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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.15  Ponta Grossa  2020  Epub 02-Set-2020

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.16084.072 

Artigos

Uma nação sob risco (de aprender): análise do pensamento neoconservador sobre a educação e a experiência no governo Ronald Reagan (1981-1989)

A nation under risk (to learn): analysis of neoconservative thinking on education and the experience in Ronald Reagan’s presidency (1981-1989)

Una nación bajo riesgo (de aprender): análisis del pensamiento neoconservador sobre la educación y la experiencia en el gobierno Ronald Reagan (1981 - 1989)

Roberto Moll Neto* 
http://orcid.org/0000-0001-8763-939X

Rafael Pinheiro Caetano Damasceno** 
http://orcid.org/0000-0002-6475-0455

* Professor de História da América na Universidade Federal Fluminense (UFF); Doutor em Relações Internacionais. E-mail: <roberto.moll@gmail.com>.

** Professor no Instituto Superior de Educação Professor Aldo Muylaert (FAETEC); Doutor em Sociologia Política. E-mail: <rafaelpcd@gmail.com>.


Resumo

Este artigo tem por objetivo refletir sobre o papel da educação no pensamento neoconservador como chave para reconstrução da liderança global dos Estados Unidos da América (EUA), sobretudo na experiência do Governo Ronald Reagan (1981-1989). Para isso, investigou-se, com base na análise de conteúdo, o enlace entre os escritos de Irving Kristol, os discursos de Reagan, documentos oficiais, dados orçamentários e artigos de membros do Governo e de pesquisadores da área de educação no período. Esse esforço metodológico foi articulado à teoria sobre o Sistema Mundo Moderno, em especial ao exame da crise sistêmica que atingiu os EUA no final dos anos de 1960. Nesse contexto, o pensamento neoconservador emergiu como uma ideologia para reestruturar a liderança global estadunidense. Para isso, atacou e ressignificou o papel da educação, sugerindo uma articulação maior com a produtividade, a competitividade e a defesa militar. O Governo Reagan tentou colocar o projeto neoconservador para educação em prática, adaptando a realidade.

Palavras-chave: Neoconservadorismo; Educação; Relações Internacionais

Abstract

This article aims to reflect on the role of education in neoconservative thinking as a key to the reconstruction of the global leadership of the United States of America (USA), especially in Ronald Reagan’s presidency (1981-1989). To this end, it was investigated, based on content analysis, the link between Irving Kristol’s writings, Reagan’s speeches, official documents, budget data and articles written by members of the government and scholars in the period. This methodological effort was linked to the theory of the Modern World System, in particular the examination of the systemic crisis that hit the USA in the late 1960s. In this context, neoconservative thinking emerged as an ideology to restructure the American global leadership. In order to do so, it attacked and re-signified the role of education, suggesting a greater articulation with productivity, competitiveness and military defense. The Reagan administration tried to put the neoconservative education project into practice, adapting it to reality.

Keywords: Neoconservatism; Education; International relation

Resumen

Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre el papel de la educación en el pensamiento neoconservador como clave para la reconstrucción del liderazgo global de los Estados Unidos de América (EE. UU.), sobre todo, en la experiencia del gobierno de Ronald Reagan (1981-1989). Para ello, se investigó, con base en el análisis de contenido, el vínculo entre las escrituras de Irving Kristol, los discursos de Reagan, documentos oficiales, datos presupuestarios y artículos de miembros del Gobierno y de investigadores del área de educación en el período. Este esfuerzo metodológico fue vinculado a la teoría del Sistema Mundo Moderno, en especial al examen de la crisis sistémica que afectó a Estados Unidos a fines de los años 1960. En este contexto, el pensamiento neoconservador surgió como una ideología para reestructurar el liderazgo global estadounidense. Con este fin, atacó y re-significó el papel de la educación, sugiriendo una mayor articulación con la productividad, la competitividad y la defensa militar. El Gobierno Reagan intentó poner en práctica el proyecto neoconservador para educación, adaptándolo a la realidad.

Palabras clave: Neoconservadurismo; Educación; Relaciones Internacionales

Introdução

Diante da crise que atingiu o Sistema Mundo Moderno (SMM), no final dos anos 1960, os neoconservadores (neocons), nos Estados Unidos da América (EUA), tomaram a educação como uma peça importante para solucionar os dilemas militares e econômicos do país. O governo de Ronald Reagan (1981-1989), com viés fortemente neoconservador, readequou o papel do Governo Federal na educação em dois sentidos aparentemente contraditórios. Por um lado, reafirmou a irresponsabilidade do Governo Federal com a educação para concentrar os investimentos públicos no setor de defesa e abrir espaço para o capital privado. Por outro lado, reforçou a interferência do Governo Federal na formulação de uma educação tecnocrática e moral, a fim de superar o gap tecnológico das empresas estadunidenses em relação aos concorrentes de outros países e com o objetivo de construir a hegemonia em articulação com outros setores conservadores, em especial com fundamentalistas religiosos. Nesse sentido, o Governo Reagan ressignificou profundamente o papel da educação, substituindo a concepção do estudante como ser social pela concepção do estudante como peça para reconstrução da liderança global dos Estados Unidos.

Este artigo buscará refletir sobre o papel da educação para os neocons, em especial na experiência do Governo Reagan, como parte do esforço de reconstrução da hegemonia estadunidense no SMM. Para isso, procura-se analisar o conteúdo de documentos que revelam a política do Governo Reagan para a educação, como: artigos de Irving Kristol, pai fundador do neoconservadorismo; discursos e propostas de Ronald Reagan para a educação; o famoso relatório “A Nation at Risk” e os debates sobre ele; e apropriações orçamentárias. Este artigo analisará esses documentos compreendendo os EUA como unidade de observação diante de um SMM imerso em uma crise que se formou entre 1967 e 1973 e se prolongou pelas décadas seguintes. Não se trata de submeter a compreensão da realidade dos EUA ou da educação estadunidense como reflexo funcional do SMM, supervalorizando variáveis exógenas e subestimando variáveis endógenas. Ao contrário, compreende o SMM a partir da definição de Wallerstein:

Um sistema-mundo é um sistema social, com limites, estruturas, membros, regras de legitimação e coerência. Sua vida é composta pelas forças conflitantes que o sustentam pela tensão e o destrói na medida em que cada grupo busca eternamente remoldá-lo em seu benefício. Tem as características de um organismo, no sentido de que tem um ciclo de vida onde características mudam em alguns aspectos e se mantém estáveis em outros […]. Em minha visão, o que caracteriza um sistema social é o fato de que a vida dentro dele é altamente auto-contida e que as dinâmicas de seu desenvolvimento são largamente internas. (WALLERSTEIN, 1974, p. 347, tradução nossa).

Mais do que um sistema social, de acordo com Wallerstein (1974, p. 348, tradução nossa), o SMM “[...] é definido pelo fato de que sua autonomia enquanto entidade econômica material se baseia em uma extensa divisão do trabalho e pelo fato de conter dentro dele uma multiplicidade de culturas”. Para o autor, diferentemente dos impérios, o SMM não impõe um sistema político único. No entanto, é construído sobre uma economia mundial única, capitalista “[...] baseada na constante absorção de perdas econômicas por entidades políticas enquanto o ganho econômico é distribuído para entes privados” e “[...] opera dentro de uma arena maior do que qualquer entidade política pode controlar totalmente” (WALLERSTEIN, 1974, p. 348, tradução nossa).

O processo de acumulação de capital em escala global que caracteriza o SMM requer uma divisão axial e integrada do sistema produtivo entre Centros, Periferias e Semiperiferias. Nos Centros, as corporações capitalistas do SMM buscam construir um mercado global parcialmente livre e monopolizado a fim de garantir a realização do lucro. Nesse processo, conformam espaços de quase-monopólio econômico com Estados-Nação fortes para estabelecer as regras e os limites de funcionamento do mercado. Na periferia, os agentes econômicos pouco monopolizados ou não monopolizados conformam a Periferia como espaços de verdadeira competição econômica e, consequentemente, conformam Estados-Nação mais fracos com poucas capacidades para estabelecer regras e limites do funcionamento do mercado capitalista (WALLERSTEIN, 2004). A relação entre Centro e Periferia é uma relação de subordinação de regiões formalmente independentes, que, na prática, produzem e reproduzem uma relação de dependência.

A Periferia ajuda a frear a queda da taxa de lucros no Centro na medida em que garante a redução do valor do capital constante por meio da exportação maciça de matérias-primas baratas produzidas com mão de obra barata. Enquanto isso, o Centro monopoliza bens industriais e tecnologia. Nessa relação, o Centro está mais habilitado a estabelecer trocas desiguais que permitem extrair mais valia dos países da Periferia. Como mecanismo de compensação, o capitalista da Periferia redobra a exploração sobre os trabalhadores a fim de garantir a lucratividade (OSÓRIO, 2016). Esse processo seria acentuado em momentos de crise em que os preços dos bens manufaturados tendem a se manter estáveis ou ter pequenas quedas enquanto os produtos primários têm quedas agudas. Esse arranjo conforma um SMM volúvel e conflituoso. Como aponta Arrighi (1996), os Estados no Centro buscam operar a hegemonia global para ditar o funcionamento do SMM. Em outras palavras, buscam exercer uma liderança legítima para conformar e colocar em funcionamento as estruturas e as políticas sistêmicas para Estados fortes e fracos. Como aponta Wallerstein (2004, p. 27), “rivalidade intercapitalista é o nome do jogo” no Centro, na Periferia e na Semiperiferia. Já Chase-Dunn e Hall (1997) defendem, de forma mais ampla, o conceito de Sistema-Mundo para se referir ao conjunto de circunstâncias em que as pessoas vivem e estabelecem as redes sociais materiais importantes para suas vidas, constituindo um universo de interação social que sustenta e transforma as estruturas e as condições de vivência.

