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Práxis Educativa

versión impresa ISSN 1809-4031versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.15  Ponta Grossa  2020  Epub 02-Sep-2020

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.15360.058 

Artigos

Políticas conservadoras e (des)intelectualização da docência*

Conservative policies and (de)intellectualization of teaching

Políticas conservadoras y (des)intelectualización de la docência

**Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Doutorado em Educação (UFRGS). E-mail: <martanornberg0@gmail.com>.


Resumo

Este artigo trata da influência das políticas conservadoras no campo da formação docente e as suas implicações na compreensão da educação e da docência como bens públicos. Parte-se da posição de que as políticas conservadoras produzem a desintelectualização docente. Inicialmente, discutem-se algumas concepções teóricas para entender como os valores do neoliberalismo e do discurso conservador influenciam os processos de formação de professores por meio da linguagem da aprendizagem e das táticas de profissionalização e de flexibilização. Posteriormente, com base em estudos sobre um programa de formação continuada de alfabetizadores, discutem-se os processos de (des)intelectualização docente. Por fim, articulam-se as reflexões feitas nos tópicos anteriores para defender a docência como atividade intelectual e ética.

Palavras-chave: Formação docente; Políticas conservadoras; Docência

Abstract

This paper deals with the influence of conservative policies in the field of teacher training and its implications in the understanding of education and teaching as public goods. It is assumed that conservative policies produce the teaching desintellectulization. Initially, some theoretical conceptions are discussed in order to understand how the values of neoliberalism and the conservative discourse influence the processes of teacher training through the learning language and the tactics of professionalization and flexibilization. Later, based on studies on a continuous training program of literacy teachers, the processes of teaching (de)intellectualization are discussed. Finally, reflections made on the previous topics to defend teaching as an intellectual and ethical activity are articulated.

Keywords: Teacher education; Conservative policies; Teaching

Resumen

Este artículo trata de la influencia de las políticas conservadoras en el campo de la formación docente y sus implicaciones en la comprensión de la educación y de la docencia como bienes públicos. Se parte de la posición de que las políticas conservadoras producen la des intelectualización docente. Inicialmente, se discuten algunas concepciones teóricas para entender cómo los valores del neoliberalismo y del discurso conservador influyen en los procesos de formación de profesores por el medio del lenguaje del aprendizaje y de las tácticas de profesionalización y flexibilización. Posteriormente, con base en estudios sobre un programa de formación continuada de alfabetizadores, se discuten los procesos de (des)intelectualización docente. Al fin, se articulan las reflexiones hechas en los tópicos anteriores para defender la docencia como actividad intelectual y ética.

Palabras-claves: Formación docente; Políticas conservadoras; Docencia

Introdução

As políticas neoliberais aliadas ao discurso conservador, além de minar e desmontar a educação e a escola pública e, a reboque, a ciência e o conhecimento, têm descaracterizado a educação e a docência como bens públicos. Essas políticas instituem um conjunto de orientações que conduzem à desintelectualização dos docentes, posicionando-os no lugar de facilitadores ou mediadores da aprendizagem e de instrutores ou aplicadores dos materiais didáticos e das avaliações elaborados por especialistas.

A implantação dessas políticas tem intensificado os processos de precarização do trabalho docente por meio de procedimentos ou produtos típicos da lógica economicista como o gerenciamento da educação, a “uberização” do ensino, o parcelamento do salário dos docentes, a contratação de consultoria, a terceirização dos processos de planejamento via apostilamento do ensino, entre outras estratégias, que nada mais visam do que domar e solapar a dimensão educativa no dia a dia das escolas e das universidades públicas. Nas palavras de Masschelein e Simons (2015, p. 105), “[...] domar a escola implica governar seu caráter democrático, público e renovador”, o que incide diretamente na reapropriação ou reprivatização do tempo público e livre de estudar e praticar algo, descaracterizando o sentido da escolarização como bem comum, da docência como atividade intelectual e do estudar como ato de liberdade.

Em direção contrária, defendemos que, no contexto de formação e trabalho docente, os processos de desenvolvimento profissional se articulam, forjando uma determinada disposição, própria da docência, que requer e envolve a intelectualidade (a formação científico-cultural e teórico-prática) e a ética (a vontade, o querer, a tomada de decisão, o agir). Essas duas dimensões - a intelectualidade e a ética - são afirmadas como constitutivas da docência, pois oferecem elementos e sustentação para conhecer e pensar sobre a natureza dos processos de educação e escolarização, a complexidade das dinâmicas educativas e as exigências demandadas pelos diferentes sujeitos envolvidos nos processos de escolarização básica e formação acadêmico-profissional (crianças, jovens, famílias, gestores públicos, colegas de profissão, comunidade local, sociedade civil).

Nessa perspectiva, entendemos a docência como ação genuinamente humana e entre humanos, pois coloca em jogo conhecimentos, práticas e valores. Por mais que nossa ação como humanos possa fazer uso da técnica e de tecnologias para potencializar-se como força de trabalho, tornamo-nos professores na e em relação com o outro e em torno de conhecimentos e de práticas científico-culturais. A formação, seja a escolar ou a acadêmico-profissional, é compreendida como disposição e modo de ação, o que denota a ideia de movimento e de transformação, pede pela presença de cada um - como pessoa e, também, como parte de um coletivo - e reitera o caráter singular e plural da educação.

