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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.15  Ponta Grossa  2020  Epub 02-Set-2020

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.14787.047 

Artigos

Por uma práxis radical na luta em defesa da democracia: desafios contemporâneos para a formação política e a educação crítica no século XXI

Towards a radical praxis in the struggle for democracy: contemporary challenges for the political and critical education on 21st Century

Por una praxis radical en la lucha en defensa de la democracia: desafíos contemporáneos para formación política y educación crítica en el siglo XXI

*Professor do Departamento de Estudos Culturais na Faculdade de Ciências Humanas da McMaster University, Canada. E-mail: <girouxh@mcmaster.ca>.

**Professor do Instituto NUTES de Educação em Ciências e Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: <gfigueiredo.ufrj@gmail.com>.


Resumo

Este ensaio defende a necessidade de uma práxis política radical em defesa da democracia frente aos desafios contemporâneos. Discutem-se e atualizam-se conceitos da teoria crítica, abordando problemas centrais à democracia, aos direitos sociais, à cultura e às políticas públicas no século XXI. Ao defender o argumento de que capitalismo não é sinônimo de democracia, analisa-se a tensão entre o neoliberalismo econômico e o autoritarismo político. Busca-se demonstrar como a desigualdade social e econômica, no caso da América Latina, tem como consequência o acirramento do conflito de classes. Problematiza-se o modo como a educação acaba reduzida, pela lógica neoliberal, à função de formação para o trabalho em detrimento de sua qualidade social, política, ética, sensível e humana. Analisa-se como a prática educativa se constitui em objeto de disputa política entre os dispositivos de controle neoliberal e as forças progressistas que defendem a formação política radical. Por fim, aborda-se a ética individual, a moral social, a consciência sócio-histórica e a ação coletiva necessárias à práxis crítica radical, de forma a resgatar a importância da esperança no processo de transformação social.

Palavras-chave: Teoria crítica; Educação; Práxis; Formação política; Democracia

Abstract

This paper advocates for the need of a radical political praxis in defense of democracy in the face of current contemporary challenges. Concepts based on the Critical Theory are discussed and updated, addressing central issues to democracy, social rights, culture and public policies in the 21st Century. When defending the argument that capitalism is not synonymous with democracy, the tension between economic neoliberalism and political authoritarianism is analyzed. It seeks to demonstrate how social and economic inequality in the case of Latin America results in the intensification of class conflict. It problematizes the way education ends up, by neoliberal logic, to the function of training for work to the detriment of its social, political, ethical, sensitive and human quality. It analyzes how the educational practice constitutes the object of political dispute between the neoliberal control tecniques and the progressive forces that defend a radical political education. Finally, it addresses the individual ethics, social morals, socio-historical consciousness and collective action necessary for a critical radical praxis, recovering the importance of hope in the process of social transformation.

Keywords: Critical theory; Education; Praxis; Political formation; Democracy

Resumen

Este ensayo defiende la necesidad de una praxis política radical en defensa de la democracia frente a los desafíos contemporáneos. Se discuten y actualizan conceptos de la teoría crítica, tratando problemas centrales a la democracia, a los derechos sociales, a la cultura y a las políticas públicas en el siglo XXI. Al defender el argumento de que capitalismo no es sinónimo de democracia, se analiza la tensión entre el neoliberalismo económico y el autoritarismo político. Se busca demostrar cómo la desigualdad social y económica en el caso de América Latina tiene como consecuencia el efecto de intensificar el conflicto de clases. Se problematiza la forma en que la educación termina reducida, por la lógica neoliberal, a la función de capacitación para el trabajo en detrimento de su calidad social, política, ética, sensible y humana. Se analiza cómo la práctica educativa se constituye en objeto de disputa política entre los dispositivos de control neoliberal y las fuerzas progresistas que defienden la formación política radical. Finalmente, se aborda la ética individual, la moral social, la conciencia socio-histórica y la acción colectiva necesarias para la praxis crítica radical, de forma a rescatar la importancia de la esperanza en el proceso de transformación social.

Palabras clave: Teoría crítica; Educación; Praxis; Formación política; Democracia

Introdução

Este artigo foi desenvolvido na forma de ensaio por acreditarmos que, na atual conjuntura, é necessário que a academia possa cruzar as fronteiras epistemológicas e metodológicas que a afasta dos reais problemas sociais. Embora possamos reconhecer que o texto, em diversos momentos, assuma uma posição de militância, acreditamos que esse tom não tire o mérito de nosso esforço em denunciar o modo como o capitalismo tem assumido, no século XXI, uma vertente mais agressiva, que se expande da esfera de dominação estritamente econômica para todas as esferas da vida pública, com esforço em implantar modelos socioculturais fundamentados no autoritarismo e na dominação cultural.

Nesse contexto, a educação encontra-se em disputa. Ao mesmo tempo que o neoliberalismo avança fortemente contra os princípios do Estado de bem-estar social e penetra com violência na organização das escolas, nas práticas político-pedagógicas e até mesmo nos métodos de ensino-aprendizagem, a sociedade, os professores, os estudantes, os grupos alternativos, os coletivos difusos e os movimentos sociais lutam contra a implantação do fascismo neoliberal (GIROUX, 2018) e contra a naturalização da linguagem de ódio e da violência concreta e simbólica que é dia após dia assumida pelo discurso oficial autoritário.

Iniciaremos nossa reflexão demonstrando que o capitalismo não é sinônimo de democracia, tentando revelar as contradições inerentes a um sistema econômico que perpetua a desigualdade social e que, para continuar sua expansão, já não esconde seu esforço em destruir os princípios republicanos e humanistas que fundamentam as democracias ocidentais. Em seguida, para dar uma maior concretude à nossa hipótese, analisaremos como o acirramento do conflito de classes se constitui como consequência da enorme desigualdade social e econômica na região da América Latina. Tomaremos como objeto de análise o caso emblemático do Brasil buscando demonstrar como a implantação desta versão contemporânea do neoliberalismo foi promovendo uma deterioração das instituições republicanas e constituindo-se em uma real ameaça à democracia, levando inclusive à eleição de um Governo não só autoritário, mas com fortes tendências fascistas.

Seguiremos nosso ensaio caracterizando a educação como um cobiçado objeto dessa disputa política. Desse modo, destacaremos como a educação pode ser apropriada como um dispositivo de controle neoliberal ou uma ferramenta de luta na resistência por uma práxis educativa libertária. Nesse sentido, abordaremos tanto o processo de tecnificação do ensino e a redução da formação humana ao treinamento para o mercado de trabalho, bem como o potencial de uma práxis educativa crítica para transformar a situação política e unificar as lutas em defesa de ampliação da participação popular e da fundação de uma nova democracia, assumindo uma práxis crítica radical.

Por fim, concluiremos com uma reflexão sobre a importância da formação política crítica, da resistência, da ética, da consciência sócio-histórica, da esperança e da ação coletiva para o futuro da educação e da cultura no século XXI. Não temos, todavia, a pretensão de instituir regimes de verdade absolutos, mas tão somente de levantar aspectos necessários para uma reflexão mais aprofundada sobre nosso papel como intelectuais públicos na guerra contra a desigualdade e a naturalização do fascismo, além da luta em defesa da democracia e da vida.

Capitalismo NÃO é sinônimo de Democracia

A crise financeira de 2008 gerou sérios problemas para o equilíbrio geopolítico mundial. Ao mesmo tempo que nos países mais ricos a economia foi socorrida pelo financiamento do Estado aos bancos e às empresas que atuavam no mercado de valores, nos países pobres ou em desenvolvimento a crise causou um desequilíbrio fiscal que, até hoje, ainda não foi superado. Essa situação promoveu uma nova onda neoliberal na periferia global, pregando-se medidas de austeridade econômica e de privatização do Estado como soluções para conter os problemas econômicos.

No entanto, neste início de século, houve ainda uma outra crise muito mais grave do que aquela relacionada à estrutura econômica. É uma grave crise sociocultural mais relacionada à capacidade de ação das instituições e dos grupos, uma crise de agência social, que se centrou em questões de identidade, de autodeterminação e de resistência coletiva. Essa capacidade de ação, de mobilização e de enfretamento - que chamamos de uma crise de agência social1 - foram minadas de maneira profunda, dando origem e legitimando o surgimento de movimentos populistas autoritários em muitas partes do mundo, como aconteceu, por exemplo, nos Estados Unidos, Hungria, Polônia e Brasil (GIROUX, 2019; FIGUEIREDO, 2020).

No foco disso, esteve a crença declinante na legitimidade da democracia liberal e em suas promessas de bem-estar social. A desigualdade social e econômica é totalmente antagônica à igualdade de oportunidades pregadas pelos defensores do neoliberalismo. De muitas maneiras, a fé no setor público, o Estado de bem-estar social, os empregos de qualidade e um futuro seguro para cada geração, tudo entrou em colapso. Em parte, foi uma consequência da própria concentração de riqueza e de poder, da promulgação de medidas cruéis de austeridade econômica, de regimes políticos autoritários e, também, de um ambiente social fragmentado, cujos interesses individuais e privados prevalecem sobre a luta pela igualdade social e pelo bem público.

Vivemos atualmente em uma era neoliberal que destrói as mais importantes instituições democráticas, os valores humanistas e as relações de interdependência que nos conectam. Viola-se a prerrogativa republicana de separação entre os poderes. Implementam-se práticas institucionais autoritárias, os líderes assumem a mentira como método para suas manipulações políticas e adotam metáforas de guerra. O capitalismo - em sua forma contemporânea, o neoliberalismo - já não se limita ao controle para dominação econômica, mas também censura a cultura, promove a fusão entre violência e poder e impõe um cotidiano de crueldade a populações inteiras. O ataque neoliberal é direcionado às minorias, sejam pobres, mulheres, imigrantes, crianças, negros, indígenas, LGBTQI+. Ninguém mais está a salvo. A política da despolitização, com sua reconfiguração da esfera social, individualiza os grupos, apaga a memória histórica, intimida o pensamento crítico e agride a identidade intercultural, além de atacar a organização social dos coletivos.