Dito isso, este artigo está dividido em três seções. A primeira seção apresentará um panorama sobre a crise do SMM e os impactos na educação. A segunda buscará discutir a perspectiva dos neocons sobre o papel da educação nos EUA. Nesse sentido, colocará foco sobre os artigos de Irving Kristol, figura que fundamentou o neoconservadorismo naquele país. Por fim, este artigo vai se concentrar na análise da relação entre o Governo Reagan, principal experiência de viés neoconservador, e as políticas educacionais. Essa última seção encontra-se dividida em três partes, em uma temporalidade que se sobrepõe. A primeira parte buscará discutir os primeiros anos do Governo Reagan, momento que há uma clara preocupação com a educação e a definição de algumas propostas e políticas educacionais genéricas, mas coerentes com o neoconservadorismo. A segunda parte vai analisar o relatório A nation at risk, gestado a partir de 1981, mas publicado apenas em 1983, quando o debate sobre a educação ganhou destaque absoluto nos EUA. Por fim, a terceira parte abordará os anos posteriores ao relatório, período em que Reagan o ressignificou diante das críticas e deu menos destaque ao tema.

A crise sistêmica e a educação nos EUA

Segundo Wallerstein e Hopkins (1996), a liderança global dos EUA no SMM se consolidou a partir de 1945, mas entrou em declínio com a crise sistêmica, que se formou entre os anos de 1967 e 1973, sobretudo em virtude da crise do dólar e da crise do petróleo, e se instalou permanentemente no SMM. De fundo, a crise do dólar está inexoravelmente associada à crise de competitividade estadunidense. No Centro do SMM, a recuperação econômica da Alemanha e do Japão, ocupando os próprios mercados internos nos anos de 1950 e o mercado internacional nos anos de 1960, promoveu uma maior competição global. Esse processo ganhou ainda mais intensidade com a crescente expansão comercial da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) sobre os países do Conselho para Assistência Econômica Mútua (COMECON) e os países recém independentes; e na Periferia e na Semiperiferia, com os programas de industrialização e de expansão do setor primário.

O aumento da produção e da competição no SMM provocou, naturalmente, um declínio nas taxas de lucro e, consequentemente, abateu os empregos e os salários. Nos EUA, essa dinâmica combinou-se com os gastos com a Guerra do Vietnã e com a expansão dos gastos públicos. Com isso, colocou em xeque a competitividade, a produtividade e a confiabilidade do dólar, levando a uma corrida pela conversão em ouro, o que levou o Governo de Richard Nixon (1969-1974) a colocar fim na paridade entre o dólar e o ouro. A Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), como reação à desvalorização da moeda estadunidense e aos conflitos no Oriente Médio, aumentou o preço do petróleo. Para Wallerstein e Hopkins (1996, p. 212), a crise do petróleo cumpriu a dupla função: ajustar os custos da produção e cobrir o “vácuo de mais valia”. Por um lado, o petróleo mais caro buscou reduzir a produtividade e a competitividade global, ajustando a demanda efetiva global. Por outro lado, possibilitou transformar petróleo em renda consumida nos países produtores e nos países que abrigam as transnacionais petrolíferas. Além disso, transformou-se em depósitos nos bancos da Europa e dos EUA, os chamados petrodólares, que foram convertidos em empréstimos consumidos nos países da periferia e da semi-periferia.

Ainda de acordo com o autor, o processo de conformação da crise sistêmica provocou três consequências estruturais no próprio SMM. Em primeiro lugar, deslocou o lócus da indústria convencional do Centro para a Periferia, a fim de diminuir os custos da produção por meio da super-exploração do trabalho. Esse movimento ganhou mais sustentação por intermédio do arranjo com as elites locais para reduzir a tributação sobre o capital, cortar investimentos públicos e desregulamentar as relações de produção. Em segundo lugar, o capital ampliou a concentração de investimentos nas aplicações no setor financeiro, sobretudo em títulos podres. Não menos importante, Wallerstein e Hopkins (1996) apontam que o processo de conformação da crise sistêmica provocou uma terceira consequência estrutural: a ampliação dos gastos militares. Os governos no Centro aumentaram os gastos militares com o objetivo de recuperar a competitividade e a produtividade por meio da indústria bélica. Vale lembrar que a industria bélica tem particularidades, uma vez que está vinculada à construção de uma demanda inescapável, quase exclusivamente estatal e menos sujeita às variações do mercado. Além disso, funciona como motor de tração da economia, uma vez que mobiliza uma extensa cadeia global de produção e de exploração. E, não menos importante, está intrinsecamente associada ao desenvolvimento contínuo de tecnologia, que, com frequência, é absorvido pelas indústrias de bens de produção e bens de consumo.

A ampliação dos gastos militares ocorreu em dois sentidos. 1) Os países na Periferia, principalmente produtores de petróleo, ampliaram a compra de armas, em especial, mas não exclusivamente, dos EUA (WALLERSTEIN; HOPKINS, 1996). Em geral, esses países na Periferia passavam por confrontos internos em decorrência de três processos frequentemente articulados: a construção do Estado pós colonial; a conformação de governos autoritários patrocinados pelos EUA; e o crescente embate entre e intra elites com movimentos sociais. De certo, a política de gastos no setor militar como ponta de lança da economia dos EUA realimentou a violência na Periferia. 2) Os EUA ampliaram a compra de armas, principalmente nos anos 1980, sob a justificativa de conter a URSS e outras ameaças (WALLERSTEIN; HOPKINS, 1996).

Esses três processos rapidamente aprofundaram as desigualdades estruturais globais latentes, no que concerne à classe, à raça e ao gênero. Ademais, sinalizou, sobretudo para a juventude, que a era das oportunidades e das grandes expectativas chegara ao fim. Em 1968, novos movimentos anti-sistêmicos explodiram no mundo todo, mais notadamente contra a hegemonia dos EUA e a liderança alternativa da URSS. Como apontam Wallerstein e Hopkins (1996), esses novos movimentos anti-sistêmicos desafiaram o domínio reformista sobre as normas intelectuais e políticas no Centro do SMM. Em outras palavras, desafiaram a geocultura, estrutura global de conhecimento que legitima o SMM desde sua fundação por meio da articulação entre o método científico eurocêntrico e o liberalismo calcado no triunfo do desenvolvimento como caminho inexorável para o progresso social, a harmonia global e a diminuição de desigualdade. De modo radical, os movimentos sociais desataram o compromisso com o Estado e o reformismo estatista fracassado em seu propósito redentor, redirecionando o foco para novas formas de solidariedade sem qualquer tipo de fronteira. Culturalmente, expressaram diversas formas de contracultura e modelos alternativos ao padrão que fundamentou a liderança estadunidense e o próprio capitalismo. Exigiram novas respostas, minando, inclusive, os movimentos anti-sistêmicos históricos com raízes sociais democratas, socialistas ou liberais sociais. Como reação, os movimentos conservadores voltaram ao prumo anti-reformista, lançando ataques contra qualquer solução que apresentasse novos papéis para o governo e para a ciência. Inclusive, uma fração desse novo conservadorismo abraçou o discurso fundamentalista cristão. Por sua vez, ao menos parte dos movimentos anti-sistêmicos históricos abandonaram o compromisso com o reformismo para evitar perder espaço político e eleitoral (WALLERSTEIN; HOPKINS, 1996).

De acordo com Aronowitz e Giroux (1986), em paralelo com a conformação da crise sistêmica, a demanda pelo ensino nos EUA estava em pleno crescimento, sobretudo nas universidades. Por um lado, como resultado das lutas por direitos civis e das demandas dos novos movimentos sociais, minorias e pobres estabeleceram a educação como um direito e como uma oportunidade, independentemente de testes ou avaliações estritamente meritocráticas. Por outro lado, os jovens buscaram qualificação para diminuir as incertezas econômicas do período. De forma geral, procuraram, na educação, principalmente nas universidades, uma forma de garantir segurança econômica, ao passo que as opções por empregos nas fábricas e nas fazendas estavam desaparecendo rapidamente. Com efeito, Aronowitz e Giroux (1986) observaram um declínio nas inscrições nos cursos voltados às Artes, às Ciências Sociais e às Humanidades (Liberal Arts) nas universidades, exceto nas mais procuradas e focadas nas elites. Eles constataram, por conseguinte, uma expansão de cursos e de inscrições na área técnica e tecnológica, sobretudo nas faculdades comunitárias, mais acessíveis aos mais pobres e às minorias. De acordo com os autores, no médio e longo prazo, a debilidade na formação cultural em Ciências Sociais e Humanidades, especialmente no que concerne à compreensão de grupos sociais diferentes, fortalece opções militares e violentas na resolução de conflitos.

Ainda de acordo com ambos, nas décadas seguintes, os governos estadunidenses reduziram de alguma forma os subsídios para as universidades, sob a justificativa de que era necessário cortar e racionalizar os investimentos públicos. Em sintonia, políticos e intelectuais conservadores, inclusive dentro da própria estrutura das universidades, atacaram a expansão do acesso ao Ensino Superior, frequentemente calcados em justificativas produtivistas e meritocráticas. Nesse sentido, regularmente, culparam as universidades pela baixa qualificação da mão de obra e, consequentemente, pela queda na produtividade e na competitividade do país. Todavia, não esconderam a oposição e as críticas aos novos movimentos anti-sistêmicos que floresceram nos campi. Em especial, golpearam as instituições e os professores das áreas de Artes, Ciências Sociais e Humanidades, que, supostamente, não tinham nenhuma função no mercado e representavam as críticas e as vitórias das minorias por meio do sistema educacional. Segundo Aronowitz e Giroux (1986), sem subsídios e investimentos, muitas universidades cortaram os recursos dos departamentos de História e Inglês. Esse fenômeno atingiu, mormente, o corpo docente. Muitas universidades substituíram os docentes com dedicação exclusiva e estabilidade por novos docentes horistas e com contratos de trabalho de no máximos seis anos. Além disso, perseguiram e demitiram docentes afinados com as minorias e/ou com o marxismo. Contudo, justificaram e legitimaram todo processo com base na “qualidade científica”, sem romper com a, presumida, liberdade científica (ARONOWITZ; GIROUX, 1986).

Aronowitz e Giroux (1986) observaram que o Ensino Fundamental e o Ensino Médio passaram por transição de uma perspectiva pedagógica voltada à cidadania para uma concepção educacional tecnicista. Inspirada em John Dewey, a tradição pedagógica estadunidense concebeu as escolas como peça chave na realização do “sonho americano”, reforçando a concepção dos EUA como terra da oportunidade ilimitada e da justiça social. Nesse prisma, a força dos EUA estava na democracia. Era necessário, portanto, treinar os trabalhadores, principalmente os imigrantes, para participação cívica na vida política e social do país. Para isso, a escola assumiu a missão de formar cidadãos social e politicamente ativos e, ao mesmo tempo, qualificados para o mundo do trabalho industrial, sobretudo por meio de aulas práticas fundadas na cooperação entre estudantes e a comunidade escolar.

