou desgaste e fez aflorar doenças típicas do foro neuronal.

Esta mudança paradigmática acabou por gerar dois efeitos distintos: por um lado, a sensação de que tínhamos passado a viver sem inimigos, uma vez que “o paradigma imunológico tinha perdido a sua vigência”, baseada em grande parte “na negatividade do inimigo” (HAN, 2020, p. 107); por outro lado, a afirmação de um modelo social onde os maiores perigos resultam de um excesso de positividade, por isso altamente permissiva, configurada na base de excessos de rendimento, de produção e de comunicação, onde cada indivíduo passou a ser empresário de si mesmo (HAN, 2020, p. 108).

Ora, numa sociedade “tão debilitada imunologicamente”, em grande parte pelos efeitos devastadores do capitalismo global (HAN, 2020, p. 108), surge repentinamente um vírus, não informático, mas um vírus real, que causa uma comoção mundial e que, perante uma clara apatia social, encontra condições para proliferar de forma fácil, rápida e exponencial. De repente, os avanços científicos e tecnológicos são postos em causa, dada a incapacidade que revelam no controlo dessa “praga” que, pelo seu efeito letal, acaba por gerar uma sensação de pânico a nível global.

Trata-se de uma situação de risco, neste momento apenas contornável através de um efetivo isolamento físico e da ausência de contacto com eventuais portadores do vírus, o que gera uma enorme sensação de desconfiança e incerteza, tanto em relação ao momento atual como a um futuro próximo. Na verdade, rapidamente fomos conduzidos a um novo paradigma que não é nem imunológico nem neuronal, cujos contornos ainda por definir geram uma ansiedade crescente que acaba por se refletir em distintas áreas que tecem o nosso contexto de vida.

É sobre este novo paradigma associado ao momento pandémico em que nos encontramos inseridos, um paradigma ainda indefinido, que procuraremos tecer algumas considerações no segmento seguinte. Ainda que se possa admitir que se trata do prelúdio de uma nova era, marcada por inúmeras indefinições e alguns riscos, não nos coibimos de refletir sobre eventuais efeitos que o mesmo possa gerar, tanto em termos individuais como coletivos, sobretudo na educação.

Zoomismo e novas relações humanas

Como acabámos de constatar, as mudanças que o mundo experienciou nos últimos meses, por causa da pandemia, do confinamento social e da alteração de rotinas, geraram consequências futuras ainda imprevisíveis. Começa a consolidar-se a ideia de que o mundo não voltará a ser igual, criando-se, porém, um “novo normal”, o que tem provocado algumas reflexões que procuram antever um eventual devir, sentido como uma forma de diluir alguma da incerteza que todo este processo tem produzido.

Ainda que a dificuldade de compreender o mundo não seja nova, como demonstram os sucessivos avisos que Beck (2017, p. 128) foi fazendo nos últimos anos, acerca dos perigos que estavam a degradar o mundo - como, por exemplo, as “alterações climáticas, os riscos associados à energia nuclear e à especulação financeira, aos organismos geneticamente modificados”, entre outros -, muitos deles encobertos por uma “cortina” de invisibilidade natural, esses avisos de pouco serviram, não sendo utilizados nem sequer para idealizar algumas defesas que nos ajudassem a proteger de eventuais calamidades, como tem ficado demonstrado com a atual pandemia.

De facto, estra crise é tão agressiva que nos compeliu a um isolamento físico, considerando Estévez (2020) que foram a angústia e o medo que estimularam o isolamento físico voluntário, permitindo, ao mesmo tempo, um controlo social eficaz. Só que, a gestão deste isolamento físico autoimposto não pode dissociar-se da produtividade, nem dos benefícios que lhe têm estado associados. Referimo-nos à adoção de uma modalidade laboral menos usual, o teletrabalho, concretizado agora através de plataformas digitais que viabilizam esta forma de trabalho em distintos setores profissionais, como acontece na educação, com as atividades letivas a distância desde o ensino básico até ao ensino superior. O digital ganha, assim, um novo sentido nas nossas vidas, reconhecendo Estévez (2020, p. 277) que,

Até há alguns meses atrás, poucos sabiam da plataforma Zoom. Hoje todo mundo a usa. Num futuro próximo, haverá outros que a substituirão, mas para fins analíticos, digamos que o Zoom marque o modelo de produção para o qual estamos a ser disciplinados. […] Uma mudança que procura imobilizar-nos o suficiente para não interromper a produção e o consumo, mas reduzir a propagação do vírus humano, que foi introduzido no meio ambiente, tornando-o inabitável e cada vez mais devastado pela sua utilização.

