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Práxis Educativa

versión impresa ISSN 1809-4031versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.15  Ponta Grossa  2020  Epub 02-Sep-2020

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.14788.068 

Artigos

Estudo de caso sobre um processo de desescolarização marcado pelo fracasso entre escola e família*

Case study on a deschooling process marked by failure between school and family

Estudio de caso sobre un proceso de desescolarización marcado por el fracaso entre la escuela y la familia

Clarissa Pimentel Portugal** 
http://orcid.org/0000-0002-2289-6296

Inês Maria Marques Zanforlin Pires de Almeida*** 
http://orcid.org/0000-0002-1292-7327

**Mestra em Educação pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: <clarissapportugal@gmail.com>.

***Pesquisadora-colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (PPGE/FE/UnB). Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília. E-mail: <almeida@unb.br>.


Resumo

Este artigo apresenta o estudo de caso de um processo de desescolarização de um aluno do 6º ano do Ensino Fundamental II da rede pública de ensino do Distrito Federal e sob o referencial teórico da psicanálise. A metodologia de pesquisa ocorreu a partir da observação participante na qual foi possível interagir com os sujeitos envolvidos na pesquisa por meio da transferência e, durante a escrita, na análise dos textos escritos e artísticos do sujeito do estudo. O ano letivo no qual ocorreu a desescolarização, o qual foi acompanhado, foi marcado por conflitos entre o sujeito, a escola e a família, evidenciando um fracasso na relação das instituições escola e família. Questões acerca da diferença entre os saberes caseiros e epistemológicos permeiam as análises do caso e culminam em um resultado inconclusivo e complexo quanto aos efeitos dessa desescolarização.

Palavras-chave: Desescolarização; Professor; Saber epistemológico

Abstract

This paper presents the case study of a process of deschooling of a 6th grade Elementary School student from the public school in Distrito Federal, Brazil, and under the theoretical framework of psychoanalysis. The research methodology occurred from the participant observation in which it was possible to interact with the subjects involved in the research through transference and, during the writing, in the analysis of the written and artistic texts of the subject of the study. The school year in which the deschooling process occurred, which was followed up, was marked by conflicts between the subject, the school and the family, showing a failure in the relationship between the school and family institutions. Questions about the difference between home and epistemological knowledge permeate the case analysis and culminate in an inconclusive and complex outcome regarding the effects of this deschooling.

Keywords: Deschooling; Teacher; Epistemological knowledge

Resumen

Este artículo presenta el estudio de caso de un proceso de desescolarización de un alumno de sexto grado de Educación Básica de la red pública de enseñanza en el Distrito Federal de Brasil, y bajo el marco teórico del psicoanálisis. La metodología de investigación ocurrió a partir de la observación participante en la que fue posible interactuar con los sujetos involucrados en la investigación por medio de la transferencia y, durante la escritura, en el análisis de los textos escritos y artísticos del sujeto de estudio. El año escolar en que ocurrió la desescolarización estuvo, el cual fue acompañado, fue marcado por conflictos entre el sujeto, la escuela y la familia, evidenciando un fracaso en la relación entre las instituciones Escuela y Familia. Las preguntas sobre la diferencia entre los saberes caseros y el epistemológicos impregnan el análisis del caso y culminan en un resultado no concluyente y complejo sobre los efectos de esta desescolarización.

Palabras-clave: Desescolarización; Docente; Saber epistemológico

Introdução

Este artigo apresenta o estudo de caso de um processo de desescolarização de um aluno do 6º ano do Ensino Fundamental II da rede pública de ensino do Distrito Federal (DF), sob o referencial teórico da psicanálise. Ressalta-se que o interesse pelo estudo de caso ocorreu ao longo do ano letivo e, portanto, não foi programado a priori para tal, mas possibilitou uma investigação profícua. Apesar disso, quando despertado o interesse pela pesquisa, houve o procedimento ético de realizar-se por meio da pesquisa acadêmica, acompanhado de orientação e avaliado por pares, sob a autorização por escrito da escola e dos responsáveis do sujeito do estudo. Além disso, as ações da observação participante limitaram-se ao âmbito escolar e às atividades próprias do ensino e da aprendizagem.

O ano escolar do sujeito do estudo de caso, aqui chamado de Murilo , foi marcado por conflitos entre o aluno e a escola e, posteriormente, entre a escola e a família até culminar na desescolarização. A observação participante do estudo de caso ocorreu quando a pesquisadora Clarissa Pimentel Portugal ocupou o cargo de professora nas disciplinas de Artes e Projeto Disciplinar II na escola do estudo, possibilitando lecionar quatro aulas na semana à turma e, consequentemente, com o aluno - ou pelo menos era o que se esperava. A relação conflituosa entre Murilo e alguns professores resultou em muitas faltas durante o ano letivo; no entanto, a convivência e a observação possibilitaram acompanhar as questões que levaram à sua desescolarização.

Faz-se necessário pontuar que, sendo o cenário do estudo as disciplinas artísticas, o presente trabalho faz uso da análise psicanalítica de algumas obras de Murilo resultantes das atividades em sala de aula, que possibilitaram mais uma leitura da relação desse sujeito com o ambiente escolar. Quanto ao referencial teórico, optou-se pela psicanálise por oferecer uma análise subjetiva dos conflitos que permearam sua desescolarização. Foi possível, ao longo da observação, construir e manter laços pertinentes ao ambiente escolar com o aluno, o corpo docente e a família de Murilo, permitindo observar e participar ativamente de um evento novo e singular aos envolvidos. A partir da psicanálise que seguem as observações e as análises do estudo de caso, oferece-se uma leitura marcada pela subjetividade e pela complexidade do caso.

