SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.15Hacer experiencia por la maestra de los años iniciales de la Enseñanza Básica en el contexto de las actuales políticas educativasEscuela sin Partido, neoliberalismo y conservatismo: seguimiento de puntos de intersección índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Práxis Educativa

versión impresa ISSN 1809-4031versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.15  Ponta Grossa  2020  Epub 10-Mayo-2021

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.15299.100 

Artigos

A Educação do Campo frente à Base Nacional Comum Curricular

The Field Education facing the Common Curricular National Basis

La Educación del Campo delante la Base Nacional Comun Curricular

Alex Verdério* 
http://orcid.org/0000-0002-0492-6543

Adriana Junkerfeuerborn de Barros** 
http://orcid.org/0000-0002-0208-8478

*Licenciado em Pedagogia para Educadores do Campo e Mestre em Educação (Universidade Estadual do Oeste do Paraná). Especialista em Trabalho, Educação e Movimentos Sociais (Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio). Doutor em Educação (Universidade Federal do Paraná. Docente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, no Centro de Formação de Professores, em Amargosa - BA. Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Educação do Campo, Agroecologia e Movimentos Sociais. E-mail: <alexverderio@outlook.com>.

**Licenciada em Pedagogia (Universidade Estadual do Centro-Oeste). Especialista em Educação Especial e Educação Inclusiva (Centro Universitário Internacional). Especialista em Neuropsicologia (Instituto Superior de Educação da América Latina). Especialista em Educação do Campo (Universidade Estadual do Oeste do Paraná). Especialista em Realidade Brasileira (Universidade Federal da Fronteira Sul). E-mail: <junkerfeuerbornadriana@hotmail.com>.


Resumo

Explora alguns contrapontos entre a proposta de Educação do Campo e a Base Nacional Comum Curricular. Faz uma análise panorâmica do Plano de Estudo das Escolas Itinerantes e das Diretrizes Curriculares da Educação do Campo no Paraná que, como conquistas dos trabalhadores do campo no âmbito das políticas educacionais, orientam a efetivação das práticas pedagógicas nas escolas do campo. No contraponto desse processo, a Base Nacional, traduzida no Referencial Curricular do Paraná, evidencia seu caráter classista e mercadológico, quando considerados os vínculos de seus autores com entidades da classe dominante brasileira. Sua proposta prioriza as avaliações censitárias, reforçando algumas disciplinas em detrimento de outras, secundarizando, quando não descartando as especificidades, a diversidade e o amplo acesso ao conhecimento, elementos que fundamentam a proposição da Educação do Campo.

Palavras-chave: Educação do Campo; Diretrizes Curriculares; Base Nacional Comum Curricular

Abstract

It explores some counterpoints between the Field Education and the Common Curricular National Basis proposal. It makes an overview analysis of the Itinerant Schools Study Plan and the Curricular Guidelines of the Paraná Field Education that, as field workers achievements in the scope of educational policies, guide the realization of the pedagogical practices in the field schools. In this process counterbalance, the National Basis, translated in the Paraná Curricular Referential, points out its class-based and market character, when considered the bonds of its authors with the dominant Brazilian class entities. Its proposal prioritizes the census assessments, reinforcing some subjects in detriment of others, attaching far less importance and discarding the specificities, the diversity and the wide access to knowledge, elements that underlie the Field Education proposition.

Keywords: Field Education; Curricular Guidelines; Common Curricular National Basis

Resumen

Explora algunos contrapuntos entre la propuesta de Educación del Campo y la Base Nacional Comun Curricular. Hace un análisis panorámico del Plan de Estudio de las Escuelas Itinerantes y las Diretrizes Curriculares para la Educação del Campo en Paraná, que, como logros de los trabajadores campesinos en el ámbito de las políticas educacionales, guían la implementación de prácticas pedagógicas en las escuelas del campo. En contrapunto a este proceso, la Base Nacional, traducida al Referencial Curricular del Paraná, revela su carácter clasista y mercadológico, al considerar los vínculos de sus autores con entidades de la clase dominante brasileña. Su propuesta prioriza las evaluacionses censadoras, reforzando algunas disciplinas en perjuicio de otras, secundarizando, o hasta descartando las especificidades, la diverdidad y el amplo acseso al conocimeinto, elementos que son fundamentales a la proposición de la Educación del campo.

Palabras clave: Educación del Campo; Diretrizes Curriculares; Base Nacional Comun Curricular

Introdução

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), proposta inicialmente em 2015 e com sua versão para o Ensino Médio homologada em dezembro de 2018, de maneira geral, tem gerado grandes inquietações entre professores, estudantes, gestores e pais. No que se refere aos professores e gestores, sua promulgação ora tem imposto a necessidade de estudo e apropriação das mudanças determinadas, ora tem provocado a mobilização e a contrariedade acerca do processo de sua formulação e implementação, sobretudo no que tange ao cotidiano escolar, considerando o caráter eminentemente conservador de sua proposição e elaboração final.

Nesse quadro, considerando a conquista e consolidação da política pública de Educação do Campo efetivada no Brasil nas duas últimas décadas, coloca-se como possibilidade problematizar e refletir sobre a nova BNCC a partir do processo vivenciado na luta por uma Educação do Campo. Desse modo, buscou-se o delineamento de algumas questões evidenciadas na BNCC a partir do arcabouço propositivo produzido no campo educacional nas últimas décadas. Para tanto, foi realizada uma análise panorâmica da proposta educacional do MST em sua relação com as Diretrizes Curriculares da Educação do Campo no Paraná observando alguns dos pontos e contrapontos existentes entre essa construção histórica da política educacional da Educação do Campo e a BNCC, sobretudo no que se refere às perspectivas de classe presentes nas proposições e seus desdobramentos na educação da classe trabalhadora.

A pesquisa teve caráter estritamente bibliográfico, tendo como referências empíricas o Plano de Estudos das Escolas Itinerantes no Paraná (MST, 2013), as Diretrizes Curriculares da Educação do Campo no Paraná (PARANÁ, 2006) e o processo de proposição e implementação da BNCC para o Ensino Médio (BRASIL, 2018), sobretudo considerando o estudo de D’Ávila (2018) e sua realização inicial no Estado do Paraná.