Na verdade, de modo análogo ao que aconteceu com a evolução dos modos de produção ao longo do Século XX - com o taylorismo a ser substituído pelo fordismo, um modelo de produção industrial em massa e que, passados alguns anos foi substituído pelo toyotismo, com perda de direitos até então conquistados pelos trabalhadores - afirma-se, neste momento, um modo alternativo de produção através do fechamento automático dos trabalhadores - o zoomismo. Um modo de produção que se funda no disciplinamento da classe média, com as consequências que daí resultam em termos de controlo social, e se afirma através de uma clara imobilidade produtiva (ESTÉVEZ, 2020), reconhecida agora como uma mais valia por permitir manter a produção e reduzir as respetivas despesas operacionais (eletricidade, computadores, internet, água, café), assumidas pelos próprios trabalhadores nas suas residências.

Só que, a comoção e as mudanças que esta crise sanitária tem gerado [e continua a gerar], de magnitude e consequências ainda indeterminadas, podem fazer aflorar alguns efeitos perversos que não podemos ignorar, sobretudo se pretendemos reagir de forma crítica e sustentada. Não deixando de reconhecer o contributo inestimável que as tecnologias têm propiciado, quer como suporte de vida, quer como esteio de relações, não podemos descartar a possibilidade de todo este fenómeno resvalar para um futuro ainda mais dependente da tecnologia, tanto em termos profissionais como sociais.

Na opinião de Naomi Klein (2020) , as vivências de confinamento das últimas semanas podem servir de balão de ensaio para delinear um futuro ainda mais tecnológico, isto é, “um futuro permanente - e altamente lucrativo - sem contacto”. Aliás, algumas dessas experiências já estavam a ser implementadas antes da pandemia, como demonstram o alargamento do Teletrabalho, a criação de Centros de Medicina Digital ou o aumento do número de cursos na modalidade de Ensino a Distância, fazendo crer que essas seriam algumas das melhores formas de apaziguar divergências e começar a diluir desigualdades.

É nesta ordem de ideias que é necessário delinear “caminhos” que evitem que o zoomismo e a ampla conetividade digital em que se apoia consigam “impor” uma viragem ainda mais digital nas nossas vidas. É que, na opinião de Han (2020), existe um outro motivo de preocupação que tem muito a ver com a digitalização: o facto de a digitalização eliminar a realidade. Na opinião de Han (2020, p. 109) isso acontece porque:

A realidade experiencia-se graças à resistência que oferece, e que também pode ser dolorosa. A digitalização, na cultura do “gosto” de tudo, suprime a negatividade da resistência. E na época pós-fática das fake news e dos deep fakes surge uma apatia face à realidade. Então, aqui está um vírus real e não um vírus de computador, que causa uma comoção.

Como se compreenderá, a educação é um dos setores onde estes efeitos podem gerar desconforto, uma vez que se trata de um empreendimento construído na base de relações, em grande parte relações presenciais, que fazem do ato pedagógico um momento de interação e partilha. Não deixando de voltar a reconhecer o inestimável contributo que as tecnologias disponibilizaram em tempo de pandemia, garantindo que as escolas pudessem continuar a funcionar, a digitalização permanente das relações humanas acabará, inevitavelmente, por desfigurar o próprio fenómeno educativo, que não se compadece de uma entrega permanente ao domínio do digital. Se isso se verificar, o ato educativo dificilmente se poderá assumir como um ponto de encontro e de debate em que docentes e estudantes, num estilo de educação partilhada, expõem os seus pontos de vista, partilham experiências e dão sentido às suas práticas.

Em nosso entender, o confinamento social e o zoomismo que dele resultou poderão, inclusive, gerar algum isolamento curricular que é necessário contrariar, aspeto a que nos referimos no segmento de análise seguinte. No entanto, convém lembrar que, em nossa opinião, as escolas estarão à altura de responder a esse desafio. Concordamos com Pacheco (2020), quando afirma que “as escolas são surpreendentes no modo como lidam com realidades extraordinárias e que a sua resiliência é um aspeto bastante positivo para este tempo difícil, que exige soluções urgentes e adequadas”.

Do confinamento social ao isolamento curricular

O isolamento curricular surge no âmbito do movimento social de eficiência provocado pelo zoomismo (ESTÉVEZ, 2020), podendo ter efeitos perniciosos se colocar o currículo numa posição de eficiência meramente focada na instrução. Isso aconteceu em meados dos anos 20 e 30 do Séc. XX, nos Estados Unidos da América, como se observa pela história do currículo: “Emprestado da gestão científica, os curriculistas de eficiência social fizeram da análise de tarefas e atividades os principais métodos de construção de currículo” (PINAR; REYNOLDS; SLATTERY; TAUBMAN, 2008, p. 124), num duelo com os princípios centrais do Movimento de Educação Progressiva, encabeçado por Dewey (1916/2017), que, argumentando acerca da importância da reorganização curricular centrada no aluno, defendia uma ideologia curricular que fomentasse práticas curriculares que favorecessem a interação com a realidade vivida e se apropriassem das mudanças que vão acontecendo, pois “a vida é um currículo” (REID, 2009).

