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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.15  Ponta Grossa  2020  Epub 02-Set-2020

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.15483.076 

Artigos

Lições de quarentena: limites e possibilidades da atuação docente em época de isolamento social

Quarantine lessons: limits and possibilities of teaching performance in times of social isolation

Lecciones de cuarentena: límites y posibilidades del desempeño docente en época de aislamiento social

*Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: <haddad.nana@gmail.com>.

**Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL). Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e Doutora em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). E-mail: <andrezab27@gmail.com>.


Resumo

O isolamento social, recentemente adotado em decorrência da pandemia de COVID-19, leva as instituições de ensino, públicas e privadas, a uma reorganização em relação às suas práticas e, consequentemente, suscita o debate acerca do papel da Educação na sociedade atual. Nesse cenário, torna-se relevante a análise das determinações e das conduções adotadas no Brasil no contexto de crise, bem como os pressupostos que sustentam tais direcionamentos. Assim sendo, este artigo discute, a partir das narrativas tecidas por professoras, dois aspectos dessa questão. Inicialmente, faz-se uma análise do contexto político da organização escolar na atualidade. Em seguida, discutem-se as práticas decorrentes de tais orientações, evidenciando suas consequências e, também, as possibilidades, mesmo que rudimentares e limitadas, de transgressão, de resistência e de reinvenção da escola a partir do momento e situação que se vive coletivamente.

Palavras-chave: Pesquisa narrativa; Formação de professores; Isolamento social

Abstract

Social isolation, recently adopted as a result of COVID-19 pandemic, leads educational institutions, both public and private, to a reorganization regarding their practices, and consequently raises a discussion about the role of Education in society nowadays. In this scenario, it is relevant to analyze the determinations and conducts adopted in Brazil in the context of this crisis, as well as the assumptions that support such directions. Thus, based on teachers’ narratives, this paper discusses two aspects of this issue. Initially, it analyzes the political field of school organization today. Then, it discusses the practices resulting from such guidelines, highlighting their consequences and also the possibilities, even if rudimentary and limited, of transgression, resistance and reinvention of the school in this moment and situation that we are currently living collectively.

Keywords: Narrative research; Teacher training; Social isolation

Resumen

El aislamiento social, recientemente adoptado como resultado de la pandemia de COVID-19, lleva a las instituciones educativas, públicas y privadas, a una reorganización en relación con sus prácticas y, consecuentemente, plantea el debate sobre el papel de la educación en la sociedad actual. En este escenario, se vuelve relevante el análisis de las determinaciones y de las conducciones adoptadas en Brasil en el contexto de crisis, así como las suposiciones que respaldan tales direccionamientos. Por lo tanto, este artículo discute, a partir de las narrativas hechas por maestras, dos aspectos de este tema. Inicialmente, se realiza un análisis del contexto político de la organización escolar en la actualidad. en seguida, se discuten las prácticas resultantes de tales orientaciones, evidenciando sus consecuencias y, también, las posibilidades, aunque rudimentarias y limitadas, de transgresión, de resistencia y de reinvención de la escuela a partir del momento y situación en que se vive colectivamente.

Palabras clave: Investigación narrativa; Formación de profesores; Aislamiento social

Apresentação

“Quanto tempo demora um mês”: nome de uma música do grupo de Pop Rock nacional, “Biquini Cavadão”. Em 2011, me afastei da sala de aula, mas estava na escola como vice diretora, minha turma era do 2º ano. Afastada da sala, mas na escola, a gente se via todos os dias e um dia após tantas cobranças das crianças para que eu voltasse à sala, a diretora falou:

- Gente é só um mês, logo ela volta.

E as perguntas vinham:

- Robô, quando chega um mês? - Robô já passou um mês?

Um dia lembrei dessa música e resolvi me encontrar com eles, 15 minutos antes da entrada, para tocar a música e falar sobre a passagem de um mês. Finalmente o mês passou e essa virou a nossa canção. Tudo o que a gente fazia tinha a ver com 1 mês. Ontem estava assistindo TV, pensando na nova vida que levamos, após Coronavírus, de repente aparece um rostinho no celular e uma adolescente, hoje com 16 anos, mas com cara de criança, me pergunta:

- Robô, quanto tempo demora 1 mês?

(Narrativa de Cristina Campos - Pró Robô )

Diante da situação globalmente vivenciada, decorrente da pandemia da Covid-19, as instituições de ensino do país suspenderam o exercício de atividades presenciais no final do mês de março de 2020. A decisão das redes públicas de ensino e das escolas privadas ampara-se nas recomendações das autoridades sanitárias, como a Organização Mundial de Saúde (OMS), que sustentam que o isolamento social é a principal forma de enfrentamento da pandemia neste momento.

O fechamento temporário dos prédios escolares e a decisão repentina de interrupção das aulas presenciais impossibilitou qualquer preparação, planejamento ou organização para que fossem oferecidas alternativas de extensão da rotina escolar no ambiente doméstico, seja em relação ao planejamento adequado de sequências didáticas coerentes com tal realidade, no que diz respeito à instrumentalização e à formação docente para o uso de outras ferramentas ou, ainda, em relação ao oferecimento de suporte técnico, de equipamentos e de infraestrutura operacional aos alunos e aos seus familiares.

O conjunto de decisões para esse momento vivido, tomado por parte dos órgãos reguladores da Educação em todo o país, prevê a continuidade das atividades escolares, por meio da realização de propostas não presenciais que mesclam o uso de tecnologias digitais interativas, a execução de tarefas de auto estudo e a assimilação de conteúdos via recursos de comunicação em massa como canais de televisão e plataformas de streaming. Tais conduções, por um lado, apresentam novidades por exigir familiaridade e acesso a recursos diferentes dos convencionalmente adotados nas salas de aula físicas; por outro, mobilizam ações e reações nada novas para professoras , pais e alunos: às trabalhadoras da área, exigência de maior dedicação, possibilidade de suspensão de seus direitos, pressão para atender a demandas que não são da escola; aos familiares, culpabilização por não ter estrutura para corresponder às expectativas delegadas; aos alunos, falsas promessas de continuísmo e sobrecarga de atividades sem sentido, fragmentadas e preparadas de modo aligeirado.

No entanto, da dificuldade enfrentada e da busca por caminhos significativos para a docência nesse contexto de exceção, emergem (não tão) novas reflexões. Aponta-se para a dificuldade de manter uma rotina de estudo no lar. Discute-se a sobrecarga de trabalho (de todos). Atenta-se para a necessidade de acolher a demanda momentânea, conversar sobre o que é vivido, dar tempo e espaço para a discussão, elaboração, os afetos e os sentidos do isolamento. Sobretudo, ao concordarmos com autores como Vigotski (2009), ao defender a Educação como processo de humanização, ao dialogarmos com Freire (1993), sobre a urgência de propostas educativas emancipatórias, e ao encontrarmos nas afirmações de Paro (2010a) a busca por uma educação de qualidade e relevância social, evidenciamos o papel da escola como instituição compromissada com a formação humana, com o livre pensar e com uma atuação crítica, cientificamente embasada e socialmente orientada. Para essa concepção de escola, a atuação é urgente, mas em outro sentido. São outras as práticas e as intervenções necessárias.

Percebemos que a situação vivida escancara a tensão presente há tempos na escola, que transita entre demandas da lógica gerencial (orientadas por encaminhamentos e determinações do poder público e também expressas na pressão exercida pelo empresariado, seus órgãos de representatividade e regulação) e o compromisso com as próprias bases e valores (assumindo a responsabilidade com a formação contextualizada, processual, democrática e emancipatória).

No contexto apresentado, encontram-se professoras que diariamente assumem a tarefa de escolarizar à mesa do almoço, letrar crianças junto às bonecas, realizar experimentos científicos à pia cheia de louças, ler histórias à meia luz amarela do quarto de dormir. Em uma somatória de ensaios e erros, ora demonstram preocupação em acompanhar prescrições conteudistas, que lhe são exigidas, ora reafirmam compromisso com os vínculos e as experiências. Juntamente às práticas cotidianas do chão da escola, suprime-se de sua rotina a convivência da sala dos professores, as trocas e os contatos dos corredores, os momentos de diálogo e de interlocução sobre, na e para a prática. Estão mais sozinhas e mais atarefadas.

Entre as possibilidades de encontro e partilha, as redes sociais, já velhas companheiras de muitas, funcionam como respiro: permitem aquela conversa sobre amenidades que descontrai e, sobretudo, abrem espaço para a troca e a narração do que vem sendo vivido coletivamente (porque decorrente da experiência social, do momento histórico e das conduções comuns) e elaborado individualmente (porque vivenciado a partir do meio e das particularidades de cada sujeito). Do diálogo entre pares, grandes redes de partilha emergem por iniciativa das, com e para as professoras. Entre trocas de experiências, dicas de ferramentas, oferecimento de auxílio mútuo e reflexões pessoais, destacam-se as narrativas da prática docente que, quando compartilhadas, possibilitam a produção de saberes que auxiliam na percepção da docência como lugar de autoria da própria prática, de trabalho coletivamente construído e marcado pela ética e pela estética. Histórias de ausências sentidas, novos aprendizados, medo, sobrecarga e, mormente, de esperança são compartilhadas de modo a dar visibilidade a um coletivo que não deixa de existir, mesmo quando as condições são sensivelmente desfavoráveis. Adotando esses registros para estudo, perguntamos: Que práticas docentes se realizam no contexto de isolamento social, diante da urgente necessidade de reorganização da rotina de trabalho e dos modos de ensinar e aprender?