O Plano de Estudo das Escolas Itinerantes no Paraná é o resultado da produção coletiva vinculada à proposta educativa e à escola forjada na luta pela terra e expressa uma síntese parcial do que propõe o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no âmbito educacional, em especial sobre a escola do campo. Essa elaboração, junto às Diretrizes Curriculares produzidas no Paraná - consideradas as aproximações e os distanciamentos entre si -, expressam elementos do processo de construção da Educação do Campo e têm como elemento comum a constituição de um elo entre o conteúdo científico sistematizado, a atividade pedagógica escolar e a realidade vivenciada pelos povos trabalhadores do campo. No contraponto encontra-se a BNCC, resultado de um processo complexo e que representa um projeto hegemônico de sociedade, com uma objetiva e determinada proposição formativa.

A Educação do Campo e a escola no Plano de Estudos das Escolas Itinerantes

A Educação do Campo, de acordo com Verdério (2018), tem sua gênese na mobilização dos movimentos sociais e tem produzido importantes ações na reivindicação por políticas públicas educacionais que atendam aos camponeses. Dentro do amplo processo vivenciado nas duas últimas décadas no Brasil, a luta por uma Educação do Campo tem entre seus elementos sustentadores a luta do MST pela implantação de escolas públicas nas áreas de reforma agrária e agrega lutas de resistência de outras organizações e movimentos sociais populares. Coloca-se contra o fechamento das escolas do campo e na perspectiva de assegurar o direito à educação escolar nas comunidades camponesas, considerando seu território, sua identidade e suas perspectivas educacionais (CALDART, 2011).

A Educação do Campo posiciona-se contra a lógica capitalista, na qual o campo é concebido como lugar unicamente de negócio a serviço do capital. Na contramão desse processo afirma o camponês como quem produz os alimentos necessários para a existência humana e compreende o campo como espaço de vida e de relações. Ela se contrapõe ao agronegócio e à afirmação de que o trabalhador do campo não necessita de estudos para viver e trabalhar. Seu projeto educacional é pautado na crítica à educação pensada para o camponês, expressa no conceito e nas práticas da Educação Rural (LEITE, 2002). Nessa compreensão insere-se a síntese de Caldart (2008), a qual a identifica que

O conceito de Educação do Campo como parte da construção de um paradigma teórico e político não é fixo, fechado, também não pode ser aleatório, arbitrário: qualquer um inventado por alguém, por um grupo, por alguma instituição, por um governo, por um movimento ou organização social. Pelo nosso referencial teórico, o conceito de Educação do Campo tem raiz na sua materialidade de origem e no movimento histórico da realidade a que se refere. Essa é a base concreta para discutirmos o que é ou não é a Educação do Campo. Educação do Campo é um conceito em movimento como todos os conceitos, mas ainda mais porque busca apreender um fenômeno em fase de constituição histórica; por sua vez, a discussão conceitual também participa deste movimento da realidade. Trata-se, na expressão do Professor Bernardo Mançano, de uma disputa de “território imaterial”, que pode em alguns momentos se tornar força material na luta política por territórios muito concretos, como o destino de uma comunidade camponesa, por exemplo (CALDART, 2008, p. 69-70).

Essa materialidade de origem tem na luta um elemento central para a promoção e reivindicação de uma educação pensada pelos próprios povos trabalhadores do campo, no local em que vivem, orientada para uma ação pedagógica voltada à sua realidade, para melhoria de suas condições de vida e não de exploração de seu trabalho. Nesse aspecto, destaca-se a identidade desse sujeito, sendo que de acordo com o próprio marco legal da Educação do Campo no âmbito da política educacional, os povos trabalhadores do campo constituem-se em suas mais variadas formas de produção da vida e são:

[...] os agricultores familiares, os extrativistas, os pescadores artesanais, os ribeirinhos, os assentados e acampados da reforma agrária, os trabalhadores assalariados rurais, os quilombolas, os caiçaras, os povos da floresta, os caboclos e outros que produzam suas condições materiais de existência a partir do trabalho no meio rural. (BRASIL, 2010, p. 1).

Em tempos de austeridade, desqualificação infame do pensamento crítico, fechamento de escolas e ampliação do conservadorismo no âmbito educacional, a Educação do Campo proposta pelos movimentos sociais (CALDART, 2008) tem sido alvo, pois busca uma leitura crítica de mundo, de sociedade, de inclusão social, articulada com a luta por uma nova sociedade.

Nesse contexto, é importante considerar o movimento conservador e excludente reafirmado por parcelas da sociedade brasileira, sobretudo a partir de 2013 e que impulsionou o Golpe Jurídico-Parlamentar-Midiático de 2016 que culminou no impedimento da presidente democraticamente eleita. A partir desse novo contexto conservador e excludente instaurado na sociedade brasileira, foi instituída a Emenda Constitucional nº. 95/2016, que estabeleceu um novo regime fiscal, com a afirmação de um “teto” de gastos que limita de maneira severa a possibilidade de investimentos sociais. Em 2018, o ápice desse processo conservador presente na sociedade brasileira tem como sua expressão mais concreta o resultado das eleições presidenciais. Essa ampliação da capacidade mobilizadora das forças conservadoras, de acordo com Leher (2020), tem sustentado o governo eleito em 2018 e o projeto ultraneoliberal e fundamentalista que ele representa.

Nesse quadro, a posição sustentadora da luta por uma Educação do Campo e constantemente reafirmada na luta dos trabalhadores causa desconforto à classe dominante que, de maneira contínua, busca implementar medidas para reprimir o povo, dificultando o desenvolvimento autônomo dos sujeitos e garantindo assim suas várias formas de dominação, o que reflete o notório avanço de proposições conservadoras no contexto educacional.

De acordo com Caldart (2008) a Educação do Campo, como proposta pelos movimentos sociais, coloca-se como negatividade, positividade e superação.

[...] negatividade - denúncia / resistência, luta contra - Basta! de considerar natural que os sujeitos trabalhadores do campo sejam tratados como inferiores, atrasados, pessoas de segunda categoria; que a situação de miséria seja seu destino, que no campo não tenha escola, que seja preciso sair do campo para frequentar uma escola; que o acesso à educação se restrinja à escola, que o conhecimento produzido pelos camponeses seja desprezado como ignorância...

[…] positividade - a denúncia não é espera passiva, mas combina com práticas e propostas concretas do que fazer, do como fazer: a educação, as políticas públicas, a produção, a organização comunitária, a escola...

[...] superação - projeto / utopia: projeção de uma outra concepção de campo, de sociedade, de relação campo e cidade, de educação, de escola. Perspectiva de transformação social e de emancipação humana (CALDART, 2008, p. 75, grifos da autora).

