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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.15  Ponta Grossa  2020  Epub 10-Maio-2021

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.15352.103 

Artigos

Escola sem Partido, neoliberalismo e conservadorismo: rastreando pontos de intersecção*

School without Party, neoliberalism and conservatism: tracking points of intersection

Escuela sin Partido, neoliberalismo y conservatismo: seguimiento de puntos de intersección

Elvis Patrik Katz** 
http://orcid.org/0000-0001-6050-214X

Andresa Silva da Costa Mutz*** 
http://orcid.org/0000-0002-6869-370X

**Professor da Rede Municipal de Ensino de Fontoura Xavier - Rio Grande do Sul. Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Educação e Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). E-mail: <elviskatz@yahoo.com.br>.

***Professora Adjunta do Departamento Interdisciplinar da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS/CLN). Doutora em Educação (UFRGS). Líder do Grupo de Pesquisa Educação, Interdisciplinaridade e Tecnologias (EDINTEC). E-mail: <andresa.mutz@ufrgs.br>.


Resumo

As discussões em torno do movimento Escola sem Partido vêm acirrando as lutas pela educação brasileira nos últimos anos. Dada a importância desse debate, gostaríamos de explorar, neste artigo, uma pequena parte de uma pesquisa desenvolvida no Mestrado, mas com foco em outros aspectos. Assim, buscamos descrever enunciados presentes em uma determinada formação discursiva produzida pelo movimento. Para tal, fizemos uso das ferramentas teórico-metodológicas oferecidas pelo filósofo e historiador francês Michel Foucault. Os resultados apontam para a existência de enunciados que reatualizam ideias neoliberais e conservadoras no campo da educação brasileira.

Palavras-chave: Escola sem Partido; Conservadorismo; Neoliberalismo

Abstract

Discussions around the School without a Party movement (Escola sem Partido) have intensified the struggles for Brazilian education in recent years. Given the importance of this debate, we would like to explore in this article a small part of a research developed in the Master’s Degree, but with a focus on other aspects. Thus, we seek to describe statements present in a given discursive formation produced by the movement. To that end, we used the theoretical and methodological tools offered by the French philosopher and historian Michel Foucault. The results point to the existence of statements that revitalize neoliberal and conservative ideas in the field of Brazilian education.

Keywords: School without a Party; Conservatism; Neoliberalism

Resumen

Las discusiones en torno al movimiento Escuela Sin Partido han intensificado las luchas por la educación brasileña en los últimos años. Dada la importancia de este debate, nos gustaría explorar en este artículo una pequeña parte de una investigación desarrollada en el Máster, pero con foco en otros aspectos. Así, buscamos describir enunciados presentes en una determinada formación discursiva producida por el movimiento. Para ello, se utilizaron las herramientas teóricas y metodológicas ofrecidas por el filósofo e historiador francés Michel Foucault. Los resultados apuntan a la existencia de enunciados que revitalizan las ideas neoliberales y conservadoras en el campo de la educación brasileña.

Palabras clave: Escuela sin Partido; Conservatismo; Neoliberalismo

Introdução

O Escola sem Partido (ESP) é uma organização fundada em 2004 com o objetivo de combater a chamada “doutrinação ideológica” na educação brasileira. Idealizado pelo jurista Miguel Nagib, o movimento denuncia elementos que, do seu ponto de vista, apontam para a existência de um verdadeiro “complô” esquerdista nas escolas públicas e privadas do país. Segundo seus representantes, partidos de esquerda e professores mal intencionados estariam promovendo suas ideias nas instituições de ensino há, no mínimo, 30 anos. No presente artigo, analisamos 127 textos publicados no site do Escola sem Partido entre 2004 e 2014, com o objetivo de mostrar como alguns temas, argumentos e concepções foram recorrentes nos ditos.

Utilizando como inspiração a análise do discurso de Michel Foucault, a hipótese inicial desta etapa da investigação assumia a ideia de que o ESP apresentava uma espécie de guia orientador do que seus idealizadores acreditavam ser as melhores formas de agir com relação à educação, com vistas a construir um modelo de “sociedade ideal”. Aqui se imbricavam pontos de vistas neoliberais a pautas tradicionalmente ligadas aos movimentos conservadores de direita. Como sugeriu um artigo sobre as redes de difusão do ESP no Facebook e no Instagram, “[...] é certo afirmar que este grupo é composto por indivíduos com crenças conservadoras, com base cristã (em especial neopentecostal, mas não somente), e com vínculos diretos com parlamentares de partidos de direita” (SEVERO; GONÇALVES; ESTRADA, 2019, p. 21). Além disso, Lima e Hypólito (2020, p. 13) sentenciam que “[...] há uma articulação neoliberal e conservadora que vem sendo construída globalmente [...]” e que “[...] grupos oportunistas acenam com ideias protecionistas, moralistas, justiceiras, imparciais, para parecer que lutam pela defesa dos melhores interesses da sociedade”, o que parece ser o caso do ESP. Neste texto, buscamos demonstrar como os ditos da própria organização sugerem uma intersecção entre neoliberalismo e conservadorismo no discurso do movimento.

Delineamentos teórico-metodológicos

Como instrumento de nossa pesquisa, optamos por utilizar os operadores teóricos de Michel Foucault, sobretudo no que se refere a como esse autor entende sua análise de discurso. Rosa Maria Bueno Fischer (2013, p. 128) afirma que o “[...] discurso supõe um campo de saberes articulados entre si, constituídos historicamente e em meio a disputas de poder”. A análise do discurso foi sistematizada por Michel Foucault na obra A Arqueologia do Saber (L’Archéologie Du Savoir, publicada na França em 1969). Nessa obra, o autor define uma postura metodológica que consiste em uma descrição dos acontecimentos discursivos (FOUCAULT, 2016). Tal empreitada exige, no entanto, que apresentemos brevemente alguns conceitos necessários para nossa análise.

Ao buscarmos a análise dos ditos do ESP, assumiremos que esse conjunto de signos que ele propagou entre 2004 e 2014 constitui-se em uma formação discursiva. Segundo Foucault (2016, p. 47, grifo nosso), formações discursivas existem sempre que se puder descrever “[...] entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade”. Entretanto, o que seria um enunciado?

[...] um enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente [...] [ele] está ligado, de um lado, a um gesto de escrita ou à articulação de uma palavra, mas, por outro lado, abre para si mesmo uma existência remanescente no campo de uma memória, ou na materialidade dos manuscritos, dos livros e de qualquer forma de registro; em seguida, porque é único como todo acontecimento, mas está aberto à repetição, à transformação, à reativação; finalmente, porque está ligado não apenas a situações que o provocam [...] mas, ao mesmo tempo, [...] a enunciados que o precedem e o seguem. (FOUCAULT, 2016, p. 34).