Antes de adentrar o trabalho e apresentar o estudo de caso, faz-se necessário apresentar a autodeclaração de procedimentos e princípios éticos que guiaram a presente pesquisa, conforme o verbete “Autodeclaração de princípios e de procedimentos éticos na pesquisa em Educação” (MAINARDES; CARVALHO, 2019), registrado no livro Ética e pesquisa em Educação: subsídios da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), visto que a pesquisa não foi submetida a um comitê de ética específico.

A coleta de dados ocorreu no período de um ano letivo em que uma das pesquisadoras atuou como professora de Artes no centro de ensino em voga, lecionando para o sujeito de pesquisa e os outros alunos da escola naquele turno específico . Para tal, houve a autorização por escrito em Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pela direção escolar e pela responsável, a mãe, do sujeito de pesquisa. Em ambas as autorizações, havia a indicação explícita do sigilo de nome e imagem do sujeito de pesquisa e o foco sobre os processos e as criações artísticas em sala de aula, autorizando o uso dessas atividades e seus resultados em futuros trabalhos acadêmicos. Houve também a explicitação do interesse nos processos de subjetivação desses sujeitos a partir do aporte teórico da psicanálise, portanto não se furta a levar em conta o contexto escolar em que esse sujeito se encontrava.

Com isso, manteve-se o imperativo ético da confidencialidade, não havendo a exposição da identidade do sujeito em parte alguma de qualquer resultado da pesquisa. Todos os materiais originais encontram-se arquivados em local seguro com acesso apenas à pesquisadora presente durante a coleta de dados. A coleta e a análise de dados mantiveram-se restritas ao ambiente escolar e os eventos que nele se sucederam e foram expostos de forma pública, ou seja, autorizados a integrar a pesquisa como uma realidade escolar. Procurou-se assegurar a imparcialidade na análise, considerando sempre a complexidade do caso, por meio da qual não foi possível encontrar uma resposta, tornando-o inconclusivo. O referencial teórico da psicanálise auxiliou nesse processo, visto o foco sobre a dimensão subjetiva, com uma leitura marcada de possíveis e impossíveis, revelando sujeitos e circunstâncias complexas e multifacetadas.

O principal interesse desta pesquisa foi a relação do sujeito com sua produção artística em um período de transição entre a aprendizagem escolar e sua desescolarização. Foi um período complexo para todos os envolvidos e foi possível, à pesquisadora, acompanhar e dialogar com esses sujeitos, em especial ao do estudo de caso, a fim de realizar um trabalho que reconhecesse a singularidade de tal situação, a qual apontava mais perguntas do que respostas. Com a abertura para o diálogo e a circulação da palavra, foi possível dar voz aos envolvidos, e houve a necessidade de considerar as diferentes perspectivas sem um julgo sobre o resultado do processo de desescolarização, mas reconhecendo as forças e as circunstâncias envolvidas.

Com isso, o relato do caso possui trabalhos artísticos do sujeito de pesquisa, sem qualquer identificação e sob nome fictício, que nenhum dos alunos possuía na escola em que se deu o estudo de caso naquele turno específico. As obras acompanham descrição de seus elementos visuais e sonoros e auxiliam na correlação entre o processo criativo - ou ausência dele - e o seu processo de desescolarização. Dessa forma, segue o estudo de caso e sua análise.

O estudo de caso

Murilo foi um caso bastante complexo devido à sua relação conturbada com a escola como um todo. Ingressou no 6º ano do Ensino Fundamental portando um laudo de Distúrbio do Processamento Auditivo Central (DPAC) e com um histórico de relações conflituosas em escolas anteriores.

Apesar da sua fala gaguejada e dificuldade auditiva, Murilo iniciou o ano participando bem das aulas e demostrando interesse acerca das culturas indígenas e afro-brasileiras, projeto estipulado pela professora para trabalhar ao longo de todo aquele ano letivo com as turmas do 6º ano. Murilo interagia pouco com os colegas e se encontrava em uma turma agitada. Assim, a professora assumiu uma postura majoritária de função paterna de interdição e Lei, mas sempre pautada no diálogo e franca exposição dos motivos dessa postura.

Na metade do primeiro bimestre, após conteúdos práticos e teóricos sobre Música indígena e afro-brasileira, pontuada por meio de aulas expositivas, apreciação de áudios e vídeos e experimentação com instrumentos percussivos, expôs-se à turma o trabalho do bimestre que seria apresentado em duas partes: um seminário teórico e uma apresentação musical. A turma dividiu-se em grupos de até quatro integrantes e os temas, estilos musicais afro-brasileiros ou tribos indígenas, seriam distribuídos em forma de sorteio. Todo o trabalho, incluindo pesquisa e processo criativo, seria realizado na escola durante o período da aula com acesso à sala de informática e colaboração da professora responsável pela sala.

Murilo optou por realizar sozinho seu trabalho, alegando que não se dava bem com nenhum de seus colegas. Fora advertido acerca das exigências do trabalho e que poderia ser melhor fazê-lo em grupo, mas Murilo argumentou que um grupo o atrapalharia. Respeitado seu desejo, fora fornecido o subsídio necessário para tal, assim como para todos os outros alunos e grupos.

