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Práxis Educativa

versión impresa ISSN 1809-4031versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.15  Ponta Grossa  2020  Epub 02-Sep-2020

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.14815.046 

Artigos

Homeschooling ou a educação sitiada no intèrieur: notas a partir de Walter Benjamin

Homeschooling or education besieged in the intèrieur: notes from Walter Benjamin

Homeschooling o la educación sitiada en el intèrieur: notas a partir de Walter Benjamin

*Professor Adjunto do Departamento de Pedagogia do Centro de Educação a Distância, da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: <llrventura@gmail.com>.


Resumo

Este artigo estuda o movimento homeschooling na perspectiva da hermenêutica fragmentária de Walter Benjamin. O objetivo consiste em definir tal movimento como epifenômeno ligado à perda da comunicabilidade e da pobreza de experiência que configura a modernidade, principalmente no período atual de controle das políticas educacionais pelo neoliberalismo de hegemonia financeira. Parte-se da metodologia benjaminiana para construírem-se estruturas monadológicas que caracterizem a educação doméstica como fenômeno derivado do processo cada vez mais acentuado de interiorização da sociedade burguesa, que retrai ao plano privado uma importante conquista das próprias revoluções liberais: a escola universal moderna. Como resultado provisório, infere-se que o movimento homeschooling é mais uma das expressões da fisiognomia reacionária e solipsista do intèrieur burguês.

Palavras-chave: Homeschooling; Hermenêutica benjaminiana; Neoliberalismo

Abstract

This paper studies the homeschooling movement from the perspective of Walter Benjamin’s fragmentary hermeneutics. The objective is to define this movement as an epiphenomenon linked to the loss of communicability and poor experience that configures modernity, especially in the current period characterized by the control of education policies by financial hegemony’s neoliberalism. This text is underpinned by a Benjaminian methodology in order to construct monadological structures that characterize domestic education as a phenomenon derived from the increasingly accentuated process of interiorization of the bourgeois society, which assigns the private sphere to an important achievement of the liberal revolution itself: the modern universal school. As a provisional result, it appears that the homeschooling movement is another expression of the reactionary and solipsistic physiognomy of the bourgeois intèrieur.

Keywords: Homeschooling; Benjaminian Hermeneutics; Neoliberalism

Resumen

Este artículo estudia el movimiento homeschooling en la perspectiva de la hermenéutica fragmentaria de Walter Benjamin. El objetivo consiste en definir tal movimiento como epifenómeno vinculado a la pérdida de comunicabilidad y de la pobreza de experiencia que configura la modernidad, principalmente en el período actual de control de las políticas educativas por el neoliberalismo de la hegemonía financiera. Se parte de la metodología benjaminiana para construir estructuras monadológicas que caractericen la educación doméstica como un fenómeno derivado del proceso cada vez más acentuado de interiorización de la sociedad burguesa, que retrae al plano privado un logro importante de las propias revoluciones liberales: la escuela universal moderna. Como resultado provisional, se infiere que el movimiento homeschooling es una expresión más de la fisionomía reaccionaria y solipsista del intèrieur burgués.

Palabras clave: Homeschooling; Hermenéutica benjaminiana; Neoliberalismo

Introdução

A condição sociometabólica do capitalismo contemporâneo tem apresentado crises sistemáticas (MÉSZÁROS, 2002) que colocam em cheque antigas instituições modernas consideradas estáveis, dentre elas, a escola. Seja ela de cunho público ou privada, a escola surge na modernidade como parte integrante do conceito de Bildung (formação) que dominou o imaginário do “século das luzes”, estando na base do homem ideal, culto e autossuficiente da Ilustração (Aufklärung) e que foi “[...] sem dúvida, o mais alto pensamento do século XVIII” (GADAMER, 2014, p. 44).

Embora apresentando-se muito aquém das necessidades de compreensão da realidade social por parte do povo (ALVES, 2005) e da construção de um pensamento crítico-emancipatório, a escola tem servido pelo menos para contribuir para o processo de humanização das novas gerações em função da subsunção dos pais ao mercado de trabalho desde os primórdios da escola universal, laica e gratuita, ainda no bojo das Revoluções Burguesas dos séculos XVIII e XIX que instituíram o Estado-Nação. Mesmo se considerando mais de dois séculos de advento da escola pública moderna1, no Brasil, o processo de universalização da escola primária é algo muito recente e só a partir de 1980 é que se pode falar, ainda com muitas ressalvas, de uma “certa universalização” (FERRARO; MACHADO, 2002) do acesso à Educação Básica.

Em que pese os solavancos por que tem passado a implementação dos preceitos constitucionais de uma escola pública, compulsória, universal e gratuita, sob o princípio de “garantia de padrão de qualidade” (BRASIL, 1988, p. 138), corre-se o risco, atualmente, de passar-se ao largo dessas preocupações em função dos ataques cada vez mais ferozes do neoliberalismo contra o Estado e a favor da privatização desse importante campo social de disputas hegemônicas.

Em franca ascensão, após as crises sistemáticas globais do Estado-Providência, o neoliberalismo, como regime de acumulação de hegemonia financeira (CHESNAIS et al., 2003), dominante a partir do final da década de 1970, tem controlado as políticas públicas como forma de controlar o Estado e, por decorrência, a oferta social da educação. O caso brasileiro, assim como todo país capitalista periférico, não poderia passar incólume a essa verdadeira avalanche, de modo que, nos últimos tempos, as políticas educacionais brasileiras tiveram como foco principal reformas neoliberais programáticas, algo que se acirra atualmente com a ressurgência do pensamento conservador organizado (liberal e/ou neoliberal). Nesse contexto, a escola pública tem sido o alvo principal da propaganda de desqualificação, contingenciamento de recursos, bem como a inibição de investimento público e incentivo às iniciativas de escolas charter, vouchers e propostas de homeschool, crescendo em uma progressiva onda de políticas de Estado mínimo, reverberadas constantemente por mass media.

Em meio à crítica ao “peso” do Estado é que surge, no Brasil, um epifenômeno neoliberal, o homeschooling (educação domiciliar), de inspiração sobretudo americana, cujo interesse crescente tem angariado novos adeptos normalmente vinculados ao pensamento conservador que encontrou no novo governo2 um importante parceiro na flexibilização da legislação educacional, até o momento restritiva a esse tipo de educação3.

Depois de longo processo de lutas no seio do Estado brasileiro, marcadamente oligárquico e elitista, que visou a instituição de um sistema nacional de educação pública universal e gratuita, foi apenas a partir da 1996, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996) que se pôde vislumbrar perspectivas de consolidação da obrigatoriedade da matrícula na Educação Básica4. Entretanto, tal obrigatoriedade encontra-se em risco com a flexibilização da legislação da educação, tal como proclamada pelos adeptos da regulamentação da homeschool como modalidade educativa, cuja retórica pretende colocar o direito da família acima do Estado e, por isso, “[...] parece retomar, como fundamento de sua argumentação, ao menos de modo amplo, a tese ou as teses do jusnaturalismo, seja ele pela vertente medieval, ou pela moderna” (CURY, 2017, p. 110).