Considerando este fenómeno à luz do campo dos Estudos Curriculares verifica-se, uma vez mais, o impacto revolucionário que as mudanças tecnológicas aportam à educação, à imagem do que ocorrera ao longo do Séc. XX. Webster (1976), numa análise do sistema educativo britânico, enfatiza que as crises fundamentais no currículo do século anterior, decorreram das inovações tecnológicas. A repetição desta disrupção renova a inquietude vivenciada anteriormente nos Estudos Curriculares, pelo que os decisores curriculares são atirados para a necessidade de responder a este contexto desafiante com soluções ágeis capazes de se adaptar e responder rapidamente às mudanças que o campo dos Estudos Curriculares enfrenta.

O currículo como experiência centrada no indivíduo social leva-nos a refletir sobre o papel dos decisores curriculares em tempos de confinamento social. Às configurações curriculares que as limitações de interação física, impostas pela pandemia, possam tomar, “é preciso sublinhar a dimensão social, uma vez que o currículo está concebido para ter efeito sobre as pessoas” (GOODSON, 1997, p. 10). Neste sentido, associados ao espaço social da escola, os fenómenos curriculares que hoje vivemos, como o zoomismo (ESTÉVEZ, 2020), poderão aligeirar transformações curriculares impostas pela digitalização do currículo, enfraquecendo tanto as suas dimensões interativa e de construção social, como a sua dimensão pessoal, pois o currículo abarca as esferas públicas e privadas, aquela de ordem social e esta de ordem individual, com tendência para a subalternização desta última (PINAR, 2019).

Young (2010) relembra que a desconexão do currículo com a vida e as experiências devem ser preocupações que constem dos princípios organizadores do currículo académico. Aliás, estudos recentes apontam para o facto de no âmbito do currículo, os atores escolares sentirem que o tempo de pandemia demonstrou “a necessidade de promover e ampliar a diversidade de competências cognitivas, sociais e emocionais, e de se concentrar no bem-estar dos alunos” (REIMERS; SCHLEICHER, 2020, p. 6).

Para Pinar (1988, p. 22) as relações e interações no currículo são fundamentais: “não somos as histórias tanto quanto somos os modos de relação com os outros, nesse caso as nossas histórias implicam, modos de relação implícitos pelo que excluímos tanto quanto pelo que incluímos”. Em idêntica linha de pensamento, Schubert (2009, p. 22) questiona-se sobre o que o currículo deve conhecer, precisar, experimentar, fazer, ser, tornar-se, compartilhar, contribuir e questionar-se e, com base em Dewey, argumenta a importância da experiência do sujeito no crescimento educacional, dado que é na experiência que este cria significado, através da sua agência sobre o real, o que permite a construção de conhecimento com base no passado e na antecipação.

Este confinamento não pode criar um estado de isolamento no currículo, porque o currículo é, em essência, um espaço de partilha. Se, por um lado, o confinamento nos obriga a estar sós, por outro, não podemos esquecer que o currículo é uma construção social, baseada na cultura e nos conhecimentos e, por isso, delineado e concretizado com base num construto coletivo. Julgamos que a visão do currículo como construção social deve ser reiterada dado o contexto de zoomismo (ESTÉVEZ, 2020) que vivemos nas práticas curriculares. Caso contrário, sem uma vertente social na (re)construção curricular, o isolamento físico que vivemos pode levar o currículo à sua auto-absorção, ainda que saibamos que, como reitera Goodson (1997, p. 14), “o conceito de currículo [se impôs] no léxico das Ciências da Educação e é difícil escrever sobre as questões pedagógicas sem o utilizar por uma outra razão”.