Conforme o cronograma estipulado, no dia da apresentação dos seminários, Murilo preferiu apresentar por último e, quando foi expor seu trabalho, se frustrou pela insistência de sua gagueira e se desconcentrou com seu nervosismo. Por fim, insatisfeito com a situação, desistiu de apresentar e, logo em seguida, o sinal tocou. A professora permaneceu na sala com ele depois que os outros alunos saíram para o intervalo, e Murilo conseguiu exibir seu trabalho. Ele apresentou um bom trabalho, incluindo os aspectos solicitados acerca da Música, além de curiosidades sobre sua tribo sorteada, os Pankararus. Ao final, a professora disse-lhe que não precisava ter ficado nervoso porque o trabalho estava muito bom e ele agradeceu a paciência.

A segunda parte do trabalho, a apresentação musical, Murilo entregou pré-gravada; não havia nenhum problema nisso, inclusive durante a orientação à produção do trabalho essa possibilidade foi ofertada à turma. Murilo criou sua música com o auxílio dos pais que tocam instrumentos e têm boa noção musical, e o resultado foi esteticamente agradável. No entanto, não soube dizer exatamente qual foi a interferência dos pais e o seu próprio envolvimento no processo criativo. A Figura 1 mostra o livreto entregue da letra da música.

Fonte: Imagem do livreto elaborado pelo sujeito da pesquisa. Brasília, 2017.

Figura 1 Parte interna do livreto “Toante do Passarin*” de Murilo, 2017 

Sua música foi composta por tambor, chocalho e voz principal, do Murilo, e coro, sua família. O tambor foi utilizado apenas no início, com uma batida acelerada para preparar a música. Em seguida, o chocalho ditou o ritmo 4/4 da música que a voz principal e o coro acompanhavam. Finalizou com distorções eletrônicas, e o tambor repetiu sua batida do início. A música foi inspirada nos cantos dos Pankararus com homenagem à natureza, mas, ao final, há efeitos eletrônicos destoantes da tradição indígena, que demonstraram interferência direta de Murilo, que se interessava pela produção de efeitos em meios digitais.

Percebe-se o início do Ensino Fundamental II de Murilo ainda muito arraigado no seio familiar, apresentando uma desconfiança narcísica com relação aos colegas que podiam “atrapalhar” ou, como evidenciada no nervosismo de sua gagueira, lhe zombar e excluir da fraternidade adolescente. Com isso, Murilo retraiu-se à família e iniciou seu isolamento.

Enquanto Murilo viveu o primeiro bimestre de processo criativo isolado da turma e marcado pela timidez e pelo nervosismo, sua relação com alguns outros professores foi muito mais difícil. Conforme diálogos e reuniões na sala dos professores, havia relatos de desacatos, xingamentos e até o ato violento de arremessar sua mochila na direção de uma professora. Pareciam Murilos diferentes, um menino violento desconhecido à aula de Artes. Com sua relação cada vez mais conturbada com alguns professores e um crescente isolamento dentro da turma, Murilo faltou muito o segundo bimestre. Seus pais informavam que sofria muitas crises por conta do DPAC e apresentaram alguns atestados médicos. Nas poucas aulas de Artes que Murilo esteve presente, propunha-se que ele se sentasse à frente para minimizar os efeitos do DPAC e para explicar-lhe os conteúdos perdidos enquanto os colegas encaminhavam seus processos criativos. A linguagem artística do 2º bimestre foram as Artes Visuais baseadas em elementos de culturas indígenas.

Durante todo o segundo bimestre, e ainda mais ao final, Murilo estava cada vez mais triste e desanimado. O seu refúgio eram os desenhos que fazia. Acordou-se que a professora aceitaria seus desenhos caso tivessem conexão com os conteúdos da disciplina, mas deixou claro que não era o ideal e que deveria realizar as atividades propostas, mesmo que em casa, como fez no bimestre anterior. Ele sempre era muito grato, mas dizia que a Escola não fazia sentido; assim, a segurança do ambiente familiar não lhe era mais suficiente para atender às exigências escolares. Finalizou o bimestre com uma menção baixa.

Vale ressaltar que houve a possibilidade de dialogar com a mãe de Murilo, uma mãe bastante presente e preocupada com o processo de aprendizagem de seu filho. Ela confessou que não conseguia dialogar tão abertamente com outros professores porque não concordavam com suas opiniões acerca da instituição Escola. O seu discurso, como o do pai e também reproduzido por Murilo, era de duras críticas à organização escolar e ponderavam as posturas autoritárias e dominantes do professor que recusa o desejo dos alunos e a problemática de disciplinas que excluem a subjetividade. Não por acaso, os professores com quem Murilo conflitou foram aqueles das disciplinas mais atreladas a uma aprendizagem objetiva. Por outro lado, Murilo sentia-se contemplado nas disciplinas que abarcavam a expressão subjetiva. Apesar de ser possível concordar em alguns pontos levantados pela mãe, a questão da imparcialidade imperava e, portanto, era preciso apontar a perspectiva de outros professores acerca da problemática do comportamento violento.

No entanto, para essa família, a autoridade escolar se esvaiu à medida que se instalava a falência do Outro simbólico da escola e sua Lei deixou de fazer sentido. Muito presente no discurso dos pais e de Murilo, havia uma descrença na instituição, evidenciando o percurso histórico da instituição Escola como um todo e na própria vida de Murilo, que falhou em ser ideal. Dessa forma, por mais que a professora de Artes tenha se implicado na formação desse sujeito com a presença negativa da psicanálise (LAJONQUIÈRE, 1998), sua ação não foi suficiente. Havia sofrimento por parte do aluno e de sua família e, também, por parte dos docentes que não puderam sustentar e suportar a situação.