Sob esse prisma, a reflexão que segue apresenta contribuições do campo da política educacional e da teoria pedagógica e traz elementos decorrentes de pesquisas que tiveram como foco as políticas de formação de professores dos anos iniciais. Os estudos revisados revelam elementos das práticas de formação, apontando suas contradições e possibilidades para que a educação como bem público e a docência como exercício intelectual sejam resguardadas. A revisão de estudos é uma estratégia metodológica necessária para o campo da pesquisa educacional, sobretudo da formação docente. Com ela, além de se favorecer uma leitura comparativa entre resultados de pesquisas, também se pode sistematizar elementos concretos sobre as condições e os desafios que os docentes da escola básica possuem para realizar suas atividades acadêmico-profissionais, constituindo um conjunto de evidências para reencaminhar os processos de formação e a pesquisa no campo das políticas e da formação docente.

A intenção é favorecer uma reflexão em que se una “a linguagem da crítica e a linguagem da possibilidade” (GIROUX, 1997, p. 163), pois, sendo intelectuais, podemos criar condições que favoreçam a mudança e a transformação. Recentemente Boaventura Sousa Santos (2020, p. 14) advertiu que “[...] o tempo dos intelectuais de vanguarda acabou. Os intelectuais devem aceitar-se como intelectuais de retaguarda, devem estar atentos às necessidades e às aspirações dos cidadãos comuns e saber partir delas para teorizar”. Nesse sentido, ao fortalecerem-se espaços em que se pensa a educação com os professores-pesquisadores da Educação Básica, criam-se condições para fazer frente às políticas conservadoras.

Políticas conservadoras e formação docente: as causas da desintelectualização

No campo da pesquisa em política educacional, há um significativo conjunto de estudos em que se analisa o modo como as políticas neoliberais alteram as dinâmicas e as condições do trabalho docente (SHIROMA, 2003; OLIVEIRA, 2004; NUNES; OLIVEIRA, 2017) e a própria natureza da formação de professores (SANTOS, 2004; MORAES; SOARES, 2005; GARCIA, 2015, 2016; GARCIA et al., 2020). Recentemente, observa-se o rápido avanço de políticas neoliberais na organização da Educação Básica por meio de agendas pautadas por interesses privatistas que, aliadas às posições neoconservadoras, retomam temáticas como a da educação moral, do resgate de valores tradicionais de família, em uma clara oposição às políticas de diversidade (APPLE, 2003; LIMA; HYPÓLITO, 2019, SEFFNER, 2020).

No cotidiano das escolas, observamos a hegemonia do discurso neoliberal e conservador paulatinamente ganhando espaço e produzindo uma verdadeira erosão das práticas democráticas de construção de propostas pedagógicas, pois cada vez mais as atividades de planejamento e de avaliação dos processos de ensino são retiradas das mãos dos docentes e colocadas sob o comando de agentes externos ou conduzidos por meio de programas de gestão empresarial (SAMPAIO; MARIN, 2004; OLIVEIRA; DUARTE; SILVA, 2017; PERONI, 2018). Influências e interesses privatistas que produzem uma verdadeira corrosão do sentido de docência como ação cultural e política, pois instituem a lógica da responsabilização docente e a pedagogia do gerenciamento do ensino. Lógicas que também articulam, junto à opinião pública, um discurso que torna consensual a crença de que o fracasso da educação brasileira deriva da falta de profissionalização dos docentes para desenvolverem os processos educativos, desfocando o olhar sobre o que na escola se materializa diariamente: a radical desigualdade social de nosso país e as precárias condições de ensino.

A implementação dos valores neoliberais e conservadores ocorre principalmente por meio da reforma dos currículos escolares e dos cursos de formação de professores. As últimas reformas nos cursos de formação e a definição das bases curriculares para todos os níveis de ensino mostram o alinhamento entre os conteúdos da formação de professores e os conteúdos de ensino na escola básica e seu direcionamento às avaliações externas, claramente articulados nos descritores e itens dos exames realizados. Quando se enfoca os coletivos e os sujeitos envolvidos na discussão e chancela desse conjunto de textos, observa-se a presença e a influência contínua do setor privado na educação pública, principalmente por meio das fundações e dos institutos empresariais (MENDES; PERONI, 2020). E de um modo cada vez mais acelerado, o fenômeno da privatização é observado no âmbito da formação de professores da Educação Básica em diferentes países e continentes (ZEICHNER, 2013; DINIZ-PEREIRA; ZEICHNER, 2019).