O autoritarismo neoliberal aproveita-se das explosões momentâneas de raiva, estimula o descontentamento com todas as formas democráticas de fazer-se política e difunde o ódio à diferença, impregnando a cultura com o discurso da indignação moral. Taylor (2019) está certa ao argumentar que as enormes desigualdades financeiras destroem os ganhos democráticos conquistados com muito esforço. Nas sociedades em que os valores de mercado são considerados mais importantes do que os valores da democracia participativa, a esperança desaparece na escuridão do imediatismo e do populismo.

Quando Arendt (1967) denunciou que o extermínio massivo de judeus pelo nazismo não teria acontecido se não tivesse recebido o apoio de líderes judeus, a autora afirmou que essas lideranças banalizam o mal e apoiam a barbárie do discurso racista, arrogante e autoritário. Assim como o maquinista do trem que levou os judeus aos campos de concentração, ilustrado por Arendt, alegar ignorância não o eximirá da responsabilidade. Denúncia semelhante aconteceu no Brasil quando, em 4 de abril de 2017, já depois do golpe de Estado de 2016, que retirou a presidência da República das mãos das forças de esquerda, os líderes da comunidade judaica do Rio de Janeiro repetiram o erro de seus ancestrais denunciado por Arendt e, também, banalizaram o mal apoiando a candidatura de Bolsonaro e aplaudindo de pé o discurso público de ódio, de racismo, de violência e de barbárie. O Clube, formado pela elite do Rio de Janeiro, cometeu grave erro ao dar apoio público à linguagem de ódio e apoiar o neofascismo (GOLDWASER, 2017).

Com toda essa banalização do mal, também se dissemina o medo e se implanta o que Giroux (2018) denominou de fascismo neoliberal. Com toda crueldade necessária ao aumento da margem de lucros, o discurso de extrema direita raivoso se espalhou como praga e está destruindo o contrato social, quebrando laços, inflamando redes sociais e assassinando lideranças populares2. Sem falar nas prisões autoritárias, na disseminação do medo e nas cotidianas ameaças à integridade física e censura da liberdade de expressão daqueles que levantam sua voz contra a implantação do fascismo. Contudo, é preciso ressaltar que o líder fascista, em geral, não é louco, nem palhaço, nem idiota. Ele é tão somente um fantoche grotesco, uma espécie de boneco de magia negra que a elite e suas corporações privadas usam para aterrorizar a vida do povo.

Lutar contra o fascismo neoliberal é lutar pela civilização, pela democracia, contra a barbárie, a necropolítica, a crueldade implacável e o terrorismo social. Entretanto, os movimentos sociais são constituídos não apenas em sentimentos de isolamento, de raiva e de insatisfação emocional, mas também no trabalho árduo de organizar lutas ideológicas para conectar-se aos problemas que as pessoas enfrentam e criar uma política de identificação na qual as pessoas possam se reconhecer, unir-se a outros para mudar radicalmente as estruturas de dominação (GIROUX, 2018).

Sem esperança, não há possibilidade de resistência, de dissidência e de luta. A capacidade de agir é a condição da luta, e a esperança é a condição da agência social. A esperança expande o espaço do possível e torna-se uma maneira de reconhecer e nomear a natureza incompleta do presente. Quando a esperança morre, o que também se perde é um sentido viável dessas esferas sociais essenciais, bens públicos, consciência histórica e formas coletivas de apoio necessárias para uma cidadania ativa e engajada. A formação do cidadão crítico, sensível e humano é, mais do que nunca, o principal desafio da educação no contexto contemporâneo (FIGUEIREDO, 2020).

Neoliberalismo econômico versus Democracia Política: o acirramento do conflito de classes como consequência da desigualdade social e econômica na América Latina

As características que unificam o conceito de América Latina como região estratégica do mundo fundamentam-se em evidências históricas, culturais e políticas. Entretanto, há um conflito de projetos para a região. Por um lado, está o esforço de dominação do projeto neocolonial e, por outro, o esforço de resistência do projeto descolonial. Desse modo, se é verdade que os impactos da globalização e do neoliberalismo constrangem e intimidam as redes locais de poder e censuram a cultura popular, também é verdade que as lutas pela independência da região persistem e nunca estiveram tão em evidência como neste início de século.

Como resultante dessa disputa, a desigualdade segue sendo o principal problema regional. Embora os estudos sobre a América Latina demonstrem uma crescente mobilização popular na região, com o crescimento das lutas por cidadania, políticas públicas, direitos humanos e em defesa da democracia, multiplicam-se os esforços golpistas por controlar a política e a cultura, estabelecendo-se uma forte disputa também no campo dos valores morais, da sensibilidade e da subjetividade. Exatamente por isso a educação está sob forte disputa.

As forças neoliberais atuam na região com violência a fim de destruir as políticas sociais que vinham sendo implementadas pelos governos populares de esquerda que se difundiram na região entre a última década do século XX e a primeira década do século XXI. Em toda região da América Latina e Caribe, as agressões políticas e chantagens contra a sociedade estão sendo financiadas por setores conservadores que pretendem aplicar a receita de austeridade defendida pela lógica neoliberal para manter seus privilégios em detrimento de uma maioria da população cada vez mais explorada. Esmagada pelo medo, pela produção da ignorância e a pobreza, a população pobre e trabalhadora é sufocada ao máximo.

Estamos à beira de uma revolução social em toda a América Latina, e os poderosos países imperialistas liderados pelos Estados Unidos da América (EUA) e pelo Reino Unido, além dos milionários especuladores do mercado financeiro ao redor do mundo, percebem que seu poder de influência está diminuindo cada vez mais e que a força da mudança e dos ventos revolucionários não pode ser abafada com facilidade. Como diz Arendt (1994), as revoluções não ocorrem sem violência. De acordo com a autora: “Poder e violência, embora sejam fenômenos distintos, são inversamente proporcionais. A violência aumenta na mesma medida que o Poder perde sua legitimidade e domínio. A violência pode até ser justificada, mas jamais será legítima”. (ARENDT, 1994, p. 41).

Nesse contexto, os direitos trabalhistas e sociais são negados e ameaçados pelos modos de gestão neoliberal que privatizam os bens públicos e implementam medidas que protegem o lucro das empresas, massacrando os cidadãos e multiplicando a miséria. Fatos políticos surpreendentes aconteceram recentemente em Honduras, Paraguai, Brasil, Peru, Bolívia, onde, financiados pelo capital financeiro internacional, golpes políticos derrubaram presidentes democraticamente eleitos para colocar no poder governos autoritários e, em muitos casos, até mesmo abertamente fascistas. Esses fatos podem ser constatados com as frequentes ameaças sofridas pelo Peronismo na Argentina, o Chavismo na Venezuela e o Lulismo no Brasil. Além disso, no Equador e na Bolívia, a população indígena tem revoltado-se contra a implementação forçada de políticas neoliberais; e, no Chile, a população, mobilizada pelos movimentos sociais, iniciou uma verdadeira revolução3, ocupando as ruas por diversas semanas em protestos que, desde outubro de 2019, vêm sendo violentamente reprimidos com inúmeros casos de pessoas que chegaram a perder a visão por conta da repressão policial com balas de borracha e até mesmo chegado a perder a vida, além de centenas de pessoas e lideranças populares que foram presas e encontram-se até hoje no cárcere sem direito a um julgamento justo (GIROUX; FIGUEIREDO, 2020).

Apesar da repressão, essa resistência coletiva está aparecendo vigorosamente no momento atual. Jovens estão lutando contra a destruição ecológica, educadores privados de direitos estão desafiando pedagogias de opressão e trabalhadores culturais ao redor do mundo estão revoltando-se contra a maré crescente da política fascista. Quanto às manifestações de rua, que representam o surgimento das massas, Freire ( 1979, p. 77) afirma que “[...] as sociedades que vivenciam o agudo desse momento histórico vivem um clima pré-revolucionário, do qual o oposto antagônico é o golpe de Estado”. Ainda, para o autor, “[...] um golpe de estado muda qualitativamente a transição histórica da sociedade. Na nova transição criada por ele, o golpe define e confirma um poder arbitrário e impopular e sua tendência é se tornar cada vez mais rígido e violento” (FREIRE, 1979, p. 77).

Entretanto, é preciso considerar que os golpes contra as democracias latinoamericanas não agem isoladadamente. Outras ações são necessárias para legitimá-los, tudo muito bem orquestrado pela mídia, apoiado por elites conservadoras e permitido pela justiça. Vazamentos de casos do judiciário para a imprensa conservadora precedem e sucedem ao golpe. Cresce exponencialmente o fenômeno das mentiras, ou evidências falsas, agora chamados de fake news. Os dados das redes sociais são monitorados e manipulados por meios de algorítimos. Empresas privadas fazem disparos em massa dessas fake news para milhares de eleitores. Os robôs multiplicam as forças de direita por meio de aplicativos de comunicação amplamente difundidos na América Latina como o aplicativo WhatsApp da empresa Facebook.

Apesar de toda essa rede de manipulação e dominação virtual, com a disseminação da linguagem do ódio, nada é tão prejudicial à coesão social quanto a institucionalização da violência. No caso da região latinoamericana, essa violência extrapola o campo simbólico e materializ-se de forma muito concreta. Ao institucionalizar a violência, resultando em ampla insegurança, os golpes reforçam o antigo clima da cultura do silêncio denunciada por Jardim, Brandão e Figueiredo (2018). No Rio de Janeiro, a fracassada experiência de intervenção militar não consegue recuperar o controle territorial do Estado perdido para as máfias de drogas, de armas, de religiões, de políticos, de juízes, de promotores, de empresas, de milícias, de polícia, etc.