Apesar dos conflitos do semestre anterior, no 3º bimestre, após o retorno das férias, Murilo parecia melhor, mais feliz e descansado. Sua mãe explicou que haviam feito um acordo, Murilo poderia se dedicar apenas às disciplinas que o interessavam e as quais endereçava seu desejo. Com isso, voltou a participar das discussões nas aulas de Artes e Projeto Disciplinar II e se envolveu nos jogos teatrais, inclusive protagonizando algumas cenas e improvisos. Para o trabalho de Artes Cênicas daquele bimestre, solicitou-se que a turma se dividisse em grupos e, de forma surpreendente, Murilo integrou um grupo sem pestanejar. Os colegas também ficaram surpresos e o incluíram prontamente. Essa transformação, contudo, não durou muito; enquanto Murilo despontava e criava laços nas aulas de Artes, em outras disciplinas caiu nos padrões do semestre anterior. Os pais optaram, assim, por sua desescolarização. Foi, então, mais um bimestre de notas baixas pelo número exacerbado de faltas.

Após os conflitos durante a transição para a desescolarização, os pais de Murilo solicitaram aos professores que entregassem atividades para o 4º bimestre. O último bimestre daquele ano letivo da disciplina de Artes foi dedicado ao tema do Dia da Consciência Negra e seus aspectos históricos. Os alunos estavam livres para escolher qualquer uma das linguagens trabalhadas ao longo do ano - Artes Cênicas, Artes Visuais ou Música -, podiam realizá-lo individualmente ou até cinco integrantes e, como de praxe, toda a criação foi realizada no horário e local de aula; exceto Murilo, que o fez de casa sob as mesmas orientações que seus colegas. Conforme estipulado em cronograma, a mãe de Murilo entregou sua obra e seu trabalho escrito. Seu quadro foi exposto junto aos dos outros colegas nos murais da escola para a feira cultural temática do Dia da Consciência Negra.

Nesse último trabalho, solicitou-se aos alunos que entregassem, junto à obra artística, um trabalho escrito composto por: justificativa do tema específico escolhido; justificativa da linguagem artística escolhida; cronograma elaborado pelo aluno ou grupo para realizar o trabalho; diário de bordo do processo criativo; análise final do processo criativo; curiosidades e referências. Murilo entregou o trabalho completo. A Figura 2 mostra a pintura e sua análise do processo criativo.

Fonte: Imagem da pintura realizada pelo sujeito da pesquisa. Brasília, 2017.

Figura 2 Pintura de Murilo, 2017. Tinta guache e tinta de tecido sobre tela 

Análise do processo criativo

O que eu mais gostei foi de pegar músicas alegres sobre o tema e colocar no meu trabalho, e, além disso, transcrever para a minha pintura o bom humor do personagem, que sente um bem-estar sendo como ele é. Murilo (trabalho escrito do 4º bimestre).

A mãe de Murilo relatou que se dedicou quase que exclusivamente ao trabalho de Artes em detrimento ao das outras disciplinas e que foi por meio desse processo criativo que ele retomou o desejo e o gosto pela pintura. Estar fora do ambiente escolar amenizou o seu sofrimento e empreendeu um processo criativo bastante próprio, pelo menos ao que se pôde perceber na obra. Pelos relatos sobre o trabalho, Murilo parecia estar bem, tal qual seu personagem, sendo como ele é. Ao final, o aluno presenteou o quadro à professora de Artes.

Análise do caso

Considerando o relato, faz-se válido elucidar algumas questões acerca da escola como espaço de integração do aluno à organização social para além da família. Há um processo de homogeneidade próprio da escola, visível nos uniformes, que implica a organização em grupo. A quantidade considerável de sujeitos em sala de aula e a estrutura organizacional, na qual há uma dinâmica diferente à da família, confere-lhes estatuto social e não mais filial. Acerca da autoridade do professor e da instituição escola, o professor assume o lugar transferencial de Outro social e impõe-se à Lei sobre todos os sujeitos sem distinção.

Estando no lugar de professora durante a observação participante, a pesquisadora ocupou os lugares transferenciais das funções paterna e materna, a fim de instaurar um ambiente seguro para que os alunos estivessem munidos das técnicas e das teorias necessárias para empreenderem seus processos criativos . Considera-se a função materna como a que acolhe e nomeia o mundo ao bebê e à criança, fornecendo-lhe um amparo seguro, mesmo que não completo, para conhecer o mundo e a si mesmo sem diferenciação ou autonomia. A função paterna instaura a Lei e quebra a relação de plenitude da prole com a mãe; desse modo, a interdição realoca a criança à necessidade de um esforço autônomo e criativo para superar suas faltas e realizar seus desejos, o que antes era feito pela função materna (FOLBERG; MAGGI, 2002).

Quanto à transferência, é um ato psíquico e inconsciente que ocorre, dentro do ambiente escolar, por parte dos alunos ao professor, e vice-versa, que transferem suas expectativas em relação à função junto às suas marcas pessoais, como figuras que já ocuparam funções semelhantes em suas vidas, além de “[...] representar o ‘lugar’ de emergência do novo, lugar da constituição do ser humano” (SANTOS, 2015, p. 35), visto que se encontram disponíveis para os efeitos daquela relação.