Os enunciados nunca existem de forma geral. Suas aparições singulares, datadas no tempo e localizadas no espaço, portanto em sua materialidade, podem ser estudados a partir das enunciações: as enunciações são efetivamente os signos, coisas ditas, frases, gráficos, etc., que a partir de sua regularidade e semelhança na dispersão formam enunciados. As enunciações sempre dizem “algo”, tem um papel singular, limitado e repetível em uma lógica discursiva. A compreensão do enunciado, no entanto, só se dá em relação à formação discursiva do qual faz parte: “[...] um enunciado tem sempre margens povoadas de outros enunciados” (FOUCAULT, 2016, p. 118). São os outros elementos enunciativos do discurso que qualificam um enunciado determinado enquanto tal, e é o conjunto dessas enunciações que fazem aparecer o discurso. Na descrição desses enunciados, deve-se atentar para o fato de percebê-los em sua superfície, no nível do que foi efetivamente dito.

Este artigo apresenta resultados derivados de uma investigação maior, em nível de Mestrado, intitulada Escola Sem Partido: Uma análise das investidas de poder sobre as identidades docente (KATZ, 2017), concluída no início de 2018. Naquela ocasião, nossa pesquisa tinha como corpus de análise dois tipos de textos separados em duas grandes categorias. O critério de divisão dessas enunciações estava em suas especificidades conforme o papel que cada uma delas assumia em relação aos seus alvos de investidas de poder. Explicamos: enquanto as enunciações da Categoria 1 buscavam fabricar discursivamente os objetos dos quais o ESP se ocupava, as enunciações da Categoria 2 tinham como intenção validar os saberes produzidos pela Categoria 1, criando, para isso, técnicas de poder específicas, das quais não nos ocuparemos neste texto.

Nos textos da Categoria 1, portanto, o movimento prescreveu suas ideias para o que ele considerava ser o melhor andamento das instituições e sujeitos ligados à educação. Assim, essa parte do corpus estava composta por 127 artigos publicados no website do ESP entre 2004 e 2014 e alocados na aba “artigos”. Além deles, essa categoria incluía a análise das abas principais do site: “Apresentação”, “Quem somos”, “Objetivos”, “FAQ” e “Saiba mais”. O recorte temporal escolhido deveu-se ao fato de que, no período indicado, o ESP foi muito mais atuante na divulgação desses textos do seu site. Após 2014, no entanto, dedicou-se mais amplamente a tarefa de divulgar e defender seus anteprojetos de leis do que a produção e/ou reprodução de textos online. Outro fator é que, após 2014, o ESP passou a atuar bastante por meio de sua página oficial na rede social Facebook, deixando o site em segundo plano na propagação de suas ideias (KATZ, 2017).

Assim, realizamos o mapeamento e a catalogação de todo o corpus no intuito de nos aproximarmos de alguns enunciados que poderiam reger tal formação discursiva. O objetivo dessa atividade foi encontrar unidades enunciativas que nos ajudassem a compreender melhor sobre o que, como e a partir de quais premissas o ESP lançava aquelas proposições e não outras. Adotamos, portanto, o critério de mapear os enunciados atentando para os objetos, os tipos de enunciação e os argumentos usados, os conceitos recorrentes e as escolhas temáticas das enunciações. Essa empreitada resultou na identificação de 17 unidades interdependentes. Dezessete enunciados que agrupam enunciações por suas especificidades, conforme o critério acima descrito; são eles: o Antiesquerdismo, o Antipetismo, o Antimarxismo, o Anticomunismo, o Neoliberalismo, a Soberania da família, o Moralismo, os Usos da ciência, a História, A voz dos intelectuais, a Hegemonia da doutrinação, a Neutralidade do Estado, a Doutrinação ideológica, a Soberania da religião, a Autoridade docente e o “Ódio” ao Estado.

Na dissertação de Mestrado (KATZ, 2017) e em outras oportunidades de pesquisa, analisamos alguns desses enunciados. No presente artigo, escolhemos analisar um conjunto de enunciados que, a nosso ver, se relacionam de forma bastante singular: Neoliberalismo, “Ódio” ao Estado e Neutralidade do Estado. Neles, há em comum a prática sistemática de criticar, de prescrever e de nortear como o Estado deveria agir ou, mais comumente, “deixar de agir” com relação à educação escolar no Brasil. A seguir, portanto, temos as descrições desses acontecimentos discursivos que chamamos de enunciados e suas relações importantíssimas para a compreensão do debate educativo contemporâneo.

Escola sem Partido e neoliberalismo

Nesta seção, tentaremos demonstrar que uma analítica do discurso é um trabalho de superfície sobre aquilo que foi dito, e que esse tipo de caminho metodológico pode ser bastante interessante quando se trata de estudar um tema tão controverso . Explicações à parte, necessitamos definir o que é entendido aqui por neoliberalismo e, após isso, justificarmos por que enxergamos enunciações desse tipo atravessando os ditos do ESP. David Harvey conceitua o termo da seguinte forma:

O neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser melhor promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos [à] propriedade privada, livres mercados e livre comércio. O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas [...]. Mas o Estado não deve aventurar-se para além dessas tarefas. As intervenções do Estado nos mercados (uma vez criados) devem ser mantidas num nível mínimo, porque, de acordo com a teoria, o Estado possivelmente não possui informações suficientes para entender devidamente os sinais do mercado (preços) e porque poderosos grupos de interesse vão inevitavelmente distorcer e viciar as intervenções do Estado (particularmente nas democracias) em seu próprio benefício. (HARVEY, 2008, p. 13).

Como mostrou Veiga-Neto (2000), o discurso neoliberal contemporâneo tem suas raízes no liberalismo norte-americano da Escola de Economia de Chicago, que, diferentemente do ordoliberalismo , se mostrou “[...] muito mais confiante nas próprias forças e na racionalidade do mercado, a ponto de não apenas querer afastar o Estado de qualquer ingerência sobre a economia, como, logo em seguida, querer que toda a vida social se subordinasse à lógica do mercado” (VEIGA-NETO, 2000, p. 185). Do nosso ponto de vista, então, as ideias liberais encontradas no corpus se assemelham ao chamado neoliberalismo, dado que promove a defesa da diminuição da interferência do Estado nas vidas dos indivíduos e, ao mesmo tempo, que a lógica de mercado se estenda por todas as esferas da vida.