Partindo do princípio de que o currículo não se deve enclausurar pelas limitações de qualquer finalismo instrumental, devendo, pelo contrário, abrir-se a todas as esferas da experiência da vida humana, nas quais se inclui o pensamento sobre o fenómeno digital, Harari (2018) desafia-nos a manter a concentração, tanto a nível coletivo como individual, numa era pejada de mudanças constantes e desorientadoras. Numa sociedade globalizada, que, de forma direta ou indireta, influencia cada vez mais a nossa “conduta pessoal e a nossa moral”, Harari (2018, p. 13) desafia-nos a manter “a clareza de espírito”, uma vez que “num mundo pejado de informação irrelevante, a lucidez dá-nos poder”. É que, num momento em que o liberalismo perdeu uma boa parte da sua credibilidade, sobretudo devido à pujança da tecnologia da informação e da biotecnologia, Harari (2018, p. 16) alerta para o perigo dos algoritmos da Big Data poderem criar “ditaduras digitais em que todo o poder se concentra nas mãos de uma pequeníssima elite”. E, se isso acontecer, eclodirá uma nova forma de sofrimento, “não devido à exploração, mas devido a algo muito pior: a irrelevância”. Por isso, estamos convictos de que nos tempos coevos, em que passado e futuro se fundem, será essencial uma nova conceptualização curricular, sendo nesse domínio que a discussão no âmbito dos Estudos Curriculares deverá focar-se.

Considerações finais

Após esta breve referência a um conjunto de aspetos que configuram o cenário educativo atual, importa, em jeito de balanço final, ressaltar algumas considerações que decorrem da análise que realizámos e que, mais do que conclusões acerca do ensino num cenário de emergência, se devem entender como pontos de partida para outras reflexões que venham a realizar-se em torno de uma temática que a todos diz respeito.

Embora seja um campo do conhecimento baseado em fundamentos teóricos e profundamente históricos, os Estudos Curriculares focam-se no futuro, pois “compreender o currículo representa historicamente um setor importante e dinâmico do campo contemporâneo” (PINAR; REYNOLDS; SLATTERY; TAUBMAN, 2008, p. 43). Urge, por isso, analisar os movimentos do currículo na experiência educativa que se vive neste tempo de pandemia, caracterizado pelo confinamento social e o isolamento curricular, sem perder de vista o contributo que daí pode resultar em termos de redução das desigualdades que continuam a pontuar no sistema, independentemente da modalidade de trabalho utilizada.

A relação do currículo com a vida (REID, 2009) remete-nos para a importância da vertente social na construção curricular, nomeadamente, num momento em que a digitalização do currículo impele a ampliação do uso das tecnologias no foro educacional, a uma velocidade e com uma intensidade nunca observadas, com consequências ainda pouco previsíveis num contexto de contingência educativa.

Importa, por isso, referir que não se pretende a balcanização do currículo e das tecnologias educativas, mas sim o debate profundo acerca do papel de ambos para a sociedade. Os fenómenos curriculares, que neste texto se destrinçaram, revelam a importância crítica que o contexto educativo tem no processo de ensino-aprendizagem, nomeadamente nas questões curriculares, sendo o currículo uma construção social que, de forma direta ou indireta, nos deve envolver a todos. E se os recursos tecnológicos passarem, de forma mais ampla, a fazer parte do quotidiano das escolas, jamais substituirão a relação pedagógica, fundada numa efetiva interação presencial, bem como na partilha e desenvolvimento de valores, atitudes e competências socioemocionais.

Na esteira destas considerações, importa debruçar o olhar sobre as temáticas abordadas no texto e encontrar sentidos para o enriquecimento do conhecimento sobre o fenómeno vivenciado na realidade atual e em que medida este poderá acarretar consequências posteriores, quer para a construção curricular, quer para os Estudos Curriculares, quer ainda para o desenvolvimento pessoal e social de cada indivíduo.

Por fim, convém não esquecer que, se é em situações de maior adversidade que, por norma, se geram soluções inovadoras e se concretizam as transformações mais significativas, estamos convictos que a escola conseguirá resistir e dar resposta às solicitações que hoje se avolumam, num cenário que, por mais adverso que se possa tornar, não deve fragilizar a nossa resiliência, nem desmobilizar a nossa vontade de fazer com que a educação aconteça e a escola se continue a afirmar como um espaço de referência política, económica e social.

Agradecimentos

Este trabalho é financiado pelo CIEd - Centro de Investigação em Educação, Instituto de Educação, Universidade do Minho, projetos UIDB/01661/2020 e UIDP/01661/2020, através de fundos nacionais da FCT/MCTES-PT.

1 Em Portugal, no ano letivo de 2018/2019 (dados mais recentes) estavam matriculados/inscritos no ensino público e privado 1.913.471 alunos (Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, 2019).

2 Cf. Soares (2020). Estará a pandemia a servir de balão de ensaio para um futuro ainda mais tecnológico? Disponível em: <https://www.rtp.pt/noticias/mundo/estara-a-pandemia-a-servir-de-balao-de-ensaio-para-um-futuro-ainda-mais-tecnologico_n1228561> . Acesso em: 17 de maio de 2020.

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Recebido: 01 de Junho de 2020; Aceito: 15 de Junho de 2020; Publicado: 18 de Junho de 2020

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