Ao engessarem os conteúdos da formação docente e do ensino básico, as reformas atuam também em favor de um desinvestimento em uma ampla e sólida formação científico-cultural, preponderando nos desenhos curriculares a ênfase em conhecimentos específicos e habilidades técnicas. O que se observa é a retomada da racionalidade tecnocrática e instrumental (GIROUX, 1997) como sustentáculo dos desenhos curriculares, pois, ao se definir o que se ensina e os meios de fazê-lo (materiais instrucionais, apostilas, livros didáticos) se determina o controle dos professores e dos próprios estudantes, o que restringe o sentido de formação universitária e de escolarização básica e, consequentemente, de docência e de estudo, reposicionando professores e estudantes como operadores técnicos.

Sem dúvidas, o principal impacto dá-se na posição que os docentes passam a ocupar, pois perdem o domínio e a autonomia para desenvolver e planejar as dinâmicas curriculares, bem como de julgar e tomar decisões em relação ao ensino em suas salas de aula. A docência passa a ser controlada e regulada por meio da definição de pacotes educacionais e materiais de ensino produzidos por especialistas e comercializados por empresas educacionais, reservando aos docentes o lugar de executor de procedimentos de conteúdos e instrução predeterminados que buscam a obtenção de melhores resultados nas avaliações externas, legitimando, assim, a pedagogia de gerenciamento (GIROUX, 1997; GARCIA; VOIGT, 2020). Nessa concepção, a escola passa a ser organizada em torno dos especialistas em currículo, instrução e avaliação (que detêm a tarefa de concepção e de produção) e dos estudantes (a quem compete aprender e obter bom desempenho nas avaliações externas). Já aos professores restam as tarefas de instrução e controle de aprendizagem. Nessa lógica, a qualidade do ensino é definida pelo alcance ou não dos índices projetados. Se alcançados, confirma-se a eficácia de tais procedimentos e modelos de ensino; caso não, questiona-se o desempenho dos professores e das próprias crianças e, raramente, as concepções de conhecimento ou os conteúdos e objetivos dos materiais utilizados, tampouco as condições de ensino.

Na perspectiva do gerenciamento, retira-se dos docentes a prerrogativa de deliberar e refletir sobre o processo de planejamento e ensino pois se estabelece uma pedagogia centrada exclusivamente nos resultados de aprendizagem. Desta feita, descaracteriza-se o próprio sentido da educação e da escola como bens públicos, cuja razão fundante se assenta na defesa do direito de estudar e praticar algo pelo valor em si mesmo. Um valor que não se pode, a priori, determinar, pois muito do que resulta de um processo educativo é imensurável (MEIRIEU, 2002); afinal, a educação é, antes de mais nada, um trabalho sobre si, o que implica o entendimento não dos outros ou de um conjunto de conteúdos delimitados, mas, sim, de compreensão sobre si mesmo como sujeito da ação no mundo que, em confluência com múltiplos e diversos conteúdos, (trans)forma-se como pessoa.

No campo da teoria pedagógica e da formação de professores, a difusão do discurso conservador no âmbito das práticas educativas vem sendo problematizada por diversos autores. Entre eles, para a continuidade desta reflexão, destacamos as posições de Nóvoa (2009) e Biesta (2013), que, respectivamente, tratam sobre a indústria do ensino e a propagação de uma linguagem da aprendizagem.

Desde o início dos anos de 1990 do século XX, mesmo quando se alcançou algum ganho no campo da oposição e da resistência ou em termos de proposição de programas e práticas mais inclusivas e plurais, a mercantilização da educação sempre esteve à espreita. Ao longo desse tempo, vimos a formação de professores passar a ser alvo preferencial das políticas reformistas, fortalecendo ou instituindo o que Nóvoa (2009) denominou de indústria do ensino. Pacotes didáticos, programas e currículos de formação padronizados, treinamento docente, controle das práticas de ensino por meio de avaliações de larga escala, entre outros, são mecanismos dos quais as políticas conservadoras vêm lançando mão sob a égide de que são necessários para inovar e melhorar a qualidade da educação. Dentro dessa lógica, vê-se difundir no âmbito da opinião pública, especialmente por meio da publicidade e da propaganda educacional, um discurso repetido de que os professores possuem pouca competência profissional e, por isso, precisam ser melhor preparados e treinados para que os índices de aprendizagem melhorem. Para isso, o mercado do ensino introduz novos programas e pacotes instrucionais sob a alegação de que trarão maior eficácia e eficiência aos processos de aprendizagem (STRASBURG; CORSETTI, 2020).

Para compreender como esse discurso se estabelece, Biesta (2013) refere como uma das mudanças mais notáveis observadas no campo da teoria pedagógica a ascensão do conceito de aprendizagem e o declínio do conceito de educação. “Ensinar foi redefinido como apoiar ou facilitar a aprendizagem, assim como a educação é agora frequentemente descrita como propiciadora de oportunidades ou experiências de aprendizagem” (BIESTA, 2013, p. 32). Esse deslocamento traz implicações diretas nas definições das políticas curriculares e na própria formação docente, introduzindo o que o autor denomina de “nova linguagem da aprendizagem”. No âmbito da Educação Básica, como exemplo, podemos fazer referência ao sentido restritivo dado pela Política Nacional de Alfabetização (BRASIL, 2019, p. 1) ao definir a alfabetização “[...] como ensino das habilidades de leitura e de escrita em um sistema alfabético”. O documento restringe o sentido da alfabetização a uma atividade mecânica e processual, desconsiderando implicações políticas e negligenciando a natureza social, cultural e cognitiva da língua.