A transferência possui centralidade na relação professor-aluno posto que estabelece o vínculo à aprendizagem a partir do acolhimento da função materna e instaura autonomia com a interdição da função paterna. Assim, a relação com o saber torna-se mais objetiva na medida em que o professor compartilha saberes epistemológicos e repassa sua dívida simbólica da aprendizagem (ALMEIDA, 1998). Portanto, é a transferência que reconhece o professor como autoridade e o aloca no lugar simbólico de saber.

Na relação transferencial no ambiente escolar é preciso também considerar o grande Outro simbólico assumida pelo professor. Conforme em Totem e Tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos homens primitivos e dos neuróticos, Freud (2013) analisa o comportamento totêmico em crianças, traçando um paralelo entre a relação negativa ou positiva com o animal e o pai. O psicólogo evidencia que a mãe - ou a função materna - assume certo caráter totêmico na relação simbiótica com o bebê, mas que o pai - ou a função paterna - tem maior expressão devido à sua interdição nessa simbiose. Com essa interdição, o pai assume lugar da mãe de Outro onisciente, e o desejo não é mais pelo desejo do Outro - o desejo da mãe simbiótica sobre o bebê que a ele tudo nomeia e atende -, mas, sim, um desejo do sujeito de retornar aos favores do Outro materno. O desejo pelo desejo do Outro emerge na relação simbiótica entre mãe e a criança e se torna autônomo com a castração paterna visto que, com a interdição, a criança se reconhece faltante e deseja retornar ao amparo simbiótico. Dessa forma, esse Outro onisciente e temeroso depositário de amor e ódio permanece como referência passível de transferência sobre sujeitos que ocupam algum lugar de autoridade, como o professor.

No entanto, em especial na adolescência, o sujeito reconhece o Outro como castrado e faltante e, por mais que autentique sua autoridade, possibilita a autonomia do desejo para além do desejo do Outro. Nesse sentido, a escola, como instituição, possui uma possibilidade ímpar à família sobre essa autonomia do desejo porque os depositários transferenciais das funções paterna e materna de Outro possuem sua autoridade ancorada no conhecimento, e a relação entre os sujeitos é social e não caseira. Com isso, a autonomia do sujeito estabelece-se em um ambiente social cujo vínculo simbólico suporta - ou ao menos se supõe que suporta - a castração do Outro como autoridade onisciente para um autoridade epistemológica não-toda.

Enquanto na relação familiar o Outro se mantém na linha edípica do desejo incestuoso inconsciente, na escola, a partir do seu lócus dissociado da família, o objeto transferencial se encontra fora do núcleo familiar, como relacionado por Freud em Totem e Tabu (1912/1913).

Recorrendo à cerimônia da refeição totêmica, podemos dar uma resposta. Certo dia, os irmãos se juntaram, abateram e devoraram o pai, assim terminando com a horda primeva. Unidos, ousaram fazer o que não seria possível individualmente. (Talvez um avanço cultural, o manejo de uma nova arma, tenha lhes dado um sentimento de superioridade). O fato de haverem também devorado o morto não surpreende, tratando-se de canibais. Sem dúvida, o violento pai primevo era o modelo temido e invejado de cada um dos irmãos. No ato de devorá-lo eles realizavam a identificação com ele e, cada um apropriava-se de parte de sua força (FREUD, 2013, p. 84-85).

Conforme o mito original criado por Freud para compreender melhor os tabus totêmicos, o pai primevo era odiado e amado pelos filhos, era o grande Outro cujo lugar não podia ser tomado por nenhum dos irmãos após sua morte. Formou-se, então, o clã fraterno (FREUD, 2013) que se pode assemelhar à fraternidade adolescente. A adolescência, considerando também a passagem da latência a essa fase, reproduz, de certa forma, esse ato quando os filhos reconhecem a castração em seus pais. Como no totemismo em que há a transferência do pai primevo ao animal totêmico, também a fraternidade adolescente transfere as funções parentais a uma figura atual capaz de alimentar os desejos de saber e de instaurar uma autoridade por eles autenticada, no caso, o professor.

Nesse sentido, o adolescente que inicia sua mobilização sexual altruísta - na qual passa a interessar-se eroticamente por outros em detrimento ao autoerotismo infantil - e se encontra na Escola, está submetido a Leis radicalmente sociais em comparação àquelas da Família. Assim, seu círculo social é ampliado e há a possibilidade de estabelecer laço social com outros na fraternidade adolescente.

Em seu artigo, Bruno Picoli (2020) reconhece que a transição entre esfera privada, no caso a família, para a esfera pública, a sociedade, é essencial para uma entrada gradual e equipada para tal. Com isso, o autor levanta questões contundentes quanto à privação do sujeito ao convívio com outros além da família e o papel singular da escola no auxílio dessa transição.

Já a ideia do outro como necessidade e do mundo (onde os “outros” estão) como condição para a Educação, que não se limita à socialização, precisa superar a ideia de tolerância, no sentido de tentar construir um entendimento, uma forma de compreensão mútua que é, seguindo Bauman (2013), uma prolífica fonte de criatividade cultural. Essa criatividade precisa estar aberta para o outro, para o imprevisto, precisa improvisar responsavelmente, precisa desejá-lo. Implica despertar para a e existência do outro pelo desejo de educar e de ser educado, de compartilhar o mundo (GUR-ZE’EV, 2005). Significa uma forma de excitação cognitiva que se manifesta intensamente quando da tomada de consciência da existência do outro (LUZON, 2016). Implica estar aberto para a incerteza e afirmar que o mundo e sua insuperável insegurança é, concomitantemente, algo problemático e a própria condição para a possibilidade da Educação (BIESTA, 2017). (PIOLI, 2020, p. 12).