Embora se possa analisar criticamente o movimento homeschooling sob diversos aspectos, como aliás já foi feito no Brasil e fora dele, tais como econômicos (BARBOSA, 2016; OLIVEIRA; BARBOSA, 2017; BREWER; LUBIENSKI, 2017), político-pedagógicos (APPLE, 2001; CURY, 2006), jurídicos (CURY, 2017; VASCONCELOS; BOTO, 2020) ou político-sociológicos (PARASKEVA, 2001), este artigo pretende enfocá-lo a partir de um ângulo menos comum: a perda do senso de coletividade e interiorização da vida na modernidade (BENJAMIN, 2012) e a consideração do homeschool como uma das últimas “novidades” solipsistas do mundo burguês no que se refere à educação.

O estudo parte das concepções de Walter Benjamin sobre a perda da experiência na vida moderna e o progressivo avanço da vida privada e individualista das grandes cidades, voltada ao intèrieur burguês. A partir de significativos textos como “Experiência e Pobreza”, “O narrador” e “Paris, a capital do século XVIII”, dentre outros, pretende-se relacionar as reflexões do autor com a proposta de homeschool, compreendendo esse fenômeno como mais um fragmento da perda da comunicabilidade da experiência moderna e expressão de uma educação sitiada em uma nova torre de marfim: o domicílio privado.

Para tanto, apresentam-se, a priori, algumas notas sobre a metodologia hermenêutico-fragmentária de Benjamin (VENTURA, 2018), que serviram de guia para o estudo do objeto em questão. Em seguida, faz-se uma revisão da obra desse autor, procurando-se garimpar nela elementos para compreensão dos avanços do individualismo como categoria central do pensamento (neo)liberal. A partir daí, inferem-se implicações para o retraimento das experiências comunicativas e compartilhadas que têm, como efeito colateral, a perda da coletividade como parâmetro de vida em sociedade, culminando em perspectivas estéticas e educacionais narcísicas. Por fim, analisam-se alguns argumentos a favor do homeschool a partir do referencial benjaminiano, apontando-se seu caráter socialmente reacionário.

Breves notas sobre a hermenêutica fragmentária da Walter Benjamin

Não é tarefa simples situar um pensador plural quanto Walter Benjamin. Um de seus mais importantes tradutores para a língua portuguesa, João Barrento (2013), tenta defini-lo assim:

Walter Benjamin é, de facto, um dos grandes polígrafos do século XX, um filósofo de história, da linguagem, da política, da ideologia, da estética, sociólogo, historiador da literatura e da arte, crítico, cronista e contista, poeta e colecionador, teorizador dos novos media (a fotografia, o cinema, a publicidade) e autor de alguns dos grandes ensaios literários do séc. XX, sobre Kafka e Proust Goethe e Brecht, o Barroco e o Surrealismo. (BARRENTO, 2013, p. 113).

Decorrente desse vasto espectro de interesses, tornou-se “[...] o que era quase inevitável, um fragmentarista” (BARRENTO, 2013, p. 114). No entanto, longe de ser uma falta, tal condição é uma indelével marca de seu pensamento e grande influência por conta da criação de uma metodologia de pesquisa que parte dos fragmentos, ruinas e ruídos que informam os fenômenos, cujos múltiplos sentidos são estudados e interpretados, seguindo-se rastros a partir de um processo hermenêutico-fragmentário. Longe de pensar-se em algo assistemático ou aforístico, seu rigor procedimental compara-se à tarefa do arqueólogo, cujo trabalho de escavação consiste em retirar as diversas camadas sedimentadas e fazer relampejar a constelação de significados que irradiam do objeto. Contudo, tais constelações não surgem de pronto ao observador (pesquisador), pois dependem de sua capacidade de ler, de interpretar e de montar as peças do mosaico a partir do gesto hermenêutico que inventaria a origem5 (Ursprung) do fenômeno investigado. Cada peça aponta para os limites em que se processa a imagem de pensamento que expressa a ideia que se busca encontrar. Daí a importância dada aos fragmentos, como Benjamin (2016) bem apontou no estudo do barroco (Trauerspiels6). Para o autor, “[...] o valor dos fragmentos de pensamento é tanto mais decisivo quanto menos imediata é a sua relação com a concepção de fundo, e desse valor depende o fulgor da representação, na mesma medida em que o do mosaico depende da qualidade da pasta de vidro” (BENJAMIN, 2016, p. 17). Nesse processo, o que se busca são marcas fisiognomônicas7 de uma biografia, de um século ou de uma era a partir de centelhas de iluminações contidas em pequenas peças que se justapõem para formar imagens de pensamento (Bilddenken). Assim, aplicar a objetos de conhecimento das ciências humanas a hermenêutica fragmentária benjaminiana requer a compreensão do método como desvio cuja “[...] primeira etapa desse caminho será aplicar à história o princípio da montagem. Isto é: erguer as grandes construções a partir de elementos minúsculos, recortados com clareza e precisão. E, mesmo, descobrir na análise do pequeno momento individual o cristal do acontecimento total” (BENJAMIN, 2007, p. 503).

Esses fundamentos têm implicações diretas para a constituição de um método, mas como construção e montagem, não como órganon (ὄργανον), cuja tradição grega de methodo desembocou na modernidade como “modo de fazer” ou como “caminho já percorrido”, senão como caminho a ser desbravado. No sentido benjaminiano, método significa desvio, como no aforismo apresentado no Trauerspiels: Methode ist Umweg. Darstellung als Umweg8. Há de destacar-se, nessa sentença, o duplo sentido de negação do método a partir do prefixo alemão “Um”, opondo-se, de um lado, ao caminho reto (indutivo ou dedutivo) das ciências da natureza e suas regras de adequação; e, de outro, à recusa a um modo de representação (apresentação) objetivo e silogístico.

Os desdobramentos desse modo de pensar leva à busca pelo estabelecimento de relações entre as partes e a totalidade que enredam e condicionam o fenômeno historicamente. Trata-se, assim, de pressupor que a “[...] relação entre a elaboração micrológica e a escala do todo, de um ponto de vista plástico e mental demonstra que o conteúdo de verdade (Wahrheitsgehalt) se deixa apreender apenas através da mais exata descida ao nível dos pormenores de um conteúdo material (Sachgehalt)” (BENJAMIN, 2016, p. 17).

Na medida em que entendemos, como Bakhtin (2003, p. 395), que “[...] o objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante”, a chave de interpretação hermenêutica passa a ser a história como manifestação das contradições dialéticas entre os homens e entre estes e a natureza. O processo de escavação dos sedimentos tem a função de revelar o lado “fantasmático” da história, obstruído por uma visão ingênua ou mal-intencionada, que prima por uma historiografia universal eivada de um “tempo vazio e homogêneo” cujo guia é o inalienável progresso.

No caso do investigador crítico, que o autor chama de materialista histórico,

[...] arranca à época uma vida determinada e, da obra composta durante essa vida, uma obra determinada. O resultado desse procedimento é que assim se preserva e transcende (aufheben) na obra o conjunto da obra, no conjunto da obra a época e na época a totalidade do processo histórico. (BENJAMIN, 2012, p. 251, grifo do autor).

Contudo, inusitadamente, a totalidade do processo histórico não deve ser procurada no acontecimento total, mas nos seus limiares, em suas zonas de contato, pormenores pulverizados em miríades de estilhaços que guardam, em escala micrológica, a imagem do mundo (fisiognomia) em miniatura.

Apropriando-se de modo singular da monadologia de Leibniz9, Benjamin retira seu invólucro idealista para (re)constituir a partir dela os rastros infinitesimais ponteados de migalhas de tempo e de histórias que têm a capacidade de imobilizar o conteúdo substancial (Gehalt) do todo.