A nova linguagem da aprendizagem não resulta de um programa particular ou de uma única agenda, mas decorre de uma combinação de tendências e desenvolvimentos diferentes e parcialmente contraditórios, o que indica que ela resulta como efeito de uma série de eventos. Biesta (2013) apresenta alguns fatores que contribuíram para a propagação dessa nova linguagem da aprendizagem, os quais são a seguir sumarizados com a intenção de subsidiar a reflexão sobre esse deslocamento e suas implicações para a educação pública e a docência.

O primeiro fator mostra a forte influência da Psicologia nas teorias de aprendizagem, o que tem desviado a atenção das atividades dos professores para as atividades dos estudantes. O segundo aspecto refere-se ao pós-modernismo que, ao colocar em dúvida o projeto moderno, pôs em questão a ideia de que os professores podem liberar e emancipar os estudantes transmitindo racionalidade e pensamento crítico. Essa incerteza implicou o fim da educação, restando apenas a aprendizagem. Sintoma desse processo é o recrudescimento do discurso conservador que vem destituindo a dimensão política e pública da escolarização, assim como certo silenciamento e anestesia das diferentes esferas e sujeitos sociais frente ao desmonte do direito à educação pública e da docência como exercício de liberdade intelectual. É possível supor que tal paralisia decorre de uma percepção distorcida de que se pode aprender em qualquer lugar, principalmente nas redes sociais. Um exemplo é a mudança de conduta em relação à vacinação em consequência de informações equivocadas que circulam nas redes sociais ou são apoiadas por lideranças espirituais vinculadas ao ramo de serviços religiosos, geralmente carentes de fundamentação científica.

O terceiro fator trata da explosão silenciosa da aprendizagem adulta que despende mais tempo e dinheiro em todos os tipos e formas de aprendizagem, dentro e, crescentemente, também fora dos espaços formais das instituições educacionais. O que se observa é que essa explosão silenciosa é cada vez mais individualista tanto em termos de formato como de conteúdos e objetivos. Já é possível graduar-se docente fazendo um curso totalmente a distância, em um curto período de tempo, sem ou com um mínimo de horas de estudo e/ou de inserção em contextos de atuação profissional, propostas que corrompem a própria natureza da docência como ação que acontece entre humanos. Esse desmonte das condições objetivas de formação na escola e na universidade pública acarreta a rápida perda da dimensão coletiva e dialógica, um dos princípios fundantes da ideia de educação democrática e pública.

Por fim, o quarto fator mostra que a erosão do Estado de bem-estar social vem mudando a natureza da relação entre os governos e os cidadãos, que antes era política, para uma relação econômica. E o que se vê com maior intensidade são típicos sentidos do âmbito privado adentrando na esfera do público. O Estado passa a ser o provedor de serviços e o contribuinte um consumidor, uma forma que vai se constituindo como base de uma cultura de controle e de prestação de contas que resultam em protocolos educacionais cada vez mais prescritivos e reguladores das práticas de ensino. Não são raros os relatos de docentes que referem o tempo que despendem para dar conta das demandas que provêm dos gestores das políticas de governo em suas redes de ensino. Demandas essas marcadas por imposições ou realização de procedimentos burocráticos, que atendem a uma agenda do gestor local ou, ainda, dos “consumidores/clientes”. Nessa dinâmica, os alunos ocupam a posição de quem tem necessidades a serem supridas e os professores são os que devem satisfazê-las, dentro de uma lógica individualista e consumista.

O impacto das políticas conservadoras e neoliberais na formação de professores encontra sua profusão no discurso da profissionalização e da flexibilização (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015), duas domas que intensificam os processos de desintelectualização docente. Essas duas táticas acirram o controle dos professores de duas formas: uma externa, por meio da prescrição de currículos e materiais didáticos e apostilados; e outra interna, de autorresponsabilização e cerceamento, especialmente porque criam entre os professores um senso de que é preciso continuamente buscar qualificação para atender às demandas das crianças e de suas famílias, sem, no entanto, discutir ou garantir condições objetivas para o trabalho docente.

Entre as várias evidências observadas pelas investigações conduzidas em nosso grupo de pesquisa, no que se refere à formação continuada, percebemos, nos últimos quatro anos, o acelerado desmonte de conquistas da categoria, como a hora de trabalho pedagógico na escola e a liberação parcial ou total para realizar atividades de formação e pesquisa. Em um dos estudos em andamento, a pesquisa vem mostrando que as professoras dos anos iniciais de uma rede pública de ensino, ao mesmo tempo que veem subtraída de sua carga horária semanal para o trabalho pedagógico e para a formação na escola, criam e reinventam condições e espaços para discutir as práticas docentes e garantir a continuidade de sua formação. Em uma das situações observadas, as professoras acordaram entre si dedicar de 5 a 10 minutos da sua hora de descanso/recreio para fazer combinações sobre os projetos desenvolvidos no ciclo de alfabetização. Além disso, também criaram um grupo no WhatsApp para discutir textos e assuntos relativos ao trabalho na escola, à noite ou no final de semana. Paradoxalmente, o poder de articular o pensamento pedagógico intensifica o trabalho e precariza as condições de docência.