Nesse sentido, apresentamos um estudo que se situa no campo do trabalho docente, tomando como principal objeto as narrativas das professoras sobre suas experiências no contexto de isolamento social, que tem como objetivo geral identificar quais são as condições de realização das práticas docentes na atualidade, suas dificuldades e suas potências. No decorrer de todo o percurso de investigação, foram tomadas as medidas necessárias para sua realização de acordo com os princípios éticos em pesquisas que envolvem seres humanos. Trata-se de pesquisa pautada na metodologia narrativa, tal como proposto por Connely e Clandinin (2011), realizada a partir de registros das bases eletrônicas de duas redes sociais, o Instagram e o Facebook, onde foram encontrados perfis e páginas especificamente criados por, para e entre professoras, com a intenção de trocar experiências sobre a docência no contexto de isolamento social. Foram considerados os textos publicados no período de 10 de março a 10 de maio de 2020. Das 208 narrativas encontradas, após filtragem, foram selecionadas 38, as quais foram objeto de estudo e pesquisa. Neste artigo, trazemos três dessas narrativas para análise, na tentativa de compreender as consequências e, também, as possibilidades, mesmo que rudimentares e limitadas, de transgressão, de resistência e de reinvenção da escola a partir do momento e da situação vividos coletivamente.

Compreendendo a cultura, a história e a sociedade como fonte do desenvolvimento humano (VIGOTSKI 2001, 2010, 2018), propomos diálogo com Freire (1986, 1993) e Freire e Shor (1995), tomando especificamente as produções que remetem à educação em tempos de mudança, sua relevância social e seu papel como instituição que possibilita a formação crítica, reflexiva, emancipatória e para a liberdade. Também recorremos a Paro (2010a, 2010b) para tratar da organização escolar, seus limites e seus desafios contemporâneos. Tal interlocução se mostra coerente com o material analisado e substancialmente potente para embasar o estudo tal como este se organiza. Das vivências individuais, esperamos extrair representações coletivas, porque sociais, históricas e marcadas pelos princípios que são comuns às professoras como grupo.

Na tentativa de contemplar os aspectos mais relevantes da discussão proposta, o texto está organizado em duas partes. Sem a pretensão de anteciparmos os conteúdos das narrativas, a primeira seção apresenta a análise do contexto político das determinações e das conduções recentemente adotadas no Brasil no momento de crise, bem como os pressupostos que sustentam tais direcionamentos. Embora a exposição feita nessa primeira parte aborde elementos mais amplos daqueles que pretendemos analisar a partir das narrativas abordadas na segunda parte do texto, julgamos que tal contextualização se faz necessária para municiar o leitor daquilo que se apresenta como condição para a realização do trabalho docente na atualidade: as escolhas, os desdobramentos e as dificuldades que são postas no âmbito da gestão pública e que, por serem gerais, reverberam nas leituras e nas compreensões narradas.

Na sequência, é apresentada uma seção que discute as práticas decorrentes de tais orientações, evidenciando os dilemas, os entraves, as soluções, os ajustes e, especialmente, o cotidiano de professoras que têm assumido o propósito de educar em condições muito distintas das que conhecíamos até há bem pouco tempo. Nessa parte, o estudo decorre prioritariamente do conteúdo presente nas narrativas analisadas, sendo tarefa das pesquisadoras preservar suas características unitárias e, ao mesmo tempo, apontar para dimensões essencialmente humanas retratadas, trazendo lições que podem ser comuns ao coletivo de professoras.

Nas considerações finais, retomamos algumas compreensões acerca do que é vivido no contexto do isolamento. Questionamos a suposta ideia de que as propostas desenvolvidas se equiparem às estratégias efetivamente pensadas para o Ensino a Distância, chamando atenção ao fator de provisoriedade que se institui, possibilita vínculos prévios entre alunos e professores e alimenta as práticas na esperança do retorno aos espaços públicos compartilhados. Ainda, ganha destaque o entendimento de que as práticas de ensino remoto devem ser compreendidas como produção cultural, intelectual e coletiva dos professores, que reafirmam a capacidade criadora e autoral mesmo em contexto tão duro como o vivenciado.

Política educacional e organização da educação escolar em tempos de isolamento social: descaracterização do processo pedagógico, restrição do direito à educação e precarização do trabalho docente

O celular vibra anunciando nova mensagem. Já não quero atender mais. Ao longo do dia, ele não parou. Alunos com dúvidas sobre as aulas remotas, famílias querendo ajuda para preencher os questionários que precisam ser respondidos, a “escola” anunciando outros afazeres, colegas querendo conversar para aliviar o cansaço e trocar experiências. O stress me domina. Acumular as funções docentes em home office com as demandas da casa em office home parece ressaltar minha incompetência como profissional, mãe e mulher. Os cabelos brancos ocupam a maior parte da minha cabeça. Minhas unhas, já não mais esmaltadas, estão curtas. Base, pó, batom são acessórios que não saem mais da gaveta. Conforme as horas foram passando, o som do celular foi sendo propositalmente diminuído até ficar mudo. Era preciso direcionar a atenção aos meus papéis burocráticos em frente ao computador. O celular volta a vibrar. Mais uma vez. E outra. Perco a conta de quantas vezes ele trepida. Um sentimento de culpa me invade. Alguém pode estar precisando de mim. Uma troca de palavras às vezes acalma uma pessoa querida. Meus alunos também estão passando por uma descarga emocional enorme. Não, não posso ignorá-los. Abro o aplicativo. A mãe de aluno que, após mandar várias mensagens escritas, resolve insistir e apela por um áudio. Tristeza me invade. Lágrimas rolam pela minha face. A mensagem? Um pedido desesperado de uma mãe que, não tendo a quem mais recorrer, clama por ajuda:

- Hoje, professora, já não tenho mais comida para colocar para os meus filhos. Ah, e sobre as perguntas feitas, sim, eles estão assistindo as aulas na televisão e fazendo as lições. Obrigada por insistir para que eles aprendam.

Seguro meu filho nos braços e permito que o choro venha, compulsivamente.

(Narrativa de Stefani Terra)

Há tempos convivemos com a ideia de que a educação brasileira está em crise. Para enfrentar essa crise e resolver os problemas dela decorrentes, muitas saídas têm sido apontadas. As reformas educacionais implementadas nos anos de 1990, por exemplo, promoveram mudanças profundas na organização escolar orientadas por princípios gerenciais. Segundo Gentili (1996):

Deste diagnóstico inicial decorre um argumento central na retórica construída pelas tecnocracias neoliberais: atualmente, inclusive nos países mais pobres, não faltam escolas, faltam escolas melhores; não faltam professores, faltam professores mais qualificados; não faltam recursos para financiar as políticas educacionais, ao contrário, falta uma melhor distribuição dos recursos existentes. Sendo assim, transformar a escola supõe um enorme desafio gerencial: promover uma mudança substantiva nas práticas pedagógicas, tornando-as mais eficientes; reestruturar o sistema para flexibilizar a oferta educacional; promover uma mudança cultural, não menos profunda, nas estratégias de gestão (agora guiadas pelos novos conceitos de qualidade total); reformular o perfil dos professores, requalificando-os, implementar uma ampla reforma curricular, etc. (GENTILI, 1996, p. 18).

A lógica gerencialista continuou, mesmo mais recentemente, orientando a formulação das políticas educacionais e aproximando ainda mais a gestão da educação da gestão empresarial. Setores ligados ao empresariado ocupam lugar de destaque no debate educacional influenciando direta e indiretamente a formulação de políticas para o setor. Mais do que nunca, o debate centra-se nos meios adequados para garantir a eficiência (e não qualidade social) da educação. Nessa lógica gerencial, são discutidos os meios pelos quais a educação se realiza, e não os seus fins.

Acontece que, no cenário atual, imposto por uma pandemia cuja única forma de enfrentamento reconhecida atualmente é o isolamento social, enfrentar os desafios impostos para a educação escolar como meros problemas de gestão torna-se ainda mais insuficiente. Neste momento, crianças, jovens e adultos não vão à escola, professoras tentam conduzir suas aulas de forma remota, famílias deparam-se com uma situação nunca vivida. Esse contexto, quando analisado à luz da lógica gerencialista, mobiliza ações centradas nos meios: Como transpor o trabalho anteriormente realizado para o novo formato? Como ministrar as aulas de forma eficaz? Como realizar o controle da frequência dos alunos? Como avaliar?

As dimensões dessa crise, no entanto, demandam bem mais do que discutir os meios para enfrentá-la. O momento vivido denuncia o quão vazia é a argumentação de que a educação deva ser gerida para a eficiência dos meios, sem considerar seus objetivos e a qualidade social do que se cria na relação entre alunos, professoras e comunidade, pois as perguntas atualmente feitas são de outra ordem: realmente deveríamos continuar a fazer o que fazíamos? Que formatos, espaços, interações e estratégias se mostram efetivas em educação? Em que contextos as aulas se realizam e fazem sentido aos alunos? Onde estão e o que fazem ou pensam nossos alunos? Quais os seus interesses e preocupações? O que desejamos saber ao avaliar? Para quê?