Assim, a Educação do Campo contrapõe-se à forma pela qual os sujeitos da classe trabalhadora são tratados na sociedade capitalista, como inferiores, atrasados, ignorantes. Sendo que as denúncias não ficam apenas no ato de denunciar, estão articuladas à efetivação de práticas e propostas concretas, na educação, na comunidade, nas políticas públicas, avançando também no âmbito da superação, vinculando-se a processos transformadores. Com essa compreensão figura-se a luta por uma Educação do Campo, forjada na

[...] articulação de diversos sujeitos comprometidos com a educação dos povos trabalhadores do campo no Brasil, tendo como elemento central os sujeitos a que se refere como protagonistas na proposição e na realização de uma educação que atenda seus interesses e, estando conectada a processos educacionais contra-hegemônicos, se coloca na perspectiva da transformação social e da emancipação humana. [...] a luta por uma Educação do Campo parte da própria diversidade dos sujeitos trabalhadores do campo no Brasil e das práticas e perspectivas educativas forjadas nas lutas sociais de tais sujeitos. A luta por uma Educação do Campo se faz diversa na unidade de classe. Não é homogênea e nem uniforme, mas possui uma materialidade de origem que a identifica e lhe confere unidade (VERDÉRIO, 2018, p. 66-67).

Desse modo, a escola proposta e delineada na luta por uma Educação do Campo se coloca numa relação de oposição às concepções de educação hegemônicas, bem como ao projeto de educação imposto aos trabalhadores pelo sistema capitalista. E ao mesmo tempo, propõe-se o desenvolvimento de uma educação contra-hegemônica, ou seja, realizar um projeto de educação integrado a um projeto político de transformação social forjado pela classe trabalhadora (MOLINA, 2012). A materialidade desse processo de enfrentamento é encontrada no trabalho desenvolvido no diálogo com as contradições vividas pelos sujeitos. Nesse contexto, de acordo com Santos,

As escolas do campo demandada pelos movimentos vai além da escola das primeiras letras, da escola da palavra, da escola dos livros didáticos. É um projeto de escola que se articula com os projetos sociais e econômicos do campo, que cria uma conexão direta entre formação e produção, entre educação e compromisso político. Uma escola que, em seus processos de ensino e de aprendizagem, considera o universo cultural e as formas próprias de aprendizagem dos povos do campo [...] (SANTOS, 2012, p. 73).

Assim, a Educação do Campo em seus processos educativos busca orientar a prática escolar a partir de princípios formativos que a aproximam da vida em comunidade e que promovam o trabalho pedagógico escolar, na perspectiva de uma formação integral dos sujeitos, conectada à transformação do mundo e à autotransformação humana (MOLINA, 2012).

Como dito, o MST é um dos movimentos sociais que têm impulsionado a luta por uma Educação do Campo no Brasil. No que se refere à escola e à educação de maneira geral, o MST propõe a retomada de algumas matrizes formativas fundamentais da vida humana, são elas: trabalho, luta social, cultura, história e organização coletiva (MST, 2013). A apreensão dessas matrizes formativas na proposta educativa do MST produz uma concepção de educação orientada para a formação humana, compreendendo-a como resultado das relações sociais. “Por isso, não há como discutir um projeto educativo sem incluir a dimensão das relações sociais em que educandos e educadores se inserem para que aconteça a prática educativa” (MST, 2013, p. 12). Nessa perspectiva, a formação dos sujeitos se dá na inserção na natureza, pela cultura e na sociedade. E é por meio do trabalho que os homens e as mulheres garantem a reprodução da vida, caracterizando assim a vida humana. O trabalho produz cultura, auto-organização da classe trabalhadora e a luta pelo seu direito ao trabalho e pela superação das condições de exploração. Assim, o trabalho constitui-se como matriz pedagógica, princípio educativo por excelência e é considerado como elemento potencial para o desenvolvimento das diversas dimensões do ser humano (MST, 2013).

De acordo com Caldart (2011), atualmente no campo e na sociedade em geral, prevalece uma educação conformadora, que leva à destruição do próprio trabalhador, em todos os aspectos: de classe, de grupo social, de cultura, de humanidade. Resistindo a essa lógica, no estado do Paraná, a partir de sua atuação com as Escolas Itinerantes, o MST tem produzido uma importante experiência que é sustentada e é sustentadora da luta por uma Educação do Campo (VERDÉRIO, 2018). De acordo com Bahniuk e Camini (2012), Escola Itinerante,

é a denominação dada às escolas localizadas em acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), movimento social que parte da reivindicação pelo acesso à terra, articulando-a ao projeto de transformação social. Denominam-se itinerantes porque acompanham a luta pela Reforma Agrária, assegurando a escolarização dos trabalhadores do campo (BAHNIUK; CAMINI, 2012, p. 331).

Nesse contexto, como resultado da proposta educativa e da escola do campo forjada na luta pela terra, foi sistematizado o Plano de Estudo das Escolas Itinerantes (MST, 2013). Esse documento é uma produção coletiva de educadores, especialistas em educação, que expressa uma síntese parcial da proposta educativa do MST acerca da escola do campo e compreende um conjunto de orientações que fornece “[...] elementos para definir a amplitude e profundidade dos conteúdos a serem ensinados, os objetivos tanto de caráter formativo como de ensino, as expectativas de desenvolvimento, as indicações das relações que tais conteúdos e objetivos têm com a vida cotidiana dos estudantes [...]” (MST, 2013 p. 09).

No Plano de Estudos, as matrizes formativas que o constituem são assumidas na perspectiva de impulsionar as escolas em sua conexão com a realidade social. A vida necessita estar vinculada à escola. Essa vinculação coloca-se como eixo estruturante do trabalho pedagógico realizado, sendo ele articulado a partir das matrizes formativas assumidas. Assim, cada uma das matrizes formativas constituintes da proposta educativa do MST vincula-se a estratégias para o desenvolvimento dos estudantes a partir de sua inserção na realidade social.