Desde o livro sobre o barroco, Benjamin vinha usando a monadologia como forma de organização metodológica e princípio de exposição em seus ensaios. Livros posteriores como Rua de mão única e Infância em Berlim por volta de 1900 são compostos por fragmentos de imagens imobilizadas pelo autor, contendo, em cada uma, todo um universo de significações cuja função é de estabelecer relações dialéticas entre o pensamento (Enteléquia) e sua forma de expressão.

O livro das Passagens (Das Passagen-Werk), projeto em que Benjamin trabalhou de 1928 a 1940, é, ele próprio, o resultado da unidade entre método de pesquisa e forma de exposição. Cada um dos mais de 4.000 fragmentos que compõem a obra tem a intenção monadal de fazer reluzir imagens de pensamento (Bilddenken) reconstrutoras do século XIX. Segundo o autor:

A ideia é uma mônada. O ser que nela penetra com a sua pré e pós-história mostra, oculta na sua própria, a figura abreviada e ensombrada do restante mundo das ideias, tal como nas mônadas do Discurso sobre metafísica, de 1686. [...]. A ideia é uma mônada - isso significa, em suma, que cada ideia contém a imagem do mundo. A tarefa imposta à sua representação é nada mais nada menos que a do esboço dessa imagem abreviada do mundo. (BENJAMIN, 2016, p. 36-37).

Nas teses Sobre o conceito da história, em que pese seu caráter alegórico e muitas vezes hermético, a mônada é o grande guia do pesquisador, cabendo a ele a função de retirar os fenômenos do fluxo contínuo da história, imobilizando-o uma imagem-mônada para encontrar sua significação, pois:

Pensar não inclui apenas o movimento dos pensamentos, mas também sua imobilização. Quando o pensamento para, bruscamente, numa constelação saturada de tensões, ele lhe comunica um choque, através do qual ela se cristaliza numa mônada. O materialista histórico aproxima-se de um objeto histórico somente quando ele o confronta enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos [...]. (BENJAMIN, 2012, p. 251).

Com base nesse denso referencial, já podemos vislumbrar chaves de intepretação do objeto de estudo deste artigo, o homeschooling, enquanto um cristal que contém em si todo um universo de significações do mundo burguês contemporâneo. No entanto, não somente como manifestação externa de sua facies hipocrática, senão como importante rastro fisiognômico. Todavia, antes de adentrar nessa seara, é preciso evocar ainda outras categorias benjaminianas que são também chaves de leitura do nosso objeto de estudo.

A modernidade e a pobreza da experiência segundo Walter Benjamin

Desde os seus primeiros estudos, ainda na juventude, a preocupação de Benjamin era com as condições de vida na modernidade. A obra das Passagens, já aqui mencionada, tem por objetivo reconstruir a fisionomia do século XIX, quando as grandes exposições tornam Paris o centro do mundo capitalista no momento que a mercadoria assume sua forma mais desenvolvida e fetichizada, lançando o mundo em uma feeria nunca antes imaginada. Na dialética desse processo de espetacularização, ao mesmo tempo que transforma a multidão em grande massa, a quem se dirigem a moda e as “novidades”, cria também o seu oposto, a exacerbação do intèriour, o refúgio do homem burguês, que se encontra consigo mesmo a partir dos rastros individuais que cultiva na sua torre de marfim. A coletividade perde a sua “aura”, seu sentido de existência, pois a ascensão da mercadoria à condição sine qua non de existência deflagra um processo cada vez mais intenso e radical de coisificação da civilização (BENJAMIN, 2007) e liquefação dos valores comunais.

A reprodução massificada da mercadoria inicia um processo semelhante de massificação da vida como tal, a partir da modernidade analisada por Benjamin, inaugurando uma era de supremacia high tech. Esse processo é estudado por Benjamin também no famoso ensaio de 1936, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (doravante Obra de arte), cuja questão central é, principalmente, a influência da técnica sobre a natureza e o conceito de arte a partir da reprodução10 da obra artística seriada, como se dá na modernidade. Entretanto, limitá-lo a esse aspecto seria reduzir em muito a abrangência das originais e argutas reflexões que Benjamin realiza nesse estudo. O ensaio deve ser situado no conjunto maior da sua obra para que seja razoavelmente compreendido, pois, como se viu, o procedimento metodológico deve permitir ao pesquisador imobilizar o que há de essencial, de mônada, na análise de qualquer objeto histórico.

No caso do estudo da obra de arte, Benjamin procede da mesma maneira - ele procura a mônada da época moderna, o que ela tem de essencial. Ele encontra uma obra de arte situada (e sitiada) no processo de produção capitalista, quando se converte em mercadoria ao reboque das novas técnicas de reprodução. Eis aí a totalidade histórica de que Benjamin (2012) fala na Tese 17 sobre o Conceito da História. Ao contrário de um materialismo histórico insípido, que buscava relação formal entre infraestrutura e superestrutura, com reflexo da primeira sobre a segunda, ele propõe que se estude justamente o que há de mais fragmentário, de mais original e mais irredutível, para encontrar à época uma vida determinada. Parece ser esse o guia condutor do projeto das Passagens de Paris, ao qual o ensaio da Obra de arte está indelevelmente atrelado11 e que ele resumiu na Exposé de 1939, Paris, a capital do século XIX, que escreveu para abrir a obra: “Nossa pesquisa procura mostrar como, em consequência dessa representação coisificada da civilização, as formas de vida nova e as novas criações de base econômica e técnica, que devemos ao século XIX, entram no universo de uma fantasmagoria” (BENJAMIN, 2007, p. 53).

Parece que a fantasmagoria de que fala Benjamin é justamente a subsunção de todo um modelo civilizatório aos cânones da mercadoria, quer se considere os produtos reproduzidos ou os processos de produção e reprodução sociometabólica da vida em geral. O termo, aliás, adaptado do conceito de fetiche da mercadoria elaborado por Marx, em O Capital (1845), é revitalizado por Benjamin para se referir ao valor de culto adquirido pela mercadoria a partir das exposições universais, ocorridas em toda Europa a partir de 1798, impulsionando um novo modelo cultural. Ainda no Exposé de 1935, Benjamin deixa claro que a Paris do século XIX encarna o modo de vida em que a reprodução da mercadoria e sua adoração instituem novas percepções e novos modos de ver o mundo. Nesses termos, ele se refere, no subtítulo Grandville ou as exposições universais:

As exposições universais são lugares de peregrinação ao fetiche da mercadoria. “A Europa se deslocou para ver mercadorias”, diz Taine em 1855.

[...] As exposições universais idealizam o valor de troca das mercadorias. Criam um quadro no qual seu valor de uso passa para o segundo plano. Inauguram uma fantasmagoria a que o homem se entrega para divertir-se.

[...] As exposições universais constroem o universo das mercadorias. (BENJAMIN, 2007, p. 43-44).

E como a falar para o método, Benjamin (2007, p. 44) conclui dizendo que: “As fantasias de Grandville transferem para o universo o caráter de mercadoria”. Baseado nessa última afirmação, sugere-se, aqui, parafrasear assim a grande síntese benjaminiana: na mercadoria, a obra, e, no conjunto da obra, a época da reprodutibilidade; e, na época, a totalidade do processo histórico da vida burguesa.