O trabalho de tese de Schmidt (2019) analisou um programa de formação voltado ao uso de mídias pelos professores na Educação Básica. Entre os aspectos observados, destaca-se o crescente consumo de cursos a que profissionais da educação se submetem sob o argumento de que é preciso manter-se atualizados para dar conta das demandas da sociedade e dos alunos. Quanto à tipologia e aos conteúdos desses cursos, estes geralmente estão associados ao uso de aplicativos e tecnologias amplamente oferecidos pelo mercado, os quais os professores são pressionados a usar em suas salas de aula sob a alegação de assim motivar e manter o interesse dos estudantes, melhorando a sua aprendizagem. Outro aspecto observado foi o tempo despendido para as atividades de estudo e de leituras ou para a realização das atividades do curso que a autora investigava. Para um número significativo de participantes, as atividades de estudo ocorriam no final de semana ou na madrugada, após longas jornadas de trabalho na escola ou, ainda, durante as refeições e os períodos do recreio escolar.

Outro aspecto que mostra a corrosão do sentido da docência como atividade intelectual pode ser ilustrado pelo relato de professoras da Educação Infantil ou dos anos iniciais do Ensino Fundamental que participam do grupo de pesquisa ou realizam estudos no Programa de Pós-Graduação. Elas contam que, para poder participar, assumem o custo de ampliarem sua jornada de trabalho em outros dias, “pagando as horas que ficam devendo” ou descontando as horas não trabalhadas porque “não deram aula ou faltaram ao serviço para estudar”.

Estas, entre outras, são evidências que corroboram a desintelectualização dos docentes e a perda do valor da educação. De forma mais contundente, a docência é subjugada por meio do controle estabelecido sobre os processos educativos e, consequentemente, condena-se à morte a educação pública por meio da vinculação da escolarização à lógica mercantil. Contudo, o valor da educação como bem público está, justamente, na criação de um espaço comum de acolhida às múltiplas existências. Um espaço em que se pode fazer escolhas e tomar decisões sobre os percursos que se deseja fazer com base na experiência legada pela tradição científico-cultural.

A relação que se estabelece entre sujeitos e o conhecimento é o maior bem público de uma sociedade e da própria razão da educação escolar. Questões de conteúdos e objetivos, ao serem observados sob o prisma educacional, contribuem para a aquisição de uma compreensão do que se quer ou se precisa, o que é em si mesmo uma experiência importante de aprendizagem. Todavia, são experiências que perpassam por aspectos sociais e interpessoais e não derivam exclusivamente da preferência individual ou de uma transação econômica. Afinal, saber quem somos e quem desejamos nos tornar por meio da educação é uma questão importante para nós mesmos, mas também uma questão fundamental para as relações com os outros e para nossa posição no tecido social. Assim, definições sobre objetivos e conteúdos da educação envolvem, em um sentido mais amplo, decisões políticas e, por isso, pedem pela participação de professores e estudantes como sujeitos socioculturais e cognitivos, o que reitera o caráter democrático inerente ao processo pedagógico.

Processos de (des)intelectualização docente: o caso do PNAIC

Os estudos conduzidos por grupos que investigam a formação de professores têm fortalecido a articulação entre o conhecimento acadêmico e o conhecimento da prática e, em razão disso, a prática pedagógica tem, gradativamente, se tornado objeto de pesquisa. Tal constatação, no entanto, requer uma atenção no sentido de que esta seja devidamente interrogada, discutida e analisada quanto a sua relação com a formação de professores, especialmente direcionando a pesquisa para as questões e para os objetos da formação. Roldão et al. (2018) advertem que a formação continuada e os seus processos, como assunto do campo da formação de professores, têm sido pouco investigados. Nas pesquisas dos grupos analisados pelas autoras ainda é mais frequente o falar sobre a formação continuada do que propriamente sobre os processos dessa formação e a sua necessária problematização teórico-metodológica.

Nessa direção, defendemos estudos que mostrem evidências sobre como se organizam as práticas elaboradas no âmbito de programas de formação ou que sistematizem as repercussões no desenvolvimento profissional docente e nas práticas de sala de aula. Além disso, é necessário atentarmos para os movimentos de participação e de envolvimento dos docentes ao longo da vigência desses programas, sobretudo tendo em vista evitar o “desperdício da experiência” (SOUSA SANTOS, 2000). O investimento em pesquisas que enfoquem o que acontece depois da definição legal ou programática de uma política de formação, isto é, o que resulta de sua implementação, especialmente com foco na organização das práticas formativas em termos de conteúdos e processos, quais foram os seus desdobramentos na docência, entre outros, ajudam a constituir e ampliar conhecimentos sobre a docência e as condições de trabalho docente.