Para enfrentar o cenário atual, é preciso então retomar a discussão sobre os fins da educação. Nesse sentido, vale lembrar que a educação é apresentada como o primeiro dos direitos sociais pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 6º (BRASIL, 1988). A Carta Magna ainda estabelece, em seu artigo 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988, p. 137). Também a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) No 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996), afirma essas finalidades da educação. Assim, segundo a legislação nacional, mais do que aprender os conteúdos estabelecidos pelos currículos escolares, a escola ainda deve contribuir com o pleno desenvolvimento dos estudantes, seu preparo para o exercício da cidadania e sua formação para o trabalho.

Para Paro (2010a), em uma concepção democrática de educação, é necessário comprometer-se com a formação ampla dos estudantes na qualidade de seres humanos históricos. De acordo com o autor,

[...] se, à luz de uma concepção radicalmente democrática de mundo, admite-se que os homens nascem igualmente com o direito universal de acesso à herança cultural produzida historicamente, então a educação - meio de formá-lo como humano-histórico - não pode se restringir aos conhecimentos e informações, mas precisa, em igual medida, abarcar os valores, as técnicas, a ciência, a arte, o esporte, as crenças, o direito, a filosofia, enfim, tudo aquilo que compõe a cultura produzida historicamente e necessária para a formação do ser humano-histórico em seu sentido pleno. (PARO, 2010a, p. 771).

É necessário comprometer-se, então, com uma concepção de educação que vise a transformação do aluno por meio do conhecimento, que o possibilite compreender as questões de seu tempo e de sua história a partir da experiência da humanidade (VIGOTSKI, 2018), de modo a ampliar sua compreensão do mundo e de si próprio. A escola, nesse sentido, é o espaço da apropriação desses saberes e lugar de convivência, palco de encontros e de estranhamentos. Nas práticas escolares, a intencionalidade de ensinar e aprender estão necessariamente presentes e, por isso, se organizam situações sociais potencialmente propícias para o desenvolvimento (VIGOTSKI, 2018). Assim, educar é mais do que apenas dar aulas, explicar os conteúdos das disciplinas. Segundo Paro (2010a):

É aqui que entra a peculiaridade da educação como trabalho. Nos processos de trabalho que se dão usualmente na produção material da sociedade, há uma relação de exterioridade entre produtor e objeto de trabalho: o produtor age sobre o objeto de trabalho, que simplesmente “sofre” aquela ação de transformação. No caso do processo pedagógico, todavia, uma relação desse tipo redundaria na negação da educação e na impossibilidade do aprendizado. Aqui, o objeto de trabalho (o educando) é também sujeito, o que inviabiliza a ação unilateral do educador. Este, para ensinar, para transmitir cultura, precisa, antes, obter o consentimento do outro, daquele que aprende. É, pois, uma relação de convivência entre sujeitos, ou seja, uma relação autenticamente política. Mais do que política, é uma relação democrática, pois a ação que se passa resulta na afirmação de ambos como sujeitos. (PARO, 2010a, p. 772).

Essa relação política, democrática, de convivência entre sujeitos depende do encontro, do estar juntos no mesmo espaço partilhando vivências. Assim, a educação configura-se como uma ação coletiva, que se faz em conjunto - alunos e professoras, alunos e alunos. É por meio do vínculo estabelecido nessa convivência que é possível ensinar. Freire (1986), ao defender que ensinar é muito mais que treinar destrezas, ressalta que a convivência, o diálogo e a atitude crítico-investigativa é que possibilita o ato de conhecer. As expressões, os gestos, os olhares orientam a condução do processo pedagógico. Logo, as formas pelas quais as escolas têm optado por conduzir a educação nessa época de isolamento social não poderia, em qualquer hipótese, ser equivalente ao que é realizado na educação escolar presencialmente.

Afirmamos que as aulas remotas não podem ser comparadas às presenciais por saber que, em meio aos atropelos de querer manter suposta normalidade, instituições alegam ter havido “apenas” a transposição do real para o virtual. Não é mero detalhe. Entendendo as relações de ensino e aprendizado a partir das interações humanas, fica claro que, ao suprimir o espaço físico, altera-se substancialmente as conduções, os tipos de problemas enfrentados, os atravessamentos e os distratores são outros. Boa parte da subjetividade dilui-se pelo filtro das telas e dos microfones.

Se defendemos que o produto do trabalho da educação escolar não é a aula, mas, sim, o aluno transformado pelo conhecimento (PARO, 2010b), temos outra incongruência no que têm sido possível desenvolver por meio do ensino remoto, pois as experiências narradas pelas professoras, analisadas a seguir (também estrategicamente inseridas na abertura das seções deste trabalho) demonstram que realizar uma aula expositiva ou transpor algumas sequências didáticas simples para o ambiente virtual já é considerada grande vitória. As atenções recaem novamente sobre a aula, e não sobre as pessoas que a ela se conectam, que deveriam ser consideradas como sujeitos da própria aprendizagem, seres ativos no processo de reconhecimento da cultura, da história e das práticas sociais.

Além da finalidade de assegurar a aprendizagem dos estudantes, a escola ainda é, para uma parcela significativa das crianças e dos jovens brasileiros, o local onde é possível encontrar alimento e acolhimento.

Segundo dados do IBGE (2019), no Brasil, 13,5 milhões de pessoas vivem em situação de extrema pobreza, pois sobrevivem com renda per capita inferior a R$ 145 mensais. Para os estudantes de famílias que vivem nessa condição, a alimentação fornecida pela escola configura-se como a mais importante (e, às vezes, a única) refeição feita no dia. Embora estejam sendo criados auxílios emergenciais para auxiliar na alimentação das crianças em idade escolar (como o Merenda em Casa do estado de São Paulo, que vai destinar R$ 55 por mês por aluno no período de suspensão das aulas) muitos estudantes ainda estarão privados de sua principal fonte de alimentação.

A escola configura ainda um espaço de apoio social e acolhimento para estudantes que convivem com a violência familiar e doméstica. Vieira, Garcia e Maciel (2020) apontam dados de vários países que registraram aumento dos casos de violência doméstica desde o início da pandemia de Covid-19. No Brasil, segundo entrevista coletiva fornecida pela Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, as denúncias de violência doméstica também têm crescido desde o início do isolamento social (PRAZERES et al., 2020). Também o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) alertou para os riscos de aumento dos casos de violência contra crianças durante a pandemia (REIS; COELHO, 2020). Ocorre que, em situação de confinamento, mulheres e crianças estão convivendo mais tempo com seus agressores em uma situação de maior estresse e insegurança social, e não há escolas para pedir socorro.

Tendo em vista esses elementos, temos de pôr em discussão o que se quer para a escola como instituição, nesse contexto vivido. Se o propósito é fazer com que os estudantes tenham acesso a conteúdos escolares fragmentados e desconexos do contexto cotidiano, de modo que se mantenham ocupados, talvez o ensino remoto atinja seu objetivo. No entanto, ao considerar que a escola cumpre funções muito mais abrangentes na vida dos estudantes, que o processo de ensino e aprendizagem envolve a convivência, o diálogo e as interações, assumindo que o aluno deve ser sujeito do processo de aprendizagem, que ensinar não é apenas fornecer acesso a conteúdos e que as escolas desempenham ainda importante papel de oferecer alimentação e acolhimento, a alternativa de transferência das atividades presenciais pelas remotas descaracteriza não só a escola como o próprio processo pedagógico.

Nesse sentido, faz-se oportuno ressaltar o quanto as medidas adotadas para dar continuidade às atividades escolares de forma remota podem estar contribuindo para privar parcela dos estudantes do direito à educação, uma vez que nem todos os alunos têm condições efetivas para realizar as atividades de forma não presencial. A pesquisa TIC Domicílios, realizada anualmente pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), apontou que, em 2018, apenas 42% dos domicílios brasileiros investigados tinham computador, sendo o principal equipamento que os domicílios brasileiros dispõem para acessar as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) os aparelhos celulares, presentes em 93% dos domicílios. Essa pesquisa também apontou que 67% dos domicílios considerados têm algum tipo de acesso à internet, estando esses recursos mais fortemente concentrados nos domicílios com maior renda familiar (CETIC, 2018). Esses dados evidenciam que uma parcela significativa dos estudantes brasileiros não dispõe de recursos (computador e internet, por exemplo) para acessar as aulas remotas.

Mais do que recursos tecnológicos, a realização das atividades escolares de forma remota requer ainda outras condições como espaço adequado dentro das residências que favoreça a realização das atividades, muitas vezes compostas por poucos cômodos, de uso compartilhado. No caso das crianças, o acompanhamento por parte de um adulto é imprescindível e, muitas vezes, impossível. Indo além, as condições emocionais para a realização das atividades são bem diferentes quando há a iminência de adoecimento, o acúmulo de tarefas domésticas e de trabalho pelos membros da família e a reorganização da rotina doméstica em função do isolamento. Como já apontamos, se muitos brasileiros vivem em situação de extrema pobreza ou convivem com casos de violência doméstica e violência contra a criança, podemos concluir que a realização de atividades escolares no ambiente doméstico deve acontecer em condições extremamente desfavoráveis para algumas crianças.

Nesse sentido, em nome das respostas rápidas e superficiais para questões altamente complexas, mais uma vez se testemunha o acirramento das desigualdades no acesso à educação entre crianças e jovens de diferentes condições econômicas e sociais. Além de estarem mais sujeitos a condições domiciliares adversas, como as apontadas anteriormente, os estudantes das escolas públicas, instituições que acolhem predominantemente as crianças e os adolescentes pobres, nem sempre têm acesso a plataformas de educação online mais atuais e versáteis, que contem com amplos recursos.