A crise social vem se agravando a cada dia. No Brasil, as estatísticas comprovam que se vive um clima de guerra civil, inclusive com mais mortes do que em muitos conflitos de guerra formalmente declarada ao redor de todo o mundo. Assim, os conflitos armados, mortes por causas externas relacionadas à violência (assassinatos, agressões, balas “perdidas” etc.) atingiram índices alarmantes. A violência do Estado não para de assassinar pessoas negras e pobres nas favelas do Brasil. Houve, somente no ano de 2016, mais de 155 mil mortes no país causadas por causas externas. Eliminando-se, dessa conta, as mortes por acidentes de trânsito e suicídio, alcançamos o número grotesco de 110 mil mortes no país por eventos relacionados à violência (BRASIL, 2016).

Apesar de não termos dados estatísticos cofiáveis sobre o período posterior (2017-2020), é possível deduzir que os eventos relacionados à violência somente aumentaram. O crescimento da violência é diretamente proporcional ao aumento da incidência de eventos correlatos como desemprego, falência do modelo militar de segurança pública, aumento da miséria, disseminação do ódio, desrespeito aos direitos humanos e banalização da vida e da sociedade. Mesmo que não tivesse havido nenhum aumento, ainda assim teríamos o número alarmante de aproximadamente 400 mil mortes relacionadas a causas externas em eventos relacionados à violência. Tudo isso somente nos últimos quatro anos desde o golpe de Estado de 2016 que levou ao poder o Governo ilegítimo liderado por Michael Temer (que saiu do Governo com um índice histórico e inacreditável de 97% de rejeição nacional de acordo com os mais importantes institutos de pesquisa do país). Assim, somente 3% da população, a elite golpista, apoiou a implantação do Governo temporário que abriu caminho para o avanço do autoritarismo e a implantação do fascismo neoliberal no Brasil.

Dessa elite golpista, fazem parte as alas mais conservadoras das forças econômicas de direita alinhadas a partidos políticos de centro-direita, direita e extrema direita como: Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB); Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) - hoje, Movimento Democrático Brasileiro (MDB); Democratas (DEM); Partido Progressista (PP); Partido Socialista (PS); Partido Social Liberal (PSL); Partido Republicano (PR); Partido Liberal (PL); Partido Novo (NOVO); Podemos (PODE); etc. Acrescentamos, ainda, as corporações de mídia conservadora, organizações privadas internacionais, Federações de Indústrias e líderes do fundamentalismo religioso. Todas essas forças reunidas formaram uma verdadeira aliança fascista contra o Brasil. Assim, o que surge na ausência das instituições democráticas são narrativas políticas fascistas e ideologias econômicas neoliberais. Essa nova formação política e de monstruosidade punitiva é definida por uma cultura da vaidade e de consumo, pela crueldade, pela mercantilização, pelo fanatismo religioso, pelo controle tecnológico e pela privatização de empresas, bens e serviços públicos. Essa formação é o que Giroux (2018, 2019) vem denominando de fascismo neoliberal.

Fica claro, portanto, que a corrupção política nada mais é do que um fenômeno social que sempre favorece os poderosos e prejudica a população. A disputa neoliberalismo versus democracia não está se dando apenas no Brasil e demais países da América Latina, ou outros países periféricos ao capitalismo. Essa disputa também ocorre em diversos outros países como EUA, Canadá, Japão, França, Inglaterra, Espanha, etc. A disputa que está acontecendo, neste início do século XXI, é uma versão contemporânea do antigo conflito de classes entre a burguesia e a classe trabalhadora, mas em um contexto muito mais desafiador e complexo que o da era moderna. Como Douglass (1852, p. 3) afirmou, “[...] não é a luz necessária, mas o fogo; não é o banho suave, mas o trovão [...] a hipocrisia da nação deve ser exposta”.

A crise econômica mundial demonstra claramente os limites da expansão do capitalismo e a dificuldade de seu alargamento em setores clássicos como indústria e comércio. Para continuar expandindo sua hegemonia, o capital precisa agora entrar no setor de serviços, principalmente educação pública e serviços de saúde. A guerra foi travada na Organização Mundial do Comércio, onde forças neoliberais tentam derrubar barreiras nacionais, modificando leis e investindo pesadamente em campanhas para destruir serviços públicos, sua crescente precariedade para facilitar o discurso da privatização. Qual é o motivo dessa crise, senão o próprio modelo de acumulação de capital que não tem mais possibilidade de expansão porque acúmulo e expansão são atitudes diametralmente opostas?

Fala-se muito em regulamentação econômica, mas, quando se trata de regulamentação da mídia, uma concessão pública, os poderosos manipulam a opinião pública por meio de editoriais, jornalistas corruptos e empresários ricos. Não devemos esquecer que o salário de jornalistas de empresas privadas de mídia é publicidade. Essa propaganda fascista tem portanto o apoio da mídia hegemônica. Nesse jogo de cartas marcadas, a ação suja e manipuladora da mídia é decisiva. Na Argentina, chegou-se a publicar fotos nuas de Cristina Kishner. No Brasil, as redes de televisão e a mídia de massa destruiram a imagem pública do Partido dos Trabalhadores (PT) incitando a prisão de suas principais lideranças. Todavia, quem são os patrocinadores dessa campanha pelo neofascismo no Brasil? De onde vem o dinheiro para a implantação dessa autoritária política neoliberal?

À medida que a ideologia neoliberal consegue um vasto alcance por meio da mídia tradicional e conservadora que opera como uma máquina de des-imaginação4(GIROUX, 2019), ela tenta controlar a história e apagar momentos de resistência à opressão. Desse modo, a história, como ato de memória perigosa, é caiada de branco, expurgada de ideais utópicos e substituída por fantasias apocalípticas. Isso inclui narrativas de declínio, de medo, de insegurança, de ansiedade e de visões de perigo iminente, frequentemente expressas na linguagem da invasão, da guerra contra as classes perigosas, dos criminosos e dos estrangeiros infectados por doenças. É difícil para os indivíduos entender historicamente as múltiplas guerras travadas contra os ideais democráticos. Tudo parece carecer de antecedentes, tornando o vitríolo venenoso e as políticas do fascismo neoliberal ainda mais energizantes, livres de uma história de luta e resistência, que passa a ser evitada e apagada por considerar-se tóxica (GIROUX, 2019).

Enquanto isso, os impostos sobre grandes fortunas e os impostos sobre herança são um tema silencioso do Congresso Nacional, violando a Constituição brasileira; como em muitos outros tópicos, em que deputados e senadores continuam trabalhando silenciosamente para deformar a Magna Carta, fazendo cortes para neutralizar conquistas sociais e enxertos para aumentar o lucro das elites gananciosas. O que acontece atualmente na América Latina e no Brasil também acontece em outras partes do mundo. Os ricos exploram os pobres e acumulam cada vez mais dinheiro em suas barrigas gordas e gulosas, tudo com um sorriso cínico no rosto. Eles nos fazem esquecer a história das ideias democráticas e socialistas e querem implantar um senso de continuidade eterna do sistema capitalista como se nada mais fosse possível e como se o poder dos países hegemônicos nunca pudesse ser desafiado.

Embora a hegemonia do capitalismo tente nos impedir de pensar um outro sistema, podemos falar de países que resistem à ganância do capitalismo, tentam realizar uma distribuição de renda e proteger os seus cidadãos com a garantia de um mínimo de bem-estar. São projetos socialistas que reforçam o poder popular, investem dinheiro em instituições públicas, acreditam no bem comum. Existem alternativas, apesar de ser cada vez mais difícil evitar a prostituição de parcerias público-privadas que sempre deixam o fardo para o público e o bônus para o privado. Nesse sentido, um problema importante é colocado por Luxemburgo (2015) quando denuncia o oportunismo na teoria e na prática socialista que nos desvia do objetivo da revolução em detrimento de reformas pouco eficazes para o processo de transformação social. A autora afirma que a hostilidade à teoria socialista ocorre pelo contorno muito preciso que ela aporta às práticas, tanto no que diz respeito às finalidades sociais como aos meios e aos métodos de luta empregados para atingi-la. A autora conclui afirmando que: “As correntes socialistas oportunistas despediram-se do modo de pensar do proletariado, da dialética e da concepção materialista da história” (LUXEMBURGO, 2015, p. 125).

Nessa mesma perspectiva, Rickford (2011) afirma que o socialismo democrático seria uma imagem-objetivo na busca humanitária e igualitária, com profunda relevância para os movimentos de massas. As vidas humanas de uma imensa maioria pobre tornaram-se cada vez mais dispensáveis. De acordo com Bauman (2006), a modernidade deveria ser o período da história humana em que os medos que permeavam a vida social no passado poderiam ser deixados para trás, e os seres humanos finalmente poderiam assumir o controle de suas vidas e domesticar as forças descontroladas dos mundos social e natural. No entanto, no início do século XXI, vivemos novamente em uma época de medo. Medo é o nome que damos à nossa incerteza diante dos perigos que caracterizam nossa era moderna líquida, à nossa ignorância sobre qual é a ameaça e à nossa incapacidade de determinar o que pode ou não ser feito para combatê-la (BAUMAN, 2006).

Apesar do medo, os confrontos persistem. Desde a virada do século, e seguindo nas duas primeiras décadas do século XXI, os protestos anti-sistema difundiram-se e acontecem simultaneamente em diversos países do mundo. A guerra tecnológica é real. Não é apenas uma disputa pelo petróleo ou pela água, mas também pelo desenvolvimento tecnológico e bélico financiado pelo capital volátil que circula pelo mundo. Uma guerra pela inteligência artificial, pela internet das coisas, pela tecnologia do 5G. Entretanto, capital é riqueza acumulada. E riqueza é, portanto, necessariamente, trabalho. Trabalho é esforço humano. A guerra não ocorre apenas internamente entre os países ricos e pobres, mas também no âmbito internacional entre os países que desejam manter sua hegemonia pela força e os países que lutam para sair da situação de exploração que sofrem com todo o processo de colonização. A ciência e a técnica criam respectivamente ideologias e fetiches tecnológicos. Quem olha para a geopolítica mundial percebe claramente o movimento das tropas, o barulho dos canhões, a disputa pelos foguetes no controle do espaço sideral e o barulho das espadas e das facas sendo amoladas.