Nesse sentido, a presente seção tem como foco estabelecer relações a respeito do enunciado Neoliberalismo. Durante nossa análise, definimos que as enunciações neoliberais deveriam conter, como característica de pertencimento à unidade construída: 1) a defesa exacerbada das liberdades individuais; 2) a ideia de que a educação devesse ser tomada como um produto e que os estudantes e os pais são consumidores; e, por fim, 3) certo repúdio aos atos estatais de intervenção na sociedade.

Com relação ao primeiro aspecto, é muito comum nos ditos que circulam pelo material empírico a noção de que a sociedade em que vivemos não é livre como deveria, tendo em vista que, em alguns aspectos, o Estado restringiria as liberdades individuais. No caso da educação escolar, isso ficaria ainda mais nítido, pois “[...] numa sociedade livre, as escolas deveriam funcionar como centros de produção e difusão do conhecimento, abertos às mais diversas perspectivas de investigação [...]” (ESP, IDE 001, 2018). Quer dizer, segundo a lógica do movimento, o problema da educação que permitiria a “doutrinação ideológica” fundamenta-se em uma suposta restrição das liberdades individuais causada pela atuação autoritária do Estado brasileiro.

Questionando tal afirmação, poderíamos perguntar ao ESP: De que autoritarismo se trata? Ou: De que forma o Estado intervém em demasia na educação escolarizada a ponto de restringir as liberdades individuais dos estudantes? A resposta passa pela concepção de que o ensino obrigatório de nível básico no Brasil limitaria a liberdade de consciência dos estudantes, especialmente porque ele funciona de maneira “equivocada” ao favorecer a doutrinação. Segundo o ESP, ao instituir o ensino obrigatório, o Estado permitiu que existisse uma “audiência cativa” dos alunos da escola pública, os quais não estariam em condições de recusar os ensinamentos do professor, pois são obrigados a assistir suas aulas por força do poder (estatal) da lei . Havendo esse espaço marcado pela ausência de liberdade dos estudantes, seria necessário que os limites da atuação docente estivessem bem demarcados, segundo a argumentação do ESP, para que a doutrinação não fosse possível. Não nos interessa agora pensar em que consiste a doutrinação ideológica mencionada, senão ressaltar que, dentro dessa formação discursiva, o maior culpado pela existência dessa prática seria o Estado. É nesse contexto que um dos argumentos para defender os projetos de leis do ESP será o de proteger as liberdades de consciências dos estudantes, as quais estariam sendo violadas pelos seus professores.

Em resumo, para o ESP, as liberdades individuais não são respeitadas como deveriam porque, logo de início, os estudantes são obrigados pelo Estado a frequentar as escolas. Além disso, a obrigatoriedade do ensino criaria um espaço que impede o estudante de recusar os ensinamentos do professor, o que acabaria por tornar urgente a definição dos limites da prática docente. Esses limites, é claro, seriam dados a partir de uma lei contra o “abuso da liberdade de ensinar”, a qual é também uma das proposições do ESP.

No entanto, haveria novamente o que questionarmos à organização: Se a luta consiste na garantia da manutenção dos direitos individuais, como fica o profissional da educação, o professor, com relação a sua liberdade? Ora, a isso o ESP tem resposta pronta - é que o professor não desfruta de plena liberdade ou, mais especificamente, de liberdade de expressão, pois “[...] reconhecer ao professor o direito à liberdade de expressão dentro da sala de aula é reconhecer-lhe o direito de obrigar seus alunos a ouvi-lo falar e opinar sobre qualquer assunto. É evidente que, se isso fosse possível, a liberdade de consciência e de crença dos alunos (assegurada pela CF) seria letra morta” (ESP, IDE 004, 2018). Há, portanto, um conflito de liberdades (a de ensinar e a de aprender) que só pode deixar de existir quando o professor se limitar a cumprir o currículo sem avançar para o terreno da chamada doutrinação ideológica.

Deve-se explicar ainda a afirmação de que o professor não possui liberdade de expressão em sala de aula - apenas o fato de ele ter de seguir um currículo não pode ser uma prova disso, senão um indício da posição que o docente ocupa dentro da concepção de ensino defendida pelo movimento. É preciso esclarecer melhor: ocorre que a função professoral só é obrigada a seguir um currículo e um determinado Plano Político Pedagógico, além das diversas diretrizes estatais existentes, pois sua profissão é, antes de qualquer outra coisa, a de representante do poder do Estado na escola pública. Como “servos do Estado”, para usar a expressão de Martin Lawn (2001), os docentes não são aventureiros atuando sem restrições na prática do ensino, seus discursos são muito mais do que isso.

Com Foucault tem sido, igualmente, possível compreender o discurso do professor não constitui um projeto deliberado de um falante autônomo a partir de uma intenção comunicativa, mas que é assumido a partir de uma ordem, a partir de um sistema de produção do discurso, a partir de princípios de controle, seleção e exclusão que atuam sobre suas (re)produções de significados e sobre suas práticas específicas. (DÍAZ, 1998, p. 15).

Existe algo a mais no discurso docente do que sua simples ação individual. Nos Estudos Culturais, por exemplo, as mídias são descritas como artefatos ou pedagogias culturais que subjetivam sistematicamente os professores - para o ESP, os docentes nada mais são do que espécies de ventríloquos que transmitem aos alunos aquilo que o Estado lhes prescreve. Com isso, entende-se, então, porque os professores não poderiam simplesmente desfrutar de sua liberdade de expressão em sala de aula: eles não seriam indivíduos de direitos, mas funcionários (mais precisamente, ferramentas) do Estado e, ao representarem-no, devem ser, muito pelo contrário, vigiados, controlados e regulados.

Ironicamente, a proposta de lei do ESP parece, logo à primeira vista, o extremo oposto daquilo que defende. Como pode um movimento que defende o Estado mínimo propor uma lei que intervenha na prática docente das escolas? Pois bem, levando em conta o que explicamos anteriormente, mas agregando uma pitada do que percebemos ao estudar outras unidades, é preciso levar em conta, nos ditos da organização, o fato de esta se apresentar como uma resistência ao pensamento hegemônico corrente. No caso da unidade Hegemonia da doutrinação, por exemplo, veremos que há um grande esforço nas enunciações em demonstrar que existe, no Brasil, todo um sistema doutrinário de esquerda que envolve intelectuais, militantes, partidos políticos, artistas, instituições midiáticas e, principalmente, o Estado. Essa grande hegemonia do pensamento de esquerda e do “politicamente correto” só seria tão poderosa porque receberia, de uma forma ou de outra, apoio estatal para se ampliar cada vez mais. Tomando essa hegemonia como um fato, o ESP argumenta que quaisquer medidas para tentar controlar os professores praticantes desses atos constituiria, inexoravelmente, em ações de resistência contra um Estado “autoritário” que visaria doutrinar crianças e jovens utilizando-se da instituição escolar para tal empreendimento.