Na matriz do trabalho a direção está na relação entre teoria e prática como sustentadora da ação educativa escolar. Assim, projeta-se a inserção dos estudantes nas diversas formas de trabalho, por meio do trabalho socialmente necessário (PISTRAK, 2009), considerando a faixa etária e as condições objetivas da escola. Com essa compreensão e tendo em conta a potencialidade formadora específica da relação com a terra, a matriz do trabalho sugere a necessidade de “[...] garantir que nossos estudantes tenham, já nos anos finais do ensino fundamental, alguma experiência de trabalho agrícola (na escola ou fora dela), visando inclusive potencializar o estudo e a relação de apropriação social e não exploradora da natureza” (MST, 2013, p. 16).

Na matriz formativa da luta social a escola pode contribuir na construção de visão de mundo dos estudantes, mostrando que o ser humano também se forma nas atitudes de inconformismo, não apenas na conformação social, como nos é imposto pela sociedade capitalista. Essa matriz sugere estudos científicos a partir das lutas sociais dos trabalhadores, bem como a participação ativa dos estudantes em ações sociais. Isso implica considerar como aprendizados pertinentes ao trabalho pedagógico escolar a postura cotidiana de

[...] pressionar as circunstâncias para que sejam diferentes do que são [...]; projetar o futuro (dimensão de projeto, de utopia); construir parâmetros coletivos que orientem cada ação na direção do projeto; desenvolver o sentimento de indignação diante das injustiças [...]; capacitar-se para tomada de posição e de decisões, para fazer análise da realidade, para querer construir e para agir de forma organizada [...] (MST, 2013, p. 17).

Outra matriz formativa é a organização coletiva, a qual propõe a participação dos estudantes e da comunidade na construção da vida escolar de forma democrática, construindo assim uma unidade.

A participação em uma organização coletiva cria traços fundamentais no perfil de ser humano que precisamos formar na atualidade: lutadores e construtores; pessoas que saibam o que precisa ser construído, saibam lutar pela construção e consigam identificar os melhores caminhos para que a construção seja feita. E isso pode ser pensado no plano mais amplo da sociedade e no plano da vida das pessoas, de uma comunidade. Quem participa de uma organização, seja simples ou complexa, vai cultivando um modo de vida coletivo e aprende hábitos e habilidades que lhe permitem trabalhar coletivamente e agir organizadamente no cumprimento de suas tarefas (MST, 2013, p. 17).

Na matriz da organização coletiva, a auto-organização dos estudantes toma concretude na própria inserção destes na escola e também por meio do envolvimento nas atividades vinculadas ao MST, ou em outras organizações sociais, qualificando assim sua prática social por meio do trabalho e da atuação política. Assim sendo, a organização coletiva necessita ser objeto de estudo científico da escola.

Outro elemento importante e que se constitui em uma matriz formativa é a cultura que

[...] deve ser entendida como experiência humana de participação em processos de trabalho, de luta, de organização coletiva que se traduz em um modo de vida ou em um jeito de ser humano (grupos, pessoas) que produz e reproduz conhecimentos, visão de mundo e que passa a ser herança compartilhada de valores, objetos, ciências, artes, tecnologias. [...] Não há como educar as pessoas sem considerar o peso formador da cultura em suas diferentes manifestações. E em nossa realidade atual a intencionalidade pedagógica com essa matriz deverá incluir o cultivo em nossos estudantes da identidade de trabalhadores, constituída desde sua especificidade mais próxima: somos Sem Terra, somos trabalhadores camponeses (MST, 2013, p. 18, destaques do autor).

De acordo com o Plano de Estudos (MST, 2013), na proposta educativa do MST, a matriz formativa da cultura coloca-se como possibilidade concreta de crítica à cultura hegemônica capitalista, como domínio sobre as classes sociais. É importante compreender e conhecer os traços da identidade camponesa, como se faz a agricultura, suas tradições culturais e suas relações sociais, buscando aproximá-las e problematizá-las a partir do conteúdo científico na escola. Isso passa por instigar a participação dos estudantes em produções artísticas diversas. Para tanto, o Plano de Estudo (MST, 2013) sugere a participação em atividades, como concursos de redação, desenhos, festivais de arte etc.

A história, tida como outra matriz formativa na proposta educativa do MST,

[...] se faz projetando o futuro a partir das lições do passado cultivadas no presente. E não há como ser e se manter como um lutador do povo sem uma perspectiva histórica. Precisamos intencionalizar na escola: o enraizamento dos sujeitos (pessoas e coletivos) no movimento entre raiz e projeto, vínculo entre passado, presente e futuro, incluindo conforme as capacidades de cada idade a discussão/clareza de projeto de vida humana, de sociedade; a compreensão do que são e qual o papel das contradições no desenvolvimento histórico, seja das sociedades seja de cada ser humano (MST, 2013, p. 19).

Ao destacar alguns elementos constituintes das matrizes formativas na proposta de educação do MST em sua conexão com a Educação do Campo, verifica-se a recuperação e afirmação do vínculo essencial da formação humana e da produção material da existência (CALDART, 2011), aproximando o conhecimento científico sistematizado à realidade vivenciada pelos povos trabalhadores do campo, compreendendo-os como protagonistas desse processo.

A proposta educativa do MST, delineada no Plano de Estudo da Escola Itinerante (MST, 2013), coloca-se no sentido de instigar a visão crítica da realidade e levar o estudante a refletir sobre as contradições existentes e a protagonizar a sua transformação. No trabalho pedagógico escolar, essa proposta organiza informações concretas, a partir do levantamento das informações que serão trabalhadas na escola, o que é denominado nesse contexto de Inventário da Realidade (CALDART et al., 2016, p. 45-70). A comunidade escolar se faz presente e participa dessa produção e organização de informações que subsidiarão o fazer pedagógico escolar. Dessa forma, a escola do campo passa a ter o planejamento de suas atividades com os conteúdos curriculares estruturados a partir dos dados produzidos e organizados pelos educadores em colaboração com a comunidade e estudantes.

As Diretrizes Curriculares da Educação do Campo no Paraná

As Diretrizes Curriculares da Educação do Campo no Paraná (PARANÁ, 2006) são um marco nas políticas públicas educacionais e como conquista dos povos trabalhadores na luta pelo seu direito à educação estão colocadas como orientações para o planejamento curricular e para a efetivação do trabalho pedagógico nas escolas pertencentes às comunidades camponesas.

As Diretrizes Curriculares, dentre outras ações, alavancam a Educação do Campo como uma política educacional que, no estado do Paraná, teve o início de sua institucionalização no ano de 2003. A elaboração das Diretrizes, além de considerar elementos favoráveis da conjuntura política nacional e estadual, teve como referência primeira as lutas dos povos trabalhadores do campo, que conquistaram ressonância no Governo Roberto Requião 2002 - 2010, sobretudo a partir da atuação da Articulação Paranaense por uma Educação do Campo (VERDÉRIO, 2018).