Com isso, a Escola pode ser entendida como lugar de aprendizagem no sentido amplo que, além dos conteúdos lecionados, há um espaço de vivência social mediado pelo outro com interferência maior da função paterna, mesmo que sem abrir mão da função materna e seu papel simbolizante de instauração do desejo pelo desejo do Outro. Nesse convívio, os alunos estão sujeitos a frustrações, limites e fracassos, próprios da realidade e, assim, participar da sociedade por meio da mediação epistemológica da escola. O professor, apesar de se utilizar das funções parentais, não é mãe ou pai, e sua autoridade não advém de um saber caseiro; com isso, ele ocupa o lugar simbólico e imaginário do Outro, por intermédio da transferência das funções parentais, e transmite seu conhecimento para compartilhar e retribuir sua dívida simbólica de estudo e de pesquisa.

O desejo de saber, no entanto, terá que se haver, sempre, com uma dívida em relação ao Outro. Mas trata-se, aí, de uma dívida simbólica, cujo preço, por ser impagável na realidade material, produz efeitos psíquicos e laços sociais: produz, por exemplo, sujeitos na posição de ensinante e sujeitos na posição de aprendente, cuja relação intersubjetiva permitirá (ou não) a circulação do conhecimento, na cultura, como uma das significações fálicas possíveis. (ALMEIDA, 1998, p. 92, grifos da autora).

Sandra Almeida (1998) considera que o professor assume o lugar simbólico e imaginário do Outro social e cultural por meio do seu arcabouço de conhecimentos e se apoia na autoridade do seu saber. Assim, é possível fomentar os laços sociais dentro do grupo: a atenção, a circulação da palavra e autenticar e ter sua autoridade autenticada pelos alunos é que possibilita a relação e inserção do grupo. Além disso, a autora pontua essa dívida simbólica e a circulação do conhecimento como possíveis significações fálicas, ou seja, a possibilidade conferida ao aluno de uma aprendizagem subjetivada e de ter autonomia sobre o seu saber.

Levando em consideração a faixa etária de Murilo e o trabalho terapêutico do psicanalista Elfriede Ferrer (1990) com sujeitos na transição do período de latência para a adolescência, reconhece-se como uma etapa de reintegração dos elementos dissociados, na qual se atualiza o interesse incestuoso edípico, além da liberação de intensa carga pulsional cujas atividades de pesquisa e criatividade escolar possibilitam sublimar . Os grupos extrafamiliares, com maior centralidade na escola devido às horas demandadas, possibilitam o recalque do interesse incestuoso originário aos objetos que não ferem o tabu.

Desse modo, pensar a educação em casa é complexo porque os pais são o Outro primordial, Real e destinatários do desejo edípico recalcado; já os docentes da Escola são o Outro simbólico, calcado na palavra, no recalque, e que deveria ser mais enfático, na sublimação. Assumindo o lugar simbólico e imaginário do Outro social e cultural, o professor é dotado de uma autoridade alheia à caseira que diferencia o filho simbiotizado e inserido na lógica recalcada do incesto ao ser social e de investimento objetal altruísta, na qual estabelece relações transferenciais fora do seio familiar.

Entretanto, no caso de Murilo, a relação família e escola fracassou. Houve, por parte da família, uma desconfiança no sistema de ensino e seus professores, além do desejo de proteger a prole das frustrações oriundas daquele ambiente. Por parte da escola, em especial daqueles em sofrimento, houve a mobilização para o diálogo a fim de alcançar alguma outra resolução, mas, no fim, aceitaram o processo de desescolarização com certo alívio. Assim, pode-se entender que não houve o repasse da dívida simbólica a fim de uma aprendizagem autônoma, mas uma postura autoritária de Outro.

Em uma relação imaginária, de amor ou de ódio, não há espaço para a circulação do objeto de conhecimento, enquanto objeto simbólico, representante da falta de saber do aluno e da falta de poder do professor; objeto, portanto, independente dos personagens em cena. A mediação torna-se, então, problemática, se o objeto de conhecimento é tomado como objeto de rivalidade fálica imaginária. O saber, quando investido simbolicamente, vem operar no lugar da Lei, cuja função é de corte, de separação da relação dual professor-aluno. O professor que se recusa a abrir mão do seu suposto poder fálico aprisiona o aluno ao seu desejo, mantendo-o na condição de sujeito não desejante, impedido de construir novas significações fálicas no campo do Outro. (ALMEIDA, 1998, p. 91).

Não é possível reduzir os conflitos de Murilo e alguns professores à “rivalidade fálica imaginária” pontuada por Almeida, mas é preciso considerá-la como um fator. Retomando os discursos dos pais e de Murilo acerca da escola, havia um desejo por saber autônomo que ecoava nas palavras dessa família; incomodavam-se com um ensino apenas reprodutor, cujo professor seria o único detentor do conhecimento. A resposta violenta de Murilo, mesmo que desmedida e repreensível, demonstra um extremo de luta nessa rivalidade para fazer valer seu próprio desejo epistemofílico. Enquanto é necessário, e assim se considerou ao longo de todo o presente artigo, a autoridade do saber do professor, responsabilidade sobre a aprendizagem dos alunos e sua mediação do conhecimento, é preciso reconhecer que o professor é também castrado e faltante e, portanto, passível de flexibilizar a aprendizagem e possibilitá-la subjetivante .