ProvavelmenteZizek (2012)esteja certo quando afirma que estamos vivendo no fim dos tempos e identifica os quatro cavalheiros do apocalipse no capitalismo: i. a crise ecológica mundial; ii. a desigualdade do sistema econômico; iii. o crescimento da exclusão e da fragmentação social; iv. a revolução biogenética e tecnológica. As Bestas Fascistas já estão à solta. Os falsos profetas manipulam a subjetividade e a espiritualidade popular. O Trump-Leviatã e o Bolso-besta-da-abominação mostram suas garras e tentam marcar nossa testa com seus chips e códigos de barras. Desde o incidente contra o general do Irã no Iraque, não é mais ficção científica ver os drones atacarem os países lançando bombas e destruindo a soberania. Ou, ainda, ver drones controlando as populações colocadas em quarentena por questões epidemiológicas. O controle vem ganhando novas formas. São robôs, algorítmos, localização de dispositivos móveis, tudo transformado em dados a serem processados contra a população.

O sistema político, as grandes coporações e os países financiados pela produção de armas e equipamentos associados à repressão em nome da segurança pública já fazem ações do tipo na Ásia e no Oriente Médio. A indústria bélica faz seus experimentos de guerra e, depois, exporta a tecnologia para outros países. No Brasil, chega-se ao absurdo de atirar, em civis, de helicópteros com o suporte de tecnologias de reconhecimento facial. Entretanto, como afirmam Puljek-Shank e Fritsch (2019), ao analisarem as consequências da guerra no Iraque, o desafio da contestação da justiça social nos arranjos econômicos e nas lógicas alternativas de engajamento e nas formas organizacionais na sociedade fortaleceram os meios para construir um terceiro bloco alternativo por meio de uma abordagem “primeiro local”, com formas heterogêneas de ação em escala local, com estratégias políticas explicitamente regionais e territorializadas.

Valorizando essa perspectiva mais local, e fazendo um breve giro pela política latinoamericana, veremos que, na Argentina, o presidente neoliberal, que tentava re-eleição, perdeu em primeiro turno depois de levar o país a uma das mais graves crises sociais de sua história. Outro exemplo de luta contra o Governo neoliberal é o Chile, onde observamos a manifestação de mais de 2 milhões de pessoas contra a implantação de medidas de austeridade e, após intensos protestos, já se negocia uma assembleia popular constituinte. No Equador, o ataque neoliberal foi tomado pela população como uma traição. O presidente eleito, com uma plataforma de esquerda, muda de lado depois de eleito e implanta o projeto neoliberal. Até hoje, a população, principalmente os grupos indígenas, segue protestando nas ruas da capital.

Na Bolívia, o presidente Evo Morales, representante do povo indígena, embora eleito em primeiro turno, foi deposto por um golpe de Estado articulado por forças da elite de direita que expressou crueldade e violência desmedida. Chegaram ao absurdo de cortar os cabelos de uma política, pintando-a inteira com tinta vermelha. A população indígena sendo vítima de racismo descarado. Evo Morales pediu refúgio no México, um dos poucos países da América Latina ainda com governo progressista, popular e democrático. No Brasil, o golpe de Estado de 2016 abriu caminho para um Governo extremamente autoritário e neofascista. No entanto, mesmo com todos os golpes e todas as repressões, as redes de resistência permanecem ativas e novas formas de agência individual e coletiva se fazem cada vez mais necessárias.

Com o avanço das políticas neoliberais e dos modelos autoritários de Governo, surgem questões que não são exatamente novas, mas parecem ser cruciais neste momento: a) Como a educação pode equipar a sociedade na luta política pela democracia em uma globalização neoliberal que torna a sociedade cada vez mais autoritária e hostil?; b) Qual é a possível formação política nessa conjuntura, caracterizada por uma política autoritária de abordagem fascista com flagrante ofensiva às ideias que divergem da hegemonia autoritária?

A Educação e a Linguagem como objetos de disputa política

No Brasil, de acordo com Leitão e Figueiredo (2019), durante a retomada da democracia, em 1980, ocorreu a Primeira Conferência Brasileira de Educação, mas foi somente em 1986 que as propostas democráticas foram imortalizadas na Carta de Goiânia, documento que viria a influenciar no debate sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, elaborada em 1987, e até o capítulo sobre o direito à educação e à cultura na Constituição Federal de 1988. Embora a legislação oficial tenha adotado o discurso de qualidade social da educação, não ocorre a valorização dos professores, e o investimento público no setor não para de sofrer cortes.

Na era atual, a política não é mais sobre a linguagem do interesse público, mas sobre como sobreviver em um mundo sem provisões sociais, apoio, comunidade e fé na luta coletiva. Essa é uma linguagem que opera a serviço da violência e marca, para Dixon (2014), um novo e aterrador horizonte para a experiência política humana. Essa é uma linguagem horrível, fundamentada no medo, com objetivo de produzir o fim da ação política. Sob tais circunstâncias, a democracia não está meramente sitiada, mas está perto de ser sim aniquilada.

Há mais elementos em ação aqui do que uma política fascista de extermínio. Há também um ataque aos modos de agência crítica e às instituições educacionais e culturais que criam as condições em que os cidadãos podem ser informados para possibilitar a democracia. Sob essas pressões, as pessoas tornam-se suscetíveis a modos de ação que abraçam medos compartilhados, perda de autonomia e ódio rançoso, em vez de valores e de obrigações coletivos. No Brasil, foram extintos os Ministérios do Trabalho e o da Cultura. Volta-se a uma política de controle da produção cultural e expressão intelectual. Há censura, boicote e controle ideológico do cinema, do teatro, das artes plásticas e da produção científica das universidades.

Dentro da formação política autoritária e populista neoliberal, a linguagem funciona para reprimir qualquer senso de decência moral e conexão com os outros; como resultado, a comunicação individual enraizada nos valores democráticos e no diálogo perde todo o significado. Os indivíduos, argumenta Lowenthal (2011, p. 3), são cada vez mais pressionados a agir como “[...] buscadores implacáveis ​​após sua própria sobrevivência, peões psicológicos e fantoches de um sistema que não conhece outro propósito senão manter-se no poder”. A agência crítica agora é vista como perigosa e prejudicada por maquinarias pedagógicas neoliberais em curso do poder e uma cultura de ignorância manufaturada, que funciona para produzir uma forma de repressão política, por um lado, e regressão política e infantilismo, por outro.

A prescrição do mercado ataca os princípios da democracia, distorcendo a linguagem da autonomia, da solidariedade, da liberdade e da justiça, que fazem da igualdade econômica e social uma ideia e um objetivo político viável. O neoliberalismo produz uma noção de individualismo e de anti-intelectualismo, que abriga um violento desdém pela comunidade e, ao fazê-lo, reforça a noção de que todos os laços sociais e seus respectivos etos de responsabilidade social não são confiáveis. Noções descontroladas de interesse próprio e uma retirada regressiva de uma política de oposição substantiva agora substituem as noções de bem comum e cidadania engajada, assim como as instituições políticas existentes há muito deixaram de representar ninguém além dos ricos. Sob o reinado de um mercado fundamentalista, a atomização social torna-se comparável à morte de uma democracia inclusiva e justa (GIROUX, 2018).

Giroux (2019) afirma que lidar com os problemas da vida se torna um assunto solitário, reduzindo as questões de compromisso e de responsabilidade social a uma noção regressiva e despolitizada de escolha individual ou uma espécie de caridade das empresas. À medida que a esfera social é esvaziada de instituições e ideais democráticos, visões apocalípticas de medo e de fatalismo reforçam a suposição cada vez mais normalizada de que não há alternativas à lógica política existente e à tirania de uma economia global neoliberal. As noções compartilhadas de solidariedade são apagadas juntamente a instituições que nutrem uma sensibilidade comprometida e crítica. Esse tipo de esvaziamento da política levanta várias questões:Como fortalecer uma concepção democrática da política? Quais agentes de mudança estão realmente disponíveis para assumir a tarefa de organizar uma rede de resistência que potencialize a agência coletiva? Qual o papel dos educadores nesse contexto?

A educação não pode ser crítica quando fica reduzida ao treinamento para o trabalho

Existe, atualmente, um consenso de que o processo de formação permeia toda a vida dos seres humanos. Desde que nascemos, o aprendizado é uma necessidade de sobrevivência, uma capacidade que nos permite nos adaptar ao ambiente em que vivemos, uma necessidade de desenvolvimento de nossa inteligência e, também, uma possibilidade de criar novas condições de existência. A formação humana é, portanto, um processo social muito mais amplo e antigo do que a educação formal que recebemos na escola ou na universidade.

No entanto, desde o final do século XX, com a transição do mundo moderno para o mundo contemporâneo, alguns fenômenos complexos, como a reestruturação científico-produtiva, a revolução tecnológica e a intensificação do trabalho, estão causando grandes mudanças sociais e tornando necessário que as pessoas aprendam como gerenciar um fluxo crescente de informações, operar novas tecnologias e usar conhecimentos mais complexos para desenvolver suas atividades. Os governos, autoritários, estão priorizando cada vez mais o treinamento de habilidades técnicas no Ensino Superior.

A justificativa da ideologia tecnicista sempre foi a necessidade de mão de obra especializada para a manutenção do contingente de “reserva de mercado” dos trabalhadores - sempre com o discurso de que essa é a necessidade de seguir em seu processo de urbanização industrial. Em outras palavras, um sistema produtivo que deve se tornar cada vez mais competitivo, baseado em tecnologias de gestão privada e na auditoria de desempenho de professores e de alunos, sempre fortalecendo a ideia de meritocracia.