Assim, na esteira dessas recomendações, são apresentadas a seguir algumas evidências em termos de conhecimentos e práticas decorrentes de estudos do grupo de pesquisa no qual atuamos. As pesquisas tiveram como campo de estudo o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC). Para isso, seguindo a pretensão de unir uma linguagem da crítica e da possibilidade, apresentamos brevemente algumas contradições do programa. Após, abordamos as possibilidades criadas no âmbito do programa tomando como referência dois estudos conduzidos em nosso grupo de pesquisa.

O PNAIC foi um amplo programa de formação continuada proposto pelo Ministério da Educação/Fundo Nacional para Desenvolvimento da Educação (PNAIC/MEC/FNDE), realizado em colaboração com as universidades federais e estaduais e as redes públicas de ensino. O PNAIC, em certa medida, deu continuidade ao Pró-Letramento - Mobilização pela Qualidade da Educação (2008-2012); no entanto, diferente deste, foi proposto para todos os professores do ciclo inicial das redes públicas de ensino, as quais podiam aderir ou não ao programa. Todavia, quando feita a adesão, o programa tornava-se obrigatório para o docente lotado em turmas de 1º ao 3º ano do Ensino Fundamental.

No campo da pesquisa ainda são escassos os estudos sobre o PNAIC, especialmente sobre os impactos nas salas de aula da rede básica (XAVIER; BARTHOLO, 2019). São mais frequentes estudos que abordam sobre seus limites, seus desafios e suas possibilidades como política de formação (ALFERES; MAINARDES, 2018; SCHNEIDER; GROSCH; DRESCH, 2020), seu papel na indução da Base Nacional Comum Curricular (FRANGELLA, 2016), no alinhamento com as políticas de avaliação externas e na intensificação do trabalho docente (FRANCO; DANTAS, 2018). Em geral, a produção ainda se concentra mais em eventos e, entre as temáticas investigadas, prepondera a discussão sobre a apropriação de conceitos do campo da alfabetização ou da matemática ou as análises sobre as percepções dos participantes em relação ao programa (ALFERES; MAINARDES, 2019).

Em que pesem as contradições e os limites do PNAIC, uma das razões de sua defesa toma em consideração a hipótese levantada por Gallo (2019) de que, desde a década de 1980, se vivenciou uma “governamentalidade democrática”, que tinha como centro de afirmação o exercício da cidadania, o que foi interrompido com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016. Nesse período, estávamos incluídos na esfera pública, construindo e discutindo propostas, embora governados pela forma/fôrma do Estado, e às custas das mazelas e dos conflitos típicos do exercício de construção de um governo democrático-popular em um cenário em que forças econômicas regidas pela lógica mercantil neoliberal e conservadora já preponderavam. Contudo, foi especialmente durante os governos de centro-esquerda (2003-2016), nos dois mandatos de Lula e no primeiro de Dilma Rousseff, que o direito ao debate e ao contraditório estavam assegurados no âmbito das políticas curriculares e de formação docente, respeitando o poder de fala dos diferentes atores educacionais, garantindo o exercício da participação cidadã e a construção de propostas com significativa presença de pesquisadores vinculados às universidades públicas e de docentes das redes públicas de ensino básico.

No caso do PNAIC, este é um aspecto evidenciado, por exemplo, quando se analisam quem foram os organizadores e os elaboradores do material de formação, pois observa-se a presença de pesquisadores e de professores da Educação Básica vinculados a vários grupos de pesquisa. Entre eles, destacam-se o Centro de Estudos em Educação e Linguagem, da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE) e o grupo de pesquisa Educação Matemática, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), além de pesquisadores e de professores de outras universidades públicas, de diferentes regiões do Brasil, que contribuíram com a elaboração de textos para os cadernos de formação. O PNAIC permitiu a consolidação e a visibilidade de uma ampla rede de interlocução entre docentes de diferentes âmbitos do sistema educacional brasileiro: Federal, Estadual e Municipal. Também favoreceu condições mínimas de formação, por meio da concessão de bolsas de estudos para os docentes do Ensino Superior e da Educação Básica, tanto no processo de produção dos materiais de estudo (cadernos de formação), quanto durante a realização dos encontros de formação. No entanto, reforçou o caráter hierárquico entre os docentes conforme sua atribuição no PNAIC, aspecto demarcado pela desigualdade do valor das bolsas concedidas aos diferentes participantes do programa.

Embora até aqui se tenha mostrado aspectos referentes à influência das políticas neoliberais e da lógica conservadora na formação docente e suas consequências no processo de desintelectualização docente, o PNAIC, ao instituir a formação, mesmo com um desenho típico da “indústria do ensino” (NÓVOA, 2009), feito por meio de material de formação padronizado, favoreceu a criação de um espaço público de debate. Nele, docentes de diferentes redes se encontravam, fortalecendo o estudo e o diálogo pedagógico. Desse modo, é possível dizer que, no desenrolar das práticas formativas do PNAIC, o lugar de agência e de tomada de decisões vai sendo gradativamente assumido pelas docentes da rede básica, que rompem com as dinâmicas propostas, especialmente quando sugerem ou requerem a discussão e o estudo de temáticas ou questões por elas consideradas importantes para a docência no ciclo de alfabetização. Tal disposição mostra a intelectualidade e a ética como disposições da docência, sobretudo, porque o conteúdo de suas preocupações são as crianças e a sua educação.