De modo geral, o caso Murilo demandou maior implicação e investimento por meio da fala devido ao seu laudo de DPAC que exigia falar-lhe diretamente e prestar bastante atenção para compreender melhor o que dizia. Conforme a pesquisa da psicanalista Jane Barros (2016) acerca da fala no ambiente escolar, considera-se:

Estamos falando, portanto, das condições necessárias para a circulação da palavra na escola e, com isso, também da emergência do sujeito. Ao outro-adulto-professor, cabe responsabilizar-se pela transmissão de algo (mesmo que esse algo seja algo totalmente fora de controle) e, com isso, assumir o objetivo de apresentar o mundo à criança, deixando espaço para que ela transgrida: trata-se de um convite genuíno a espaços de interagir, integrar e renovar. (BARROS, 2016, p. 218).

Enquanto ocupou o lugar de professora, esta manteve com Murilo uma fala ancorada no lugar transferencial e aberta ao diálogo. De fato, manteve-se essa abertura com todos os alunos, dando-lhes lugar de falar amparada pela autoridade epistemológica, mas com Murilo foi ainda mais marcante por sua dificuldade ao falar. Ao longo das aulas, investiu-se na integração de Murilo por intermédio da fala e da atenção, considerando-o sujeito como todos os outros da turma. Assim, não era privilegiado ou ignorado em relação aos outros, mas lhe conferia atenção e fala conforme as necessidades e os limites do ambiente escolar. Murilo, aos poucos e conforme seu tempo criou laço social com a turma e a fraternidade adolescente e, no seu último bimestre presente, participou ativamente do grupo. O investimento na fala, seja direto pelo diálogo, seja indireto pela escrita e das criações artísticas, possibilitou esse laço temporário tanto da sua parte como a integração por parte dos colegas.

Quanto ao conceito de desescolarização, é um tanto difícil defini-lo porque não houve o acompanhamento do aluno após a sua saída da escola. O que se pode dizer é que os pais apresentaram esse termo e explicaram resumidamente que Murilo faria atividades recomendadas pelos professores da escola, mas também poderia estudar outros assuntos do seu interesse que não integram o currículo escolar formal . Apesar de não haver esse acompanhamento, visto que a pesquisa se foca sobre o período de transição entre o ensino escolar e o domiciliar, é possível apontar algumas questões.

Em seu trabalho, Souza e Carvalho (2020) abordam o estudo de caso de unschooling, na qual a educação ocorre em casa, mas não necessariamente acompanha o currículo escolar formal. Nesse sentido, “[...] o unschooling toma uma direção contrária à vivência escolar, agindo de outro modo, fazendo diferente, a fim de criar outras possibilidades educativas” (MONRAT apudSOUZA; CARVALHO, 2020, p. 1). Talvez seja possível aproximar esse conceito ao ensino idealizado pelos pais de Murilo; no entanto, Souza e Carvalho (2020) apontam que desescolarização e unschooling não são equivalentes, mas, sim, um processo.

[...] o unschooling perpassa pelo caminho da desescolarização, pois, segundo Monrat (2019), a desescolarização é o período de transição entre escolarização e unschooling, ou até mesmo uma opção para outros tipos de “dependência” (homeschooling). Nesse sentido, o processo de desescolarização é parcialmente livre da ideia escolar no que diz respeito à ação, mas nem sempre no que tange ao pensamento e ao sentimento, porque ainda há vínculo com paradigmas limitantes que não confiam totalmente na individualidade (MONRAT, 2019). (SOUZA; CARVALHO, 2020, p. 6, grifos das autoras).

No presente caso, considerar um conceito ou outro acaba sendo especulativo; todavia, a ideia de desescolarização como um período de transição é bastante cabível visto o processo vivido por Murilo e todos os sujeitos envolvidos - não tanto em relação à ideia de paradigmas limitantes, isso não é possível avaliar, mas quanto ao desejo de sair da instituição escola para o ambiente caseiro, no qual é possível ampliar os conteúdos curriculares para além dos formais e, também, como comentado pela mãe de Murilo, quando ele se empenhou no trabalho de Artes quase que, exclusivamente, lhe oferecendo certa abertura e escolha para conteúdos de seu interesse.

Por fim, em relação ao processo criativo, Murilo apresentou produções associadas à sua realidade, visto que os resultados e os processos se realizaram em casa e junto à família, mostrando marcas de um percurso escolar sofrido e reflexo do fracasso com a instituição, mesmo que temporariamente incluído no laço social escolar.

Considerações

O caso de Murilo extrapola a relação professor-aluno e considera as interferências de instituições família e escola. Murilo chegou à nova escola com um histórico de experiências desagradáveis e conturbadas em outras instituições da rede pública. Apesar disso e das particularidades de seu laudo de DPAC, Murilo interessou-se pelas aulas de Artes e participava das discussões e das atividades, apenas reservava-se a relacionar-se com os colegas e, dessa forma, empenhava-se nas pesquisas e nas produções artísticas, mesmo marcado pela timidez e pelo nervosismo. Enquanto nas aulas de Artes Murilo demandava certa atenção para ouvir e entender suas falas, o seu comportamento em algumas outras disciplinas parecia a de outra pessoa. Instaurou-se um mal-estar generalizado entre Murilo e esses professores e também com os colegas de classe.