Ao contrário de um materialismo idealista e mecânico, Benjamin não se intimida com as críticas recebidas12 e propõe uma concepção histórica contrária àquela que denunciava estar apoiada no contínuo da história e em um tempo vazio e homogêneo (Tese 13), coetânea com a visão de progresso burguesa que contaminou também o materialismo histórico. Por isso, defende que a “[...] história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo vazio e homogêneo, mas o preenchido de ‘tempo de agora’”, tendo o historiador que “[...] explodir para fora do continuum da história” (BENJAMIN, 2012, p. 249). Dessa dinamite, emergem os restos que, ao mesmo tempo, destroem a totalidade e a pulverizam em miríades de fragmentos. Analogamente, este é o sentido de o historiador materialista se autoatribuir a “[...] tarefa de escovar a história a contrapelo” (Tese 7), pois escava onde outros não se interessam ou omitem ideologicamente. É partindo dessa compreensão que analisa as manifestações fragmentárias do mundo burguês para encontrar sua fisionomia.

Segue-se, assim, o exemplo de interpretação que dá ao estilo artístico do Jugendstil13. Benjamin percebe, nesse movimento, os indícios da literatura de investigação, cujos detetives ficaram famosos por procurar as pistas de um crime no interior da vida privada e individualista das grandes cidades, voltada ao intèrieur burguês. Edgar Alan Poe e Arthur Conan Doyle exemplificam a ascensão de um gênero literário baseado na vida privada, na qual rastros de um crime são procurados. É por aí, nessas minúsculas mônadas da vida burguesa, que Benjamin analisa a ascensão e a morte dos principais personagens de sua constelação teórica, tais como o flâneur, que tem na loja de departamento sua “última passarela”, ou na prostituta, que, simbolizando o sujeito moderno, vira mercadoria como qualquer outra. Enfim, os Motivos em Baudelaire expressam, na prática, o pressuposto teórico da investigação histórica a partir da sua expressão fragmentária, a fim de constituir a face de uma era, a era da reprodutibilidade técnica.

A multidão é a marca indelével da modernidade, da emergência da metrópole e da solidão. Com ela vêm os choques para os quais a tradição não preparou a humanidade. O trânsito febril, a correria descompassada, os esbarrões forjam o homem citadino tão bem caracterizado na leitura que Benjamin (2017) faz do poeta Paul Valéry:

Valéry, com o seu olhar crítico sobre o complexo de sintomas chamado “civilização”, caracteriza um dos seus aspectos mais significativos: “O habitante dos grandes centros urbanos”, escreve, “volta a cair no estado selvagem, o mesmo que dizer no isolamento. A sensação de depender dos outros, antes sempre estimulada pela necessidade vai decaindo progressivamente no funcionamento sem atritos dos mecanismos sociais. Cada aperfeiçoamento desse mecanismo pressupõe a eliminação de determinados tipos de comportamento e de certas emoções...”. O conforto isola. (BENJAMIN, 2017, p. 127).

Tal cenário lembra diretamente o Homem da Multidão, de Poe, cuja visão da turba previu tanto a ascensão do automatismo das massas quanto a do assassino e do retraimento da sociabilidade. Assim, Benjamin (2017) recupera de Poe:

Mais surpreendente é ainda a descrição da multidão se se atenta no modo como ela se movimenta: “A maior parte dos que passavam pareciam pessoas satisfeitas consigo próprias e com dois pés bem assentes na terra. Pareciam estar apenas preocupadas em abrir caminho por entre a multidão. Franziam as sobrancelhas e olhavam para todos os lados. Se levavam um empurrão de outro transeunte, não pareciam muito irritadas; ajeitavam a roupa e seguiam caminho rapidamente. Outras, e também este grupo era grande, tinham movimentos desordenados, o rosto afogueado, falavam sozinhas e gesticulavam, como que sentindo-se sós precisamente devido à enorme multidão que as rodeava. Quando tinham de parar, essas pessoas deixavam de murmurar; mas os gestos acentuavam-se mais e elas esperavam com um sorriso distante e forçado até que os transeuntes que lhes barravam o caminho passarem. Se alguém lhes dava um encontrão, cumprimentavam as pessoas que as tinham empurrado e pareciam muito atarantadas”. Pensar-se-ia que se está falando de pessoas meio ébrias, de uns pobres diabos. Na verdade, trata-se de “gente de boa posição social, comerciantes, advogados e especuladores da Bolsa”. (BENJAMIN, 2017, p. 123).

As respostas ao choque da multidão são reificadas no intèriour, quando a casa se “transforma numa espécie de concha” (BENJAMIN, 2017, p. 48) e consolida o ânimo antissocial do pequeno-burguês, pulverizando de vez as ruínas da tradição, a abertura para o espaço público, sitiando a sociabilidade no interior com móveis forrados à pelúcia e veludo a fim de garantir ao menos impressões digitais para se lembrar de uma humanidade perdida. Os choques da nova civilização urbano-industrial, em uma contradição dialética, criam justamente o seu contrário: o “bom” selvagem.

É nesse cenário inóspito que Benjamin vê a decadência da experiência e a perda da comunicabilidade. Em dois textos que se complementam, Experiência e pobreza (1933) e O narrador (1936), o autor alerta para uma era em que os valores comunais são dissipados. O Narrador (1936) é um dos seus textos mais famosos, cujo subtítulo é “Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, o romancista russo que resguardaria ainda aquela qualidade do verdadeiro contador de histórias, compondo-as a partir dos relatos de experiências ancestrais dos povos do interior da Rússia.

Nessa resenha, Benjamin (2012, p. 214) diz que “[...] a experiência que passa de boca em boca é a fonte a que recorreram todos os narradores”. Entretanto, a literatura jornalística, voltada às massas, decretam o fim desse tipo de experiência da tradição e sua possiblidade comunicável. A experiência solitária do leitor do romance moderno ou do leitor do jornal são vivências momentâneas. Nesse caso, o autor russo é ao mesmo tempo o símbolo e a marca do fim dos verdadeiros narradores, isso porque “a arte de narrar está em extinção” (BENJAMIN, 2012, p. 213).

No texto, o autor fala ainda de uma certa “experiência desmentida”, em outras palavras, da experiência da guerra, da inflação, a decadência moral dos governantes e a batalha pela vida material sob o capitalismo, sempre alienante e expropriadora. Trata-se de experiências inautênticas porque se esgotam em si mesmas e emudecem o sujeito na medida em que se impõem a ele como um “campo de forças de torrentes e explosões destruidoras”, deixando debaixo delas “o frágil e minúsculo corpo humano” (BENJAMIN, 2012, p. 214). Vem daí a clássica (e surrada) distinção que Benjamin faz entre as palavras alemãs Erfahrung e Erlebnis. Embora os radicais sejam parecidos e as palavras sejam comumente traduzidas como sinônimos de experiência, no pensamento benjaminiano não querem absolutamente dizer a mesma coisa. A Erfahrung remete à experiência comunitária clássica, produto do intercâmbio sociocultural, passada de boca em boca na forma de conselhos, provérbios e sabedorias populares. No breve ensaio anterior à resenha de Leskov, Experiência e pobreza, Benjamin (2012) fala da transmissibilidade desse tipo de experiência coletiva, hoje perdida:

Tais experiências nos foram transmitidas, de modo benevolente ou ameaçador, à medida que crescíamos: ‘Ele ainda é muito jovem, mas em breve será um dos nossos’. Ou: ‘Um dia vai experimentar na própria carne’. Sabia-se exatamente o que era a experiência: ele sempre fora comunicada pelos mais velhos aos mais jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; às vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a filhos e netos. (BENJAMIN, 2012, p. 123).