Em franca oposição, a perspectiva tecnicista compreendeu a escola como instituição vital para o novo capitalismo, inclusive subordinada aos empreendimentos empresariais. A pedagogia voltada à cidadania no mundo industrial tradicional deveria dar lugar ao aprendizado por meio de novas tecnologias e para aumentar a produtividade e a competitividade das empresas estadunidenses em um novo mundo tecnológico. Mesmo o ensino básico deveria procurar a excelência, mensurada em termos de tecnologia, produtividade e competitividade para formar uma força de trabalho capaz de operar novas tecnologias nas fábricas e nos escritórios. Desse modo, a concepção de uma educação voltada ao mercado de trabalho tecnológico ressignificou a igualdade de oportunidades nas escolas e entre as escolas em virtude do acesso à estrutura tecnológica para formação para o mercado de trabalho. Reforçou o mito do acesso às novas tecnologias para qualificação técnica como solução para desigualdades estruturais. Em outras palavras, a desigualdade sumiria na medida em que pobres, minorias e mulheres fossem treinados para ocupar postos de trabalho extremamente específicos, qualificados e bem remunerados. Em suma, essa racionalidade economicista tornou-se o referencial da necessidade de mudança de perspectiva pedagógica, definindo as formas de ensino e o objetivo da educação em função do crescimento tecnológico capaz de promover produtividade e competitividade. Com isso, minou o pensamento crítico e naturalizou a desigualdade por intermédio de uma suposta meritocracia. A escola tornar-se-ia um espaço para conquistar objetivos individuais e promover o desenvolvimento industrial e econômico necessários para garantir a liderança dos EUA no cenário internacional (ARONOWITZ; GIROUX, 1986).

De acordo com Hill (2010), nessa perspectiva pedagógica, o mundo empresarial passou a ditar os princípios da administração das instituições de ensino. Sugeriu administrar as escolas e as universidades sob princípios do “novo gerencialismo público” baseado em métodos e princípios da administração empresarial. Deveria imperar, portanto, uma lógica racional economista de custos e benefícios. Logo, investimentos nas instituições de ensino deveriam ser mensurados de acordo com os benefícios voltados a ampliar a produtividade e a competitividade das empresas estadunidenses no mercado internacional e, consequentemente, a hegemonia dos EUA. Assim, muitos investimentos foram transformados em custos sem benefícios que deveriam ser cortados. Como lembra Hill, do ponto de vista racional econômico, o Estado não precisava prover Educação Superior e conhecimento cultural para a maioria dos estudantes, futuros trabalhadores dos EUA. Deveria apenas promover o ensino de habilidades básicas e gerais em consonância com o mundo do trabalho tecnológico. A educação nas universidades ficaria restrita àqueles que podem pagar e que ocupariam um lugar privilegiado no mercado de trabalho.

O autor aponta ainda que empresários e conservadores assaltaram a educação para derrubar projetos liberais progressistas, marxistas e sociais democratas. A partir dos anos de 1970, promoveram a humilhação e a difamação dos servidores públicos da educação, sempre caracterizados como lentos, caros, ineficientes e preocupados com interesses particulares. Tentaram estabelecer o controle sobre o currículo e sobre atividades pedagógicas, silenciando propostas contra-hegemônicas e sugerindo a construção de um currículo nacional ajustado, supostamente sanitizado e moral. Buscaram estabelecer um controle sobre professores e alunos, com aplicação de testes monitorados e confecção de listas negras. Em suma, utilizaram o espaço escolar para legitimar o conservadorismo, em especial o neoconservadorismo, como o bom senso e qualquer outra ideologia como um artifício nocivo à educação e aos EUA.

Irving Kristol e a conformação da educação como peça para reestruturar a liderança dos EUA

Nas três décadas que sucederam a formação da crise sistêmica em 1967-1973, os neoconservadores tentaram estabilizar a hegemonia estadunidense como reação contra a crise e os movimentos anti-sistêmicos. Irving Kristol, na revista The Public Interest (TPI), e Norman Podhoretz, no periódico Commentary Magazine, lideraram intelectuais neocons no processo de elaboração de um conjunto de ideias estruturado na: campanha contra políticas reformistas de expansão das políticas públicas e dos programas voltados a ampliar o bem-estar social (Welfare), incluindo aqueles pensados para melhorar a qualidade e o acesso à educação; oposição aos movimentos sociais e à contracultura, principalmente dentro das universidades; e a crítica à política externa de distensão entre EUA e URSS. De um ângulo econômico, os neocons, identificaram o crescente investimento na expansão dos programas sociais, inclusive aqueles inseridos nas escolas e nas universidades, como principal responsável pela inflação, pelo endividamento e pelos prejuízos à produtividade e à competitividade estadunidense. De uma perspectiva cultural e psicológica, os neocons identificaram três problemas ainda mais graves. Em primeiro lugar, a expansão do Welfare garantia a estabilidade econômica e, consequentemente, desestimulava o trabalho duro e a inovação, prendendo os indivíduos em um ciclo de pobreza e diminuindo a produtividade e a competitividade do país. Em segundo, a expansão do Welfare conformava um Estado ao mesmo tempo totalizante e desacreditado, que tomou o lugar da família, da igreja, da comunidade e do mercado para promover, especialmente nas escolas, um igualitarismo pervertido e abstrato sem nenhum sucesso possível. Assim, ensinava os jovens a valorizar a leniência, a dependência, o consumo de drogas, a pornografia e o sexo expressos na contracultura. Ao reforçar a dependência em relação ao Estado, o Welfare pavimentou o caminho em direção ao autoritarismo, uma vez que os indivíduos, presos na armadilha da pobreza e sem alternativas institucionais, demandariam sempre mais políticas e programas públicos. Consequentemente, abriam caminho para governos adotarem soluções autoritárias a fim de reformar a ordem econômica e/ou reprimir descontentes. Em terceiro, como soma desses fatores, a expansão do Welfare, incluindo os programas educacionais, fragilizou as capacidades econômicas e morais dos EUA na Guerra Fria.

Irving Kristol, pai fundador do neoconservadorismo, compreendeu a educação nos EUA intrinsecamente associada à liderança estadunidense no mercado global e à segurança da nação. Para Kristol (2011), os estudantes dos EUA deveriam aprender habilidades necessárias para enfrentar o mundo empresarial e o mundo do trabalho para criar riquezas e, consequentemente, garantir a liberdade dos indivíduos e da nação, uma vez que a economia de livre mercado era a primeira e principal esfera de manifestação do espírito livre e independente. Na linha de frente contra o Welfare, Kristol apontou o ensino noturno para jovens e adultos como um dos poucos exemplos de políticas públicas que funcionavam bem. Para Kristol, o ensino noturno permitia que milhões de estadunidenses melhorassem suas próprias condições de vida por meio do trabalho e, consequentemente, deixavam de depender de outros programas públicos. Com isso, o programa e os estudantes contribuíam para garantir a competitividade e a liderança dos EUA. Para Kristol (2011), nem todos os jovens deveriam querer ou poder ser médicos. Apresentando um falso dilema realista, Kristol sugeriu que os jovens pobres negros e latinos deveriam ser educados para o trabalho nas fábricas ou ficariam desempregados e alimentariam um ciclo de pobreza. Nas palavras de Kristol:

Todos estão preocupados com o desemprego entre os jovens dos guetos. Você pode imaginar um Estados Unidos da América onde há escassez de mecânicos de automóveis, sendo que há jovens “desempregados” nos guetos que conseguem desmontar um veículo em quatro minutos? Não faz sentido. Mas quando se tenta dar início a um programa de educação vocacional - e eu tentei bastante com várias fundações iniciar um programa de educação vocacional - eles dizem “Não! Não! Não queremos treinar esses meninos para serem mecânicos de automóveis. Queremos treiná-los para serem médicos, para serem cirurgiões”. Sejamos razoáveis. Nem todos podem ser médicos ou cirurgiões. Algumas pessoas acabarão como mecânicos de automóveis. Mecânicos de automóveis tem uma boa carreira. (KRISTOL, 2011, p. 85, tradução nossa).

Mais ainda, para Kristol, os projetos educacionais não deveriam buscar melhorar a vida de todos os pobres. Isso era inútil e ineficaz. Os projetos de educação dos EUA deveriam se preocupar em melhorar a vida por meio do trabalho apenas daqueles pobres que estão no topo e motivados. Deveriam estar, portanto, atentos à relação entre custos e benefícios. Nas palavras do próprio Kristol:

A ideia de que se deve ir diretamente aos desempregados barra pesada evadidos, que são barra pesada por um motivo, é utópica. Não são fáceis de lidar. A ideia de que se pode lidar facilmente com essas pessoas e transformá-los do dia para a noite em estudantes interessados é infantil. Seria muito cara e, no fim, só ajudaria alguns indivíduos. (KRISTOL, 2011, p. 86, tradução nossa).

Para Kristol (1995), os professores insistiam em projetos ineficazes e inúteis porque faziam parte de uma “Nova Classe”, guiada por interesses particulares. Na perspectiva de Kristol, essa “Nova Classe” era a personificação da articulação entre os problemas econômicos e os vícios sociais e espirituais da sociedade estadunidense. A “Nova Classe” buscava realizar seus próprios interesses particulares em nome de um igualitarismo perverso e de concepções equivocadas sobre justiça, igualdade e sociedade e em detrimento da Civilização Ocidental. Notadamente, a “Nova Classe” criou a explosão do Welfare para resolver o problema da desigualdade que ela mesma provocava, sobretudo com a Grande Sociedade, um guarda chuvas de programas sociais criado no governo de Lyndon B. Johnson (1963-1969).