Claro que essa ideia é muito bem construída dentro da racionalidade antiesquerdista do movimento, que admite apenas a existência da doutrinação de esquerda. A falta de apoio estatal aos doutrinadores “de direita” teria feito deles uma minoria quase imperceptível.

Existem professores de direita que usam a sala de aula para fazer a cabeça dos alunos. Mas são franco-atiradores, trabalham por conta própria. No Brasil, quem promove a doutrinação político-ideológica em sala de aula, de forma sistemática e organizada, com apoio teórico (Gramsci, Althusser, Freire, Saviani, etc.), político (governos e partidos de esquerda, PT à frente), burocrático (MEC e secretarias de educação), editorial (indústria do livro didático) e sindical é a esquerda. (ESP, IDE 004, 2018).

É na esteira de uma lei para a resistência que se insere a ideia do Programa Escola sem Partido: ou seja, uma intervenção estatal na educação que visaria coibir os abusos do Estado! Essa intervenção, no entanto, seria muito diferente daquela colocada pelo próprio Estado autoritário - inversamente, ela deveria responder a um (suposto) anseio social em busca da ampliação de suas liberdades individuais que estariam em perigo. Ao contrário das ações governamentais que “obrigam” isso ou aquilo, a lei antidoutrinação viria apenas para regular e vigiar a prática docente no sentido de que essa não cometesse seus “abusos”. Para o ESP, isso nada tem a ver com intervenção estatal, senão com resistência que funcionaria na prevenção de eventuais descontroles do próprio Estado: ela apenas recolocaria em equilíbrio o jogo das forças políticas da sociedade; tal lei deixaria que as lutas sociais fossem resolvidas conforme sua própria natureza, ao sabor do tempo e ao gosto do mercado, de preferência, exatamente da mesma forma como o neoliberalismo enfrenta a questão da interferência do Estado na economia.

Para finalizar esta seção, é preciso mencionarmos, ainda, uma última característica ligada à unidade do Neoliberalismo e que merece destaque. Trata-se da conhecida concepção neoliberal de que a educação é uma mercadoria a ser ofertada aos consumidores (cidadãos) e que seus objetivos devem ser pautados pelas necessidades econômicas (em especial do mercado de trabalho) do País. Nesse sentido, um primeiro indício dessa concepção é a culpabilização da crise na educação escolar recair, prioritariamente, no atraso dessa instituição frente às modernas ferramentas e estratégias de gestão existentes no mundo empresarial. Com o objetivo de constituir um sujeito-cliente, o discurso neoliberal (corroborado pelo ESP) advoga por “[...] boa parte das inovações administrativas e pedagógicas que estão invadindo a instituição escolar - de que são bons exemplos a meritocracia exacerbada, a formação permanente, o ensino a distância, o controle contínuo” (VEIGA-NETO, 2000, p. 199). São iniciativas que vêm atingindo as escolas particulares mais fortemente, mas que procuram cada vez mais ampliar sua rede de aplicação na escola pública brasileira. Afinal de contas, frente ao argumento de combater a “crise” por meio da “modernização” da escola, quem ousaria recusar tal proposta?

Além das inovações em gestão, há também a necessidade, segundo o ESP, de que a educação escolar busque ser mais útil ao mercado de trabalho e aos anseios da economia nacional. Somente a partir desses fins, a própria sociedade brasileira poderia se reinventar:

Quando afirmei que precisamos de menos sociólogos e filósofos e de mais engenheiros, alertava para a necessidade de a escola ser mais objetiva, mais técnica e menos retórica. Era, assim, uma espécie de metonímia. Mas poderia ser linguagem puramente referencial. Com a economia crescendo a 4%, 5% ao ano, faltam mesmo engenheiros no mercado. Filósofos e sociólogos do tipo que temos produzido são bons para depressão econômica. Em tese, fica mais fácil vender o peixe do socialismo - um peixe do século 19. (AZEVEDO, IDE 085, 2020).

Segundo o autor, a carga horária da escola impossibilita que se tenha tempo de debater seriamente as ciências humanas e as diferentes matizes ideológicas. Em vez de pensamento crítico e formação sociofilosófica, os estudantes estariam tendo panfletagem marxista. Em outro texto, a educação é também pensada a partir do ensino de valores explicitamente neoliberais, como o empreendedorismo e a livre iniciativa. Nesse sentido, diz-se que “[...] o jovem brasileiro recebe uma carga cultural que menospreza a livre iniciativa. Persiste o ideal de ser um funcionário do grande pai Estado, providencial e magnânimo. Aqui reside o obstáculo que nos impede de finalmente decolar e nos tornarmos uma nação digna de suas potencialidades” (SILVA, IDE 047, 2020). O importante é perceber como a solução dos problemas passa, essencialmente, por uma solução neoliberal de submeter os fins escolares aos interesses do mercado. A formação de um cidadão de nosso tempo deveria levar em conta uma formação técnica e alinhada aos preceitos da sociedade de consumo. A escola, dessa forma, deveria garantir que os estudantes fossem capazes de se adequar o melhor possível nesse mundo que aí está, sem a necessidade de desnaturalizá-lo ou problematizar sua existência.

Ódio ao Estado, neutralidade docente e conservadorismo moral

Conforme mencionado anteriormente, o ESP culpa o Estado pelo mal da doutrinação ideológica. Somente com apoio estatal é que a hegemonia e a extensão desse problema teriam se tornado tão grande quanto é atualmente. Essa responsabilização, como demonstrado, liga-se diretamente às concepções neoliberais que os partidários do movimento alimentam com relação ao Estado e as suas relações conflituosas com as liberdades individuais. Uma outra faceta do pensamento (neo)liberal, no entanto, pode ser associada facilmente ao discurso do ESP: trata-se de certo repúdio às ações (ou à falta delas) advindas do Estado. Consiste, também, em uma “[...] crítica que descobre que governar demais é irracional, pois é antieconômico e frustrante; uma crítica que se manifesta como um horror ao Estado” (VEIGA-NETO, 2000, p. 184). Jarbas Santos Vieira, ao analisar o discurso da militância neoliberal, corrobora tais afirmações no sentido de mostrar que “[...] o ataque permanente às políticas públicas estatais [...] [e] [...] a demonização do estado” (VIEIRA, 2002, p. 114) são práticas discursivas usuais do discurso neoliberal.