Na educação, essas tendências afirmam que a escola é apenas para transferir o conhecimento necessário para as atividades de trabalho, reduzindo o papel do professor ao do provedor e do aluno ao cliente. Essa tendência colidiu com a visão de formação humana, crítica e de cidadania, que enfraquece e ameaça o indivíduo humano, mas dificulta principalmente o exercício da cidadania e enfraquece a democracia. O mercado precisa determinar que a tomada de riscos seja aliviada e reduzida ao treinamento e à instrumentação e que está substituindo a perspectiva da educação integral e crítica.

Essa tendência está associada a uma onda ultraconservadora e fascista que tenta eliminar a discussão de questões filosóficas, sociológicas e políticas, dificultando o pensamento crítico e reflexivo, além de dificultar o ensino de abordagens relacionadas à cultura como classe social, identidade, gênero, raça, entre outros. Todavia, não é apenas no currículo que opera o controle. O trabalho docente também se torna mais regulamentado e controlado, reduzindo a autonomia do professor, culpando os profissionais e incentivando conflitos com os alunos e os pais.

No entanto, também existem inúmeras experiências que valorizam uma formação integral, especialmente por meio de vivências coletivas e experiências concretas que envolvem a participação de comunidades locais. São iniciativas que vão desde projetos de extensão universitária a ações coletivas desenvolvidas em colaboração com os movimentos sociais. A práxis educativa radical comprovadamente promove o crescimento econômico, o desenvolvimento humano e social. Por exemplo, em pesquisa que avaliou os efeitos e os resultados de projetos socioeducativos no desenvolvimento humano dos jovens em favelas do Rio de Janeiro, Figueiredo, Weihmuller e Orrillo (2019) afirmam que ações educativas não institucionalizadas têm grande potencial de transformação. Os autores observaram que os projetos influenciaram, em maior medida, os aspectos individuais ligados ao desenvolvimento pessoal e às possibilidades de realização de projetos futuros. Nesse sentido, os indicadores que obtiveram a maior avaliação foram: desenvolvimento de personalidade e caráter, mudanças comportamentais, desejo de aprender, competências comunicativas, éticas e morais, inteligência, empreendedorismo, competências sociais, esforço individual, gestão de sonhos, perspectivas futuro e possibilidades, responsabilidade e motivação pessoal. Contudo, os indicadores correspondentes ao nível sócio-coletivo do desenvolvimento humano foram menos valorizados: apoio comunitário, apoio familiar, associação de bairro e participação política.

Ao analisarem o cotidiano do trabalho docente entre professores da Educação Básica, Jardim, Brandão e Figueiredo (2018) afirmam que a práxis, como um trabalho que integra ação e reflexão, tão necessária à prática educacional, enfraquece-se no cotidiano das escolas devido ao pragmatismo necessário para a sobrevivência. Os autores relatam que os poucos momentos de encontro entre os professores acabam se transformando em muro de lamentações, sem uma consistência teórica capaz de mobilizar os professores para uma ação política coletiva consistente. Ainda assim, seria um erro desconsiderar os esforços empreendidos pelos professores para criticar as políticas neoliberais que comprometem o funcionamento das escolas, que estimulam a competitividade, que naturalizam a lógica da performatividade e torna o trabalho docente cada vez mais precário. Uma prova dessas lutas, que, muitas vezes, são invisíveis à sociedade em geral, são as mobilizações, as ocupações, os protestos e as greves capitaneadas pela área da educação desde o golpe de 2016 no Brasil.

A partir da análise do projeto autoritário da política neoliberal focada em Universidades e Institutos Federais públicos que se pretende implantar no Brasil durante o atual Governo conservador, Knobel e Leal (2019) afirmam que, com o discurso de “fortalecer a autonomia”, o Ministério da Educação pretende implantar dispositivos de gestão, de governança e de empreendedorismo com o objetivo de incentivar parcerias com organizações sociais, empresas e associações privadas. O programa representaria um desinvestimento maciço do Estado nas universidades públicas, o que levaria à privatização e ameaçaria a ideia do Ensino Superior gratuito como um bem público e social, com consequências sociais desastrosas. A Associação Nacional de Dirigentes de Instituições de Ensino Superior (ANDIFES), composta por todas as Universidades e Institutos Federais do país, compartilhou essas preocupações, enfatizando que as Instituições Federais seriam profundamente afetadas e que o programa entraria em conflito com a autonomia garantida pela Constituição Federal.

Knobel e Leal (2019) apresentam, também, os dados de uma pesquisa realizada em 2018 sobre o perfil socioeconômico de estudantes de Instituições Federais de Ensino Superior no Brasil e revelam que 70% dos estudantes de Graduação nessas instituições vêm de famílias com renda mensal de até R$ 1.500,00. Também existem cotas para os graduados das escolas públicas e dos grupos minoritários que contribuem para a diversidade e ajudam a reduzir a grande desigualdade social do país. De acordo com os autores, mais de 70% das Universidades Federais decidiram não apoiar o plano, enquanto outras ainda aguardam mais informações antes de se posicionar. As críticas do Governo ao Ensino Superior brasileiro não são substanciadas e baseiam-se em fake news. Uma afirmação frequente e não comprovada é que as Universidades Públicas são preenchidas com “esquerdistas” e “marxistas”, enquanto essas instituições realmente refletem a sociedade em geral em termos de posições políticas. Finalmente, apesar de as Universidades públicas serem tradicionalmente elitistas, elas se tornaram mais democráticas nos últimos anos (KNOBEL; LEAL, 2019).

Ao mesmo tempo, os partidos de direita chegam ao absurdo de propor uma lei para a implantação de uma Escola sem Partido, como se fosse possível uma escola neutra. A chamada neutralidade não significa nada além de autoritarismo que é evidente em uma postura que criminaliza a política de ação na escola, como se os seres humanos pudessem viver em uma sociedade sem fazer política. A política é a ação humana de negociação, de diálogo e de mediação na construção de forças sociais que competem pelo poder da execução dos planos eleitos pela maioria em um contexto de democracia real (JARDIM; BRANDÃO; FIGUEIREDO, 2018).

Propor uma Escola sem Partido é o mesmo que propor uma educação apolítica, portanto, sem consciência crítica, sem consciência dos fatos, sem a consciência das lutas sociais que foram, estão e sempre estarão presentes no dia a dia da população em frente aos governos que controlam o Estado. À medida que a época contemporânea avança, muitos estão defendendo que o Estado deve permitir que os cidadãos participem, direta e indiretamente, nos assuntos públicos. Desse modo, a formação política integra a agenda da política educacional para garantir a defesa da democracia.

De acordo com Tolstenko, Baltovskij e Radikov (2019), a educação é a forma mais importante de mobilidade social, mudanças políticas e criatividade cultural. Forma a consciência dos indivíduos, molda e transforma sua atitude política em relação às realidades cotidianas circundantes. Essa abordagem permite otimizar o processo de educação para a esfera pública destinada a formar um cidadão ativo, criar um vínculo sustentável entre um indivíduo e o meio social e é a ferramenta mais importante da comunicação política. A Constituição Federal de 1988 recomenda essa perspectiva de educação integral em seus artigos 205 e 206:

O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; [...]; VI gestão democrática do ensino público, na forma da lei [...]. (BRASIL, 2018, p. 160).

Enquanto isso, na prática, Leitão e Figueiredo (2019) alertam que não serão atingidas as metas previstas no Plano Nacional de Educação (PNE) para o período entre 2014 e 2024, contrariando a Lei aprovada pelo Senado Federal no Brasil. Os objetivos do plano estão ameaçados pelo congelamento de investimentos na educação e pelo redirecionamento ultraconservador e ultraliberal da orientação política do Governo desde o golpe de 2016. As medidas que estão sendo implementadas violam não só a Constituição Brasileira como também a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Vivemos uma época em que todos os aspectos da sociedade apresentam sintomas de empobrecimento político, econômico e ético. Essa condição estende-se do local de trabalho e da educação ao sistema jurídico e à cultura maior. É evidente a maneira como nossa sociedade se torna cada vez mais dominada pela linguagem do extremo nacionalismo, racismo, nativismo e níveis grotescos de desigualdade. E é evidente as condições despolitizadoras de nossa ordem social que despojam indivíduos de pensamento crítico, autodeterminação e ação reflexiva.

A despolitização transforma a ignorância em virtude, dificultando ainda mais o equilíbrio entre razão e afeto, distinção entre fato e ficção e julgamento crítico e esclarecido. Cada vez mais, a educação nas escolas e nos aparelhos culturais mais amplos, como a mídia tradicional e conservadora, torna-se uma ferramenta de repressão e serve para promover e legitimar a propaganda fascista neoliberal. Como tal, a tarefa interminável da crítica cede lugar ao fracasso da consciência, enquanto sucumbe a visões simplistas do mundo definidas por meio de uma irracionalidade que está no centro de uma política fascista. A razão e o pensamento, condição prévia para a criação de cidadãos informados, dão lugar a uma cultura de gritos, de excitação emocional e de períodos curtos de atenção. Novas tecnologias e plataformas digitais controladas por monopólios exploram o consumismo, a velocidade e a brevidade e conspiram para dificultar a reflexão, se não a razão em si mesma. O conhecimento não é mais valorizado; em vez disso, ele é pré-empacotado no ciclo de notícias de 24 horas por dia, sendo reduzido a bombas de informação comerciais.

A formação política e a práxis crítica radical podem transformar a realidade, estimular a participação popular e unificar movimentos sociais na luta em defesa da democracia

Em uma reflexão crítica sobre o trabalho docente, Jardim, Brandão e Figueiredo (2018) definem práxis como um trabalho que integra ação e reflexão. Entretanto, confirmam que a práxis educativa crítica é constrangida pelo pragmatismo da sobrevivência. Os poucos momentos do encontro às vezes se transformam em um “muro das lamentações” sem uma consistência teórica capaz de mobilizar o coletivo para uma ação política mais consistente. Contudo, não se pode desconsiderar todos os esforços empreendidos pelos professores para criticar políticas neoliberais que comprometem o funcionamento das escolas, estimulam a competitividade e a performatividade e o trabalho educacional cada vez mais precário.