Segundo Kristol, nos EUA, essa “Nova Classe” surgiu com a expansão do Ensino Superior. Os jovens saídos das universidades assaltaram o Estado e absorveram a maior parte dos recursos públicos como professores, assistentes sociais, advogados, médicos, nutricionistas e servidores de todo tipo, que promoviam e administravam programas sociais (KRISTOL, 1995). Na concepção de Kristol, a “Nova Classe”, especialmente nas escolas e nas universidades, estava, supostamente, engajada em uma batalha contra a comunidade empresarial, sob a bandeira da igualdade, mas queria conquistar apenas mais poder e status. Especificamente, os professores estavam indignados porque não ganhavam tanto quanto os empresários. Confundiam seus muitos privilégios com direitos adquiridos em virtude de um trabalho que não era excelente. Principalmente, nas áreas de ciências sociais e de humanidades, os professores estavam cheios de ressentimentos e queixas porque se sentiam subpagos, sem poder e sem reconhecimento. Por isso, frequentemente atacavam o establishment e os empresários, expressando raiva em termos ideológicos e recorrendo ao igualitarismo para reconstruir a sociedade de uma forma radical, que destruiria a Civilização Ocidental, em nome de seus próprios interesses. Nas palavras de Kristol (2011, p. 85), “[...] é muito difícil reformar o sistema de educação pública, povoado por pessoas com interesses, ideias e hábitos próprios. Não é interesse deles ser remodelados”.

Com esse propósito, a “Nova Classe”, principalmente na esfera educacional, procurou induzir o multiculturalismo e o conflito étnico-racial. Para Kristol (1995), o multiculturalismo representava um desvio deplorável na forma como os jovens estadunidenses deveriam ser educados, sob a falsa e equivocada alegação de que era necessário ampliar os horizontes dos estudantes para além dos currículos convencionais. Mais do que isso, o multiculturalismo era uma estratégia desesperada e fracassada para lidar com as deficiências educacionais estadunidenses, em especial associadas às patologias sociais dos estudantes negros. Era uma tragédia educacional, inclusive para os próprios negros. Nas palavras de Kristol (1995):

Embora o establishment educacional prefira morrer do que admitir, o multiculturalismo é uma estratégia desesperada - e um tiro no pé - para lidar com as deficiências educacionais e as patologias sociais dos jovens negros. Se esses jovens negros e seus problemas não existissem, ouviríamos pouco sobre multiculturalismo. [...]. (KRISTOL, 1995, p. 50, tradução nossa).

Sem dúvidas, hoje em dia, o multiculturalismo desorienta as mentes de milhares de nossos estudantes - principalmente negros. Não é uma reforma educacional. É uma tragédia educacional americana. (KRISTOL, 1995, p. 53, tradução nossa).

A “Nova Classe” reproduzia-se nas universidades, formando radicais alienados, que não sabiam o que acontecia no país e não apresentavam nenhuma demanda ou plataforma política. Os programas educacionais estavam subordinados à ideologia e ao programa político multicultural, que é, acima de tudo, anti-estadunidense, anti-ocidental e tinha por objetivo inculcar nos estudantes a consciência do Terceiro Mundo. Na prática, esses programas buscavam persuadir os estudantes, sobretudo as minorias, a desprezar e hostilizar os EUA e a Civilização Ocidental. Era uma guerra contra o Ocidente, tal e qual o nazismo e o stalinismo. Como aponta Kristol:

Na prática, isso significa um esforço para persuadir os estudantes de minorias para ser hostis para com a América e a civilização ocidental como um todo, vista como um velho sistema de opressão, colonialismo e exploração. O que esses radicais chamam de multiculturalismo é uma guerra contra o Ocidente tanto quando o nazismo e o stalinismo foram. (KRISTOL, 1995, p. 52, tradução nossa).

De acordo com Kristol (1995), os negros lideravam uma aliança entre feministas radicais, gays, lésbicas e demagogos, que asseguravam representar minorias étnicas e difundiam o multiculturalismo nos campi universitários. Em especial, os negros encabeçavam a coalizão porque tinham autoridade para classificar os críticos como racistas. Além disso, sustentavam uma vaga democracia participativa e um apoio alienado à URSS e a qualquer revolução popular.

Para Kristol (1995), a transformação dos EUA em um poder imperial no século XX exacerbou a necessidade de estabelecer uma relação entre intelectuais, principalmente professores e pesquisadores nas universidades, e os formuladores da política externa. Entretanto, os intelectuais nas universidades estavam constantemente adotando um “duplo padrão”, com críticas a um suposto autoritarismo patrocinado pelos EUA, mas elogios às ditaduras socialistas e comunistas. Mais do que isso, incentivavam os estudantes a promover ações políticas e sociais para enfraquecer a liderança global dos EUA. Como resultado, por um lado, vilanizavam e debochavam dos EUA, diminuindo o prestígio do país no cenário internacional e impondo dificuldades para a formulação de uma política externa coerente. Por outro lado, apenas uma pequena fração minoritária de intelectuais universitários ajudava o governo dos EUA a analizar o crescimento econômico e a avaliar o custo e a efetividade dos sistemas de defesa e dos programas internacionais de ajuda econômica.

O Governo Reagan e da educação como peça para reestruturar a liderança dos EUA

De forma geral, como proposta para preservar a hegemonia global dos EUA, os neocons sugeriram desvincular o papel do Estado do compromisso com o bem-estar dos indivíduos. Logo, os recursos do Welfare, inclusive aqueles destinados à educação, poderiam ser transferidos para defesa e segurança, a fim de promover uma nova ofensiva militar contra o comunismo e outras ameaças internacionais e, ao mesmo tempo, viabilizar a expansão de um novo modelo político-econômico-cultural neoconservador. Para isso, os neocons articularam três propostas: restaurar a eficiência econômica por meio do livre mercado; valorizar as instituições tradicionais como a família, a igreja, a comunidade e o mercado; e recuperar a liderança política e militar dos EUA no sistema internacional. Por um lado, o Estado deveria ter um papel circunscrito para viabilizar o livre mercado. Na prática, precisava: diminuir os investimentos governamentais; desregulamentar a economia; e estabelecer um sistema tributário regressivo. Por outro lado, o Estado deveria ser forte para promover os valores clássicos ocidentais com o objetivo de: assegurar a estabilidade política e econômica; evitar qualquer intervenção artificial na vida dos indivíduos e das instituições tradicionais; impedir o avanço da URSS e de novas ameaças; e garantir o livre mercado.

Em 1981, sob inspiração neocon, o governo de Ronald Reagan (1981-1989) lançou o “Reaganomics”, medidas econômicas para: desestruturar o Welfare; entregar o protagonismo das ações sociais para as instituições tradicionais; combater a inflação; aumentar a produtividade; e mover recursos para resgatar a liderança internacional dos EUA. Em outra frente, a administração Reagan encampou estratégias simbólicas e legais para enfrentar os novos e velhos movimentos anti-sistêmicos e a contracultura em nome dos valores das famílias e da nação. No plano internacional, o governo Reagan abandonou a estratégia de distensão e adotou um plano de contenção unilateral da URSS e de fomento seletivo da democracia e da liberdade no Terceiro Mundo, sobretudo por meio de operações secretas de desestabilização.

A educação cumpriria um papel fundamental nessa estratégia a partir de quatro vetores. 1) Os investimentos na educação funcionariam como manancial de corte de gastos, com o objetivo de promover redução de impostos para o setor produtivo e revalorização do dólar, e como fonte de recursos para a defesa, voltada a garantir a segurança militar dos EUA no cenário internacional, incluindo ações de combate à URSS e a outras ameaças. 2) A redução das responsabilidades do Estado com a educação dos cidadãos dinamizaria investimentos privados em escolas e universidades. Nesse sentido, a educação teria um potencial enorme para contribuir com a restauração da eficiência econômica por intermédio do livre mercado, mobilizando uma cadeia produtiva que vai desde a construção e a ampliação estrutural de instituições de ensino privadas até a expansão do setor de créditos para custear os investimentos das famílias com a educação, passando por todo o setor de suprimentos estudantis que abarca da produção agrícola à tecnologia de ponta. Consequentemente, abriria um vasto leque de possíveis alianças políticas com diferentes grupos da sociedade civil para fortalecer a viabilidade do projeto político, sobretudo empresários, mas também religiosos, que historicamente atuam no setor educacional. 3) As escolas e as universidades seriam o campo de batalha privilegiado para combater os movimentos anti-sistêmicos e/ou outras perspectivas críticas da realidade, instaurando novas percepções de mundo que privilegiariam os valores conservadores estadunidenses e uma economia de mercado. 4) As escolas e as universidades treinariam os estudantes com novas tecnologias para adequar o sistema produtivo estadunidense ao novo mundo industrial tecnológico, a fim de aumentar a produtividade e a competitividade, assegurando a liderança econômica sobre outros competidores, mormente Japão e Alemanha, e a superioridade militar sobre a URSS e outras ameaças à segurança interna e internacional.

Primeiros anos

Ao assumir o governo, Reagan nomeou o Secretário de Educação por último. Escolheu Terrel Bell, um republicano conservador e veterano da Segunda Guerra Mundial, que passou pela superintendência de várias escolas nos estados de Idaho, Wyoming e Utah e pela Comissão Nacional de Educação nos governos de Richard Nixon (1969-1974) e Gerald Ford (1974-1977).

Em um artigo escrito em 1986, após deixar o governo, Bell sintetizou os objetivos do Governo Reagan para educação: reduzir substancialmente os investimentos; responsabilizar estados e municípios; limitar o papel do Governo Federal; encorajar a formulação de leis para expandir as escolhas parentais e aumentar a competitividade entre o sistema público e o sistema privado, inspirado no livre mercado; diminuir as regulações e as ações da Justiça Federal nas instituições de ensino; fortalecer o ensino de Matemática, Ciências e Tecnologia; e substituir o Department of Education (DoED) por uma agência menos poderosa e proeminente.

De acordo com Bell (1986), a agenda estava em sintonia com movimentos conservadores dentro e fora da administração Reagan, com base, sobretudo, na concepção de que o Governo Federal não deveria investir em educação e que seria melhor abrir a área para aportes de empreendedores. Apenas famílias muito pobres deveriam receber alguma ajuda financeira para educar seus filhos, mas em troca precisariam trabalhar parcialmente nas escolas. Bell afirmou que grupos conservadores fora da Casa Branca, liderados intelectualmente por Samuel Blumenfeld, pressionaram o governo por meio de lobby e dos meios de comunicação, a fim de interferir na reformulação da política educacional. Blumenfeld era teórico da educação e empresário comprometido com a comercialização do método fônico e de memorização matemática para escolas e famílias interessadas em educar os filhos em casa. Segundo o secretário, Blumenfeld acreditava que a educação pública era um monopólio fraudulento de um estado fracassado. As escolas deveriam ser administradas pela iniciativa privada e submetidas à competitividade do mercado. Desse modo, como qualquer bem ou serviço, melhoraria a qualidade e diminuiria os custos. Em termos práticos, a educação deveria abandonar a cruzada para reformar o mundo e concentrar em funções limitadas e práticas. Em resumo, de acordo com Bell, Blumenfeld defendia que os estadunidenses precisavam compreender que somente uma educação livre do Estado poderia promover a expansão da liberdade no mundo.