Variações sobre um mesmo tema

Quando descrevemos a unidade anterior, alguns aspectos do ódio às práticas estatais já estavam fáceis de enxergar. Cabe, no entanto, um exame mais detalhado sobre essa questão. No caso particular do ESP, o ódio ao Estado se manifesta de várias formas. Em primeiro lugar, por meio de uma crítica ao tamanho das indesejadas intervenções estatais no campo social, principalmente no da educação. Em um segundo momento, a condenação da qualidade dos serviços prestados pelo Estado.

Simplificando, podemos dizer que as críticas ao Estado presentes nas proposições do ESP dizem respeito essencialmente à proporcionalidade do “dirigismo estatal”. A partir de uma óptica neoliberal, os autores do ESP se preocuparam paulatinamente em destacar o tamanho exagerado das políticas públicas do Estado brasileiro. Um bom exemplo é o caso do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM): tal instrumento de avaliação é extremamente criticado não apenas por seu (suposto) viés ideológico, mas também pelo grande número de funções que pretende cumprir, afinal “[...] o Enem se transformou no maior vestibular do mundo, orientado por critérios ideológicos e gerido por incompetentes” (AZEVEDO, IDE 082, 2020). Na óptica do movimento, ao propor-se um grande vestibular, o Enem se arvoraria a um papel grandioso demais. Tido como problema de Estado, e não apenas de Governo, essa é mais uma política que, ao lado do ensino obrigatório, se constituiria em “[...] uma gigantesca intervenção estatal na vida dos indivíduos e suas famílias” (ESP, IDE 006, 2018). Nesse sentido, os problemas sociais teriam origem unicamente no “[...] déficit público devido ao gigantismo do estado e da interferência governamental sobre o mercado” (VIEIRA, 2002, p. 114). Grande demais, o Estado brasileiro não conseguiria atender às mínimas demandas que se impõem. Como se pode ver, esse tipo de concepção não é ingênuo - não seria plausível, por exemplo, a privatização de uma estatal sem um saber que argumentasse que a redução das tarefas estatais resultaria na maior eficiência dos serviços prestados.

Ademais, é na esteira da defesa da qualidade que se coloca um segundo ponto do ódio ao Estado. Ao tomar como fato consolidado a existência de uma verdadeira crise no sistema educacional brasileiro, em especial com relação às escolas públicas, o ESP apresenta-se como defensor de um projeto oposto ao que vem sendo empreendido. Com a ajuda de indicadores nacionais e internacionais que justificariam tal crítica - em especial o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) - o ESP tenta mostrar como o ensino brasileiro é atrasado em termos de gestão, performatividade e competitividade, comparado a outros países ou ainda ao próprio ensino privado.

De certa forma, o sucesso da direita conservadora, muitas vezes apresentada como moderna, na imposição de sua agenda política, é relativamente obtido por meio das promessas de uma educação de qualidade, competente, com métodos eficientes e com bom desempenho. Esse discurso ganha terreno em virtude da existência de um Estado incompetente para garantir uma educação pública de qualidade. (HYPOLITO, 2010, p. 1351).

Disso tudo deriva que - criticando sistematicamente o tamanho e a qualidade dos serviços educacionais estatais - o ESP ajuda a culpar o Estado e a escola pública por todos os males que a própria sociedade costuma atribuir à falta de educação. Conforme pudemos verificar a partir da descrição da unidade, infere-se que, para o ESP, quanto maiores forem os fracassos sofridos pela escola pública, mais se poderá afirmar que tais problemas seriam derivados da hegemonia da doutrinação ideológica de esquerda nesses espaços. A escola e o Estado aparecem como deformadores morais. Além de não agirem corretamente, ou agirem deficientemente, eles agiriam negativamente sobre os jovens. O que está implícita é a ideia de que o Estado nem devesse agir, senão para fiscalizar instituições particulares mais competentes. Entretanto, essa fiscalização, como veremos a seguir, não passará de uma simples declaração de que, enquanto instituição particular, as escolas privadas podem (e devem) promover ideias em consonância com as convicções de seus proprietários.

Neutralidade do Estado e conservadorismo

Nas suas enunciações, a partir da afirmação de que há na Constituição Federal o princípio da neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado, o movimento Escola sem Partido estrutura toda sua crítica à falta de neutralidade do Estado. A ideia, claramente, é mostrar que a sustentação e as demandas apresentadas estão querendo apenas o respeito ao sistema de princípios mais importantes do País. Um Estado neutro implicaria apenas na aceitação do regime democrático tal como ele foi estabelecido a partir de 1988. Todavia, é preciso especificar melhor o que significa essa neutralidade, seja para apontar suas singularidades, como também para não confundi-la com a ideia de um ensino neutro.

Começaremos por esse desembaraço, portanto. A diferença fundamental entre a neutralidade do Estado e a neutralidade do ensino é que uma se baseia em uma concepção neoliberal de que o Estado deve intervir minimamente nas relações sociais, enquanto a segunda está assentada na objetividade científica por meio do método. Nos ditos do ESP, há esses dois tipos de enunciações, são elas que ajudam a compor a concepção de que o professor não pode abusar de sua “liberdade de ensinar”. Contudo, nesse momento, pretendemos apenas perceber como aparecem as enunciações relativas à neutralidade do Estado enquanto mínima intervenção na sociedade.

Assim sendo, é preciso dizer que na óptica do ESP falar em Estado significa, ao mesmo tempo, evocar o sistema de ensino público, a escola pública e, inclusive, seus professores. Todos esses atores, supervisionados e apoiados pelo Ministério da Educação (MEC), seriam o verdadeiro Estado da educação brasileira. A própria existência e a amplitude deles seria um problema a ser ultrapassado tendo em vista que, como vimos na seção anterior, o “gigantismo” do Estado brasileiro é enfrentado pelo discurso neoliberal e pelo ESP como causas do atraso do desenvolvimento econômico. Na base, então, a ideia de um sistema público de ensino é motivo suficiente para incomodar o ESP. Em segundo lugar, no entanto, ainda há o fato de esse ensino ser obrigatório, o que resulta em uma intervenção mais explícita ainda na educação dos jovens e das crianças que, em um sistema neoliberal hipotético, escolheriam dentre uma variada e plural rede de escola privadas, aquela mais sensível aos princípios familiares (o famoso sistema de vouchers).