Ao analisarem a educação política junto a organizações da sociedade civil pós-revoltas e golpe de Estado no Egito, Mirshak (2019a, 2019b) confirma que a formação política direta e os discursos explícitos sobre política e direitos humanos são realmente reprimidos naquele país. Entretanto, o autor ressalta a importância da educação política indireta, assumindo a forma de jogos e de simulações, sátiras e charges, que podem parecer apolíticas, mas representam no cotidiano inúmeras implicações políticas contraditórias. Há uma real necessidade de adaptar e de inovar nos métodos educacionais para funcionar, sobreviver e educar em tempos autoritários.

Enquanto isso, os currículos formais enfatizam o envolvimento “ativo” dentro da comunidade. Por isso mesmo que Kennelly e Llewellyn (2011) denunciam que o “cidadão ativo” do currículo cívico contemporâneo é, de fato, um assunto profundamente neoliberal. Embora a educação tenha um papel central a desempenhar na conscientização da população, os sujeitos individuais mantêm atitudes contraditórias em relação ao poder. Igualdade, identidade, cidadania, educação.

Todas as formas de produção e de reprodução cultural se tornaram questões políticas centrais. Freire (2011) lembra-nos que, se houver alguma dúvida sobre o poder transformador da educação por aqueles que desejam mudanças sociais, aqueles que se opõem a essas mudanças parecem não subestimá-las. Avançando no desenvolvimento dessas ideias, Giroux (2019) propõe um movimento anticapitalista que possa redirecionar a dor e a raiva dos excluídos em direção a uma reestruturação radical da sociedade cujo objetivo é a construção de uma sociedade socialista democrática.

Os problemas que as pessoas enfrentam nas sociedades capitalistas autoritárias são muito profundos, estendem-se demais e envolvem muito poder. Suas profundas fontes de opressão devem ser desafiadas por meio da construção de união dos grupos que reúnem trabalhadores, intelectuais, jovens e diversos movimentos sociais anticapitalistas. Essa formação social e política de base ampla deve aprender a falar com e com os despossuídos, abordando como o capitalismo os priva das condições materiais de liberdade, forçando-os a competir por recursos, tempo e dignidade escassos.

É, portanto, urgente decifrar os códigos culturais das escolas em suas relações com questões de paz, de conflito e de cidadania. Ao analisar como as escolas israelenses estão tentando evitar qualquer conteúdo de “educação política”, Levy (2014) conclui que uma abordagem adequada à educação para a paz deve se concentrar no conflito como parte de nossas mentalidades culturais e concepções do mundo, como ficou, pois, imortalizado pela letra de uma famosa música popular brasileira... “Paz sem voz, não é paz. Paz sem voz, é medo!”5.

É exatamente esse sentido de retomar a voz e o poder de luta que observamos na contemporaneidade. Não faltam evidências da retomada do papel de liderança do setor educacional na luta pela democracia e contra o autoritarismo. Os professores estão engajados em movimentos sociais e sindicais que mobilizam a escola e provocam a comunidade escolar, apesar da precarização das condições de trabalho e da invisibilidade de seu trabalho imposta pela mídia conservadora. Segundo Freire (1979, p. 74), tais movimentos de emergência representam um passo importante na superação da cultura do silêncio, que “[...] coincidiu com a percepção fatalista e populista da realidade e na qual as classes dominantes raramente eram questionadas”. Sentindo-se ameaçados pelos “grandes proprietários de terras” e “empresários nos centros urbanos”, eles procuram “[...] novas maneiras de silenciar as massas emergentes de pessoas” (FREIRE, 1979, p. 74).

No município do Rio de Janeiro, de acordo com Jardim, Brandão e Figueiredo (2018), na época do Governo Eduardo Paes (PMDB), os professores eram reprimidos quando faziam greve e tinham em seus salários descontos de dias paralisados ​​que eram divididos em várias parcelas ao longo de anos, como medida punitiva. No nível estadual, houve greves durante o Governo Sérgio Cabral (PMDB), atualmente preso, para denunciar as más condições de trabalho nas escolas, e não houve poucos confrontos com a polícia que atacou violentamente os profissionais da educação durante suas manifestações.

Entretanto, o evento mais grave que ilustra o silenciamento da voz dos professores ocorreu em Curitiba, em 29 abril de 2015, quando o Governo Beto Richa (PSDB) ordenou uma repressão muito violenta que feriu mais de 200 professores durante um protesto pacífico contra a reforma do sistema de aposentadoria dos funcionários públicos. O episódio causou revolta e indignação em todo o país, sendo definido por Ruschel (2015) como o mais sangrento massacre contra os professores do Paraná.

Sobre a necessidade dessa mobilização, Freire (1967, p. 32) afirma que “[...] é necessário viver essa substantividade, para tornar a democracia não um mero adjetivo, um trampolim para o domínio autoritário”. E, também, nos convoca à ação quando faz a crítica de como o autoritarismo parece inerente à sociedade brasileira “[...] certamente não é uma qualidade imutável, mas sempre o acompanhou. E precisamos mudar isso” (FREIRE, 1967, p. 32).

Também contrariando o discurso oficial de que não há protestos e manifestações contra o neoliberalismo contemporâneo ao se tornar hegemônico, Aznar e Albert (2016) chamam atenção para o surgimento de novos movimentos sociais que estão lentamente sendo gestados e crescendo nas escolas públicas. As autoras comprovam que a práxis educativa radical nas escolas públicas tem um forte efeito emancipatório de politização e descolonização da cultura. Há evidências dessa contínua transformação e do movimento pelas relações que se estabelecem com as experiências formativas e os novos requisitos acumulados pelos movimentos sociais, também constatada por Catini e Mello (2016), em estudo no Nordeste brasileiro, quando demonstram os potenciais formativos e organizacionais dos movimentos culturais e sociais, como no caso das ocupações escolares dos alunos do Ensino Médio que ocorreram no Brasil à luz das críticas aos modos dominantes de educação.

É também relativamente fácil identificar, nos discursos dos apoiadores do fascismo, um programa de desqualificação e de criminalização de discursos e de ações que se referem à resistência e à luta dos oprimidos. Os rótulos são usados para travar a guerra ideológica: “comunistas”, “radicais de esquerda”, “sindicalistas”, “vândalos” e, até mesmo, “revolucionários”. É, nessa perspectiva, que se afirma que há um grande “perigo” de manifestações populares, espalhando medo e produzindo marketing com base na ideia de vandalismo. A violência policial é justificada para controlar as forças populares, rotulando de transgressoras e criminalizando-as.

Nesse contexto de conflito, a práxis, teoria em ação na prática, é indispensável para a ação libertadora. O que importa para o poder opressor é enfraquecer os oprimidos mais do que já são, isolando-os em conceitos de gênero, de classe e de raça, criando e aprofundando, com isso, divisões entre eles, por meio de uma gama variada de métodos e de processos. Por isso, Freire (1980, p. 26) afirma que “[...] a pregação de uma educação neutra esconde o medo de uma educação crítica orientada para a ação de transformação social. Nesse sentido, os movimentos de crítica radical são imediatamente carimbados como perigosos. E eles realmente são, mas para os opressores”.

Direito à educação pública, gratuita e de qualidade: em defesa da qualidade social, política e ética na formação humana

As escolas públicas brasileiras melhor posicionadas nos sistemas de avaliação nacional demonstram que, para alcançar uma educação de qualidade, são necessárias escolas com infraestrutura adequada, professores valorizados, participação social da comunidade escolar e uma pedagogia crítica em que haja preocupação com a formação de cidadãos capazes de fazer novas questões sobre o mundo; de estabelecer o diálogo para superar desafios; de trabalhar coletivamente para a resolução de problemas; e do cotidiano exercício da convivência, da sensibilidade e da criatividade em nossa cultura; de que seja uma formação social e humana. Ainda sobre a questão da participação social, Figueiredo (2015) defende que a Investigação-Ação-Participativa se constitui em uma alternativa real para a epistemologia social na América Latina, por trazer para o centro do processo de produção de conhecimento o diálogo real com a população em uma perspectiva epistemológica que fundamenta o desenvolvimento de uma práxis educativa radical.

Em estudo recente sobre a qualidade da Educação Básica no Brasil, Cordeiro (2018) pesquisa as representações sociais dos professores de uma escola pública federal e sintetiza que uma Educação Básica de qualidade deve: i. incluir uma filosofia compreensiva que vise à formação integral e à inclusão social de todos os alunos; ii. dispor de professores éticos, bem formados, com salário digno e estimulante além de condições de pesquisa e de educação permanente; iii. oferecer condições adequadas de trabalho ao professor e de estudo aos alunos, com infraestrutura física, administrativa e número adequado de recursos humanos; iv. garantir o acesso ao conhecimento acumulado pela humanidade e promover a diversidade cultural; v. implementar currículo diversificado, integrado e com direito da participação estudantil nas tomadas de decisão que envolvem a comunidade escolar (CORDEIRO, 2018).

Ampliando essa perspectiva, Demo (2000, p. 15) afirma que “[...] a qualidade se concentra no desafio de gerenciar as ferramentas certas para fazer história humana”. Portanto, “[...] não há como alcançar qualidade sem educação, e a educação não será aquela que não se destina a formar o sujeito histórico crítico e criativo” (DEMO, 2000, p. 15). Também, na obra de Paulo Freire, é tratada a questão da educação como ferramenta de domínio e de opressão ou uma prática de liberdade, em que o educador e os estudantes são considerados sempre seres humanos inacabados, em permanente formação, por isso mesmo, com a vocação de ser mais. Para isso, é necessária uma educação desprovida de verdades monolíticas e que considere a importância do diálogo com os outros, em uma relação potente do processo histórico e da construção do conhecimento. É exatamente nesse sentido que Freire (2015, p. 8) considera “[...] o conhecimento como uma produção social, resultante de ação e reflexão, curiosidade em constante movimento de busca” -busca por uma educação de qualidade.