Por seu turno, a palavra alemã Erlebnis refere-se a outro tipo de experiência, cuja melhor tradução seria “vivência”, cuja raiz está no verbo Erleben, que indica viver algo no momento atual. Para Benjamin, Erlebnis é a fugaz experiência moderna, a vivência individual, esgotada em si mesma, não podendo ser transmissível porque carece de conteúdo e mesmo porque não tem raízes no passado ou em uma tradição que lhe reivindicaria a condição de transmissibilidade. Enquanto a Erfahrung prescinde da comunicabilidade do que foi vivido e transmitido a outros, requerendo perenidade e atribuição de sentido no tempo, a Erlebnis contenta-se com o ressecamento do ato vivido e consumido no instante presente. A palavra alemã Fahen, que dá origem a Erfahung, quer dizer viagem; assim, a experiência é algo que se acumula a partir de conhecimentos que viajam, que vem de longe, no tempo e no espaço. Tanto é que o narrador clássico benjaminiano é o marinheiro ou velho camponês, ambos viajantes ao seu modo ou “como alguém que vem de longe” (BENJAMIN, 2012, p. 214).

Evidentemente que a experiência depende do que foi vivenciado, pois não se pode ter experiência sem que o ocorrido deixe suas impressões na vida do sujeito. A diferença reside no fato da comunicabilidade, da troca, da atribuição de significados partilhados ao que foi vivido, o que só pode ocorrer na vida comunitária, nos espaços sociais, de modo que a vida enclausurada no interior só produza vivências (Erlebnis), pois lhe falta a experiência da alteridade.

Eis, então, nessas discussões prévias, as chaves de leitura e de interpretação do homeschooling como mônada de expressão fisiognômica de uma era decadente de experiências em que o sujeito é reduzido à pseudoindividualidade (ADORNO; HORKHEIMER, 1985) e que se vê como epicentro do universo.

A escola: privação do último reduto da Erfahung

A vida moderna foi exterminando, uma a uma, as verdadeiras experiências e colocando no seu lugar as vivências fugazes (Erlebnis), experiências desmentidas, que não podem ser comunicadas, pois não deixam suas marcas no inconsciente por esgotarem-se em si mesmas. A interiorização da vida solapou a experiência comunitária de um jeito que sequer se lembra daquilo que Benjamin chama de dias festivos que falavam da identidade de uma coletividade, pois tal qual os “[...] sinos, que outrora acompanhavam os dias festivos, foram, como os homens, expulsos do calendário” (BENJAMIN, 2017, p. 140). O fim da vida na rua, onde se jogava “bola de meia, bola de gude”14 demarca também a morte do “outro” na vida, quer fossem irmãos, parentes ou amigos que viviam artesanalmente da mesma forma. A restrição da família a três ou quatro membros é outro “redutor” de experiências que forçam ao encastelamento narcísico de gerações que tendem cada vez mais a se refugiar na técnica, em redes socais digitais ou plataformas de entretenimento. Nesses casos, o processo de identificação parental acaba por limitar-se a tabus domésticos pseudohomestáticos. Por mais que seja singular, a experiência não é de forma alguma uma rua de mão única; ela precisa do outro para receber seu conteúdo de verdade (Wahrheitsgehalt). Os versos de Baudelaire, no soneto A uma passante (À une passante), parecem demonstrar bem o quanto a vida moderna se limita a vivências, inclusive do amor erótico. O poeta despede-se assim do seu amor à primeira e última vista nos últimos versos: “Noutro lugar, bem longe! é tarde! Talvez nunca!/ Porque não sabes onde vou, nem eu onde ias,/Tu que eu teria amado, tu bem o sabias!”15.

Outros autores têm problematizado as agudas consequências, na consciência contemporânea desse estado de coisas, causando aquilo que Freud caracterizou como o “mal-estar na civilização”. Bauman (2001) falou reiteradamente da liquefação das relações, da falta de perenidade e solidificação de sentimentos na contemporaneidade. Elliott (2018, p. 478), por sua vez, fala de um “novo” individualismo que se caracteriza pela “vida de curto prazo” e pelo “viver na via expressa da rodovia”.

Neste contexto de vida, o movimento homeschooling, seja por quais razões forem, busca exterminar uma das últimas resistências da vida em comum: a escola. A se pensar bem, com as relações trabalhistas cada vez mais atomizando e autonomizando os processos de trabalho (homeoffice, informalidade etc.), a escola é um dos últimos redutos de sociabilidade que restam. Com todos os seus percalços e problemas, a escola é ainda o local privilegiado para se ver o outro, para constituição e trocas de experiências, para contação de si mesmo e exercício de empatia, de se colocar no lugar do outro contra os ventos da “[...] liquefação dos padrões de dependência e interação” (BAUMAN, 2001, p. 14).

Desse ponto de vista, o homeschooling é a condenação da educação à pobreza da vivência no intèrieur. E, nesse caso, não se trata de educação como formação (Bildung), mas, sim, como aquilo que Adorno (1995) chamou de Halbbildung (semiformação). A formação plena da personalidade só pode dar-se em contraste com o seu avesso, o “eu outro” com o qual se identifica ou não e a partir do qual se constitui como individualidade (Selbstbildung). Assim como no sentido de tradução, conforme estudado por Antoine Berman (1983), no ensaio Bildung et Bildungsroman16, em que Bildung significa abertura para o estranho (estrangeiro), um lançar-se para fora de si mesmo, a fim de compreender o outro. É nesse movimento cíclico de sair de si mesmo e retornar que consiste em um dos principais aspectos da formação. Isso dá muito no que pensar, pois, ao que tudo indica, a perda da comunicabilidade moderna, tão bem descrita por Benjamin e já referida anteriormente, reside principalmente no declínio da faculdade de “traduzir” (compreender) o outro, seja na nossa própria língua ou em outra. Assim também pode se verificar no sentido de Bildung como viagem, que Berman identifica nos clássicos do romantismo alemão, cujo processo formativo também tem o “outro” como parâmetro de constituição de si. Diz o autor:

No Goethe deWilhelm Meistere nos românticos de Iena,Bildungse caracteriza como uma viagem, Reise, cuja essência é lançar o ‘mesmo’ num movimento que o torna ‘outro’. A ‘grande viagem’ deBildungé a experiência daalteridade. Para tornar-se o que é o viajante experimenta aquilo que ele não é, pelo menos, aparentemente. Pois está subentendido que, no final desse processo, ele reencontra a si mesmo. (BERMAN, 1984, p. 147 apudSUAREZ, 2005, p. 194).

Dessa forma, a constituição da experiência que se transforma em formação é uma viagem em busca do outro para o encontro consigo mesmo. Para Benjamin, como vimos, os arquétipos da boa narração são o velho ancião e o marinheiro, pois ambos colheram suas experiências de uma longa jornada e, por isso, podem comunicá-la. Já as vivências retraídas e reificadas da vida privada resultam em falta de transmissibilidade, e podem ser enquadradas naquelas “experiências desmentidas”, inumanas, das quais falava Benjamin (2012, p. 214), tais como a guerra, a pobreza e a fome, e às quais se acrescenta, aqui, o claustro doméstico.