Mesmo assim, é importante dizer que, segundo o movimento, toda essa invasão do público sobre o privado seria tolerável não fosse o Estado brasileiro conivente com a prática de doutrinação ideológica de esquerda. Nesse ponto, o ESP passa a apontar uma subdivisão dos erros cometidos pelo Estado quando se trata de administrar o sistema público de ensino. Em um primeiro momento, o Estado aparece como intervencionista demais, com investimentos e gastos públicos em demasia que não surtem efeito tanto pela qualidade deficiente do ensino como pelo funcionamento da própria estrutura burocrática da máquina estatal. O ENEM, por exemplo, seria um bom instrumento de avaliação e regulação do Ensino Médio, mas ao supostamente utilizar-se de filtro ideológico (em favor de direitos humanos tidos como controversos) e querer se arvorar a maior vestibular do Brasil, acaba se transformando em um simples reprodutor das ideologias com as quais o Governo compactua. Assim é vista a questão do intervencionismo estatal:

O que torna ainda mais odioso o dirigismo estatal na educação, universalmente buscado e ardentemente defendido pelos sapientíssimos intelectuais de esquerda, é que ele desmente da maneira mais flagrante e cínica o discurso educacional esquerdista de três ou quatro décadas atrás, do qual eles se serviram como puro instrumento de sedução, prontos a jogá-lo fora na primeira oportunidade, como estão fazendo agora. Nos anos 60, 70, os mais destacados próceres da pedagogia esquerdista posavam de libertários, acusando a “educação burguesa” de ser um aparato de dominação que sacrificava o livre desenvolvimento intelectual e emocional das crianças em favor de objetivos de mero poder político-econômico [...] Com a maior desenvoltura, a nova pedagogia estatal cria do nada novos códigos morais, novos padrões de conduta e julgamento, os mais postiços, insensatos e disformes que se possa imaginar, punindo e marginalizando a criança que não se adapte aos mandamentos da recém-criada “socialização” invertida. (CARVALHO, IDE 062, 2020).

Na visão do movimento, a “[...] doutrinação ideológica configura uma afronta ao próprio regime democrático, já que ela instrumentaliza o sistema público de ensino e os estudantes com o objetivo de desequilibrar o jogo político em favor de um dos competidores” (NAGIB, IDE 098, 2020). A figura de que a intervenção estatal desequilibra as relações sociais e políticas é muito interessante: nela, está contida a pressuposição de que a natureza da sociedade deve se orientar para um tipo de liberdade na qual o Estado é menos importante. Em vez de prover o bem-estar social, como afirmam as doutrinas socialistas e socialdemocratas, por exemplo, para os neoliberais, o Estado deve apenas regular, vigiar e controlar os eventuais excessos cometidos pelos indivíduos. Nos documentos analisados, se vê, portanto, uma tentativa deliberada de fazer o paralelo entre a democracia e o funcionamento do poder estatal no neoliberalismo, justificando seus atos.

E como se estende essa noção de que o Estado intervém demais nas práticas docentes? Como afirmamos, na visão do ESP, os professores são legítimos representantes do Estado na escola. Se essa é uma instituição estatal, o professor é o principal agente no processo de ensino. Logo, se os docentes partilhassem do que o ESP chama de doutrinação ideológica seria porque estão executando suas funções conforme o Estado e o Governo lhes orientaram. Qualquer ato em contrário com essa hegemonia seria tomado como resistência ao monopólio ideológico colocado. Sobre isso, vale a pena fazer um breve comentário: é muito comum trabalhos acadêmicos que acusem o Estado de adotar políticas neoliberais , especialmente após a década de 1990. Tais estudos apontam para o aumento da regulação e do controle do trabalho docente e do currículo por meio, principalmente, das avaliações em larga escala (VIEIRA; HYPOLITO; DUARTE, 2009).

Ironicamente, o ESP recusa que o Estado esteja se neoliberalizando o suficiente, seja na extensão das liberdades individuais, especialmente por intermédio da liberdade de consumo, ou ainda no que diz respeito a esses mecanismos de controle social. Ao entender que “[...] não dispomos é de mecanismos eficazes para avaliar a qualidade do trabalho feito nas escolas e intervir para corrigir as deficiências” (MACHADO, IDE 077, 2020) o movimento justifica o aumento da regulação sobre os professores e os currículos escolares, tendo em vista que, entendidos como formas de supervisionar a prática docente, tais mecanismos não se apresentam como intervenções no sentido estrito. De maneira inversa, e seguindo a lógica do ESP como resistência ao hegemônico, tanto o Programa Escola sem Partido como as diversas formas de controlar o ambiente escolar nada mais fariam do que recolocar em equilíbrio aquilo que o próprio Estado tirou do prumo.

Com base nesses parâmetros, tomando como verdadeiro que o Estado intervém demais e que as respostas para esses abusos seriam espécies de contra-intervenções, o ESP propõe uma medida certa para a ação do Estado. A conveniência desse argumento pode ser vista quando um dos artigos comenta sobre a relação entre o Estado e a religião, ou melhor, quando se pensa os limites da laicidade do poder estatal:

Desde que a escola seja privada e confessional, ou seja, declare publicamente sua posição ideológica, terá o direito de priorizar tal ou qual filosofia de vida ou crença. Assim uma escola muçulmana terá plena liberdade de ensinar o Corão, como uma católica formará o fiel católico, e do mesmo modo a budista, a marxista, a agnóstica, etc. Inadmissível porém é a Escola Pública, mantida por recursos públicos, servir de instrumento para propaganda confessional ou partidária [...]. As observações acima devem ser feitas. A Escola, como o livro ou o jornal, pode ser partidária ou confessional. Desde que declare tal opção pública e indubitavelmente [...]. Seja respeitada inclusive a cultura tradicional em que a escola esteja inserida. A proibição de símbolos culturais-religiosos, mesmo em escolas públicas, como recentemente impôs o governo francês, parece extrapolar a devida imparcialidade educativa. (SILVA, IDE 011, 2020).

Na passagem citada, o movimento parece muito tolerante, em primeiro lugar, com as escolas confessionais, dado que justifica suas parcialidades na condição de que essas instituições tornem públicas suas intenções e que não haja discordância ideológica com a família do educando. Em um segundo momento, a própria defesa de que símbolos religiosos sejam mantidos nos espaços educativos públicos chega a espantar pela aparente contradição. Contudo, a prevalência da família e da religião sobre a escola, para o ESP, não representa nenhum problema:

Acho que a formação política de cada um é sua prerrogativa individual, sujeita apenas à interferência dos pais. Não é para ser condenada ou legitimada na escola. Mesmo que os pais não pratiquem sua prerrogativa, isso não dá ao professor o direito de se assenhorear da tarefa. Não acredito que a maioria dos professores brasileiros, com seu baixo preparo intelectual, tenha condições de oferecer ao aluno a exposição complexa e multifacetada que as questões inerentes à formação da cidadania exigem. Vira panfletagem. Também não acredito no poder do discurso dissociado da prática. Se essas razões são válidas para qualquer tipo de escola, creio que as regras devessem ser ainda mais rigorosas para as escolas públicas, nas quais o aluno não tem condições de optar por escola diferente. (IOSCHPE, IDE 049, 2020).