Assim, nas Diretrizes, a Educação do Campo é reconhecida como uma dívida histórica aos povos trabalhadores do campo que tiveram seu direito à educação negado. Tais sujeitos foram marginalizados pelas políticas educacionais que ignoraram a diversidade sociocultural que lhes é própria. Na contramão desse processo, o documento destaca esses sujeitos como reivindicantes do direito a uma educação pensada no e desde o espaço em que vivem, vinculada a sua cultura e às necessidades sociais e humanas pertinentes a sua formação, tendo em conta, ainda, a sua participação ativa nas tomadas de decisões.

Ao abordar a formação dos sujeitos, as Diretrizes da Educação do Campo (PARANÁ, 2006) destacam a formação integral, afirmando o acesso a todos os níveis e modalidades de ensino. A distinção entre o rural e o campo é afirmada de maneira inequívoca, pois considera que o primeiro - o rural - foi historicamente marcado como lugar de atraso, onde os camponeses necessitavam de assistência e proteção, geridas por uma lógica econômica e social de subordinação. Já o segundo - o campo - refere-se à visão mais atual, marcado pela luta dos movimentos sociais, tendo-o como lugar de vida, de trabalho, cultura, de produção de conhecimento, contrapondo-se assim a uma perspectiva eminentemente mercadológica, sustentadora da existência do agronegócio (LEITE; MEDEIROS, 2012). Verificam-se, assim, lógicas e projetos profundamente antagônicos que produzem concepções e práticas educativas não compatíveis entre si.

Nas Diretrizes (PARANÁ, 2006), o ser humano é caracterizado como sujeito da história, considerando o camponês em suas peculiaridades e potencialidades formativas. E a escola do campo é destacada como local de apropriação de conhecimento científico, e de produção de conhecimentos a partir da relação que se dá entre a ciência e a vida.

O documento em destaque está organizado a partir dos eixos temáticos: Trabalho: Divisão Social e Territorial; Cultura e Identidade; Interdependência Campo-Cidade, Questão Agrária e Desenvolvimento Sustentável; Organização Política, Movimentos Sociais e Cidadania (PARANÁ, 2006). Os referidos eixos são apresentados como alternativas metodológicas e propõem a ligação com a realidade dos sujeitos.

O Trabalho, como um dos eixos das Diretrizes, é apresentado a partir da análise sobre as diversas atividades humanas, voltando-se para as atividades desenvolvidas pelos povos trabalhadores do campo e identifica que nesse contexto “[...] há uma lógica de divisão social do trabalho que é cultural, podendo estar centralizada na organização da família, ou nas particularidades de cada atividade produtiva” (PARANÁ, 2006, p. 31).

No desdobramento de cada um dos eixos temáticos que sustentam as Diretrizes, são propostas possibilidades com foco nas atividades desenvolvidas pela escola, associando o conteúdo estudado à realidade. No caso do eixo Trabalho, “[...] a própria lógica da divisão do trabalho na escola pode ser explorada com as crianças. A formação do professor e a sua disposição para problematizar os aspectos da vida cotidiana são essenciais [...]” (PARANÁ, 2006, p. 31). Pode-se, ainda, fazer uma reflexão global das relações produtivas, ampliando assim o conhecimento de mundo dos sujeitos envolvidos no processo educativo. Nesse aspecto, as Diretrizes propõem a reflexão sobre as relações sociais produtivas, o que passa por compreender “[...] o lugar que cada país ocupa no âmbito econômico, político e social no planeta. Trabalho é um conceito que guarda relação com a classe social. Trabalhador é aquele que vende sua força de trabalho e dono do meio de produção é aquele que detém o capital” (PARANÁ, 2006, p. 31-32).

No eixo Cultura e Identidade, as Diretrizes Curriculares (PARANÁ, 2006) destacam o conceito amplo de cultura, o que não pode estar sintetizado apenas nas manifestações artísticas, mas necessita ser compreendida em sua amplitude, nos modos de vida, nos costumes, nas relações de trabalho, nas festas etc. Comumente verifica-se a negação da cultura camponesa, levando a descaracterização desses sujeitos, ou mesmo ridicularização de sua existência. Ao valorizar a cultura camponesa, na constituição histórica da formação dos sujeitos, produz-se um sentimento de pertença ao lugar e grupo social, criando assim uma identidade sociocultural. Nesse quadro, na Educação do Campo, os aspectos da realidade constituem apenas o ponto de partida, sendo que o ponto de chegada, por sua vez, “[...] depende da inserção de conteúdos devidamente selecionados, que junto a seleção de outros materiais, sejam livros, jornais, documentários etc., possam auxiliar os alunos no exercício na reflexão e produção de conhecimentos (PARANÁ, 2006, p. 33). Assim, o ponto de chegada passa pela compreensão da diversidade social, étnica, racial e sexual que compõe a sociedade brasileira e dos aspectos culturais diversos (PARANÁ, 2006, p. 33).

No eixo Interdependência Campo-Cidade, Questão Agrária e Desenvolvimento Sustentável são abordados pontos importantes para a compreensão da realidade historicamente construída do campo brasileiro, bem como sua importância no desenvolvimento da sociedade. A apreensão desse eixo temático é imprescindível, pois “a partir dele, serão identificados e analisados os tipos de relações culturais, econômicas, políticas e sociais que marcam e demarcam os diversos municípios do Estado” (PARANÁ, 2006, p. 35).

De maneira geral, de acordo com as análises acerca da proposta de educação do MST sintetizada no Plano de Estudo das Escolas Itinerantes (MST, 2013) e das Diretrizes Curriculares da Educação do Campo no Paraná (PARANÁ, 2006), verifica-se que ambas mantêm um diálogo próximo, afirmado, sobretudo, na possibilidade da constituição de um elo entre o conteúdo científico sistematizado, o trabalho pedagógico escolar e a realidade vivida pelos povos trabalhadores do campo. Contudo, verifica-se que as Diretrizes apresentam algumas lacunas quando postas em relação com o Plano de Estudos.