As limitações do direito das crianças e dos jovens a uma educação de qualidade não se restringem à desigualdade social. Há dificuldades para acesso e compreensão de comandos, no caso da educação das crianças que ainda não são alfabetizadas, bem como daquelas que são portadoras de alguma deficiência e necessitam de currículo adaptado, mediação qualificada ou intérpretes. Estarão os recursos, os materiais, as professoras e os responsáveis preparados para atender às necessidades educacionais desses estudantes por meio de ensino remoto?

As questões até aqui apresentadas remetem à percepção de que, sob o pretexto da adversidade da situação atual, pareça ser aceitável que generosa parcela das crianças e dos jovens sejam excluídos. Assume-se que a situação atual é excepcional e que não há como resolver o problema de todos; logo, alguns serão privados do direito à educação. Para além da gravidade desse fato, é necessário levar o debate além da questão do acesso aos recursos. Como já apontado, o ensino remoto (mesmo que com todos os recursos tecnológicos, ambientais, emocionais) não pode substituir a educação oferecida presencialmente no ambiente escolar.

Uma vez que a condição de acesso a recursos por parte dos estudantes é tão desigual, considerando que os efeitos e principalmente a finalidade do ensino remoto não se equipara às atividades escolares presenciais, as horas de estudo realizadas no ambiente doméstico no período de isolamento social não deveriam ser contabilizadas como dias letivos. Sem considerar tais questões, imbuído da lógica gerencialista em que é necessário otimizar os recursos, o tempo e o desempenho, o Ministério da Educação aprovou o Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) Nº 5, de 28 de abril de 2020, que dispõe sobre a reorganização do calendário escolar e a possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual em função do isolamento social provocado pela pandemia da Covid-19 (BRASIL, 2020a). Partindo do pressuposto de que é necessário minimizar os efeitos do isolamento social na aprendizagem dos estudantes, esse Parecer prevê a possibilidade de considerarem-se as horas de ensino remoto no cumprimento da carga horária letiva obrigatória.

Considerando que a Medida Provisória No 934, de 1 de abril de 2020, flexibilizou a exigência do cumprimento do calendário escolar, dispensando as escolas do cumprimento dos 200 dias letivos previstos na LDB, desde que seja cumprida a carga horária mínima anual estabelecida nessa lei (BRASIL, 2020b), o Parecer No 5/2020 prevê três possibilidades para cumprimento dessa carga horária mínima: a reposição de horas presencialmente após o fim do isolamento social, a realização de atividades pedagógicas não presenciais e a ampliação da carga horária diária com atividades não presenciais quando do retorno às atividades (BRASIL, 2020a).

O CNE reconhece que, embora a alternativa mais utilizada no Brasil em caso de suspensão de aulas seja a primeira - a reposição de aulas presencialmente ao final do período de suspensão de aulas -, em virtude da possibilidade do período de emergência de estender por muito tempo, “[...] pode haver dificuldades para uma reposição que não impacte o calendário de 2021 e que também não acarrete retrocesso educacional para os estudantes” (BRASIL, 2020a, p. 6). Elenca ainda uma série de dificuldades para a implementação de tal alternativa. Em função disso, o CNE recomenda a adoção de atividades pedagógicas não presenciais como forma do cumprimento da carga horária obrigatória e destaca que podem ser

[...] as atividades pedagógicas não presenciais podem acontecer por meios digitais (videoaulas, conteúdos organizados em plataformas virtuais de ensino e aprendizagem, redes sociais, correio eletrônico, blogs, entre outros); por meio de programas de televisão ou rádio; pela adoção de material didático impresso com orientações pedagógicas distribuído aos alunos e seus pais ou responsáveis; e pela orientação de leituras, projetos, pesquisas, atividades e exercícios indicados nos materiais didáticos. (BRASIL, 2020a, p. 8-9).

Ignorando a situação vivida por muitos estudantes brasileiros, o Parecer ainda recomenda que as famílias realizem planejamento de estudos com os estudantes e que a realização das atividades escolares não presenciais seja acompanhada por “mediadores familiares” (BRASIL, 2020a, p. 9). O texto denota ainda excessiva preocupação com o cumprimento da carga horária letiva e, em segundo plano, com os objetivos de aprendizagem estabelecidos pelas orientações curriculares oficiais, não levando em conta a dimensão coletiva e de formação ampla dos estudantes sem as quais o processo pedagógico é descaracterizado. Assumir a possibilidade de cumprir a carga horária letiva por meio da realização de atividades não presenciais significa desconsiderar a especificidade do trabalho na escola, assumindo-o como técnico, que visa ao alcance de objetivos pré-estabelecidos pelos currículos oficiais.

Outro elemento importante a ser considerado para pensar a educação no cenário atual diz respeito ao trabalho docente. A docência no Brasil já é uma profissão sobre a qual recaem muitas expectativas e cobranças e que enfrenta condições de trabalho bastante adversas, como baixos salários, jornadas de trabalho intensas e desvalorização social (BARBOSA, 2011). Essas condições parecem ser agora ainda mais acentuadas.

Em pouquíssimo tempo, as professoras tiveram de readequar todo o seu trabalho de forma a atender às demandas atuais de realização de atividades pedagógicas não presenciais. Muitas vezes sem familiaridade suficiente com os recursos tecnológicos utilizados na educação a distância, as professoras da Educação Básica tiveram de apropriar-se dessas ferramentas por conta própria. Assunção e Oliveira (2009), ao discutirem os processos de intensificação do trabalho docente e os efeitos sobre a saúde das professoras, mencionam que a necessidade de regular em regime de urgência para resolver problemas e atender a demandas que exigem posicionamento imediato configura como um dos elementos que contribuem para o sofrimento docente.

As mudanças empreendidas na organização do trabalho e na organização escolar atualmente são profundas e exigem reorientação da vida pessoal e profissional. Nesse sentido, não é possível analisar o trabalho docente desvinculado da discussão de gênero (ENGUITA, 1991; APPLE, 1995; HYPOLITO, 1997). Em estudo preliminar, Benlloch e Bloise (2020) mostram que as mulheres são as mais afetadas por estresse no período de isolamento social, especialmente as que possuem filhos pequenos. Isso se dá por diversos fatos, dentre eles o maior acúmulo de trabalho doméstico e a adoção de uma rotina na qual o teletrabalho, que exige por vezes o silêncio e a ausência de outras demandas, só se torna possível na madrugada.

No contexto da atividade profissional docente, a migração para o ensino remoto pressupõe mais do que habilidades específicas para criação de conteúdos, edições de vídeo e orientações claras para o autoestudo. Requer sobretudo que as professoras se mantenham ativas, criativas e produtivas além do habitual. A forma conhecida pela qual as professoras estavam acostumadas a conduzir seu trabalho já não serve mais. A necessidade de atender às demandas que estão além de sua formação e experiência provocam a sensação de perda de identidade e de questionamento da própria capacidade entre as professoras (DUARTE, 2011).

Tendo isso posto, atentamos ainda para o fato de que o trabalho de preparação de aulas já demanda, mesmo no ensino presencial, muito tempo de estudo atencioso e elaboração. O trabalho docente remoto parece demandar ainda mais tempo de preparação, uma vez que exige também a antecipação de situações antes agenciadas no decorrer da aula e o domínio de ferramentas e suportes pouco amigáveis. Conforme divulgado pelo Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP), em sua conta no Facebook, o tempo destinado ao planejamento e montagem de aulas aumenta consideravelmente no novo contexto, como mostra a Figura 1.

Fonte: APEOESP na escola e na luta (2020, n.p.).

Figura 1 Tempo de preparação de aula teletrabalho 

Também Mill (2006), ao analisar o trabalho docente na educação a distância, já chamava atenção para a ampliação do tempo destinado às atividades laborais no teletrabalho. Mesmo com a sensação de estarem trabalhando mais, muitas professoras, sobretudo de escolas privadas, estão lidando com o fato de terem jornadas de trabalho e salários reduzidos. Se os baixos salários já contribuem para aumentar o sentimento de insatisfação com a profissão (BARBOSA, 2011), agora eles incidem ainda mais pesadamente sobre as professoras.

Outro ponto a ser destacado diz respeito à produção intelectual e à ausência de controle sobre a própria imagem na veiculação de atividades online, sejam síncronas ou assíncronas. Em uma época em que as professoras frequentemente são questionadas por suas conduções e acusadas de realizar doutrinação ideológica, as aulas gravadas favorecem o controle do trabalho docente e possibilitam o uso e a manipulação de fragmentos ou falas que expõem e ameaçam as professoras. Tal preocupação se exemplifica facilmente uma vez que, enquanto este artigo era escrito, um dos filhos do então presidente da república, o senador Flávio Bolsonaro, divulgou, em suas redes sociais, trecho de videoaula de uma professora do interior paulista acusando-a de doutrinação ideológica por discutir com os alunos uma charge sobre o presidente da república e sua dificuldade no enfrentamento da crise sanitária causada pelo Coronavírus (HEIDERICH, 2020). Sem pormenorizar a livre interpretação realizada pelo parlamentar, chama atenção também o fato de se julgar cabível tornar público em redes sociais, sem consulta ou autorização prévia da autora, o conteúdo de uma aula realizada para público específico e em contexto reservado, como as atividades escolares naturalmente são pensadas e desenvolvidas. Ao organizar seu encadeamento de ideias e produzir material para suas aulas, as docentes colocam suas elaborações disponíveis ao acesso de determinado círculo de interlocutores próximos, sobre os quais têm acesso e que tomam suas colocações na relação com os pressupostos de seu trabalho, com a realidade objetiva e com determinados interlocutores.