A vida enclausurada em casa quais experiências pode acumular? Quais narradores são encontrados ali? O pai, a mãe, eventualmente um tio ou um irmão? É sempre o mais do mesmo, o retorno do sempre igual, sem a contradição do outro, seu algoz e companheiro de viagem. O resultado na constituição do sujeito tende a ser um amontoado de vivências esgotadas em si mesmas, resultando em uma pobreza generalizada de experiências partilhadas; não somente porque não as tem, mas porque não tem com quem as compartilhar. Ao mesmo tempo, as vivências não sedimentam, não criam memórias de longo prazo, pois são choques avulsos aos quais os sujeitos respondem na sua imediaticidade. Os resultados já podem ser vislumbrados: gerações cada vez mais egoístas e dessensibilizadas dos problemas sociais em nome da infindável busca de prazer individual instantâneo, que veem o outro não como igual, mas como coisa a ser consumida. Sobre esse “novo individualismo”, que não é mais do que o clássico modo de vida do intèriour burguês, fala Elliott (2018):

Está surgindo uma geração de pessoas que pode ser chamada de “geração instantânea” e que trata o individualismo e as compras no mesmo patamar: rapidamente consumidos e de resultados imediatos. O consumismo do “quero-agora” promove uma fantasia da plasticidade infinita do si mesmo. A mensagem da indústria da remodelagem é a de que não há nada que impeça você de se reinventar como quiser. Mas é improvável que seu tipo de individualismo remodelado o faça feliz por muito tempo. Porque os aprimoramentos de identidade são concebidos apenas com o curto prazo em mente. Eles são até “a próxima vez”. Essa implacável ênfase na autorreinvenção, portanto, equivale a uma cultura do “seguinte”. (ELLIOTT, 2018, p. 472-473).

Essa cultura do dia seguinte é a transformação do que Freud chamou de “princípio de prazer” que agora quer se converter em princípio de realidade.

A crença que o homeschool possa anestesiar os choques da modernidade é, ao mesmo tempo, ingênua e mal-intencionada. É ingênua porque a repressão do choque social, em curto ou médio prazo, cobrará suas consequências na forma de condutas antissociais ou neuróticas, já que, em algum momento da vida, o indivíduo tem de sair da redoma do lar para encarar, agora sem anticorpos, os choques inerentes aos desafios que a vida inevitavelmente conclama ou que as pulsões reclamam, tais como relacionamentos eróticos, afetivos, trabalho etc. De modo que é por demais arriscado se produzir, a partir do homeschooling, personalidades egocentradas cuja pulsão de morte seja um poderoso anestésico para suas frustrações.

Evidentemente que a escolarização não é antídoto para traumas e frustrações. A diferença consiste justamente nas suas possiblidades de treinamento que antecede a vida adulta enquanto viagem de formação. Em casa acontece o cotidiano, o imediato, a repetição das vivências isoladas, narcísicas, quando os desejos não são conquistados, mas, sim, satisfeitos no universo doméstico. Tal recorrência leva à erosão de laços sociais e os vínculos afetivos oxidam na imediaticidade, podendo levar à mesquinhez afetiva que tende a separar os de “dentro” e os de “fora”. Em importante diagnóstico do nosso tempo, escreve Zuin (1999):

A uma evidente incompatibilidade entre a velocidade e os vínculos afetivos. No espanto do poeta [Baudelaire em A uma passante] frente ao fato de que as pessoas se defendem contra esse choque - representado pela obstaculização social da experiência afetiva ao considerá-lo um acontecimento trivial, como se fosse uma segunda natureza -, identifica-se o lamento de algo que já se encontra ausente de antemão: os vínculos de solidariedade e de empatia que desmoronam em função de um clima cultural específico que precisa da perpetuação da mesquinhez e da frialdade para poder sobreviver. (ZUIN, 1999, p. 68).

Embora a escola tenha dificuldades de preparar o sujeito para a vida social, ainda se apresenta como um microcosmo daquilo que o sujeito vai encontrar no mundo adulto. E tais experiências tendem a fornecer o pouco de vida coletiva que a modernidade tardia ainda pode dispensar.

É certo que algumas memórias da escola são indesejadas e até mesmo cruéis, mas não se pode dispensar aquela dimensão da vida comunal que Freire (2013) chamou de “meninos conectivos”. Mesmo os momentos enfadonhos rememorados por Benjamin na Infância em Berlim por volta de 1900 agem como a madeleine de Proust para conectar passado e presente a partir de memória involuntária. Quais memórias significativas poderá um adulto rememorar da sua redoma no homeschooling? Nada o chocou, nada o desestabilizou, nada arriscou, nada o surpreendeu, a não ser a harmonia recalcada do cotidiano doméstico.

Para inferirmos sobre esses perigos, basta lembrar que é no interior do quarto, o mais recôndito esteio do individualismo, que emergem as criaturas extraordinárias de Kafka. É do sufocamento do sujeito que o autor descreve o processo de decadência de seus heróis, desumanizados a partir das esfaceladas relações familiares17, confinando-os a um fim trágico, como o Joseph K. em O processo, ou transformado em uma desprezível barata, como Gregor Samsa, no emblemático livro A metamorfose. Se a obra de Kafka, como assinala Benjamin, representa uma “doença da tradição”, por não mais conseguir conjugar na rememoração conteúdos do passado particular com o coletivo, o homeschooling também decreta o fim de uma das últimas tradições modernas em que sujeitos de diversas classes sociais ainda se veem e se tocam, a escola.

Os argumentos do homeschooling, de que na escola as crianças e os jovens estão sujeitos às drogas, à violência ou às iniciações sexuais precoces, são tantas outras tentativas de privação do choque, como se o comportamento tribal da casa-casulo pudesse alienar eternamente o sujeito da realidade em nome do princípio de prazer dos pais, cuja superproteção não faz mais do que recalcar por transposição o desprazer que a vida traria aos filhos. Tal superproteção não somente fragiliza o sujeito, infantilizando-o no presente, quanto o torna vulnerável assim que a vida real romper a redoma da casa, o que acaba, inevitavelmente, acontecendo mais cedo ou mais tarde.

Talvez não seja impróprio evocar aqui uma semelhança entre a análise que Benjamin fez do Jugendstill (ver nota de rodapé 14) com o homeschooling e parafrasear o autor: O individualismo é sua teoria e representa a última tentativa de fuga da educação sitiada pelo (neo)liberalismo em sua torre de marfim.

Homeschooling como fisiognomia do (neo)liberalismo: o ocaso da esfera pública da educação

Não por acaso o homeschooling é um fenômeno que se manifesta justamente neste momento que o capitalismo está sob hegemonia do regime de acumulação com hegemonia financeira. O descaso com a educação pública, universal, laica e obrigatória, sempre esteve no coração do liberalismo. O laissez faire reivindicado por Adam Smith, no período em que a burguesia se via às turras contra as regulamentações impostas pela economia mercantilista das monarquias europeias, está na origem do liberalismo e é reeditado pelos (neo)liberais contra as regulamentações do Estado-Providência, conforme defendido por seus arautos e seguidores contemporâneos, tais como F. Hayek e M. Friedman. A questão central é a mesma: retirar do Estado o monopólio de setores que interessam à inciativa privada por meio de flexibilizações e desregulamentações, deixando a “mão invisível” do mercado agir livremente. No caso da educação inclusive coincidem as propostas dos vouchers escolares desses autores como a proposta de financiamento da educação apregoada em A riqueza das nações, de Smith, pois, para ele, o financiamento dos mestres cabe aos alunos, não recaindo esse ônus ao Estado. Mesmo se considerando as diferenças, sobretudo históricas, entre o liberalismo clássico e o neoliberalismo (APPLE, 2001), o arrazoado é o mesmo: a subtração do Estado na produção/manutenção de políticas públicas e a livre concorrência, não somente comercial, mas entre os indivíduos, sobrevivendo o mais forte, inclusive entre os professores, se quiserem sobreviver.