Grando (2018) e Jäger (2019) tomaram como objeto de estudo as práticas formativas organizadas por uma das universidades públicas responsáveis pela formação na região sul. Para isso, analisaram planejamentos e relatórios de formação, cadernetas de metacognição, questionários e registros de observações dos encontros. Em termos gerais, as duas pesquisas sustentam que as ações organizadas e propostas pela instituição formadora fortaleceram processos de estudo e de diálogo entre professoras-pesquisadoras, estudantes de Graduação e de Pós-Graduação da universidade com as docentes da Educação Básica, o que qualificou as práticas de ensino e de pesquisa e a própria formação das docentes e das estudantes envolvidas. Nos dois estudos, há registros de situações em que as orientadoras de estudo, após realizarem visitas às salas de aula das colegas alfabetizadoras, cursistas do programa, referem que tal atividade, além de ampliar o conhecimento sobre a própria rede de ensino, também ampliou a troca de experiências e o diálogo entre as docentes constituindo um espaço de formação entre pares. Nesse sentido, o programa, de algum modo, proporcionou condições para o exercício intelectual em que foi possível problematizar práticas e teorias, articulando um pensamento pedagógico genuinamente docente.

De acordo com a posição de Grando (2018), os momentos de estudo, escrita e leitura, realizados entre as participantes do PNAIC, favoreceram a vivência de uma reflexividade coletiva que as ajudou a realizar rupturas e modificações nas práticas pedagógicas. Essa dimensão pode ser notada nas ações de ruptura feitas pelas orientadoras de estudo nas dinâmicas propostas pela universidade e na sua prática pedagógica como orientadora do programa em sua rede de ensino. No decorrer do programa, as participantes passam a alterar a agenda de trabalho, trazendo os dilemas de suas salas de aula, as situações de ensino, os materiais usados, suas dúvidas conceituais como conteúdos prioritários para serem, coletivamente, analisados e discutidos. Outro aspecto observado refere-se ao processo formativo em si, pois percebe-se um gradativo movimento de discutir sobre as posições teóricas que sustentavam o trabalho de alfabetização e de letramento no ciclo de alfabetização, inclusive explicitando a falta de domínio sobre determinados conceitos do campo da alfabetização. Há registros de situações em que, ao se observar a dificuldade de compreensão conceitual por parte das colegas alfabetizadoras, também a orientadora de estudos percebe a sua dificuldade em explicar ou auxiliar a colega no processo de entendimento, o que faz com que se altere a dinâmica de formação criando uma situação didática mais favorecedora. São nesses momentos de rupturas que emergem as ações de invenção e de intelectualidade. No caso referido, a orientadora reconstrói sua proposta de estudo partindo do que ela própria realiza em sala de aula com as crianças para, a seguir, junto à colega, elaborar uma compreensão sobre o conceito estudado.

O estudo de Jäger (2019) mostra como, ao longo do programa, vai se constituindo um espaço intersubjetivo e ético em que há troca intelectual entre as professoras envolvidas sobre conhecimentos para o trabalho pedagógico. Os elementos de heterogeneidade e de assimetria entre os sujeitos, em razão da estrutura hierárquica do programa, não foram impeditivos para que se estabelecesse uma relação de estudo sobre os conhecimentos. A assimetria em termos de diferentes níveis e tipos de conhecimento entre as professoras também era considerada em seu valor pedagógico e, muitas vezes, era o que justamente permitia colocar os conhecimentos que possuíam em situação de aproximação, de reformulação e de ampliação. O trabalho de pesquisa ainda localizou evidências sobre a ação deliberativa das docentes, especialmente quando transgrediram a programação proposta pela universidade formadora. Como exemplo, os reposicionamentos das temáticas em estudo eram feitos de modo distinto do que previam os cadernos de formação em razão da própria experiência que tinham com os conteúdos que seriam objeto do trabalho formativo.

Um outro aspecto do estudo refere-se à recriação e à ampliação das estratégias formativas visando engendrar movimentos de transformação na compreensão e na ação das professoras, ao que Jäger (2019) denominou de “espaço disjuntivo”. Nessas situações, de forma autônoma e motivadas pela percepção de necessidades e lacunas sobre algumas temáticas, houve ampliação das propostas formativas, o que reitera a responsabilidade profissional e ética das formadoras com as professoras e, por extensão, com as crianças. Tais modificações foram observadas em trabalhos organizados relativos à cultura negra, gênero e inclusão ou, ainda, em atividades que buscavam ampliar o universo cultural das docentes por meio de aulas passeio na feira do livro, museus, casas de cultura, bem como estudo e análise de artefatos culturais típicos de determinados contextos e práticas culturais. Para a pesquisadora, ao gerar espaços culturais e formativos, abarcando singularidades e pluralidades, o PNAIC favoreceu a criação de ações educativas que resguardaram o acolhimento entre pares docentes de diferentes sistemas de ensino.