Todavia, alerta ainda Cordeiro (2018), que a qualidade da educação pode estar associada a diferentes ideologias, o que pode levar a diferentes práxis pedagógicas. A perspectiva neoliberal da qualidade total, por exemplo, aplica os princípios do controle de negócios no campo educativo, supervalorizando os parâmetros de produtividade, competitividade e eficiência. Entretanto, de uma outra perspectiva, socialista e democrática, a qualidade tem um valor político, o compromisso de transformar relacionamentos opressivos na sociedade, com uma perspectiva participativa e democrática, valorizando as diferenças, posicionando-se afirmativamente como seres humanos no mundo. É, por conseguinte, comprometida com a construção de uma sociedade mais civilizada, justa e igualitária. Uma sociedade que garanta espaço para a criatividade, a imaginação, o pensamento e a garantia do direito à liberdade de expressão.

Os movimentos sociais são articulados para criar uma política de identificação na qual as pessoas se juntam a outras pessoas não apenas para condenar as elites, mas para mudar radicalmente as estruturas de dominação. No entanto, o futuro é incerto e dependerá da luta política que também está ocorrendo no cotidiano das escolas, em um esforço histórico dos professores pela democratização do ensino no Brasil e no trabalho acumulado de todas as gerações de educadores que nos precedeu e fizeram história. A luta é a mesma velha luta de classes, que, em cada momento histórico, ganha novos contornos, com características temporais e espaciais que influenciam a qualidade da Educação Básica no setor público.

A esquerda precisa tornar visível o ataque da direita aos valores e aos programas básicos que minam a democracia e a justiça social e promover a miséria e o sofrimento generalizados. Precisa fornecer programas educacionais alternativos, usar mídias alternativas para educar as pessoas em um idioma que elas possam entender, usar demonstrações como ferramentas pedagógicas para aumentar a consciência e tornar a educação central para promover políticas que enfraquecem o capitalismo e dão sentido às necessidades sociais. Não haverá mudança no poder e na dinâmica ideológica do capitalismo se questões de soberania popular, lutas de classes e igualdade econômica não forem centrais para as lutas coletivas por justiça econômica, política e social.

Mas e o que, como seres humanos, sentimos? Como tudo isso afeta nossas emoções?

Nós somos seres humanos. Aqui reside a nossa potência. Aqui reside a nossa força. Aqui está o nosso infortúnio. Nós somos seres humanos. Sensíveis. Nós percebemos subjetivamente e sentimos tudo isso. Sentimos a tristeza de ver aqueles de nossa espécie se matando por dinheiro. Sentimos ver populações inteiras escravas da fome, da miséria e das doenças. Sentimos que a solidariedade está se tornando cada vez mais rara. Sentimo-nos distantes de todos, mesmo que conectados. Sentimos dor, sentimos frio, sentimos raiva, sentimos amor. Porque nós sentimos, embora queiram nos desumanizar em nome das ideologias capitalistas. Mesmo que eles tentem nos impedir de sermos humanos, mesmo que nos façam escravos dos sistemas políticos, ainda, assim, sentimos. Parece que é proibido sentir e expressar emoções no meio de tanto controle e dominação. É como se a racionalidade lógica fosse nosso único valor e como se a tecnologia pudesse nos salvar por si mesma, independentemente de seus usuários. É como se a ciência tivesse todas as respostas, para o nosso ser, para o espírito.

A ciência pode mapear cada mililitro de nosso corpo humano, criar robôs, implantar substitutos virtuais, podem nos individualizar e escravizar, mas não podem nos impedir de sentir. E quem sente, sonha. Até um sonho contido, até um sonho reprimido. Mesmo que seja um sonho leve, mesmo que se torne um pesadelo. E não é no inconsciente que nossos sonhos vivem. O sonho, sensível, vive dentro de cada um de nós e simultaneamente em nossa cultura. Sonhamos com o que desejamos e desejamos o que sabemos como uma possibilidade. Não a possibilidade da ganância por ter, mas a possibilidade de ser humano. Nesse sentido, utopia, sonho e esperança fundem-se em um só objetivo: humanizar os humanos.

É triste ver a humanidade paradoxalmente desumanizada nestes tempos contemporâneos, como se nosso corpo real pudesse ser substituído por um corpo virtual independente do que somos. É triste ver pessoas superficialmente se relacionando com milhões de amigos, buscando dezenas de seguidores e sem sentido, sem desejo, sem vontade sincera. É triste ver a humanidade dividida em classes dominantes e classes oprimidas, uma tentando de qualquer maneira manter seus privilégios fúteis e a outra literalmente dando seu sangue para sobreviver. Triste, muito triste, ser humano, nestes dias contemporâneos.

Entretanto, Mead (1973) afirma que devemos destacar a posição central do pensamento quando se considera a natureza da pessoa humana. Segundo o autor, é a consciência de si, antes mesmo da experiência afetiva, que proporciona a estrutura primária da pessoa, de tal modo que o pensamento é um fenômeno essencialmente cognitivo, antes de ser um fenômeno emocional. O processo de pensamento, ou intelectual - a internalização da dinâmica social e a dramatização interior, pelo indivíduo, das conversas externas de gestos significantes que constituem seu principal modo de interação com outros indivíduos da mesma sociedade - é a primeira fase experiencial na Gênese do desenvolvimento do ser humano na qualidade de pessoa inteligente e sensível.

Ser, humano, sensível, é ter a capacidade de perceber o mundo e decodificá-lo em pensamento. Consciência. Ser. Terrível ver as artes aprisionadas pelo mercado. O teatro vazio transformado em espetáculo. A pintura refém da vida como ela é, em toda a sua condição social miserável de existência. É triste ver a música cantando o próprio umbigo e produzindo videoclipes para serem virais na internet. Triste ver a literatura preocupada somente em decifrar uma realidade vazia e oca que apenas representa o que é, desconsiderando completamente tudo o que pode ser. Triste ver o cinema brasileiro censurado e boicotado. Triste ver o vídeo midiatizando o mundo, com sua lógica hegemônica de narrativa linear embutida no espetáculo. Triste ver o tempo dos seres humanos sendo consumido pela burocracia. Triste ver a universidade perdida em meio aos caprichos de algumas pessoas poderosas e perversas que limitam a criatividade e exigem números, números e mais e mais números. Todavia, enche-nos também de esperança cada gesto de resistência que conseguimos captar no meio dessa tempestade nebulosa que ameaça e aterroriza a cultura.

A importância da formação política e da educação crítica no século XXI: ética individual, consciência sócio-histórica, ação coletiva, resistência e esperança

Não haverá justiça sem luta, e não haverá futuro digno de ser vivido sem a vontade coletiva de lutar. O que é necessário, nesse caso, é uma visão e um amplo movimento de trabalhadores informados, artistas, intelectuais, jovens e outros que estão desafiando não apenas as elites corporativas, mas o próprio capitalismo. Em livro histórico, importante volume que reúne crônicas sobre a educação brasileira, Meireles (2001) afirma que:

Não importa que você esteja tendo muitos conceitos errados correndo secretamente e traiçoeiramente sob este mar. Se não houvesse resistências, qualquer uma delas poderia dominar, e passividade surgiria, todas as preocupações perdidas, no abandono de coisas não utilizadas. Mas existem resistências. E daí as lutas. E qualquer que seja o aspecto da vitória mais próxima, o futuro possui uma certeza admirável da vitória mais justa. A vitória mais justa deve ser a que oferece ao homem a mais alta liberdade. Que ele o liberte de outros homens, e que ele se liberte. (MEIRELES, 2001, p. 97).

Com o cenário de ressurgimento de uma política fascista que capitaliza a miséria, os medos e as ansiedades produzidos pelo neoliberalismo, criam-se as condições subjacentes que legitimam políticas autoritárias e elevados custos sociais. Enquanto isso, a alienação é usada por líderes autoritários que odeiam a democracia e fazem de tudo para esconder as profundas contradições do capitalismo neoliberal. Uma forma opressiva de educação torna-se central na política e é usada como uma ferramenta de poder na luta pelo poder, pela agência e pela política. Não obstante, também verificamos iniciativas no âmbito da micropolítica como os relatos de experiências de Wimmer e Figueiredo (2006) quando analisam a potência da Ação coletiva para a promoção da qualidade de vida em atividades desenvolvidas por trabalhadores da área da saúde em parceria com a população das favelas do Rio de Janeiro. Os autores destacam os desafios de uma práxis social pautada pelos conceitos de autonomia, de transdisciplinaridade e de intersetorialidade.

O que está em jogo aqui não é simplesmente uma luta entre ideias autoritárias e ideais democráticos, mas também uma batalha feroz por parte de demagogos para destruir as instituições e as condições que promovem o pensamento crítico. Em guerra contra a democracia e as instituições que a sustentam, o neoliberalismo utilizou uma combinação de medo e de crueldade que, mais uma vez, desencadeou as paixões mobilizadoras do fascismo, especialmente os registros historicamente distintos de nacionalismo extremo, nativismo, supremacia branca, raça e etnia, limpeza, supressão de eleitores e um ataque a uma cultura cívica de crítica e de resistência. O fascismo neoliberal esvazia a democracia por dentro, rompe a separação do poder, enquanto aumenta o poder da presidência e satura a vida cultural e social com sua ideologia de interesse próprio, um ethos de sobrevivência do mais apto e noções regressivas de liberdade e de responsabilidade individual.

Nesse contexto, esses agentes de mudança estão construindo novas parcerias com as classes trabalhadoras que exercem formas mais radicais de resistência coletiva na luta por uma democracia econômica e uma sociedade socialmente justa. A praga de uma política fascista e sua política de despolitização pode estar em movimento, mas, como Marx disse uma vez, a história está aberta. Na conjuntura histórica atual, estão surgindo amplas possibilidades para reconhecer que a atual crise da agência é uma condição prévia para abordar não apenas a crise da educação e da política, mas também a própria crise da democracia.