Os conflitos aprofundaram-se e a interferência familiar intensificou-se como uma força opositora à escola. Por fim, no início do quarto bimestre do ano letivo, optaram por sua desescolarização. Apesar desse sofrimento proveniente do conflito família e escola, Murilo envolvia-se com a disciplina de Artes e, em certo momento, passou a integrar ativamente à turma, participando dos processos criativos em grupo. Contudo, o sofrimento instaurado pelos conflitos de Murilo com outros professores marcou a decisão final de sua retirada da escola como instituição.

Esse caso leva a considerar a complexidade social externa à triangulação professor-aluno-conhecimento, equacionando também a escola, seus sujeitos e a família. Dentro desse contexto ampliado em que se instalou um mal-estar, o investimento de um ou poucos professores não foi suficiente e apontou ao fracasso da relação entre os pares docentes e entre escola e família.

Com o intuito de um ancoramento das reflexões teóricas na realidade, o estudo de caso possibilitou reconhecer mais uma complexidade do ambiente escolar e a relação dos sujeitos. Independentemente da postura assumida em sala de aula, o ambiente de ensino é permeado de possíveis e impossíveis, o que leva a contemplar onde se inicia e termina o espaço de ação do professor. No mais, permanecem inconclusivos os efeitos desse processo de desescolarização sobre o sujeito. O estudo demonstrou apenas que, como criticava a mãe de Murilo, em muitos aspectos a escola falha em ser ideal e conflita com sujeitos cuja ação violenta não suporta a imposição do pai primevo, mas deseja o saber por meio de uma autoridade epistemológica que permite a autonomia.

*Pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

1 Conforme Estudo de caso: planejamento e métodos, de Robert Yin (2003), o estudo de caso justifica-se porque a investigação aqui empreendida se interessa pela realidade contemporânea e está indissociável do seu contexto de caso. Optou-se, assim, para a presente investigação, algo próximo à observação participante na qual o pesquisador tem a possibilidade de participar ativamente do fenômeno estudado, perceber o fenômeno do ponto de vista dos envolvidos, no caso, a sala de aula. O autor pormenoriza que há algumas modalidades de levantamento de dados do estudo dos sujeitos envolvidos e possuir certa mobilidade para manipular a situação a favor do estudo (YIN, 2003).

2 Nome fictício a fim de preservar a identidade do sujeito do estudo de caso.

3 A pesquisa deu-se sob a orientação da Prof.ª Inês Maria M. Z. P. de Almeida durante o mestrado acadêmico de Clarissa Pimentel Portugal na UnB.

4 No seu artigo acerca da Escola de Bonnueil de Maud Mannoni, Lajonquière (1998) relata que, na experiência pedagógica de Mannonia, a psicanálise estava presente como negativo no sentido em que não era empregada como uma saída psicopedagógica para lidar com os alunos, mas era um estilo que possibilitava criar novos caminhos a partir dos desafios apresentados. Assim, não havia uma fórmula pedagógica a seguir para tratar as questões de aprendizado, mas uma postura criativa que derivava do investimento erótico da falta.

5 O processo criativo pode ser compreendido como um investimento de saberes e espaço-tempo a favor da criação de algo concreto e novo, mesmo que fugaz. Sob o referencial teórico da psicanálise, esse processo mobiliza ações conscientes e impulsos inconscientes que corroboram sua singularidade e completude (RIVERA, 2005). Sua singularidade deve-se aos seus criadores, posto que são sujeitos singulares alocados em um contexto cultural específico e detentores de teorias e de práticas também específicas de determinada linguagem artística. A completude da obra expressa-se na concretude do trabalho pronto, que, estando pronto, se torna uma expressão autônoma para além dos desejos e dos intentos do artista e se mantém flexível às interpretações dos espectadores.

6 O complexo de Édipo possui alguns percursos possíveis, mas, na sua postulação original, Freud (2019) se inspira na tragédia grega “Édipo Rei (427 a.C.)”, de Sófocles, na qual Édipo está destinado a assassinar o pai e desposar a mãe. Com isso, nesse complexo, a criança ama a mãe com quem possui uma relação simbiótica de amor e de desejo, e odeia o pai que interrompe essa relação total. Ao interromper, o pai castra a criança e a retira de sua ilusão narcísica de ser pleno por meio dos elogios da mãe. Com isso, a criança reconhece-se faltante e passa a esforçar-se criativamente para retornar aos favores da mãe.

7 Conforme Freud (2012), a sublimação é um dos percursos neuróticos da sexualidade; enquanto o recalque recusa as pulsões sem uma elaboração, a sublimação eleva as pulsões à apreciação social sem a necessidade de sua descarga energética operar exclusivamente no corpo, como o ato sexual, e elenca a arte, a religião e a ciência como atividades sublimatórias.

8 As aulas de Artes suportam essa possibilidade, visto que, havendo teorias e técnicas artísticas específicas e ensinadas a partir do conhecimento da professora, havia também a subjetivação dos alunos nos processos e nas criações artísticas quando utilizavam dos conhecimentos aprendidos a favor dos seus desejos criativos.

9 Dentro do ensino formal do, a Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF) adotou um currículo geral denominado “Currículo em Movimento”, que abarca todas as etapas da Educação Básica e é possível acessá-lo no site oficial da SEEDF por meio do link <http://www.se.df.gov.br/curriculo-em-movimento-da-educacao-basica-2>.

Referências

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Recebido: 24 de Janeiro de 2020; Revisado: 22 de Junho de 2020; Aceito: 23 de Junho de 2020; Publicado: 27 de Junho de 2020

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