Assim, a exposição ou a apropriação indevida decorrente do acesso ao material das aulas possibilita maior controle sobre o trabalho docente. A redução da autonomia torna-se evidente e é intensificada por ações oportunistas de empresas que, atentas às novas demandas do mercado educacional, passam a assediar escolas e redes de ensino para oferecer “soluções” em conteúdos, aulas prontas, programas de ensino e softwares a serem executados pelo docente. Se antes era possível fechar a porta da sala de aula e, de certa forma, proteger-se da aridez do cenário educacional, adotando práticas que se mostrassem coerentes com as necessidades dos alunos e seus anseios como profissional, já não é mais possível à professora fazer o mesmo - as salas de aula virtuais não têm portas.

Os elementos aqui apontados sinalizam para as inúmeras dificuldades em conduzir a educação escolar de forma remota e colocam a necessidade de restabelecer o debate sobre o que esperamos da educação. No entanto, não deve ser utilizado como argumento na defesa do retorno às aulas presenciais enquanto perdurarem os riscos à saúde provocados pela pandemia. Se a educação remota priva direitos, acirra desigualdades, intensifica a precarização do trabalho docente e descaracteriza o processo pedagógico, a defesa do retorno das aulas presenciais em meio à pandemia, como foi feito algumas vezes pelo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, configura expressão da necropolítica que subjuga grande parcela da população à morte como forma de exercer o necropoder (MBEMBE, 2016).

Apesar do cenário adverso, onde não é possível retornar às aulas presenciais, e a condução do ensino remoto apresenta tantos problemas, as professoras buscam retomar o sentido de seu trabalho, evidenciando a dimensão política da docência e sinalizando que, apesar das tentativas de controle, ainda é possível encontrar margens de autonomia a serem exploradas. As narrativas analisadas na sequência evidenciam não apenas problemas, mas resistências.

Redes de diálogo que emergem dos, com e para as professoras: o que dizem as narrativas da prática docente em tempos de isolamento social

Quando a realidade impõe reorganização, faz-se ainda mais necessário voltar aos princípios que sustentam o trabalho docente para, a partir deles (e da certeza de que não são negociáveis), fundamentados nas bases teóricas que orientam, dialogam e se realizam no trabalho cotidiano, buscar proposições para a re-existência das práticas e da formação do professor. É com esse propósito e olhar que tomamos as narrativas de professoras aqui apresentadas.

Com o intuito de deixar transparecer o cotidiano das professoras e suas reflexões, foram extraídas narrativas de redes sociais, mais especificamente Instagram e Facebook, redigidas por professoras das redes públicas estaduais ou municipais de diferentes localidades do território nacional, no período de isolamento social e com essa temática, postadas em páginas públicas, de acesso livre e destinadas exclusivamente para a finalidade de trocas entre professoras. A escolha pela análise de produções que circulam nos espaços virtuais não acadêmicos, como redes sociais, se justifica pelo fato de que são estes os canais de comunicação que as professoras têm acesso cotidiano e que possibilitaram a rápida organização de grupos para partilha e circulação desse tipo de escrita no contexto do isolamento social.

Para levantamento e seleção das narrativas, foram filtrados perfis e páginas públicas, criadas por profissionais da educação, que tinham como proposta a veiculação e a discussão de textos narrativos de diversos autores. Nesse processo, destacam-se as páginas @narre_se, @com.par.trilhar, @projetonarrativa, @narrativasetessituras e @sopipoquinhas. Dos registros recolhidos (um total de 208 textos), 97 publicações encaixavam-se nos critérios de inclusão já explicitados (foram descartados, por exemplo, os textos que narravam a experiência educativa na perspectiva dos familiares ou que traziam reflexões sobre outros temas). Em segunda análise, foram desconsiderados, para este estudo, os registros com caráter ensaísta ou reflexivo que não se pautavam na narração de situações cotidianas. Restaram, então, 38 produções narrativas que foram lidas integralmente e estudadas para a realização da investigação. Desse escopo, três produções retratam potencialmente as situações vividas e narradas também por diversos outros docentes e trazem importantes contribuições que escolhemos destacar neste trabalho .

A pesquisa seguiu os procedimentos éticos definidos e aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Metodista de Piracicaba, que aprovou o projeto de investigação do qual deriva este estudo. Vale ressaltarmos que, mesmo sendo textos públicos, todas as professoras narradoras foram consultadas sobre a utilização de seus textos para pesquisa, por compreendermos que, na ocasião de sua publicação, as autoras não supunham a circulação de seus testemunhos em outros espaços que não os das redes sociais.

A escolha metodológica de análise narrativa (CONNELY; CLANDININ, 1995; BOLÍVAR, 2002) possibilita o destaque de elementos singulares nos testemunhos de cada uma das professoras, que, quando organizados e articulados teoricamente, resultam em uma nova produção, repleta de significados. Por isso, privilegia-se a unidade e a totalidade de cada texto, não a quantidade de dados, sendo necessário um olhar meticuloso e integrador para partir das narrativas e avançar nas elaborações que dela decorrem, sem apenas pinçar nelas excertos que ilustrem concepções prévias. Nesse tipo de pesquisa, objetiva-se o exercício dialético e a valorização das experiências pessoais, registradas e partilhadas por professoras, que trazem à tona crenças e concepções comuns e possibilitam amplo debate sobre a profissão. Rodrigues e Mogarro (2020) ressaltam a importância do uso de narrativas na investigação sobre a atuação profissional docente, alegando que as histórias contadas se constituem como expressões de valores, de normas e de estruturas culturais. Oliveira e Silva-Forsberg (2020) destacam a necessidade de coerência metodológica e analítica da pesquisa que faz uso desse tipo de produção, para que gere compreensão dos aspectos formativos e investigativos das narrativas.

Ao trazermos os testemunhos da docência que tem sido possível realizar longe do espaço físico escolar, expressões como cotidiano e chão da escola (FERRAÇO, 2008; PRADO; SOLIGO, 2007; SOUZA; MEIRELES, 2018) ganham novos sentidos, sem desaparecer das narrativas ou das práticas das professoras. Isso revela que as dimensões formativas do trabalho coletivo, realizado de modo crítico e orientado a partir da própria prática, são tão intensas e marcadas que tendem a resistir como conceito mesmo na ausência de um lugar fisicamente próprio.

Dessa forma, as narrativas apresentadas demonstram haver uma escola sem muros nem carteiras, que não é a mesma em todo o mundo e nem nela mesma, pois, ainda que se tente manter leis e estruturas gerais daquela que existia até o início da pandemia, a escola vivida e viabilizada por essas professoras se realiza de maneira muito diferenciada e diversa. Mesmo assim, há um movimento claro de auxílio mútuo, bem como de reflexão acerca do vivido, que são comuns à formação continuada que se desenvolve no chão da escola e se funda na coletividade. A realidade narrada pelos profissionais traduz experiências singulares e repletas de particularidades, mas que se conectam às histórias de muitas outras professoras. “Dizem dessas obras, que elas são fortes não por sua verdade externa, mas pela verdade interna” (VIGOTSKI, 2001, p. 32). Os acontecimentos cotidianos retratados funcionam como imagens, que exprimem emoções, conceitos e memórias compartilhadas na docência.

Reafirmamos, assim, o propósito de conhecer, por meio dos registros docentes, o que tem sido realizado como estratégia de formação no contexto de isolamento social. As aproximações e os afastamentos, as escolhas e as renúncias, as tensões e os diálogos evidenciados nos textos dos docentes se desenvolvem em relação (ou reação) às ações institucionalmente coordenadas. É importante reconhecermos o esforço educativo desenvolvido pelas professoras, sem deixar de destacarmos o quanto esse movimento é marcado pelas contradições da sociedade brasileira na atualidade. Uma sociedade que impõe desafios sem precedentes aos educadores, que testa suas convicções, acena com possibilidades de reinvenção e, ao mesmo tempo, flerta com o excessivo conservadorismo. Assim como defendido por Freire (1986), fica claro que qualquer busca de resposta a esses desafios implica, necessariamente, uma tomada de posição. Por isso, não se pode deixar de olhar atentamente para o movimento das professoras, que realizam anonimamente percursos de formação autênticos e dialógicos, marcando posição em favor da Educação que emancipa e liberta.

Depois de auxiliar os meninos e meninas a acessarem o ambiente virtual criado pela prefeitura para retomarmos a interação entre professores e alunos, ontem fizemos uma reunião teste e eu VI E OUVI MEUS ALUNOS do 6º ano pelo celular! Foi uma felicidade tão tão grande! A gente falou de autocuidado e amor próprio, um tema que saiu a partir de um poema de uma aluna da turma, escrito durante a quarentena. A gente contou como está funcionando o isolamento nas nossas casas. Na casa de todos os alunos, tem um pai ou mãe tendo que sair para trabalhar. Alguns estavam mais animados, outros nem tanto, todos com saudades da escola ou ao menos dos amigos e professores. Então perguntei para eles o que podem(os) fazer para ficar(mos) bem. Assim, fizemos uma lista de coisas para fazer durante a quarentena para reafirmar amor próprio. Segue a lista: - Tome sol (antes das 11h ou depois das 14h) - Durma bem, nem muito e nem pouco - Mantenha seu quarto limpo e organizado - Desenhe - Leia - Escreva - Ouça música - Treine suas habilidades culinárias - Tire fotos (de você, da natureza) - Hidrate o cabelo - Brinque com os irmãos, com os animais - Jogue jogos de tabuleiro - Toque um instrumento - Faça exercícios, se movimente - Aprenda algo novo.