Os dois trabalhos afirmam a importância de programas em que há fortalecimento da relação entre universidade e escola por meio de práticas de estudo e diálogo pedagógico estabelecidas entre as docentes. Os dois estudos ainda mostram a presença pública das professoras ao explicitarem seu pensamento pedagógico e sua agência na transformação das dinâmicas formativas desenhadas pelo programa, transgredindo ou resistindo às lógicas das políticas sobre a qual se assentava o programa, fortalecendo, assim, o seu trabalho como intelectuais da educação.

Considerações finais

A posição anunciada pelo título deste trabalho revela uma dupla direção. Por um lado, afirmamos a gradativa desintelectualização da docência imposta por meio das práticas prescritivas e cerceadoras das políticas conservadoras e neoliberais. Por outro, vislumbramos a agência e a presença pública das docentes que, no cotidiano da prática educativa, seja na escola ou em contextos de formação, rompem com os processos instituídos. Nesses momentos, restauramos a dimensão da intelectualidade na medida em que a educação passa a ser discutida e conduzida em razão da deliberação e de julgamento pedagógicos dos e das docentes.

Entretanto, embora entendendo e reconhecendo o valor e a necessidade de nossa presença pública como docentes, há um conjunto de sinais cada vez mais evidente que perturba e imobiliza a capacidade de ação intelectual dos professores. Um deles é a crescente prática de responsabilização e autorresponsabilização docentes como argumento para justificar a gradativa omissão do Estado na garantia da educação pública. Em razão disso, quando olhamos para o atual cenário nacional, algumas indagações são necessárias:

  • Em que medida se consegue defender junto às comunidades e às famílias que as reformas curriculares em curso não representam as vozes docentes?

  • Como ampliar e fortalecer a luta em prol de uma formação científico-cultural mais ampla, uma luta que é dos docentes, mas também da população em geral, com vistas a construir, assim, uma sociedade menos desigual?

  • Como agregar a sociedade civil e as famílias em defesa da educação e da escola como bens públicos, como direitos inalienáveis e fundamentais de todo ser humano?

Essas questões fazem sentido se ainda acreditamos, como sociedade, que o papel da educação não pode ser reduzido ao simples treinamento de habilidades técnicas para inserção no mercado de trabalho. Elas possuem força para desenhar linhas de ação se assumirmos a educação e a formação intelectual de crianças e de adultos, de alunos e de professores, como atividade vital para o desenvolvimento de uma sociedade livre e democrática. Nesse sentido, se afirmamos a formação intelectual como uma categoria central da escolarização, encaramos e reconhecemos a docência como uma atividade intelectual e dela precisamos para resguardar a educação como direito de todos.

Em razão disso, a luta em defesa da educação pública é também uma luta em defesa da democracia. Democracia é criação de direitos. E ela acontece quando há luta em favor do direito à educação e ao cuidado das crianças e dos jovens; e ela, a democracia, se expande quando há transformações no âmbito do discurso e das práticas em favor da liberdade de estudar, de ensinar, de pensar, de acessar múltiplas fontes da tradição científico-cultural.

O momento que finalizamos a escrita desta reflexão é de ameaças à vida e à democracia. É um tempo de constantes ataques às instituições públicas, de eminente desmonte das escolas e das universidades como bens públicos, e do próprio direito à educação. Cada vez mais as escolas são pressionadas a migrar suas atividades de ensino para a modalidade remota sob a alegação de que o rebaixamento dos índices educacionais incidirá no decrescimento da economia nacional. No entanto, quais são as garantias do Estado para resguardar o acesso à educação para todas as pessoas? E quais são as condições objetivas dadas aos docentes para que possam garantir um ensino que possibilite a todas as crianças desenvolverem-se como pessoas?

Nesse contexto de instabilidades pandêmicas e políticas, há vozes intelectuais que criticamente escancaram as práticas burocráticas e economicistas subjacentes às orientações de avanço com os currículos formais, o conhecimento gradeado, ao sabor da tecnocracia neoliberal, que nada mais deseja do que encarcerar nossas subjetividades e singularidades no âmbito do empreendedorismo e do consumismo. Há muitas presenças intelectuais que não se eximem de mostrar a radical desigualdade social que tais modificações implicarão para a maioria da população brasileira. Que a energia de nossa intelectualidade possa ser suficiente e capaz de articular palavras para resguardar a educação como um bem público e o estudar como um ato de liberdade e de democracia.

* Este artigo resulta, em parte, do projeto de pesquisa “Pensamento Pedagógico e Desenvolvimento Profissional Docente” (Edital Universal CNPq - Chamada MCTIC/CNPq nº 28/2018) e dos estudos de Pós-Doutorado realizados no Programa de Pós-Graduação: Conhecimento e Inclusão Social em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (Edital PPGE-UFMG Edital 01/2019 - Bolsa de Estudos PNPD/Capes).

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Recebido: 10 de Maio de 2020; Revisado: 05 de Junho de 2020; Aceito: 06 de Junho de 2020; Publicado: 12 de Junho de 2020

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