No Brasil, milhares de pessoas, em uma catarse coletiva, estavam nas ruas em 15 de maio de 2019 protestando contra reformas neoliberais, contra o fascismo contemporâneo, contra as mentiras das notícias falsas que governam nosso país e que animaram as eleições presidenciais. Na verdade, as manifestações populares no Brasil se iniciaram já na crise de 2008, ganharam corpo e foram duramente reprimidas em 2013; e, em 2016, foram capturadas pelo discurso fascista neoliberal da mídia controlada pelas corporações econômicas. Parece que o pensamento perverso venceu. Contudo, foi só uma vitória temporária, fundamentada em mentiras espalhadas por tecnologias digitais e robôs. Mas a luta continua. Em um equilíbrio vivo entre a agência e a resistência; entre as iniciativas individuais e os movimentos sociais mais amplos. Precisamos restaurar o equilíbrio emocional, enfrentar o medo do medo e sentirmo-nos livres novamente para, com coragem, lutar pela democracia e pela igualdade social.

O novo conceito de cidadania é interpretado por meio de um projeto conjunto para o estado e os profissionais de serviços humanos designados como intelectuais orgânicos dentro de uma perspectiva Gramsciana no cultivo da cidadania em uma sociedade multicultural. De acordo com Pun (2007), a cidadania só é possível se for buscada como racionalidade e ideologia pelos esforços do Estado, educação da cidadania por meio da prática e de uma cultura cívica criada pelo profissionalismo reflexivo. Quando as diferenças não são mais consideradas ameaçadoras, um senso de cidadania comum pode ajudar a aumentar a capacidade dos indivíduos, dos grupos sociais e da sociedade como um todo para enfrentar os desafios colocados pela necessidade de melhorar o bem-estar humano e de justiça social na sociedade atual.

Entretanto, a Agência é pré-condição para qualquer forma viável de resistência. Também é crucial abordar mudanças na consciência e repensar a questão da agência histórica e coletiva como parte da luta pela mudança estrutural. As mudanças ideológicas e estruturais só podem ocorrer por meio de uma cultura formativa e daquelas instituições e esferas públicas que tornam a educação central na própria política. A indiferença a um discurso sobre quem são os agentes históricos da mudança no momento atual não é apenas deficiente politicamente, mas também cúmplice da ascensão dos movimentos autoritários de direita. À medida que as conexões entre democracia e educação murcham, a esperança torna-se inimiga da agência, e a agência é reduzida a aprender a sobreviver.

Vale notar que o mundo ocidental está sofrendo uma grave crise de agência, em parte provocada por uma crise de formação cívica, da educação e da mão pesada da elite neoliberal que relega milhões a uma ética de pura sobrevivência. À medida que as instituições cívicas entram em colapso sob o peso ideológico e econômico do neoliberalismo global, uma mistura única de política fascista com seu hiper-nacionalismo, pureza racial, extremismo religioso e fundamentalismo de mercado opera no que parece ser um ecossistema ideológico de ignorância, de poder e de alegado bom senso, para não mencionar o fascínio do ódio, do fanatismo e da violência.

Ao analisar o papel da área da educação para a superação da hegemonia capitalista, Mészáros (2008) afirma que o preceito ideal e o papel da práxis educativa no curso da transformação socialista consistem em sua intervenção efetiva continuada no processo social em andamento por meio da atividade de indivíduos sociais, conscientes dos desafios que têm de confrontar, o que é inconcebível sem o desenvolvimento de uma consciência moral. Para o autor, a moralidade da educação socialista preocupa-se com a mudança social de longo alcance racionalmente concebida e recomendada. Seus preceitos articulam-se com base na avaliação concreta das tarefas escolhidas e da parte exigida pelos indivíduos em sua determinação consciente de realizá-las.

É desse modo que a práxis política radical pode ser definida como o desenvolvimento contínuo da consciência socialista, que não se separa e que interage contiguamente com a transformação histórica geral da sociedade. Em virtude do papel seminal da educação na mudança geral da sociedade, é impossível alcançar os objetivos vitais de um desenvolvimento histórico sustentável sem a contribuição permanente da educação crítica ao processo de transformação social que se deseja implementar. É necessário, portanto, fazer a crítica à falsa consciência, agigantada em uma variedade de formas sob o domínio do metabolismo social pelo capital. Um metabolismo dominado pela inversão mistificadora das relações reais sob o fetiche usurpador da hegemonia do capital produtivo que personifica as coisas e coisifica as pessoas. O poder da falsa consciência não pode ser superado pela educação individual de forma isolada, mas pela análise concreta da práxis educativa de toda a sociedade em seu esforço por revelar as relações produtivas reais e a história de seu desenvolvimento naquela sociedade concreta.

O fascismo não é simplesmente uma relíquia histórica. Como afirma Giroux (2018, 2019), ele emerge de formas variadas em momentos diferentes da história. No momento, mudou-se para o centro do poder em vários países e sua forma atualizada não é simplesmente fascismo no sentido geral ambíguo do termo, mas fascismo neoliberal, que é uma formação política única que assombra o mundo inteiro. Contra ele é necessária uma nova e poderosa visão da política, que leve a sério a educação, a agência e o poder em seus esforços contínuos para desenvolver uma aliança entre as forças que podem imaginar e lutar por um mundo em que o fascismo neoliberal não exista mais e a promessa de uma democracia socialista se torna mais do que um sonho utópico.

O mundo está passando por grandes espasmos. Recupera-se o passado em nome do autoritarismo e de uma política fascista atualizada. O conflito está ativo e em exibição do Chile à Hong Kong, recuperando uma noção de esperança e de resistência coletiva a serviço da destruição das estruturas e da praga ideológica do capitalismo global. A ameaça ao planeta e à humanidade é tão urgente que não há espaço entre os quais escolher. A maquinaria da morte desencadeada pelos avatares da ganância, da descartabilidade e da exploração usa, o tempo todo, seus horrores como um distintivo de honra, escapando para as redes globais de finanças e de irresponsabilidade social. Entretanto, a resistência agora é global, mobilizada por milhões, e o chamado aqui não é ganhar justiça por meio de eleições falsas, mas encerrar as instituições, culturas e ideologias militarizadas do racismo, exploração e morte por ação direta. Esse é o chamado para uma práxis educativa radical, que seja capaz de reinventar as teorias da resistência e da agência, propondo soluções inovadoras para os problemas contemporâneos.

Quando milhares de pessoas saem às ruas, o estado punitivo perde a única arma que resta, a pura repressão. Não se pode aprisionar e matar milhões. Precisamos de uma política que informe as massas e paralise a elite dominante. Enfrentamos uma crise não apenas da política, mas também da memória, da história e da agência. De acordo com Freire (2011):

A sem-vergonhice que vem tomando conta do país, o desrespeito à coisa pública, a impunidade se aprofundaram e se generalizaram tanto que a nação começou a se pôr de pé, a protestar. Os jovens também veem às ruas, criticam, exigem seriedade e transparência. O povo grita contra os testemunhos da desfaçatez. As praças públicas de novo se enchem. Há uma esperança, não importa que nem sempre audaz, nas esquinas das ruas, no corpo de cada uma e de cada um de nós. É como se a maioria da nação fosse tomada por incontida necessidade de vomitar em face de tamanha desvergonha. (FREIRE, 2011, p. 14).

Sem esperança, não há possibilidade de resistência, de dissidência e de luta. A agência é a condição da luta, e a esperança é a condição da agência. A esperança expande o espaço do possível e torna-se uma maneira de reconhecer e nomear a natureza incompleta do presente. Para concluirmos, concordamos com Freire (2011) quando afirma que a desesperança nos imobiliza e nos faz sucumbir no fatalismo em que não seria possível juntar forças para o embate recriador do mundo, a desesperança tenta destruir a possibilidade do inédito-viável. A esperança não é pura teimosia, mas um imperativo existencial e histórico. A esperança é um ato político. Prescindir da esperança que se funda na verdade, como qualidade ética da luta, é negar a própria possibilidade de transformação social. O essencial é que a educação se fundamente na esperança como necessidade ontológica do Ser Humano, sempre ancorada na prática, para que, como práxis radical, possa transformar a realidade social e tornar-se uma nova concretude histórica.

Agradecimentos

Agradecemos às instituições que apoiaram esta investigação e tornaram possível a publicação deste ensaio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nivel Superior (CAPES/PRINT), Instituto NUTES de Educação em Ciências e Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro e o Departamento de Estudos Culturais da McMaster University/Canadá.

1 Adotamos o conceito de agência social no sentido sociológico do termo em relação ao conceito de estrutura. Agência como capacidade coletiva de organização da sociedade para o enfrentamento político necessário à reconfiguração da estrutura social. No caso, falamos de uma capacidade de agência que mobilize as forças de resistência para a superação das estruturas econômicas de dominação impostas pelo capitalismo mas também a superação da hegemonia neoliberal no âmbito dos valores, das necessidades sociais e da organização da cultura.

2 Amarildo de Souza (líder comunitário, negro, favela da Rocinha), Marielle Franco (vereadora, negra, favela da Maré), Guajajara (líder indígena) e outras dezenas de líderes populares que têm sido assassinados pela violência política no Brasil.

3 Para compreender melhor as massivas manifestações que deram início à revolução chilena em outubro de 2019, recomendamos o documentário Piñera: a guerra contra o Chile, dirigido por Carlos Pronzato. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=YRhsoZsNJ74>. Acesso em: 29 abr. 2020.

4 No original em inglês: “Desimagination Machine”.

5 Da canção Minha Alma, do grupo O Rappa.

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Recebido: 31 de Dezembro de 2019; Revisado: 21 de Abril de 2020; Aceito: 24 de Abril de 2020; Publicado: 03 de Maio de 2020

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