(Narrativa de Kamila Videira)

Da narrativa de Kamila, extrai-se uma leitura criticamente esperançosa. A professora alegra-se ao poder ver e ouvir seus alunos, e isso não é uma satisfação ingênua: já discutimos o contexto no qual as iniciativas de ensino remoto se apresentam, ressaltando as enormes dificuldades encontradas por muitos alunos e famílias neste período de isolamento, em decorrência da falta de acesso e infraestrutura para que se conectem e participem de atividades virtuais. Além disso, a maior parte dos lares tem hoje mais de uma pessoa em situação de estudo ou trabalho remoto, o que requer múltiplos aparelhos ou rodízio em seu uso. Quando a questão não é o acesso, outros fatores também incidem sobre a organização do ambiente doméstico e geram preocupações: por vezes, as crianças e os adolescentes se ocupam uns dos outros e dos afazeres do lar, enquanto alguns dos adultos mantêm suas atividades de trabalho. A ausência de interações com outras pessoas e espaços potencializa a violência doméstica e agrava quadros de depressão, fobia social, ansiedade. Ainda, os efeitos da pandemia recaem na organização familiar indistintamente: há diminuição de renda e/ou desemprego, consequente escassez de alimentos, adoecimento de pessoas próximas. Nesse sentido, constatar que todos estão reunidos e poderão ser vistos, ouvidos e sentidos, mesmo que a distância, é motivo de certo alívio.

A alegria da professora e dos alunos dá início a um diálogo extremamente importante. Contam como estão se mantendo saudáveis, ajudam uns aos outros na elaboração de estratégias que são pertinentes também em relação ao fortalecimento emocional. Sobretudo, reafirma-se a existência de um coletivo que se cuida, se importa e que pretende continuar existindo, apesar das condições impostas. O diálogo entre alunos e professoras, por mais que pareça trivial e simples, possibilita a elaboração do momento vivido, bem como a compreensão da dimensão e dos efeitos da pandemia e do necessário isolamento social. Reforça, também, que “ficar em casa”, neste momento, é a única alternativa que protege toda a população, não apenas a si. Enquanto conversam sobre hidratar cabelo, fazer fotografias e tocar instrumentos, os alunos e a professora elaboram conceitos de crise e de coletividade. Estabelece-se uma relação dialógica em que os alunos se afirmam como sujeitos o que, segundo Paro (2010a), constitui elemento fundamental para que possam aprender. Evidencia-se a dimensão política da educação na medida em que esses sujeitos se colocam como capazes de fazer algo em relação ao vivido, trazendo suas ações para o campo das escolhas conscientemente assumidas.

De acordo com Paulo Freire (1993), a partir da consciência das dificuldades enfrentadas e, sobretudo, da necessidade de buscar condições mais justas e igualitárias para a sociedade, cultiva-se uma esperança criticamente orientada. Porque a partir do entendimento daquilo que é vivido, mesmo cientes de toda a sua aridez e dificuldade, os sujeitos não se resignam a ela, se mobilizam e projetam, pensam alternativas e se apoiam, trabalham objetivamente para a construção de uma outra realidade. “A desesperança das sociedades alienadas passa a ser substituída por esperança quando começam a ver com os seus próprios olhos e se tornam capazes de projetar. [...]. Este otimismo nasce e se desenvolve ao lado de um forte senso de responsabilidade” (FREIRE, 1986, p. 42). No campo da esperança, professoras como Karina se colocam sensíveis às falas dos alunos, demonstrando compreender sua responsabilidade, no sentido mais humano da palavra.

Por isso, formar-se e exercer a docência vai além da mera transposição de conteúdos. O inegável compromisso com a curadoria, a circulação e a apropriação de saberes historicamente produzidos pela humanidade são algumas das responsabilidades do professor, mas não são as únicas e talvez não as mais importantes, quando compreendidas de forma desarticulada. Assim como posto por Vigotski (2018), ação pedagógica implica um processo bastante complexo que se inicia com a proposição de experiências que ampliam o repertório cultural dos alunos, conectando tempos e espaços, aproximando tradições e práticas sociais. Ainda, essas experiências passam a fazer sentido quando se conectam às emoções, suscitam interpretações, mobilizam a atenção, memória e tantos outros processos cognitivos. Das diferentes formas de pensar e de compreender criticamente o mundo e suas relações, os alunos são levados a elaborar perguntas à realidade e a buscar por respostas. É somente nesse movimento que os conteúdos, como conjunto de saberes oriundos da técnica ou da tradição, podem servir ao processo de desenvolvimento e aprendizado.

Sem fingir normalidade quando tudo está tão diferente, as ações das professoras, quando acontecem, precisam ser ajustadas. Escolhas devem ser feitas e, para isso, faz-se necessário reafirmar princípios que possibilitem identificar o que é essencial nas relações de ensino e de aprendizado. Dentre as muitas responsabilidades que temos como professoras, quais são aquelas que nos caracterizam e nos constituem? De quais não podemos abrir mão? Destaca-se, na escrita de Kamila, a importância de preservar momentos de diálogo e a dinâmica do coletivo. Privilegiar o fato de estar junto (e a consciência de que a humanidade passa por esta situação coletivamente), valorizar o conhecimento científico como produção humana, desenvolver a empatia e propiciar momentos de educação sensível são condutas urgentes que auxiliam no desenvolvimento de adolescentes que, estando fisicamente longe da escola e dos colegas, experimentam sentimentos novos e de difícil elaboração.

Ao colocar-se como parte do grupo e trazer as experiências dos alunos para a discussão em aula, Kamila também relembra os alunos (e, possivelmente, a si mesma) que todos sabem coisas e podem apontar caminhos para juntos enfrentarem melhor o momento vivido. Nessa perspectiva, não basta resignar-se à realidade vivida, pois é preciso conhecer e atuar neste mundo, pensar sobre ele. Ao concordarmos com Freire (1986, p. 47), pode-se dizer que a ação que se funda na cultura e na vivência coletiva, por compreender o indivíduo como ser social, que se humaniza com o outro e com o meio, de forma dialética é a que carrega “a marca da liberdade”.

Diferentemente da ação de adaptar-se, que pressupõe abandonar a si para se encaixar no que é novo, o autor afirma ser possível alterar as práticas propostas, integrar-se às situações compondo iniciativas autorais, refletidas, intencionais. Integração, como conceito, remete à relação dialética de construção da realidade e de si, criticamente. Narrativas como essa ensinam que as propostas educativas que podem se mostrar viáveis no contexto de isolamento social são as que se caracterizam como respostas aos desafios contemporâneos, não como mera aceitação. São as iniciativas que reconhecem os entraves vividos, humanizam as relações e se mantêm coerentes aos princípios educativos que anunciam. São, ainda, propostas que se entendem provisórias, reafirmam a importância do contato físico, dos vínculos afetivos e da produção intelectual, e, por isso, se orientam para um futuro no qual todos voltam à convivência em um lugar (AUGÉ, 1994) comum, que potencializa a formação para a democracia e a autonomia: a escola.

Professoras e alunos trabalham remotamente na esperança do encontro, do abraço, dos olhares. Por isso, lições de quarentena não ensinam, necessariamente, sobre iniciativas de educação a distância em sua essência. Mostram, indubitavelmente, a capacidade de organização dos profissionais e a capacidade de criação do humano sobre o humano: o que se é capaz de fazer para manter provisoriamente os vínculos e a sensibilidade em meio ao caos, por haver a crença em dias melhores.

Ainda, as aulas-encontros como as de Kamila são possíveis e se estendem ao ambiente doméstico porque partem de situações concretamente vividas e partilhadas. Houve um antes: há a memória do afeto, há um saber das relações. O trabalho colaborativo que desse encontro decorre é fruto do que se construiu como relação humanizada em sala de aula, ao longo dos meses que antecedem o isolamento, e não apenas das escolhas técnicas e metodológicas do momento presente.

Depois de 18 anos como professora no Ensino Fundamental, assumo, no dia 18 de março, uma turma de Educação Infantil na Rede Municipal. Tudo muito novo: rotina, relações e interações, prioridades e espaços. Apenas dois alunos vão para a escola naquele dia. Na saída, a orientação é não deixar nada no chão ou fora do armário, pois não sabemos quando voltaremos. No dia seguinte, começa o período de distanciamento social, sem prazo para terminar. Nova demanda: é preciso planejar atividades para essas crianças. Não as conheço, nem de vista, não nos vimos... consigo materializar apenas duas crianças, duas de 15. Ou seriam 16? Não me recordo. Eu, tentando entender o funcionamento naquele dia, não me atentei ao número exato de crianças. As atividades serão enviadas aos responsáveis... Quem são? Como estabelecem a relação com aquele local, com as professoras e com as funcionárias? Não sei. Como pensar nessas atividades? Quais recursos essas famílias possuem para realizá-las? O apoio da parceira do turno da manhã se faz importante. É a referência, a única! Quando a vi? Uma vez, fomos apresentadas, uma troca de olhar de 2 minutos, um bilhete carinhoso de “bem-vinda” deixado no caderno de planejamento e várias mensagens via WhatsApp. Atividades planejadas e enviadas, alguns poucos retornos que se tornaram ainda mais escassos com o passar dos dias. Peço fotos, quero ver as crianças, perguntar o que estão fazendo em casa. Sem registros. Quem sou eu pra eles?!