O secretário também revelou a pressão de conservadores dentro do governo, sobretudo de David Stockman, Diretor do Office of Management and Budget (1981-1985). Segundo Bell (1986), Stockman queria cortar os investimentos na educação com medidas para: substituir o DoED por uma agência com menos recursos; extinguir programas de subsídios e bolsas para Educação Superior; abolir o National Institute for Education, o centro nacional de pesquisas sobre educação; e transferir os programas que não fossem extintos para outros departamentos. Além disso, Stockman teria vetado a primeira versão do relatório “A Nation at risk”, principal proposta de política educacional do Governo Reagan, porque exigiria muitos investimentos (BELL, 1986). Como estará disposto nas próximas páginas, o relatório propôs a reformulação do sistema de educação sem nenhum investimento do Governo Federal.

Antes mesmo de entrar na Casa Branca, Reagan prometeu extinguir o DoED. Justificou a promessa com a necessidade de reduzir os investimentos do Estado. Contudo, além do DoED, apenas o Department of Energy (DoE) deveria ter o mesmo destino. Um ano após assumir o governo, Reagan ainda tentou legitimar a extinção do DoED e do DoE. Nas palavras do presidente, ambos eram “[...] agências nas quais as políticas frequentemente têm sido exatamente o oposto do que nós necessitamos para o crescimento real da energia e uma educação saudável para nossas crianças” (REAGAN, 1982a, n.p., tradução nossa). Reagan saiu da Casa Branca sem conseguir extinguir o DoED e o DoE. De todo modo, após oitos anos de governo, a administração Reagan reduziu os investimentos na rubrica orçamentária chamada Educação e Treinamento para o Trabalho em 14% (CAMPAGNA, 1994, p. 226). Com isso, o Governo Reagan tentou, sem muito sucesso, diminuir significativamente os impostos para as empresas a fim de aumentar a competitividade. Conseguiu abrir espaço orçamentário para ampliar os gastos com defesa, que subiram de 22,7% para 26,5% do Produto Nacional Bruto (PNB) entre 1981 e 1989. E direcionou recursos para pagar os juros da dívida, que subiram de 9,85% para 14,8% do PNB no mesmo período, em grande medida porque o governo teve de buscar empréstimos no setor privado para sustentar o déficit orçamentário, majoritariamente, mas não exclusivamente, de fundo militar (CAMPAGNA, 1994).

Reagan legitimou os cortes nos investimentos em educação com a justificativa de que a defesa militar era a principal responsabilidade do Governo Federal. Além disso, Reagan sustentava que os investimentos do Governo Federal na educação resultaram em uma interferência desnecessária e nefasta. Segundo Reagan (1981b, n.p., tradução nossa): “Sentimos que muito da ajuda do Governo Federal para a educação resultou em interferência desnecessária, o que, na verdade, provavelmente desfez muito das ajudas ao empurrar despesas desnecessárias nas escolas”. Para Reagan (1983a), o Governo Federal criou uma burocracia enorme, a “Nova Classe”, que colocou em risco a educação e frequentemente reduziu o papel dos pais ao de estranhos. Nas palavras de Reagan (1983a, n.p.), “[...] nos anos recentes, nossas tradições de oportunidade e excelência na educação estiveram sob risco. Testemunhamos o crescimento de uma enorme burocracia educacional. Pais foram reduzidos ao papel de espectadores”. Para Reagan, a educação era incumbência dos estados, dos municípios, dos professores e dos pais. Não por acaso, o tema da semana de educação em 1981 era “American Education and You: Partners in Our Children’s Future”. De acordo com o Reagan (1981a, n.p., tradução nossa): “Historicamente, a responsabilidade primeira para educar nossa juventude esteve com os pais. O Estado e os educadores locais apoiavam os pais no exercício desse direito. […]. O sucesso do nosso sistema educacional depende do exercício desse direito pelos pais”.

Na lógica de corte de investimentos, o governo precisaria reduzir os empréstimos e os programas de bolsas e de subsídios para custear as universidades. De acordo com o presidente, os empréstimos e subsídios estavam sendo mal utilizados por gente que não precisa. Sem nenhum estudo ou prova, em uma conferência em 1982, Reagan (1982b, n.p., tradução nossa) afirmou: “Uma das questões sobre crédito educativo foi o conhecimento de que ficou tão aberto que as pessoas aderiam apenas para pegar o dinheiro e investir com as taxas de juros altas e fazer lucro em cima”. Na prática, a administração Reagan cortou completamente linhas de crédito para cursos determinados, como enfermagem. Entretanto, reconheceu que deveria destinar recursos para aqueles que realmente careciam e para áreas estratégicas. Nesse sentido, Reagan propôs a continuação da lei que criou o Veterans Education Assistance Project, para instituir e gerir um fundo coletivo de subsídio governamental, na proporção de US$2 do governo para cada US$1 retido dos soldos dos militares, com o objetivo de custear a Educação Superior após baixa.

Para dinamizar a entrada de investimentos privados na educação, o Governo Reagan articulou o corte nos investimentos públicos com incentivos tributários e subsídios para famílias que quisessem matricular os filhos em escolas privadas. Em 1982, a administração Reagan propôs o Education and Equity Act, lei que garantiu as famílias a restituição de até 50% dos valores gastos em escolas privadas em um ano. O limite máximo do valor da restituição não deveria ultrapassar US$500 para cada filho. Reagan apontou cinco justificativas para restituir os impostos das famílias. Em primeiro lugar, usou a lógica do peso da dupla taxação sobre famílias mais pobres, que pagariam os impostos para financiar as escolas públicas e os custos para matricular os filhos em escolas privadas. Nesse sentido, Reagan reforçou a dimensão individual dos impostos, em detrimento do caráter distributivo. Além disso, a medida incentivaria famílias pobres e minorias a procurar escolas melhores para os filhos, com mais treinamento tecnológico e melhores perspectivas de emprego. Em segundo lugar, Reagan garantiu que a ampliação de matrículas nas escolas privadas incentivaria o pluralismo e a competição entre estudantes, consequentemente melhoraria o ensino, na medida em que concorreria para atender melhor a diferentes demandas. Em terceiro, Reagan (1982d) afirmou que as escolas privadas valorizavam as escolhas individuais das famílias, sobretudo no que concerne à insatisfação com a falta de segurança, disciplina e ensino de valores morais. Em quarto lugar, o Governo Federal não tinha obrigação de garantir a educação em escolas públicas, mas o dever constitucional de assegurar a liberdade de escolha das famílias e investir recursos em outras áreas, como a defesa. Além disso, para o presidente, os políticos tradicionais e os burocratas, a “Nova Classe”, não se importavam com a qualidade da educação e os desejos da família (REAGAN, 1983c). Por último, Reagan (1982d) recorreu ao passado, lembrando o suposto papel determinante das escolas particulares, em especial confessionais, na história dos EUA.

De certo, a medida favoreceu enormemente, mas não exclusivamente, as escolas confessionais, que tinham um custo médio de US$300, enquanto as escolas privadas leigas tinham custo médio de US$900. Em 1982, Reagan (1982c) consolidou sua aliança com a Nova Direita Religiosa, que seria fundamental para o projeto de inspiração neoconservadora nas eleições minoritárias daquele ano e no pleito presidencial dois anos mais tarde (HIMMELSTEIN, 1990). Como apontam Alves Jr. e Trovão (2019), a política educacional do Governo Reagan encontrou um ponto de apoio na Nova Direita Religiosa, na medida em que concebiam a educação do país em franca decadência moral. Ademais, como os autores sugerem,

[...] a vinculação entre lideranças religiosas e o Departamento de Educação nos Estados Unidos durante os anos Reagan não pode ser considerada um fato casual, mas, sim, uma forma de política pública que se desenhava naquele momento histórico, no qual a própria Direita Cristã se articulou. Entre as ideias defendidas pelo Presidente e que permitiram aos conservadores religiosos a formação de um “grupo ativo”, estavam a oração nas escolas, a redução dos impostos e ampliação de financiamentos privados educacionais. (ALVES JR.; TROVÃO, 2019, p. 48).

O Governo Reagan procurou derrotar e deslegitimar os novos movimentos sociais e a contracultura por meio de uma série de ataques contra os direitos civis nas escolas e nas universidades. Como lembra Wilentz (2009), na campanha eleitoral para presidente, Reagan apelou para o discurso de Lei e Ordem, inaugurada por Richard Nixon, a fim de angariar os votos dos brancos conservadores no Sul e alienar politicamente trabalhadores brancos e católicos conservadores no Norte. Para Wilentz, no governo, Reagan estabeleceu uma “guerra cultural” nas Cortes e no Congresso para reverter a filosofia jurídica deixada pelo New Deal e pela Grande Sociedade. Entre outros, Reagan delegou a guerra contra os direitos civis a William Bradford Reynolds, Procurador Geral Assistente para os Direitos Civis. Sob o comando de Reynolds, a Divisão de Direitos Civis do Departamento de Justiça reverteu políticas de ações afirmativas em cidades, condados e estados, inclusive no que se refere à integração racial nas escolas.

Reagan frequentemente minimizou os efeitos da integração racial nas escolas e resistiu em impor qualquer medida. Mais de uma vez o presidente citou seu amigo, Wilson Riles, Superintendente de Educação da California: “A ideia de que crianças negras não conseguem aprender a não ser que estejam entre as brancas é absolutamente sem sentido” (REAGAN, 1981c n.p., tradução nossa). Mais do que isso, Reagan prometeu incentivar as escolas e as universidades voltadas exclusivamente aos negros, adotando um discurso condescendente e sem reconhecer que esses espaços foram criados como forma de resistência e de segurança por uma parcela da população historicamente segregada e marginalizada. Segundo Reagan (1981c, n.p., tradução nossa): “São uma tradição orgulhosa, um símbolo da determinação negra e entendo que devem ser preservadas”. Nesse sentido, Reagan instituiu o Decreto 12320 para desenvolver um programa federal com o objetivo de facilitar os investimentos nas faculdades comunitárias voltadas para os estudantes negros, sobretudo por meio da iniciativa privada. No discurso do ato, Reagan afirmou que a diversidade e a liberdade floresciam nessas faculdades porque nesses espaços os alunos, negros, eram quem escolheram ser e não quem o governo diz que eles deveriam ser. Nas palavras do presidente, “[...] que os indivíduos possam se tornar no tipo de pessoa que queiram ser e não o que algum administrador diga o que devem ser” (REAGAN, 1981d, n.p., tradução nossa).