Destaca-se, como exemplo o eixo temático Trabalho das Diretrizes que, dentre as alternativas metodológicas, não apresenta e nem problematiza a questão da exploração do trabalho, da remuneração, das condições de trabalho e dos direitos, esses que são pontos relevantes para a análise da própria configuração do mundo do trabalho (ANTUNES, 2005) e da classe trabalhadora como um todo. Considerando o eixo Trabalho e as proposições contidas nas Diretrizes da Educação do Campo (PARANÁ, 2006), o Plano de Estudo (MST, 2013) apresenta ainda um salto qualitativo ao propor e evidenciar o trabalho socialmente necessário (PISTRAK, 2009) como elemento organizador da atividade educativa e da relação entre teoria e prática na escola. Isso passa por possibilitar aos estudantes o envolvimento em experiências que lhes permitam compreender a atividade produtiva, inserindo-os em alguma atividade desenvolvida na comunidade.

Já no eixo Cultura e Identidade, as Diretrizes não contemplam a questão da identidade do trabalhador camponês, aborda a identidade da pessoa enquanto cidadão, e não como classe trabalhadora. Em contrapartida, essa é uma abordagem importante no Plano de Estudo (MST, 2013), ou seja, nesse último coloca-se como fundamental que os trabalhadores do campo tenham condições de identificar-se como classe trabalhadora que vive e produz sua existência no campo.

O eixo Interdependência Campo e Cidade, Questão Agrária e Desenvolvimento Sustentável das Diretrizes, quando colocado em relação com o expresso no Plano de Estudo (MST, 2013), poderia ir além da análise quantitativa da produção e explorar a questão do êxodo rural, aprofundando a análise científica no trabalho pedagógico escolar sobre o esvaziamento do campo e o aumento da população nas cidades.

Por fim, no eixo Organização Política, Movimentos Sociais e Cidadania, as Diretrizes instigam o educador a trabalhar o resgate e a consolidação dos direitos civis, políticos e sociais no país problematizando uma concepção de cidadania outorgada em favor de uma cidadania conquistada. Contudo, o debate acerca da instituição de direitos e da própria cidadania pode tornar-se pouco fecundo se não analisado desde a perspectiva de classe social, visto que, como já refletido anteriormente, a educação não pode ser tomada como uma ação neutra, mas no contexto do capitalismo, coloca-se como produto de uma sociedade cindida em classes sociais antagônicas.

Mesmo verificando os distanciamentos entre as Diretrizes da Educação do Campo (PARANÁ, 2006) e o Plano de Estudo das Escolas Itinerantes (MST, 2013), ressalta-se a compreensão de um diálogo consistente entre ambas as proposições. De toda forma, registra-se que tais distanciamentos estão assentados na própria relação contraditória entre o Estado e o movimento social de contestação, como é o caso do MST. Se por um lado o Estado, a partir da tensão e da organização dos povos trabalhadores, assume a institucionalização da política pública de Educação do Campo, o movimento social, por sua vez, coloca-se no contraponto à sociedade capitalista e assume de maneira intencional e objetiva uma educação de perspectiva contra-hegemônica.

A Base Nacional Comum Curricular

A BNCC, prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 e no Plano Nacional de Educação de 2014, foi aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) por meio do parecer nº 15/2017 e homologada pela portaria do Ministério da Educação (MEC) nº 1.570, de 20 de dezembro de 2017 (BRASIL, 2017). Logo na sequência, em 22 de dezembro de 2017 foi publicada a resolução CNE/CP Nº 2, de instituição e orientação sobre a implementação da BNCC. Já em 14 de dezembro de 2018, o documento da BNCC para a etapa do Ensino Médio foi homologado pelo Ministério da Educação.

No preâmbulo de apresentação da terceira e última versão da BNCC, disposta ao CNE em abril de 2018, o MEC registrou que a proposta apresentada coloca-se como “[...] resultado de fruto de amplo processo de debate e negociação com diferentes atores do campo educacional e com a sociedade brasileira [...]” (BRASIL, 2018, p. 5). Contudo, essa afirmação é discutível, dado o processo e a incidência hegemônica de atores específicos nessa formulação.

De acordo com o histórico da BNCC apresentado pelo MEC (BRASIL, 2020), a primeira versão da proposta foi disponibilizada para consulta pública, no período de setembro de 2015 a março de 2016 e a partir de pareceres analíticos de especialistas, de contribuições individuais e de associações científicas, foi sistematizada a segunda versão do documento (BRASIL, 2016). Essa segunda versão foi publicada em maio de 2016, passou por um processo de debate institucional em Seminários organizados pelas Secretarias Estaduais de Educação e coordenados pelo Conselho Nacional de Secretarias de Educação (Consed) e pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). Os Seminários ocorreram no período de 23 de junho a 10 de agosto de 2016, com a participação de gestores, educadores e especialistas, o que culminou na elaboração da segunda versão do documento. Essa segunda versão passou por análise de especialistas e, juntamente com os pareceres do Consed e Undime, foi encaminhada ao Comitê Gestor da Base Nacional Curricular Comum e Reforma do Ensino Médio, responsável pelas definições e diretrizes que orientaram a revisão da segunda versão, passando assim a uma terceira versão (BRASIL, 2018) a qual foi aprovada para a implementação.

A BNCC para a etapa do Ensino Médio, homologada em 2018, constitui-se como uma política curricular destinada à Educação Básica das escolas de todo país. De maneira a problematizar a afirmativa do MEC quanto ao “amplo processo de debate e negociação” na sua formulação, cabe destacar que esse processo foi consolidado com a efetiva e hegemônica participação de intelectuais que mantêm vínculos concretos com entidades organizadas e geridas por representantes da classe dominante brasileira. Entre os protagonistas no processo de elaboração da BNCC, figuram-se os agentes públicos e privados e, dentre esses últimos, registra-se a presença efetiva de empresas, fundações e institutos de perfil privado, pertencentes à classe dominante brasileira, tais como: “Itaú, Unibanco, Natura, Fundação Roberto Marinho e institutos: Fundação Lemann, Instituto Ayrton Senna, Instituto Insper, Instituto Rodrigo Mendes, Instituto Singularidades, Instituto Inspirare, Cenpec, [...] e o Programa “Todos pela Educação”.” (D’AVILA, 2018, p. 122). Essas presenças, como bem evidenciado pela autora, colocam-se como a base de sustentação de formulação da BNCC e, por si só, explicitam o caráter classista e mercadológico da proposta que agora segue para a implementação no Ensino Médio de todo país.