(Narrativa de Alice Magri)

O registro de Alice traz, dentre outras coisas, a falta de um “antes”. Seu texto reforça a importância das relações afetivas e da construção de vínculos para a existência de um “nós” virtual. Por nunca ter estado com seus alunos dentro de uma sala física de aula, a professora demonstra que os contatos puramente remotos não se sustentam facilmente, justamente por permanecerem na esfera do que Paulo Freire (1986) chama de contato: diferentemente das relações, que são dialéticas e dialógicas, complementares e sensíveis, a mera comunicação de comandos centrados nos afazeres escolares se reduz a impressões superficiais da realidade dos alunos. Como a própria professora escreve, ela não conhece as crianças e elas não a conhecem. Muito embora desempenhem cada qual o seu papel, não há um saber sobre, com, do e para o outro.

Na escola de agora e nas práticas em período de isolamento, muito do que é proposto se restringe ao campo dos meros contatos, negando-se aos alunos e às professoras a experiência de discussões que possibilitam a percepção do quanto sua vida se entrelaça à dos outros. Freire (1986, p. 15) aponta que “[...] é por isso que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: seu caráter formador”. Ao concordarmos com o autor, defendemos que as propostas realizadas pelas professoras com seus alunos sejam pensadas de modo a reafirmar a potência das relações humanas e do convívio social.

Há ainda outra particularidade trazida na narrativa que merece atenção. Alice conta que agora é professora de crianças de Educação Infantil. Pesquisadoras como Faria, Demartini e Prado (2009) alertam, em seus estudos, que há especificidades no ensino de crianças pequenas e destacam a importância de serem reconhecidas e contempladas dimensões de sua própria cultura. Nesse sentido, é preciso considerar as culturas escolares e as culturas familiares como núcleos essencialmente diferentes das culturas de infâncias, que se manifestam de modo diferenciado em cada espaço de convívio. “É dar condições para a participação como ator social e, para isso, ouvir e amplificar sua voz, propiciar o protagonismo às pessoas de pouca idade, que mesmo que ainda não saibam escrever estão ‘na primeira pessoa’” (FARIA; DEMARTINI; PRADO, 2009, p. 16).

A proposição de aulas síncronas ou atividades de autoestudo para crianças tão pequenas suscita reflexões que vão além dos pontos já debatidos até aqui (acerca da incoerência entre o que se espera da escola no âmbito da mera transmissão de conteúdos em contraposição às experiências formadoras que compreendemos ser o eixo estruturador das práticas escolares), pois existe outro aspecto que altera significativamente as relações estabelecidas: crianças pequenas não leem textos de orientação, não realizam comandos remotos nem manipulam equipamentos digitais com independência nem autonomia, sendo necessário o frequente acompanhamento e supervisão de um adulto para a efetivação de qualquer proposta de ensino. Isso significa, em primeira instância, que cada criança passa a ter um adulto como facilitador de aprendizagem. Simplificam-se as propostas, diluem-se as experiências de tentar, arriscar, recombinar, trocar, perguntar, tatear, hesitar, ousar. Some o fator interativo da convivência entre pares, tão essencial para o livre brincar das crianças. A diversidade de leituras de mundo, o encontro de falas atravessadas, a imitação e a dramatização tão presentes no jogo simbólico, as experimentações com areia, tinta, objetos, as negociações de posse de brinquedos e ocupação dos espaços são drasticamente limitadas à tradução do adulto sobre “o que é para fazer”.

Alice alerta para a pouca efetividade das propostas remotas para seus alunos e familiares, ao registrar como o diálogo vai se tornando escasso, até cessar. No espaço da casa, a brincadeira ganha outro formato. Essa importante atividade, segundo Vigotski (2010), funciona como guia para o desenvolvimento infantil e deveria ocupar a maior parte do tempo das crianças, no que diz respeito ao envolvimento no planejamento, a criação de estratégias, seleção de materiais e objetos e recombinação de experiências. Além de sua importância formativa, na brincadeira livre que se desenvolve entre pares, especialmente nos espaços coletivos como o da escola, a criança protagoniza a ação educativa: é ela quem pondera, decide, negocia e assume as consequências de suas escolhas. No modelo de ensino remoto, as orientações de atividades são enviadas aos responsáveis e é para eles que as devolutivas são feitas. Nesse formato, as crianças são colocadas como coadjuvantes, de modo que tudo é decidido e negociado entre adultos.

O desconforto registrado no movimento de “mandar atividades” para que as crianças realizem com os adultos lembra que as professoras, como pessoas que também estão em situação de teletrabalho e confinamento, tendo de administrar a rotina de múltiplos afazeres, entendem a sobrecarga que recai sobre a família ao terem de assumir uma demanda de instrução para a qual não possuem preparo, que não era e não foi aceita como sua. Quando deixadas de lado as iniciativas de prescrição de tarefas e de “lições” baseadas em conteúdos, há possibilidade de fortalecer uma relação de parceria entre família e escola (pauta recorrente em Educação), se o movimento for de discutir ações possíveis e de pensar coletivamente em práticas para o oferecimento de experiências sensíveis e significativas para as crianças. Se, por vezes, o senso comum remete à velha lógica de que a família é subjugada pela escola, que com prepotência pensa ser necessário ensinar às famílias o que fazer com seus filhos e ainda supervisionar se o fazem corretamente, as pesquisas no campo da educação de infância atentam para a necessidade de propor respeitosamente a conversa e acolher as realidades distintas e saberes locais, em atitude que unifica, em vez de segregar, gerando mais compreensão do que tensão.

Em um mundo em que os valores sociais estão sendo questionados e muitos direitos suprimidos, o enfrentamento da educação das crianças torna-se crucial e demanda dos adultos responsabilidades cada vez maiores, não só com relação às crianças, meninos e meninas, mas também no tocante à sua família. (FARIA; DEMARTINI; PRADO, 2009, p. 9).

Nos contextos em que seja possível sustentar práticas paliativas em um momento que esta parece ser a única alternativa, reafirmam-se iniciativas pensadas de modo a fortalecer as crianças e suas famílias, oferecendo situações significativas de interação social. Nessa perspectiva, a narrativa de Caroline retrata outras dificuldades encontradas pelas professoras ao tentar manter práticas relacionadas aos anseios das crianças e respeitosas em relação ao momento vivido:

Depois de pouco mais de um mês vivendo a experiência de ensino remoto que a necessidade do isolamento social nos colocou, a escola entrou em férias antecipadas por 15 dias. No último dia antes das “férias”, faltando duas horas para encerrar meu turno de trabalho, estando em home office, recebo uma mensagem da coordenação solicitando uma reunião comigo por vídeo chamada. No ápice do cansaço, angústia e crises com a falta de coerência diante de encaminhamentos da equipe, atendo à convocação sabendo que sairia da conversa mais frustrada do que já estava. A coordenadora me comunica que havia acabado de enviar uma planilha por e-mail contendo os conteúdos previstos no plano de ensino do próximo bimestre. Não foi nenhuma surpresa pra mim quando ouvi que a finalidade daquela reunião era fazer um checklist de cada conteúdo previsto e aplicado por intermédio da plataforma on-line, desconsiderando todos os apontamentos e reflexões coletivas baseados nos estudos da equipe e participação das famílias acerca do momento em que vivemos e a necessidade de olharmos para nosso currículo com sensibilidade e ponderação das práticas priorizadas em meio a uma pandemia. Além do registro dos conteúdos trabalhados, a preocupação demonstrada pela coordenação era: quais instrumentos poderíamos utilizar para atribuir um conceito avaliativo às crianças? Diante da minha evidente contraposição em submeter as crianças a processos de avaliação, ela repetia:

- Você precisa entender que precisamos garantir algumas coisas.

Mas que coisas são essas que ela deseja garantir? Mais uma coisa para as famílias se preocuparem em meio à iminência de uma doença? Ansiedade e desestrutura emocional tanto para as crianças como para seus responsáveis? Não! Não entendo mesmo. Cansada de discutir, e também por não esperar escuta e nem alternativas potentes que viessem como orientações da coordenação, eu me propus a ouvir e fazer o que era solicitado. Só queria que aquela reunião acabasse logo para que eu pudesse descansar minha cabeça, acalmar os pensamentos por um tempo e elaborar quais seriam as formas de transgressão que eu teria que utilizar para aproximar minha concepção de educação com o formato de escola que temos vivido e com as exigências que continuam sustentando uma escola sem nenhuma conexão com vida. Uma escola que é incapaz de se autoavaliar e ressignificar suas práticas retrógradas, baseadas na pura transmissão de informações.

(Narrativa de Caroline Henriques)

O registro da professora aponta para as exigências que se sobrepõem e burocratizam o trabalho docente. Assim como ela, muitos educadores têm se afogado em afazeres superficiais, na busca por suprir demandas cada vez maiores que a eles são impostas. Em meio a planilhas, esquemas e roteiros, é possível que muitos se rendam às práticas mecanizadas de produzir ou “dar aulas”, como se as experiências decorrentes da interação entre professoras a alunos se restringissem ao oferecimento por parte de um e o aceite por parte do outro. Diante da preocupação com garantias, que obviamente ninguém tem a oferecer (por não se tratar da aquisição de um produto), perde-se a referência histórica do que é próprio da escola e das professoras, daquilo que se cria no exercício da profissão por meio das relações e dos processos. Assim como diziam Freire e Shor (1995), aquele que se rende a tal lógica “perde seu endereço na história”, pois se retira do próprio fazer, se anestesia diante dos impasses vividos no momento presente, perde a capacidade de se orientar para o futuro. Para os autores, a articulação da história pessoal, conscientemente localizada na história da nossa sociedade e da própria humanidade, possibilita uma existência criticamente orientada em nosso tempo.