Para adquirirem essa fortuna ou pelo menos para ganhar sua subsistência devem, no decurso de um ano, executar um certo volume de serviço de determinado valor; e, quando a concorrência é livre, a rivalidade entre os concorrentes, que, sem exceção, se empenham em eliminar-se mutuamente do emprego, obriga cada um a procurar executar seu trabalho com certo grau de precisão. (SMITH, 1996, p. 228).

A pregação atual é a mesma: mais indivíduo e menos Estado na selva chamada mercado. O laissez faire poderia ser facilmente substituído pelo salve-se-quem puder. E, nesse contexto, o homeschool cai como uma luva para os discursos liberais renovados (assim como neoconservadores), pois a responsabilidade da educação recai sobre a família, “liberando” o Estado de investimentos públicos, minimizando sua atuação. Sob esse aspecto, a educação doméstica é um traço importante da fisiognomia da sociedade atual, radicalizando o movimento para o intèrieur da vida burguesa analisada anteriormente por Benjamin. Usando um termo que Marx (1983) gostava de usar na análise da autossuficiência burguesa como pedra angular da sociedade, as tais robinsonadas18, podemos situar o homeschool como mais uma delas, só que agora voltada ao campo educacional, que alça o indivíduo acima da sociedade e suas determinações histórico-sociais. Assim como na época de Marx (1983, p. 6), “[...] até hoje, esta mistificação tem sido própria de todas as épocas novas”.

Com precisão cirúrgica, Brewer e Lubienski (2017, p. 33) sintetizam bem esse aspecto: “Nesse contexto [neoliberal], a educação em casa pode muito bem ser a personificação mais próxima do neoliberalismo, pois provavelmente representa a forma mais próxima de educação que se baseia na auto-regulação, descentralização e elevação do indivíduo/privado sobre o coletivo/público”. Tem-se, assim, os interesses públicos subsumidos aos fins privados.

Contudo, se retornar-se ao conceito de educação como formação humana (Bildung), vê-se que as finalidades do educar vão muito além dos interesses puramente privados, seja do indivíduo ou da família, pois espera-se que haja um sensus communis enquanto elemento mediador para que se possa edificar uma comunidade. E o Estado é grande patrono dessa realização, pois, em si, existe para que, como disse Locke (1998, p. 391), no Segundo tratado sobre o governo civil, não se matem uns aos outros ou, o que significa a mesma coisa: “[...] a solução adequada para as inconveniências do estado de natureza, que devem certamente ser grandes quando os homens podem ser juízes em causa própria”. E como não se pode imaginar uma sociedade sem que haja um freio nas aspirações individuais para o bem comum, também a educação padece dessa necessidade, sob pena da perda do senso de coletividade. Isso se tendo em vista, evidentemente, os fundamentos de uma educação republicana.

Seguindo essa linha de raciocínio e partindo dos estudos históricos de Giambatista Vico, Gadamer (2014) lembra que, ao lado de Bildung, o senso comum é dos arquétipos instituidores da modernidade e do humanismo. Diz ele:

O tema da educação também seria outro: a formação do sensus communnis [...] Bem, o que nos interessa aqui é o seguinte: sensus communis não significa somente aquela capacidade universal que existe em todos os homens, mas é também o sentido que institui comunidade. Vico acredita que o que dá diretriz à vontade humana não é a universalidade abstrata da razão, mas a universalidade concreta representada pela comunidade de um grupo, de um povo, de uma nação, do conjunto da espécie humana. O desenvolvimento desse senso comum é, por isso, de decisiva importância para a vida. (GADAMER, 2014, p. 58).

De modo que, sem o sensus communis, o que temos é o aprofundamento do fosso social já existente entre as classes sociais, separando via apartheid educacional aqueles que terão acesso a uma elitizada modalidade educacional, na forma de preceptoria, seja dos pais, tutores contratados ou professores delivery, dos que seguem dependentes de um sistema historicamente sucateado que apesar de tudo teima em resistir à “extrema-unção” (PARASKEVA, 2001), impropérios e sanções de gerentes neoliberais que trabalham pelo seu ocaso.

A um só tempo, com o homeschooling, caem por terra duras conquistas do gênero humano, que universalizou a escolarização. Esse foi, aliás, um dos grandes méritos progressistas das revoluções liberais, a instituição da instrução pública, cujo caráter universal estabelece aquilo que Gadamer chamou de sensus comunnis, pois a escola moderna surge com a pretensão de servir a meninos e meninas, apartada das religiões por ser laica, ser obrigatória a todas as classes sociais, ter caráter público quanto aos princípios formativos (Bildung) e ser financiada e/ou regulada pelo Estado. Por seu turno, o homeschooling é uma pá de cal nessas conquistas e no seu processo de aperfeiçoamento, daí o seu caráter reacionário.

Considerações finais

A partir da hermenêutica fragmentária de Walter Benjamin, este estudo investigou o homeschooling como traço fisiognômico do modo de vida burguês que, desde a sua origem, se volta cada vez mais ao intèrieur, encastelando-se no solipsismo da casa como “concha” que tenta se proteger da emergência da multidão e das massas, a quem sempre foi refratário.

Do ponto de vista do referencial benjaminiano, o homeschooling pode ser concebido como uma mônada que guarda em si a representação de um universo de condições objetivas que condicionam a vida na contemporaneidade, marcada pela degradação da experiência e suas possibilidades de comunicabilidade, assim como das condições críticas de reprodução sociometabólica do capitalismo sob égide financeira.

Em meio às turbulentas crises cíclicas por que vem passando a economia burguesa, há um incontido processo generalizado de recolhimento do sujeito contemporâneo à vida privada, sendo demolido um a um qualquer rastro de vida comunitária ou de quaisquer tradições em que se possa exercitar a comunicabilidade de experiências formativas (Bildung). A escola pública, laica, universal e obrigatória, que tem a duras penas resistido ao processo de desqualificação neoliberalizante e neoconservador, ainda é um desses lugares tradicionais de construção de experiências pelos encontros intergeracionais e interclasses que promove. O seu avesso, o homeschool, é mais um sinal de uma longa e terminal “doença da tradição”, que sitia a educação no intèrieur exacerbando o individualismo e reduzindo a Bildung à semi-formação (Halbbildung), já que não pode haver formação humana completa sem a presença do outro, sem polifonia. Como disse Bakhtin (2003, p. 409), “[...] quanto a mim, em tudo ouço vozes e relações dialógicas entre elas”; isso porque a busca da voz alheia, o diálogo, é o que nos confere sentido à existência, já que “a vida é dialógica por natureza” (BAKHTIN, 2003, p. 348). Por seu turno, o homeschool reserva-se ao monólogo, à reificação da linguagem e da Erfahrung, limitando os sujeitos à esterilidade das vivências que não sedimentam (Erlebnis). Esse status (re)produz o que Elliott (2018) chamou de “geração instantânea”, marcada sobretudo pela dessensibilidade quanto aos infortúnios sociais, já que os “de dentro” nada têm a ver com os problemas dos “de fora”, aguçando os mais diversos apatheids sociais.