Como mostramos anteriormente, as unidades discursivas são interdependentes, e podemos lembrar que duas delas foram nomeadas, não por acaso, como Soberania da religião e Soberania da família. Não nos deteremos sobre essas unidades, mas queremos apenas pontuar que, na hierarquia de liberdades estabelecidas pelo ESP, o Estado ocupa posição secundária, sendo mais importantes as aspirações individuais, familiares e religiosas: aspecto característico claro de posições políticas conservadoras. Além disso, tais características do discurso do movimento nos apontam, assim, que os critérios de limitação da interferência do Estado na educação são demarcados aos sabores dos interesses do momento, os quais parecem estar atrelados não apenas ao pensamento neoliberal, mas também aos segmentos religiosos e conservadores brasileiros, que vem obtendo sucesso não apenas aqui, mas no mundo todo.

A intervenção tolerável, na medida adequada, é aquela que garanta a neutralidade do Estado e implique, inicialmente, que professores e escolas não adotem objetivos políticos para suas práticas docentes. Entretanto, isso não pode ser confundido com a restrição ao ensino de temas políticos ou da cidadania, como muitos têm defendido. Pelo contrário, segundo as várias afirmações do ESP, uma educação que não possua, previamente, objetivos doutrinários ou políticos, deve remeter ao pluralismo de ideias. Para o ESP, esse pluralismo consiste na apresentação das várias correntes teóricas que envolvam o estudo do fato, sem que o professor julgue qual delas seria melhor ou pior. Essa ideia está ancorada na concepção de que a realidade pode ser estudada e ensinada em sua essência “pura”, assumindo que quanto mais teorias forem estudadas mais complexas serão as formas de enxergar o mundo por parte dos alunos.

Da mesma, forma, o ensino da cidadania deve ser permitido, mas, para isso, os saberes e a disciplina desses conteúdos devem ser sinalizados a distância, com horários e objetivos claros. Quer dizer, se a exata medida de intervenção vem acompanhada do critério de pluralismo das concepções pedagógicas, então o Estado está errado quando passa a privilegiar algumas ideologias em vez de outras (logicamente, o Estado aqui é a escola e o professor). O problema fulcral consistiria em algo que vimos anteriormente: sendo mais poderosa na escola, determinada corrente política sairia na frente na disputa por adeptos na sociedade, e aí incorreria a injustiça - a doutrinação ideológica e o uso do Estado para fins políticos passa pelo excesso de intervenção estatal e o desequilíbrio nas lutas sociais que essa ação provoca.

Com isso, observamos que, quando o ESP defende a neutralidade do Estado, ele demonstra querer apenas recolocar o jogo político na/pela escola em equilíbrio. Esse último estaria sendo perdido na medida em que a esquerda avança com suas concepções e projetos e vem angariando sucesso na escola pública. O Estado, na óptica do ESP, teria papel central nesse desequilíbrio, pois, como apontamos anteriormente, estaria atuando de diversas formas para isso: em primeiro lugar, fechando os olhos para o problema da doutrinação e ignorando a hegemonia denunciada pelos ditos do ESP; em segundo lugar, reforçando muitas vezes tal hegemonia na medida em que o governo compactuaria com tal ideologia. Dessa forma, seja quando age, mas também quando deixa de agir, o Estado faz a doutrinação se perpetuar e a esquerda pender a balança a seu favor. A exata medida de intervenção, nesse caso, seria que o Estado corrigisse o desequilíbrio com a garantia de um pluralismo obtido por meio da vigilância e da denúncia aos professores doutrinadores de esquerda.

Contudo, se estamos tratando de intervenção na medida certa, o que tem a ver isso com o neoliberalismo, aquele que defende o Estado mínimo? A isso, Alfredo Veiga-Neto responde que:

Numa perspectiva foucaultiana, o neoliberalismo não representa a vitória liberal do horror ao Estado. Ao contrário do que muitos têm dito - aí incluídos economistas, políticos, sociólogos e a mídia -, não há nem mesmo um retrocesso do Estado, uma diminuição do seu papel. O que está ocorrendo é uma reinscrição de técnicas e formas de saberes, competências, expertises, que são manejáveis por “expertos” e que são úteis tanto para a expansão das formas mais avançadas do capitalismo, quanto para o governo do Estado. Tal reinscrição consiste no deslocamento e na sutilização de técnicas de governo que visam fazer com que o Estado siga a lógica da empresa, pois transformar o Estado numa grande empresa é muito mais econômico - rápido, fácil, produtivo, lucrativo. Isso sem falar que as próprias empresas - principalmente as grandes corporações - têm muito a ganhar com o empresariamento do Estado. (VEIGA-NETO, 2000, p. 192, grifo do autor).

Essa reinscrição de técnicas de poder nada mais faz do que tornar menos visíveis e mais eficazes as estratégias que visam governar os sujeitos. No caso particular aqui descrito, não se trata de afirmar a morte do Estado, mas a sua transformação e sua imbricação com o próprio mercado. O professor, enquanto agente do Estado, deveria ter a exata medida de intervenção para que não caia na doutrinação, da mesma forma que o Estado não interfira demasiadamente na economia para o bom funcionamento desta. O que há, segundo o movimento, é um conflito de interesses entre liberdades individuais, familiares ou religiosas e a intervenção do poder estatal, tido como oposto e limitador dessas liberdades. Tais afirmações mostram que “[...] inicialmente, o discurso neoliberal significou a redução do estado a fim de permitir o desenvolvimento de um mercado sem restrições; contudo, o papel do estado tem sido redefinido como um aliado do mercado, para definir as condições adequadas para que o mercado possa operar” (BALL et al., 2013, p. 25).