Reagan também minimizou as especificidades da educação dos imigrantes latino-americanos e autóctones. Para ele, ensinar a língua materna dos imigrantes nas escolas, majoritariamente espanhol para latino-americanos, tinha um custo muito alto. Enfatizou várias vezes a importância da educação bilíngue, mas não a língua materna dos imigrantes. Mais do que isso, Reagan usou, mais uma vez, um tom condescendente, insinuando que ensinar a língua materna aos imigrantes diminuía as oportunidades no mercado de trabalho. Para Reagan (1981e, n.p., tradução nossa), “[...] embora haja necessidade de educação bilingue, é absolutamente errado encorajar e preservar línguas nativas ao invés de ensinar a língua de nossa terra aos que não a falam, para que eles possam ter as chaves para a oportunidade”. Inspirados em Reagan, o Estado do Texas chegou a rediscutir a lei que garantiu a educação bilíngue em 1969.

Curiosamente, ao contrário da disposição em incentivar as universidades para negros, Reagan colocou fim ao Tribally Community Act, lei instituída em 1978, com o objetivo de prover subvenção estatal para faculdades comunitárias controladas e administradas por comunidades autóctones. Reagan também se recusou a apoiar emendas para prestar assistência do Governo Federal aos estudantes dessas comunidades. Para o presidente, a intervenção federal e a regulação inibiam o desenvolvimento político e econômico das comunidades autóctones e, consequentemente, perpetuavam a dependência. Mais uma vez, com um discurso condescendente, Reagan afirmou que os governos das comunidades autóctones sabiam o que era melhor para os seus. Nas palavras de Reagan (1983b, n.p., tradução nossa): “Essa administração quer devolver os governos tribais aos seus lugares de direito junto aos governos dessa nação, para que possam reaver controle sobre seus próprios assuntos”.

A nação em risco

No tradicional Discurso à Nação no início de 1983, Reagan (1983d) deu destaque à política para educação com um plano de quatro ações: 1) Ampliar a qualidade do ensino de Matemática e Ciências por meio de pacotes de subvenção aos estados, com o objetivo de intensificar o treinamento para formação de mão de obra de qualidade voltada à industria tecnológica. 2) Estabelecer o Education Savings Account Act, um sistema de poupança para educação para estimular as famílias a enviarem os filhos para as universidades. O projeto isentaria a taxação para os aportes de até US$1.000 anuais para cada filho para famílias com renda de até US$40.000. 3) Aprovar o Education and Equity Act. 4) Aprovar uma emenda constitucional para permitir momentos de oração nas escolas, com adesão voluntária dos alunos. De acordo com Reagan (1983a, n.p., tradução nossa): “Deus, fonte de toda sabedoria, foi expulso das salas de aula”. Além disso, Reagan pediu a aprovação do Students Assistance Improvement Act, que, na prática, cortava novamente subsídios estudantis, com o objetivo de garantir que estudantes e famílias assumiriam a responsabilidade pelo financiamento da educação nas faculdades e nas universidades. Desse modo, o governo prometeu aumentar a responsabilidade das famílias sobre o financiamento das universidades por meio do sistema financeiro com o Education Savings Account Act ao passo que diminuiu bolsas e subsídios para a Educação Superior. Por fim, o Governo Reagan prometeu aprovar o Equal Education Opportunity Act, com o objetivo de permitir que estados e municípios utilizassem fundos da educação para estabelecer um sistema de vouchers para famílias que necessitavam de educação especial para os filhos. De acordo com Reagan, todas essas iniciativas estavam comprometidas em diminuir e evitar a interferência do Governo Federal nas decisões das famílias, dos estados e dos municípios, preservando o suporte para educação dos alunos deficientes, facilitando o acesso ao Ensino Superior e ajudando a melhorar o ensino de Ciências e de Matemática (REAGAN, 1983f).

Mais significativo, naquele mesmo ano, Reagan lançou o relatório A nation at risk, com o objetivo de reformular o sistema educacional estadunidense. Em 1981, o Governo Reagan identificou um suposto paralelo entre o declínio da economia e o declínio nos índices de avaliação dos estudantes secundaristas e universitários. Para Reagan (1983g), esse fenômeno estava associado aos fortes investimentos do Governo Federal, que fomentaram amplos programas curriculares voltados à educação, à sociabilidade, à cidadania e ao pensamento crítico no setor nas duas décadas anteriores. Nas palavras de Reagan (1983g, n.p., tradução nossa), “[...] escolas perderam de vista seu principal propósito: dar aos nossos estudantes o Ensino de qualidade que eles precisam e merecem”. Com isso, no mesmo ano, formou a National Comission on Excellence in Education para avaliar a qualidade do ensino e da aprendizagem em comparação a outras nações industrializadas, competidoras. Dois anos mais tarde, a comissão concluiu o trabalho e lançou o relatório. O título, A Nation at risk, caracteriza o sistema educacional como uma ameaça que colocava a nação em risco. Assim, enunciava a articulação necessária entre a reformulação do sistema educacional e a modernização da indústria e da defesa, com o intuito de fazer os EUA resguardarem sua liderança no cenário internacional. O preâmbulo evidencia essa articulação literalmente:

Nossa nação está em risco. Nossa proeminência nunca antes desafiada em comércio, indústria, ciência e inovação tecnológica está sendo tomada por competidores ao redor do mundo. Este relatório está preocupado com apenas uma das muitas causas e dimensões desse problema, mas uma que resguarda a segurança, a prosperidade e a civilidade americanas. […]. [...] as bases educacionais da nossa sociedade estão sendo erodidas por uma onda crescente de mediocridade que ameaça nosso futuro como povo e nação. (NATIONAL COMMISSION ON EXCELLENCE IN EDUCATION, 1983, p. 6, tradução nossa).

Apelando para uma linguagem bélica, o relatório acusou os governos anteriores de impor uma educação medíocre que desarmou a nação, sobretudo ao optar por investimentos em programas curriculares caros, ineficientes e supérfluos, que tinham como objetivo resolver problemas pessoais, políticos e sociais fora da alçada escolar. De acordo com o relatório: “Se um poder estrangeiro hostil tentasse impor na América o desempenho educacional medíocre que temos hoje, teríamos visto isso como um ato de guerra” (NATIONAL COMMISSION ON EXCELLENCE IN EDUCATION, 1983, p. 6, tradução nossa). Um importante indício de que a educação havia fracassado e colocado a nação em risco vinha dos militares e empresários: “Líderes militares e empresariais reclamam que precisam gastar milhões de dólares em programas de treinamento para o desenvolvimento de habilidades básicas como leitura, escrita e computação” (NATIONAL COMMISSION ON EXCELLENCE IN EDUCATION, 1983, p. 9, tradução nossa).

O relatório retratou o mundo como um mercado global povoado com competidores fortes, no qual a posição dos EUA dependeria de homens e de mulheres bem treinados: “A posição da América no mundo esteve bem guardada com apenas alguns homens e mulheres bem treinados” (NATIONAL COMMISSION ON EXCELLENCE IN EDUCATION, 1983, p. 7, tradução nossa) A educação aparece como matéria-prima para a produção e para a competitividade: “Conhecimento, aprendizado, informação e inteligência são as novas matérias primas do comércio internacional e estão se espalhando pelo mundo tão vigorosamente quanto remédios milagrosos, fertilizantes sintéticos e jeans fizeram antes” (NATIONAL COMMISSION ON EXCELLENCE IN EDUCATION, 1983, p. 7, tradução nossa). Nesse sentido, a qualidade da educação e a função da escola estavam submetidas ao desenvolvimento material e econômico da sociedade, que garantem a competitividade global e, em última instância, a própria segurança e defesa dos EUA. Segundo o relatório:

Em um mundo de competição cada vez mais acelerada e mudança no local de trabalho, de cada vez mais perigo e maiores oportunidades para aqueles preparados para elas, a reforma educativa deveria se concentrar em criar uma sociedade do aprendizado […]. NATIONAL COMMISSION ON EXCELLENCE IN EDUCATION, 1983, p. 12, tradução nossa).

Cidadãos também sabem que a segurança dos Estados Unidos depende principalmente da habilidade e do espírito de um povo autoconfiante hoje e amanhã. (NATIONAL COMMISSION ON EXCELLENCE IN EDUCATION, 1983, p. 15, tradução nossa).