Outro traço fisiognômico que resplandece do homeschool, neste estudo, é a sua ligação com o neoliberalismo e o neoconservadorismo. Não porque seus arautos tenham qualquer outra motivação liberal do que a ideologia individualista, mas porque essa proposta alimenta os discursos de má qualidade da escola pública e, de alguma forma, desonera o Estado de ampliação das políticas públicas em educação, o que cai como uma luva nos interesses de produção de um Estado mínimo. Nesse contexto, o movimento que visa incentivar e regulamentar, no Brasil e no mundo, o homeschooling é nitidamente reacionário e refratário à construção de qualquer senso comum em torno de uma educação pautada em valores comunitários.

Ao fim e ao cabo, o que se tem é a reedição da robinsonada de Margaret Thatcher no jargão que assombra a face hipocrática do (neo)liberalismo: “O que existe são homens e mulheres, indivíduos, e famílias”.

1 Remete-se ao advento da escola pública moderna que se popularizou e universalizou entre os séculos XIX e XX (ALVES, 2005).

2 As propostas de legalização do homeschooling via legislativo têm sido reiteradamente apresentadas por setores conservadores. A última tentativa apresentada ao parlamento é o PL nº 2.401/2019, de autoria do Poder Executivo. Para uma excelente retrospectiva histórica dessas iniciativas, ver Vasconcelos e Boto (2020).

3 O entendimento do Supremo Tribunal Federal, em 2018, considerou inconstitucional autorização para educação domiciliar, negando provimento ao caso de uma criança do Rio Grande do Sul (BRASIL, 2018).

4 A partir da Emenda Constitucional Nº 59/2009, a Constituição Federal prevê no Art. 208 a “(...) educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria” (BRASIL, 2009, p. 8). E, segundo a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (Lei Nº 9.394/1996), no Art. 208: “O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: § 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. § 2º O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo poder público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente. § 3º Compete ao poder público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola.” (BRASIL, 1996, n.p.).

5 Em Benjamin, o conceito de origem vai além da gênese, o nascimento de um fenômeno, é a sua própria constituição histórica que se expressa não no contínuo da história, mas como salto (Sprung), como ruptura do tempo vazio. “Mas, apesar de ser uma categoria plenamente histórica, a origem (Ursprung) não tem nada em comum com a gênese (Entsthung). Origem não designa o processo de devir de algo que nasceu, mas antes aquilo que emerge do processo de devir e desaparecer. A origem insere-se no fluxo do devir como um redemoinho que arrasta no seu movimento o material produzido no processo de gênese” (BENJAMIN, 2016, p. 34).

6 O título original da obra de Benjamin é Ursprung des deutschen Trauerspiels.

7 A fisiognomia (neologismo para fisiognonomia), conhecida desde a Antiguidade como a arte de deduzir os traços de personalidade pelos traços do rosto, cabeça e pele, como na medicina por Hipócrates, foi utilizada ao longo da história por filósofos, artistas e cientistas. Na época de Benjamin, a fisiognomia havia alcançado grande projeção e prestígio científico a partir das classificações da frenologia de Gall e dos tipos criminais de César Lombroso. Em Benjamin, encontramos várias asserções a ela, tal como se encontra no livro das Passagens: “Escrever a história é atribuir às datas a sua fisiognomia” (BENJAMIN, 2007, p. 518).

8 Esse é o contexto da citação completa desta frase: “Método é caminho não direto. A representação como caminho não direto: esse é o caráter metodológico do tratado. A sua primeira característica é a renúncia ao percurso ininterrupto da intenção” (BENJAMIN, 2016, p. 16).

9Monadologia é um pequeno tratado escrito pelo filósofo alemão Leibniz, em 1714. Assim ele a define: “Poder-se-ia dar o nome de Enteléquias a todas as substâncias simples ou Mônadas criadas, pois contêm em si uma certa perfeição (échoise tò entelés); e tem uma suficiência (autarkéia) que as torna fontes de suas ações internas e, por assim dizer, Autômatos incorpóreos” (LEIBNIZ, 2007, p. 2).

10 Embora a palavra alemã Reproduzierbarkeit signifique literalmente reprodutibilidade, em uma acepção menos comum também se pode encontrar como correlato repetitividade e replicabilidade. De qualquer forma, o prefixo latino “re”, tanto na língua portuguesa quanto na língua alemã, é indicativo de reprodução, de modo que se usa, neste artigo, indistintamente, os termos “reprodutibilidade” e “reprodução”.

11 Sobre os vínculos entre A obra de arte e as Passagens, Rolf Thiedemann, em texto introdutório à edição brasileira das Passagens, diz o seguinte: “Uma vez que uma simples leitura não permitiria compreender as intenções de Benjamin, um estudo das Passagens teria que levar então em consideração o ensaio sobre a obra de arte, os textos ligados a Baudelaire e as teses ‘Sobre o Conceito de História’, tê-los sempre em mente (...)” (THIEDEMANN, 2007, p. 14).

12 O texto de A obra de arte recebeu muitas críticas de Adorno e Horkheimer, quando editores da revista do Instituto de Pesquisa Social, do qual Benjamin era bolsista. Essas críticas levaram a muitas mudanças e a cortes na primeira versão, publicada pelo periódico, em 1935-1936. As mudanças foram aceitas a contragosto por Benjamin em função de razões econômicas, mas ele não teria valorizado muito aquela versão, procurando por todos os meios uma forma alternativa de publicá-la integralmente (SCHÖTTKER, 2012).

13Jugendstil (estilo jovem). Foi um movimento estético de arquitetura e design alemão do final do século XIX voltado à arte decorativa. Benjamin (2007, p. 45) diz que, neste estilo “O individualismo é sua teoria” e que “Representa a última tentativa de fuga da arte sitiada pela técnica em sua torre de marfim”. No livro das Passagens, Benjamin dedica-se ao estudo e à crítica do Jugendstil na Exposé de 1935, no item IV. Luís Felipe ou o intérieur (BENJAMIN, 2007, p. 45-46).

14 Referência à música de Fernando Brant e Milton Nascimento, de 1996.

15 Usa-se aqui a tradução de João Barrento dos versos de Baudelaire constante no livro Walter Benjamin: Baudelaire e a modernidade (BENJAMIN, 2017).

16 Este ensaio foi publicado em 1983 na ColeçãoLe temps de la réflexion(n° 4), da editora Gallimard. Para uma excelente síntese do texto de Berman e traduções de algumas partes, ver Suarez (2005).

17 Na análise de Benjamin, os personagens de Kafka que ainda têm alguma esperança são os únicos que fugiram do seio familiar. Diz ele: “Não se trata dos animais, e nem sequer dos seres híbridos ou imaginários, como o Gato-carneiro ou Odradek, pois todos eles vivem ainda sob a influência da família. Não é por caso que é exatamente na casa dos seus pais que Gregor Samsa se transforma em inseto, não é por acaso que o estranho animal, meio gato, meio carneiro, é um legado paterno, não é por acaso que Odradek é a grande preocupação do pai de família. Mas os ‘ajudantes’ conseguem escapar a esse círculo’” (BENJAMIN, 2012, p. 152).

18 Referência ao personagem do clássico livro de Daniel Defoe, Robinson Cruzoé, de 1919.

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Recebido: 11 de Janeiro de 2020; Revisado: 20 de Abril de 2020; Aceito: 24 de Abril de 2020; Publicado: 27 de Abril de 2020

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