Considerando a inserção indiscriminada e articulada da classe dominante brasileira na formulação da BNCC, D’Ávila (2018) afirma que

[...] os intelectuais orgânicos do capital estão atuando na construção da BNCC, sobretudo, na forma de agentes privados, pois acrescentam seus interesses empresarias no seu conteúdo, tanto na escolha dos conteúdos e objetivos de aprendizagens necessárias para a formação dos jovens na atualidade, quanto pelas novas ações que terão que realizar no âmbito da política educacional, como mencionado na elaboração de material didático adequado ao documento da Base Nacional (D’AVILA, 2018, p. 122).

Nesse contexto percebe-se que a natureza da educação brasileira está sofrendo graves alterações, imprimindo retrocessos relacionados à participação efetiva e quase exclusiva de representantes da classe dominante em sua figuração, por meio da BNCC para o Ensino Médio. De modo geral, de acordo com a proposição que já está em fase de implementação em todo o país, coloca-se em efetivo exercício a padronização do currículo básico, anulando assim a autonomia dos sistemas de ensino em construir suas próprias referências em termos de currículo. A BNCC, como está posta na sociedade brasileira, e considerando as influências e determinantes da classe dominante em sua formulação, reforça a hegemonia e a divisão de classe, sendo que, dessa forma “[...] a hegemonia detida pela classe burguesa não se restringe somente à propriedade privada dos meios de produção, mas também no campo das ideias, na forma com que se faz a apreensão da realidade pelos conhecimentos transmitidos nas escolas” (D’AVILA, 2018, p. 91).

A BNCC pauta-se pela redução do conhecimento, eliminando disciplinas do currículo, o que perpassa pelo enaltecimento exacerbado de alguns conhecimentos em detrimento de outros. Essa reconfiguração passa a dificultar, por exemplo, o acesso das classes populares à Universidade pública, pois tem por prioridade unicamente a formação de trabalhadores flexíveis ao mercado de trabalho precarizado, estando voltada ainda para a preparação dos estudantes para avaliações que visam aumentar os índices de qualidade, reforçando assim apenas algumas disciplinas específicas. Nesse processo destaca-se a compreensão de que a BNCC “[...] está longe de ser um currículo, seja pela estrutura do documento que se centraliza na escolha de objetivos de aprendizagem para as diferentes modalidades e etapas de ensino, quanto pela falta de princípios filosóficos, sociológicos e pedagógicos em sua redação” (D’AVILA, 2018, p. 90).

O documento da BNCC orientado para padronização da educação escolar não considera a diversidade cultural e as especificidades características do povo brasileiro, está pautada em tendências internacionais que fracassaram em diferentes países (FREITAS, 2017). Na concepção política educacional assumida, a BNCC é definida como um conjunto de aprendizagens essenciais e limitadas, das quais os estudantes devem se apropriar no decorrer da Educação Básica, em todas as escolas do país.

No Paraná, de maneira articulada a esse processo em nível nacional, a implementação da BNCC tem por eixo central o Referencial Curricular do Paraná: Princípios, Direitos e Orientações (PARANÁ, 2018), que em seu texto introdutório salienta que os direitos e objetivos de aprendizagem são comuns, porém existe a diversidade de currículos e que devem ser elaborados de acordo com a realidade local, social e individual de cada instituição. Cabendo, portanto, às redes de ensino orientar as escolas na elaboração de propostas pedagógicas que assegurem os direitos e objetivos de aprendizagem de todos os estudantes paranaenses, considerando o contexto local e a articulação do conhecimento escolar à realidade contemporânea (PARANÁ, 2018).

Contudo, Freitas (2017) verifica que a BNCC tem a finalidade de controlar a aprendizagem dos estudantes, bem como dos professores e das instituições de ensino. Os objetivos são pensados para rastrear as ações dos sujeitos partícipes e construtores das escolas, este rastreamento se dá por meio das avaliações censitárias, como a Prova Brasil e, no caso do Paraná, a Prova Paraná, que já foi implementada na rede pública estadual de educação no início do ano letivo de 2019.

A Prova Paraná, realizada em sua primeira edição no mês de março de 2019, seguiu as orientações, as quais sugeriram que os professores realizassem as atividades propostas no material de apoio, com a finalidade de aumentar os índices de cada escola e adequando-se às normas propostas, reforçando assim, unicamente, as disciplinas constituintes da BNCC. A Prova Paraná foi apresentada como uma avaliação diagnóstica que destacou como objetivo central identificar as dificuldades dos estudantes nas disciplinas de Português e Matemática (PARANÁ, 2019), desconsiderando a diversidade de currículos e que devem ser elaborados de acordo com a realidade local, social e individual de cada instituição, como afirmado de maneira meramente discursiva no preâmbulo do Referencial Curricular do Paraná (PARANÁ, 2018).

De forma inequívoca, tal procedimento relacionado à Prova Paraná, que está atrelada diretamente à implementação do Referencial Curricular do Paraná: Princípios, Direitos e Orientações (PARANÁ, 2018), como expressão da BNCC na rede pública estadual de educação, evidencia a pressão hegemônica da classe dominante sobre os trabalhadores, ao priorizar apenas as disciplinas da BNCC, e estabelecer maior ênfase aos conteúdos das disciplinas de Português e Matemática, em detrimento de outros conhecimentos necessários para formação das diversas dimensões humanas dos estudantes envolvidos.

Dessa forma, contata-se o estreito vínculo entre a efetivação da BNCC e o adensamento dos processos de avaliação externos à escola. De acordo com Freitas,

Na atual disputa pela escola, os reformadores empresariais da educação ampliaram a função da avaliação externa e deram a ela um papel central na indução da padronização como forma de permitir o fortalecimento do controle não só sobre a cultura escolar, mas sobre as outras categorias do processo pedagógico, pelas quais se irradiam os efeitos da avaliação, definindo o dia a dia da escola (FREITAS, 2014, p. 1093).

Assim, a BNCC - considerada a incidência da classe dominante em sua formulação e seu caráter eminentemente classista e mercadológico - tem nos processos avaliativos externos à escola um mecanismo altamente eficiente de dimensionamento do currículo e do fazer escolar. Isso tensiona, sobremaneira, a ação docente e a própria formação dos jovens da classe trabalhadora na escola. Em última instância, esse processo tem por orientação única dar conta do adestramento da força de trabalho e da formação de consumidores compatíveis com as necessidades atuais de reprodução ampliada de capitais.