A fim de tirar a nação do risco, o relatório sugeriu recuperar a excelência na educação, redefinindo o papel e os objetivos da escola. Definiu excelência a partir de testes para mensurar o esforço para promover as habilidades individuais em função do mercado de trabalho. Do ponto de vista comportamental, a escola deveria valorizar trabalho duro, bom comportamento, disciplina e motivação. O relatório não faz nenhuma menção à sociabilidade, à cidadania e ao pensamento crítico. As recomendações práticas estavam submetidas à necessidade de aumentar a produtividade e a competitividade, com padronização e controle meritocrático e tecnocrático. As escolas do Ensino Médio deveriam ter a formação completa em quatro anos, com 220 dias letivos anuais e com sete horas diárias de aulas. Deveriam oferecer, obrigatoriamente: quatro anos de Inglês; três anos de Matemática; três anos de Ciências; três anos de Estudos Sociais, condensando cursos das áreas de Artes, Ciências Sociais e de Humanidades; e um ano e meio de computação. O relatório recomenda, ainda, de forma facultativa, dois anos de língua estrangeira, como forma de preparar os estudantes para postos de trabalho em comércio internacional, segurança e diplomacia. Entre as recomendações de conteúdo para Estudos Sociais, o relatório sublinha a necessidade de ensinar aos estudantes a diferenciar “sociedades livres” de “sociedades repressoras”. Além disso, as escolas deveriam submeter os estudantes e os livros didáticos a testes nacionais padronizados. Os professores deveriam ser recompensados com aumento de salários, promoções e estabilidade de acordo com o mercado e em função de mérito, mensurados por meio dos testes nacionais. O Governo Federal deveria assumir o compromisso de identificar o interesse nacional na educação. Os estados e os municípios deveriam assumir a responsabilidade de financiar, governar e incorporar as reformas nas escolas. Os pais deveriam compreender a importância do conhecimento da língua inglesa, das Ciências e da Matemática para seus filhos. Curiosamente, o relatório não reforça a importância dos estudos sociais nesse aspecto. Os pais deveriam ainda contribuir para a educação dos filhos em casa, ensinando a integridade moral, o trabalho duro, o comprometimento e a disciplina. E tinham o direito de exigir o melhor das escolas e dos professores. Deveriam ser vigilantes. Por fim, o relatório cobre as recomendações com uma conclusão nacionalista, exortando um esforço coletivo em torno da educação para tornar os EUA mais fortes. “[...] acreditamos fortemente que a movimentação das escolas da América na direção proposta por nossas recomendações irá preparar essas crianças para vidas mais eficazes em uma América mais forte” (NATIONAL COMMISSION ON EXCELLENCE IN EDUCATION, 1983, p. 28, tradução nossa).

Para Philip Altbach (1986), o relatório consolidou uma ruptura com as reformas educacionais anteriores, que demandavam acesso aberto às instituições educacionais e currículos com propostas alternativas preocupados com os problemas da sociedade estadunidense, como temas sobre as minorias. Segundo Altbach, nos anos de 1950 e de 1960, o sistema educacional estadunidense abrigou programas inovadores com o objetivo de educar contra a pobreza e contra o racismo. Entretanto, esse sistema sofreu críticas profundas em virtude dos currículos excessivamente amplos e genéricos, que, supostamente, incentivaram o desinteresse dos estudantes nos cursos tradicionais, como Matemática e língua estrangeira e, por conseguinte, um declínio nos índices de avaliação, como o Scholastic Aptitude Test (SAT) . Além disso, nesse mesmo período, as escolas enfrentaram crescentes problemas disciplinares, agravados pela disseminação do consumo de drogas na sociedade estadunidense. E assistiram aos políticos de todos os espectros impor responsabilidades sobre problemas sociais complexos. Com isso, para Altbach (1986), a opinião pública passou a ver as escolas como um espaço de solução para todos os problemas do país e deu pouca atenção aos problemas como currículo, investimentos estruturais e formação e salários de professores. Na década de 1970, em meio à crise, a opinião pública consolidou a percepção de que o sistema educacional havia fracassado. Esse contexto criou um ambiente favorável para a produção e a recepção do relatório. Entretanto, o relatório não emergiu de forma orgânica da comunidade escolar, mas da elite empresarial, inclusive no meio educacional, com base em interesses particulares e em uma agenda prévia do Governo Reagan, preocupada com a educação apenas para treinar os jovens de acordo com as necessidades da indústria tecnológica. Em suma, o objetivo final do relatório era garantir a competitividade no mercado global, sem estabelecer grandes esforços financeiros.

Para Torres (1986), o relatório expressa a reação neocon contra as políticas de bem-estar social, como estratégia política de certas frações do capitalismo monopolista estadunidense vinculadas ao capital financeiro e ao establishment militar. De acordo com Torres, o relatório tinha como objetivo vincular a educação aos riscos que os EUA estavam sujeitos no sistema internacional, em especial no que se refere à segurança hemisférica, uma vez que o nível acadêmico implicaria maior ou menor segurança militar, e à competitividade comercial e industrial, sobretudo com Japão e Alemanha. Na prática, o relatório buscou reverter a educação progressista sugerindo esforços para: reduzir os investimentos na educação pública; cambiar as peças centrais do processo de ensino e de aprendizagem, dos estudantes e das políticas públicas para os professores, que deveriam ser os principais responsáveis pela excelência ou pela mediocridade do ensino; substituir a construção participativa do currículo pela padronização dos currículos; e retirar a ênfase da cooperação e da socialização para colocar o foco na competição entre estudantes e instituições.

Segundo Boyd (1987), a administração Reagan tentou promover uma reforma na educação com pouco investimento e sem compromisso do Governo Federal. Para Boyd, o relatório é fruto da percepção de que, para preservar o padrão de vida estadunidense, era necessário melhorar substancialmente o sistema educacional a fim de enfrentar os desafios econômicos e tecnológicos globais, principalmente recuperar a competitividade tecnológica frente à Alemanha e ao Japão. Politicamente, ao estabelecer objetivos para estados e municípios, esvaziou a demanda da oposição por mais investimentos e melhorias no sistema educacional. Desse modo, dividiu o peso da reforma com opositores e se desvencilhou da crítica sobre a transferência de gastos da educação para a defesa. A partir do relatório, o presidente ressignificou a semântica e a agenda política educacional estadunidense, principalmente no que concerne aos objetivos e aos propósitos do Governo Federal na educação. Com isso, transformou os valores que nortearam a educação estadunidense até os anos de 1970, substituindo: equidade por excelência; necessidade e acesso amplo por habilidade e seletividade; regulação por desregulação; escolas como espaços de comunidade por escolas como espaços de competição; e preocupação com o bem-estar por preocupação com economia e produtividade.

Após a publicação do relatório, Reagan reinterpretou e divulgou as principais ideias para reformar o sistema educacional estadunidense com o objetivo de resguardar a liderança dos EUA no cenário internacional. Para Reagan, as escolas estadunidenses precisavam preparar os alunos adequadamente como trabalhadores altamente qualificados. De acordo com Reagan (1983a, n.p., tradução nossa): “Enquanto líder do mundo livre, os Estados Unidos devem fortificar suas defesas, modernizar suas indústrias e se movimentar, com confiança, em direção a uma nova era de alta tecnologia. Para fazer isso, precisamos de uma força de trabalho inteligente e altamente capacitada”. Entretanto, para Reagan, as escolas estadunidenses não ensinavam Matemática e Ciências adequadamente para municiar os estudantes para o novo mercado de trabalho. Segundo o presidente, “[...] apenas um sexto de nossos egressos do Ensino Médio fez cursos de Ciências e Matemática em nível baixo ou avançado. E muitas escolas dos EUA não oferecem Matemática o suficiente para preparar alunos para os cursos de Engenharia” (REAGAN, 1983a, n.p., tradução nossa)

Reagan afirmou algumas vezes que, por todo o país, mesmo em cidades com alto índice de desemprego, os empregadores ofereciam empregos bem remunerados para pessoas educadas em Matemática e Ciências e gastavam bilhões para treinar pessoas para controlar novos equipamentos em fábricas e escritórios. Portanto, as escolas eram um obstáculo. Para Reagan, os EUA precisavam de um novo tipo de sistema escolar baseado na tecnologia como ferramenta educacional e como objetivo cognitivo orientado para o mercado de trabalho. Nas palavras do presidente (REAGAN, 1984a, n.p., tradução nossa), “[...] um sistema escolar que ensine nossas crianças a como enriquecer suas vidas usando telecomunicações como ferramentas educacionais, que os mostre como se educar para que possam manter suas habilidades atualizadas em um mercado de trabalho em constante mudança”.

Ainda em 1984, Reagan comemorou as mudanças no sistema educacional estadunidense. Estava provado que o dinheiro não era o problema. Sob a liderança dos cidadãos de bem, as escolas estadunidenses estavam voltando aos valores básicos e ao bom senso: “Dinheiro nunca foi o problema. Liderança era - liderança em direcionar as escolas de volta aos valores básicos, tradições básicas, e bom senso básico. Com a liderança dos cidadãos americanos, estamos voltando aos eixos” (REAGAN, 1984d, n.p., tradução nossa).

Escrevendo em 1986, Altbach afirmou que, no curto prazo, os estados responderam às demandas do relatório de forma variada, mas exigiram mais trabalho e resultados de professores e de alunos, metrificados com testes padronizados. No estado de Nova Iorque, o relatório fundamentou o “Action Plan to Improve Elementary and Secondary Education Results”, que propôs: ampliar os tempos de aula e os dias letivos; iniciar aulas de computação em todas as escolas; reforçar o ensino de Matemática e Ciências; estabelecer testes padronizados; e treinar professores. O plano teria um custo de US$881 milhões. Com isso, a maioria das propostas foram postergadas ou abandonadas. Para Altbach, no curto prazo, a maioria das recomendações do relatório “A nation at risk” não seriam aplicadas nos estados porque os custos eram altos. Contudo, os programas inovadores que transformaram as escolas em espaços críticos de vivência e de sociabilidade já estavam diminuindo, e os testes para padronizar e controlar educadores e estudantes estavam sendo implantados. Segundo Altbach (1986), no longo prazo, a participação social e a democracia nos EUA sofreriam com a negligência do sistema escolar em relação ao ensino de História e pensamento crítico. Os EUA corriam o risco de se tornar uma sociedade tecnocrática e acrítica. No ano seguinte, Boyd (1987) apontou fraquezas evidentes no relatório: negligenciou o trabalho e a dinâmica dentro das escolas; ignorou o trabalho e as necessidades dos profissionais da educação; e omitiu a necessidade de investimentos. Por fim, não conseguiu melhorar o ensino em comparação com outros países competidores. Por fim, Torres previu o risco do relatório ser reproduzido nos países periféricos. De acordo com Torres (1986, p. 113, tradução nossa): “Os riscos dessas abordagens para nossas sociedades são muito grandes. Basta lembrar que as prescrições e as prioridades das sociedades centrais são muitas vezes rapidamente transferidas e adaptadas sem mediação nas sociedades periféricas”.

De volta ao básico

Diante das críticas sobre a falta de compromisso federal com os investimentos na reformulação do sistema educacional e das exigências por novas emendas para financiar a educação, Reagan voltou ao básico e afirmou que: “O segredo para educação de qualidade não está em manuais, está no coração” (REAGAN, 1987, n.p., tradução nossa). Em outras palavras, Reagan reforçou as linhas morais do relatório e inseriu a campanha pela oração nas escolas nas proposições sobre a reforma do sistema educacional estadunidense.