Dessa forma, podemos concluir que a ideia de neutralidade do Estado aparece de pelo menos três formas no pensamento do ESP: 1) como não-intervenção: ou seja, a prerrogativa de que o Estado (o professor, a escola) não interfiram na educação (especialmente a educação moral) dos pais e da religião. Confunde-se com conservadorismo, pois sempre advoga para a manutenção de certa tradição, mas também se liga às características neoliberais dos ditos do ESP que, conforme indicamos, opõem as liberdades individuais ao poder estatal, como se o segundo sempre estivesse diminuindo o primeiro; 2) como intervenção na exata medida: o Estado (escola, professor) não deve extrapolar o nível do aceitável e violar as convicções morais da família e da fé. Relaciona-se à ideia de transmissão do conhecimento típica das teorias tradicionais da educação (SILVA, 2009). Por fim, mas não menos importante: 3) a intervenção para regulação ou contra-intervenção, que ocorre apenas quando o Poder Público “precisasse” regular as práticas educativas dos professores e da escola para garantir os direitos das famílias e dos alunos (indivíduos). Essa forma ocorreria apenas como um tipo de fiscalização, vigilância, supervisão e controle da escola para corrigir o desequilíbrio ideológico (supostamente) causado, historicamente, pela esquerda.

Dito isso, podemos afirmar que a relação entre conservadorismo e neutralidade do Estado no discurso estudado não foi uma descoberta unicamente nossa. Segundo o artigo de Alencar (2017):

Ao analisarmos esses termos [conservadorismo e neutralidade] integrando-os ao contexto social verificamos que o primeiro faz alusão à conservação das estruturas de dominação social, que reverberaram/reverberam na construção de uma sociedade demasiadamente desigual. O segundo remete à aceitação das injustiças sociais a partir da postura imparcial. Enfim, destacamos que o projeto em questão é contraditório em sua essência, uma vez que conserva e estimula e/ou aceita a disseminação de ideologias conservadoras no ambiente escolar, fato que vai em direção oposta ao discurso de neutralidade amplamente defendido em seu texto oficial. (ALENCAR, 2017, p. 138).

Para esse autor, que considera a sociedade como injusta, portanto, o próprio entendimento de intervenção mínima do Estado (neutralidade) já se tornaria uma bandeira em defesa da conservação do status quo. Parece-nos ter faltado a essa interpretação a percepção de que o ESP não se enxerga como pertencente ao establishment, mas justamente como uma organização que resiste a “dominação esquerdista”. Assim, os partidários do movimento se veem lutando contra a ordem e, portanto, não se vendo como conservadores.

Do nosso ponto de vista, a ligação entre o conservadorismo e o neoliberalismo do ESP reside muito em dois aspectos apontados por David Harvey (2008, p. 92): “[...] em primeiro lugar, na preocupação com a ordem como resposta aos caos de interesses individuais e, em segundo, na preocupação com uma moralidade inflexível como o cimento social necessário à manutenção da segurança do corpo político [...]”. Trata-se, assim, de teorias que assumem como ponto em comum suas concepções sobre as ações do Estado em termos de intervenção, tendo no campo da educação a luta contra preconceitos, por exemplo, como sinônimo de ação indesejada, por representar tanto uma falta de “neutralidade” do Estado (neoliberalismo), como por significar, muitas vezes, um atentado à moralidade de famílias e religiões (conservadorismo). Macedo (2017, p. 509) corrobora nossa tese ao afirmar que o ESP “[...] se trata de um movimento conservador que busca mobilizar princípios religiosos, a defesa da família em moldes tradicionais e a oposição a partidos políticos de esquerda e de origem popular”. Além dela, Miguel (2016) também aponta nesse sentido ao atribuir o próprio sucesso do movimento (já marcadamente neoliberal) à incorporação de pautas morais fundamentalistas (cristãs, sobretudo).

Conclusão

Cabe lembrarmos que estudar o neoliberalismo e o ódio ao Estado do ESP sem levar em conta a carga de antiesquerdismo, antimarxismo, anticomunismo e antipetismo dos seus discursos poderia parecer um equívoco. Não obstante, e esse caso é particularmente exemplar, pensar o neoliberalismo em conjunto com tais unidades citadas poderia fazer a análise cair nas armadilhas do maniqueísmo. Inversamente, procuramos deixar claras as concepções neoliberais presentes no discurso do ESP sem assumir que, ao tomar tais ideias como verdadeiras, o movimento fosse necessariamente antiesquerdista, anticomunista, etc., mesmo que ele também possua tais características.

Nosso principal resultado, portanto, é que, após a análise de mais de uma centena de textos publicados no site do movimento, é possível afirmar suas aproximações com o discurso neoliberal, bem como suas associações com pautas conservadoras oriundas da direita política. Como mostramos, a ligação entre defesa de um Estado mínimo e a promoção de liberdades individuais, de valores familiares e religiosos têm sido benéficas tanto para o ESP como para as organizações conservadoras em geral, aumentando a penetração desses ideais na sociedade. Essa aproximação, como vimos, existe desde as primeiras manifestações do movimento, mas vem se intensificando após a radicalização política ocorrida na segunda década do século XXI.

Em termos eleitorais, inclusive, essas associações vêm tendo sucesso nos últimos anos, quando novas frentes da direita política conservadora e neoliberal chegaram a cargos muito importantes dos governos federal e estaduais utilizando-se dessas parcerias mútuas. No caso da Educação Básica, as evidências que apontam para essas articulações podem contribuir para questionar as intenções do ESP, que, muitas vezes, se apresenta como uma organização independente e neutra. Como vimos, tal afirmação não poderia ser mais falsa: o ESP é, antes de mais nada, uma entidade que representa valores políticos e morais determinados, os quais apresentamos neste artigo.

Referências

ALENCAR, D. P. Educação e Neoliberalismo: o caso do projeto escola sem partido. Revista Brasileira de Educação em Geografia, v. 7, n. 14, p. 127-140, 2017. [ Links ]

BALL, S. J. et al. A constituição da subjetividade docente no Brasil: um contexto global. Revista Educação em Questão, Natal, v. 46, n. 32, p. 9-36, 2013. DOI: https://doi.org/10.21680/1981-1802.2013v46n32id5114Links ]

DÍAZ, M. Foucault, docentes e discursos pedagógicos. In: SILVA, T. T. da. (org.). Liberdades reguladas: a pedagogia construtivista e outras formas de governo do eu. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 14-29. [ Links ]

FISCHER, R. M. B. Foucault. In: OLIVEIRA, L. A. (org.). Estudos do discurso: perspectivas teóricas. São Paulo: Parábola, 2013. p. 123-151. [ Links ]

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016. [ Links ]

Recebido: 10 de Maio de 2020; Revisado: 30 de Novembro de 2020; Aceito: 01 de Dezembro de 2020; Publicado: 08 de Dezembro de 2020

Este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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