A preocupação da direção em “garantir alguma coisa” reflete uma concepção de educação reduzida, preocupada em garantir conteúdos e resultados em avaliações, descaracterizando o processo pedagógico e aproximando-o do trabalho realizado em outras unidades produtivas do sistema capitalista que, segundo Paro (2010a, 2010b), se voltam a objetivos muito distintos dos objetivos que as escolas deveriam buscar.

Enquanto parte da estrutura escolar busca aderência aos princípios da administração empresarial, fundamentando o trabalho docente na lógica produtivista, a professora resiste. Desiste de argumentar, mas insiste em lançar mão de estratégias próprias para continuar a firmar seus compromissos, sua trajetória e as marcas de luta que são suas, mas também de tantos outros colegas de profissão. Nesse sentido, Paro (2008) argumenta que:

Como grupo social, a escola é dotada de um dinamismo que extrapola a sua ordenação institucional, oficialmente instituída. As formas de conduta dos indivíduos e os grupos que compõem a escola, suas contradições, antagonismos, interações, expectativas, costumes, enfim, todas as maneiras de conviver socialmente, nem sempre podem ser previstas pelas determinações oficiais. Não obstante, apesar da imprevisibilidade dessas relações, elas acabam por constituir um modo de existir ou de operar, envolvido por valores, costumes, rotinas que lhes emprestam certa regularidade que não pode deixar de ser considerada no estudo da escola. (PARO, 2008, p. 15).

O autor sinaliza que professoras como Caroline, assim como alunos e familiares, vêm sendo incentivados há tempos a consumir e a reproduzir práticas que não pensaram, discutiram e com as quais não concordam. Estão todos à margem, uma maioria que é desencorajada à atuação social, mas que, mesmo assim, insistem em se ver como produtores de conhecimento. Assim como alertava Certeau (2003, p. 48), nos afazeres cotidianos há um movimento coletivo, socialmente instituído, mesmo que silencioso e quase invisível, no qual se criam “pequenos retalhos de memória” que mantêm as professoras atentas às possibilidades de reinvenção. Nesse contexto, as ações de resistência passam a ser compreendidas como aquelas que insistem em acontecer sem atender às lógicas de consumo e de produção.

Podemos reconhecer que é possível buscar alternativas e brechas para que, em um momento generalizado de precarização do trabalho docente, professoras e seus alunos continuem a desenvolver práticas que reafirmem compromisso com a dimensão social da formação humana. No entanto, não se pode aceitar a violência praticada e, por vezes, naturalizada contra aqueles que insistem apenas na execução séria e compromissada de seu ofício. Concordando novamente com Freire (1986, p. 50), entendemos que “[...] toda relação de dominação, de exploração, de opressão já é, em si, violenta”; legitima as relações hierárquicas, as decisões centralizadas, a incidência de poder que silencia e dociliza. Essas práticas desumanizam, na medida em que cerceiam a expressão, a consciência, o pensamento, a liberdade. Não se pode aceitar, nesse contexto, que alunos e professoras sejam tomados como coisas, que, ao serem estrategicamente posicionadas, produzirão efeitos mais ou menos desejáveis àqueles que planejam e comandam o jogo pedagógico.

Tendo isso posto, defendemos que a ação docente seja pautada nas próprias soluções, e não na busca por modelos formativos que traiam, na forma e em seu conteúdo, os princípios básicos de promover o otimismo crítico e o pensamento para a liberdade. Assumimos, com isso, que o espaço e o tempo da prática docente são também o espaço e o tempo da professora reconhecer-se como profissional, ajustar suas condutas e refazer sua trajetória formativa. É a reflexão da realidade vivida, por meio das referências históricas e culturais dos sujeitos, que ocasiona a produção de saberes sobre a ação profissional. “A Educação é um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa” (FREIRE, 1986, p. 50). Tal premissa se firma na certeza de que as professoras não podem ser compreendidas de modo desvinculado do seu espaço de trabalho, nem de suas relações pessoais e conhecimentos prévios. Por isso, a crença em um modelo de formação pautado no ato de narrar e refletir sobre o que se faz, no compartilhamento de experiências vividas pelas professoras neste tão novo cotidiano.

Educar em tempos tão controversos requer inteireza, pesquisa, diálogo, coerência para compreender criticamente o que acontece e só então pensar como se posicionar ante ao ato pedagógico, pois a atitude formativa é sobretudo de análise aprofundada da realidade. As narrativas docentes contribuem para o processo de formação de quem narra e também dos interlocutores (FERREIRA, 2014), no momento que propicia a consciência de sua própria trajetória e oferece ao outro testemunho de resistência, de luta e de convicção.

Considerações finais

Dos dias que mais chorei de saudade nessa quarentena, foi o dia da primeira reunião online com o 6º ano. Porque a graça de dar aula para 6º ano é eles chegarem pertinho da gente, todos juntos e curiosos, querendo saber mil coisas:

- Você cortou o cabelo? Por que sua blusa parece o tapete do Aladim? E esse brinco de árvore? Que cheirinho bom. Que cheiro é esse?

Lavanda. E pediam para eu borrifar uma lavandinha neles para acalmar os ânimos. E para não gritar pedindo silêncio quando todos começam a falar ao mesmo tempo (porque não se grita pedindo silêncio), fazer um coração no ar, que é o nosso código secreto para que eles se acalmem e unam seus corações ao meu coração. Chegar na segunda e ouvir “eu tava com saudade, professora!”. E ganhar abraço, muito abraço! Eu ganhava abraços todos os dias. Nos dias de aula que antecederam a quarentena, eles foram avisados a já manterem distância. Na nossa última aula presencial, um deles veio até mim e disse:

- Professora, mas eu não tenho essa doença e eu preciso muito de um abraço seu.

Eu passei álcool em gel nas nossas mãos e braços e nos abraçamos bem forte. Foi o último abraço que recebi antes da quarentena. O próximo não sei quando será.

Na reunião online, eles falaram sobre como estão com saudades da escola, dos colegas e dos professores. E a cada carinha que aparecia na tela do meu celular, a saudade apertava mais. Terminou a reunião, eu coloquei a música que eles gostam e chorei como se tivesse tomado um pé na bunda. Quem precisa de crush quando se tem um 6º ano? Aliás, os crushes que lutem, meu coração é dos meus alunos do 6º ano.

(Narrativa de Kamila Videira)

As situações precárias de oferecimento e acesso ao ensino remoto, somadas às inúmeras dificuldades enfrentadas por alunos no ambiente doméstico limitam ainda mais o direito à educação de qualidade social de milhares de estudantes. Embora as políticas de enfrentamento da pandemia imponham condições pouco favoráveis para a prática educativa, é preciso retomar princípios para buscar respostas e encaminhamentos que se mostrem coerentes com o que se revela essencial para a realização das práticas escolares.

A situação excepcional imposta pelo isolamento coloca lentes na crise vivenciada em educação e denuncia a urgência no enfrentamento de um debate há tempos anunciado: compreender e defender os fins da educação escolar, seus propósitos como instituição que humaniza ao proporcionar o encontro, a vivência com o novo e com o diferente, o exercício crítico e democrático, as experiências e as vivências. Nesse sentido, as narrativas analisadas evidenciam questões há muito discutidas. Deixam transparecer a fragilidade de iniciativas de ensino mecanicistas pautadas exclusivamente na transposição de técnicas ou conteúdos, marcam a urgência de uma formação docente politicamente orientada, crítica, consciente da precarização crescente do trabalho docente, acentuam a potência da formação compartilhada, das redes de cooperação mútua e do aprendizado como resultado da ação coletiva, socialmente marcada. Além disso, evidenciam a importância e a valorização da ciência e da produção acadêmica compromissada com a Educação Básica, de forma a também promover o reconhecimento do conhecimento produzido no chão da escola e entre pares.

Indo além, os registros também evidenciam possibilidades de transgressão, trazem lições de resistência e depoimentos de fortalecimento de si e do coletivo docente a partir do momento e situação vividos. Lembram que as práticas potentes e possíveis são aquelas que não deixam esquecer ter havido um antes, no qual se fundam os afetos, o conhecimento tácito, o saber das relações entre grupo. Também celebram a possibilidade e a expectativa de um depois, na retomada da convivência cotidiana. Por isso, reafirmamos que os aprendizados docentes decorrentes do isolamento social não versam sobre a efetividade de iniciativas de educação a distância como práticas permanentes. Suporta-se a carga atribuída (sem deixar de lutar e buscar por condições mais dignas de trabalho), em nome da memória que nos habita e das convicções da importância do chão da escola como lugar de convivência e de pertencimento, de prática daquela educação tão defendida por Freire (1986), que liberta o sujeito, humaniza as relações e emancipa o pensamento.

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Recebido: 22 de Maio de 2020; Revisado: 25 de Junho de 2020; Aceito: 26 de Junho de 2020; Publicado: 02 de Julho de 2020

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