De acordo com Reagan, o relatório enfatizou que o papel do Governo Federal na educação deveria ser limitado. Os pais, e não o Governo Federal, deveriam ter comprometimento com a educação dos filhos. Segundo Reagan (1983h),

[...] o relatório enfatiza que o papel federal na educação deve ser limitado a áreas específicas e qualquer assistência deve ser fornecida com um mínimo de encargos administrativos em nossas escolas, faculdades e professores. Seu pedido pelo fim da intrusão federal é consistente com nossa tarefa de redefinir o papel federal na educação. Acredito que os pais, e não o governo, têm a principal responsabilidade pela educação de seus filhos. A autoridade parental não é um direito transmitido pelo Estado; em vez disso, os pais delegam aos representantes eleitos do conselho escolar e aos legisladores estaduais a responsabilidade pela educação dos filhos. (REAGAN, 1983h, n.p., tradução nossa).

Pressionado, com pouco amor no coração, Reagan atacou escolas, professores e governadores e colocou foco sobre as soluções morais e a disciplina. Para Reagan (1983j), as escolas não estavam fazendo os trabalhos que deveriam. As próprias escolas precisavam realocar seus recursos pensando na concorrência com outras escolas, para promover mais aulas de Ciências e Matemática e recrutar professores melhores. Os estados deveriam treinar os professores e não aceitar as desculpas daqueles que não estavam qualificados para ministrar aulas. Só deveriam conceder aumentos de salário e promoções por mérito e excelência, como qualquer profissional no mercado de trabalho. Segundo Reagan (1983i, n.p., tradução nossa): “Fazer o que é feito em qualquer outra profissão e ramo - oferecer aumentos no pagamento por mérito para aqueles que o merecerem”. No rádio, Reagan (1983i) respondeu às críticas sobre a omissão do Governo Federal sobre os investimentos no relatório:

Muitos dos remédios não exigiriam aumento de gastos; alguns, reconhecidamente, mudariam o financiamento de coisas menos importantes para coisas de maior valor educacional, e aqui e ali, pode haver necessidade de mais dinheiro. Basicamente, no entanto, o objetivo da Comissão foi aproveitar melhor os recursos que já possuímos [...], houve vozes de interesse especial que viram a chance de obter mais dinheiro para sua causa específica. (REAGAN, 1983i, n.p., tradução nossa).

Em outro pronunciamento no rádio, Reagan pediu aos pais para pressionar os professores e os governadores por mudanças, de acordo com o relatório. Os pais deveriam participar das decisões sobre disciplina, currículo e sobre os padrões acadêmicos esperados para colocar o sistema educacional estadunidense no caminho do sucesso e da excelência. Nas palavras de Reagan (1983l, n.p., tradução nossa): “Pais, exijam essas e outras reformas em suas escolas locais e responsabilize seus funcionários locais. Que nossos pais mais uma vez sejam o leme que coloca a educação americana de volta no caminho do sucesso por meio da excelência”. Em outro momento, o presidente sugeriu aos pais que lessem o livro Why are they lying to our children? (Por que estão mentindo para nossas crianças?), de Herbert London, conhecido educador conservador estadunidense (REAGAN, 1983g, tradução nossa).

Para Reagan, sem a reforma no sistema educacional, os estadunidenses perderiam os valores principais dos EUA: religião, justiça, liberdade, trabalho duro e a defesa da Civilização Ocidental. Segundo Reagan, dois temas que ele vinha advogando estavam no centro do relatório da comissão: a ênfase no ensino de habilidades, padrões e valores básicos; e ampliar a visão de educação, como parte das casas, das igrejas, das sinagogas, das comunidades e dos locais de trabalho. Logo, o Governo Federal não poderia ajudar, mas as orações e os valores espirituais talvez ajudassem as escolas. Nas palavras de Reagan (1983i, n.p., tradução nossa): “Não posso deixar de acreditar que a oração voluntária e os valores espirituais que moldaram nossa civilização e nos tornaram a sociedade boa e solidária em que merecem um lugar novamente nas salas de aula de nossa nação”.

Em contrapartida, Reagan caracterizou as escolas como um espaço caótico e problemático. Segundo Reagan (1984b, n.p., tradução nossa) : “A triste verdade é que muitas salas de aula em todo o país não são templos de aprendizado, ensinando lições de boa vontade, civilidade e sabedoria, importantes para todo o tecido da vida americana; muitas escolas estão cheias de comportamento rude e indisciplinado e até violência”. Reagan inclusive solicitou ao Department of Justice para criar meio de impor a disciplina nas escolas. Como resultado, formou o National School Safety Center para: informar aos professores seus direitos legais no trato com os alunos; formação de uma câmara nacional para discutir medidas de segurança nas escolas; e a publicação de documentos judiciais para ajudar os administradores das instituições de ensino a impor disciplina. Ademais, Reagan apoiou entusiasmadamente a decisão da Suprema Corte que legalizou as vistorias nos armários de alunos nas escolas e nas universidades. Para Reagan, as escolas deveriam ensinar que os EUA são a nação mais livre e próspera da história. Por isso, deveria armar-se contra os inimigos externos, em especial contra a URSS, afinal a liberdade e a prosperidade têm um preço e exigem comprometimento. Reagan (1983g) também sugeriu que as escolas ensinassem que o mundo enfrenta problemas ambientais e raciais, mas que os EUA tomaram todas as medidas para preservar o meio ambiente e melhorar a vida dos negros. Em suma, Reagan sugeriu que a educação estadunidense deveria estar fundada nos valores da Civilização Ocidental: “Eu acredito que a educação de todos os americanos deve estar enraizada nas verdades evidentes da civilização ocidental” (REAGAN, 1988, n.p., tradução nossa).

Em 1984, Reagan cedeu parcialmente à pressão por investimentos na educação e aprovou o modesto Education for Economic and Security Act, que autorizou a National Science Foundation a oferecer subsídios para agências estaduais e locais de educação, a fim de qualificar professores e futuros professores para ensinar Engenharias, Matemática e Ciências, em parceria com o setor privado. Reagan (1984c, n.p., tradução nossa) justificou a medida como fundamental para garantir a força econômica e militar dos EUA: “Ciência, Matemática e Tecnologia têm importância especial neste país. Nossa força econômica e militar, assim como nossa saúde e bem-estar, dependem em grande parte dos desenvolvimentos contínuos nessas áreas”.

Em 1985, William Bennet, amigo pessoal da família Kristol, assumiu o DoED e deu continuidade ao plano de articular o sistema educacional a reestruturação da liderança dos EUA no sistema internacional, mas sem o destaque de antes. William Kristol, filho de Irving Kristol, assumiu o posto de assessor no DoED. Em compasso com o novo resfriamento da Guerra Fria com a reaproximação entre EUA e URSS, Reagan atrelou as escolas ao combate de uma nova ameaça a segurança dos EUA, o tráfico internacional de drogas. Nesse sentido, lançou a campanha Drug-Free Campuses, para combater o consumo de drogas nas escolas e nas universidades. Reagan prometeu que não deixaria as drogas se infiltrarem nas escolas para aterrorizar os cidadãos e ameaçar os valores estadunidenses (REAGAN, 1986a). Segundo Reagan, as escolas eram o melhor lugar para combater o tráfico de drogas, inclusive com policiamento e religião:

[...] não há lugar melhor do que nossas escolas - para que todos os americanos se levantem, se envolvam e façam alguma coisa contra as drogas [...]. Decerto exigirá a diligência de pais, professores e diretores, o uso de drogas nas nossas escolas exigirá a envolvimento de vizinhos, grupos comunitários, agentes da lei, igrejas e sinagogas. (REAGAN, 1986b, n.p., tradução nossa).

Considerações finais

Em meio à crise do SMM, os neocons buscaram reformular a educação dos EUA, como parte do esforço para salvaguardar a posição de liderança econômica e militar do país. Nesse sentido, Kristol identificou a educação como parte das políticas e dos programas de bem-estar social nocivas, na medida em que geravam gastos desnecessários e conformava uma “Nova Classe” guiada por interesses mesquinhos e pelo multiculturalismo em nome de uma igualdade perversa. Como resultado, promoviam a decadência econômica e moral do país. A educação precisava ser, portanto, reformulada com o objetivo de reativar a produtividade e a competitividade e, ao mesmo tempo, combater a influência da “Nova Classe” nas escolas e nas universidades e as ameaças à segurança da nação no sistema internacional.

Para essa missão, as escolas e as universidades deveriam concentrar-se em promover uma educação voltada à compreensão e à aplicação das novas tecnologias na indústria, no comércio, na defesa e para o reavivamento de supostos valores morais dos EUA. O Governo Reagan buscou incorporar a concepção dos neocons sobre a educação nas propostas educacionais. Nos primeiros anos, o Governo Reagan estabeleceu os objetivos para a educação, concentrado no corte de investimentos e no combate ao multiculturalismo e à contracultura nas escolas e nas universidades. A partir de 1983, o Governo Reagan dedicou-se, também, a reestruturar o sistema educacional a partir do relatório “A nation at risk”, que colocou a excelência educacional, compreendida sobretudo como capacidade de ensinar habilidades técnicas para o mercado de trabalho, como peça fundamental na construção da proeminência internacional dos EUA, principalmente no que se refere à produtividade, à competitividade e à segurança.

Diante das críticas sobre a falta de investimentos para colocar em prática as determinações do relatório, Reagan voltou ao básico, combinando a concepção de excelência tecnocrática com a ênfase em pressupostos morais e disciplinares. Ao fim e ao cabo, o governo Reagan teve sucesso parcial porque conseguiu, por meio da educação: direcionar recursos para a defesa e para o sistema financeiro; estabelecer alianças políticas; e dinamizar uma enorme cadeia produtiva em torno do ensino privado. Todavia, não conseguiu estabilizar o SMM e a liderança dos EUA por meio de ações militares e da expansão do modelo econômico. Por fim, conformou uma nova concepção de educação: tecnocrática, utilitarista e pretensamente moralista, que ecoou em SMM por décadas.

1 OSATé um exame educacional padronizado nos Estados Unidos aplicado a estudantes do Ensino Médio, que serve de critério para admissão nas universidades norte-americanas.

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Recebido: 02 de Junho de 2020; Revisado: 23 de Junho de 2020; Aceito: 24 de Junho de 2020; Publicado: 28 de Junho de 2020

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