Considerações sobre a Educação do Campo frente a BNCC

Considerando a proposição da Educação do Campo, sobretudo, a partir da análise panorâmica do Plano de Estudo das Escolas Itinerantes (MST, 2013) e das Diretrizes Curriculares da Educação do Campo no Paraná (PARANÁ, 2006), registra-se que ambas as formulações, mesmo considerando os distanciamentos verificados, têm maior embasamento teórico e têm por horizonte as necessidades educacionais dos povos trabalhadores do campo. Destaca-se ainda que ambos os documentos se sustentam e foram elaborados a partir de processos os quais foram constituídos com a inserção e o protagonismo dos sujeitos do campo em sua produção, sobretudo os vinculados à luta por uma Educação do Campo.

Assim, de um lado, as Diretrizes Curriculares (PARANÁ, 2006) colocam-se como um marco importante na inclusão das diversidades no âmbito da política educacional, e assume de forma genérica algumas das necessidades formativas dos povos trabalhadores do campo. Por sua vez, a proposta educativa expressa no Plano de Estudo (MST, 2013) traz de forma consistente um atendimento educacional vinculado aos interesses da classe trabalhadora, num diálogo direto entre o conhecimento científico, a realidade social e as perspectivas formativas de tais sujeitos.

No contraponto desses processos, a BNCC (BRASIL, 2018) coloca-se como mecanismo de desestruturação da educação pública, retirando a obrigatoriedade de algumas das disciplinas curriculares e estabelecendo como prioridade o aumento dos índices a partir da pontuação em provas de caráter censitário e externas à escola. A BNNC, por sua vez, enaltece ainda uma perspectiva formativa voltada unicamente para a formação de força de trabalho e de consumidores, com o intuito de impulsionar a expansão da capacidade de exploração da classe dominante em suas diversas frações e formas. Tais elementos expressam seu caráter eminentemente conservador no que tange à educação pública do país.

Nesse aspecto, de maneira contrária aos pressupostos que sustentam a construção da Educação do Campo (PARANÁ, 2006 e MST, 2013) e, considerando o contexto de conservadorismo exacerbado na sociedade brasileira expresso na consolidação de um projeto conservador e ultraliberal de governo (LEHER, 2020), a figuração e a homologação da BNCC colocam-se como representações concretas, no âmbito educacional, do contexto político vivenciado e capitaneado pelas forças instaladas na gestão do Estado. Portanto, na verdade as transformações recentes na área da educação, e que têm incidência direta na Educação do Campo, estão atreladas a um contexto mais amplo, de desmonte das políticas públicas conquistadas na luta objetiva e que pressupunham a garantia de certos direitos às parcelas mais fragilizadas e vulneráveis da nossa sociedade.

De maneira geral, de acordo com a análise do Plano de Estudos das Escolas Itinerantes (MST, 2013), das Diretrizes Curriculares da Educação do Campo no Paraná (PARANÁ, 2006) e da Base Nacional Comum Curricular para o Ensino Médio (BRASIL, 2018), observa-se que as Diretrizes Curriculares, ao afirmarem a educação como direito dos povos trabalhadores do campo, mantêm uma relação, mesmo que tímida, com a proposta constituinte do Plano de Estudos, que por sua vez, está pautada na relação entre o conhecimento científico, a realidade social e os interesses formativos dos trabalhadores. Assim, de um lado, a Educação do Campo evidencia a necessidade de considerar e afirmar as identidades socioculturais e territoriais diversas dos povos trabalhadores do campo, colocando-as como eixo das experiências de formação protagonizadas pelas escolas, educadores e movimentos sociais do campo. Já a BNCC, por sua vez, evidencia a prospecção de uma identidade generalizante e submissa às prerrogativas mercadológicas e que sustentam a hegemonia das classes dominantes, por meio da fragmentação e do reducionismo do conhecimento trabalhado na escola.

Desse modo, no contraponto das compreensões e encaminhamentos produzidos coletivamente no âmbito da luta por uma Educação do Campo no Brasil, a implementação de políticas conservadoras e orientadas pelos interesses da classe dominante, sobretudo voltadas para a Educação Básica, como é o caso da BNCC, colocam-se de forma a impossibilitar o desenvolvimento intelectual da classe trabalhadora, limitando seu acesso a um conjunto mínimo de conhecimentos, restringindo ainda mais os conteúdos trabalhados na escola. Tal encaminhamento, no que tange ao direcionamento da BNCC para a Educação Básica, reforça sobremaneira o poder hegemônico da classe dominante em uma sociedade cindida em diferentes e antagônicas classes sociais.

Nesse quadro, para enfrentar o conservadorismo que se alastra no meio educacional e na sociedade como um todo, coloca-se de forma cada vez mais emergente a busca por processos como o efetivado na luta por uma Educação do Campo no Brasil (VERDÉRIO, 2018) e que nas últimas décadas têm inclusive incidido na configuração da política educacional. Para tanto, são fundamentais as reivindicações e lutas nas quais os sujeitos da classe trabalhadora coloquem-se como protagonistas na negação, na proposição e na superação (CALDART, 2008), construindo práticas educativas que estejam vinculadas às suas perspectivas, incidindo assim, de maneira organizada e intencional, na própria configuração e realização da política educacional e da educação como um todo.

Referências

ANTUNES, R. O Caracol e sua Concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005. [ Links ]

APEC. Manifesto do Seminário Estadual de Educação do Campo - Direito, Conhecimento, Terra e Dignidade. Seminário Estadual de Educação do Campo, Curitiba/PR, 21 e 22 de abril de 2017. In: Revista Cambota, Francisco Beltrão: ASSESOAR, ano 43, n. 273, set. 2017. [ Links ]

BAHNIUK, C.; CAMINI, I. Escola Itinerante. In: PEREIRA, Isabel Brasil; ALENTEJANO, Paulo; FRIGOTTO, Gaudêncio (orgs.). Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: EPSJV, Expressão Popular, 2012. [ Links ]

BRASIL. Decreto Presidencial nº 7.352, de 4 de novembro de 2010. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/marco-2012-pdf/10199-8-decreto-7352-de4-de-novembro-de-2010/file. Acesso em: 03/05/2020. [ Links ]

Recebido: 07 de Maio de 2020; Revisado: 12 de Outubro de 2020; Aceito: 13 de Outubro de 2020; Publicado: 15 de Outubro de 2020

Creative Commons License This is an Open Access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original work is properly cited.