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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.15  Ponta Grossa  2020  Epub 17-Set-2020

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.15527.083 

Seção Temática: Adiando o fim da escola

Corpos[pandêmicos]: ação e subjetividade na arte educação

[Pandemic]bodies: action and subjectivity in art education

Cuerpos[pandémicos]: acción y subjetividad en el arte educación

Carla Carvalho* 
http://orcid.org/0000-0002-1402-7920

Pedro Gottardi** 
http://orcid.org/0000-0002-5053-9931

Helen Rose Leite Rodrigues de Souza*** 
http://orcid.org/0000-0002-6451-7960

*Professora no Programa de Pós-Graduação da Universidade Regional de Blumenau (FURB), Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: <carcarvalho@furb.br>.

**Mestrando em Educação no Programa de Pós-Graduação da Universidade Regional de Blumenau (FURB), Bolsista CAPES/CNPq. E-mail: <profpedro.art@gmail.com>.

***Professora de Arte na Rede Municipal de Educação de Blumenau, Mestre em Educação pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). E-mail: <helentche@gmail.com>.


Resumo:

Neste ensaio, discutimos os corpos e o ensino da Arte em distanciamento social. O objetivo é refletirmos sobre a ação e a subjetividade dos corpos[pandêmicos] na arte educação em meio ao caos e ao distanciamento social. Enfatizamos o corpo como lugar sensível e subjetivo, em um tempo no qual a COVID-19 coloca em suspensão a escola. A discussão baseia-se em teóricos do ensino da arte do corpo e da dimensão sensível nos corpos[pandêmicos]. Essa reflexão faz-nos perceber que já estávamos em estado de anestesia, mas, com esse possível estado de pandemia sensível, o corpo pode absorver uma gama de possibilidades estéticas a partir de experiências sensíveis. Há, assim, um desafio aos corpos[pandêmicos] docentes e discentes.

Palavras-chave: Corpo; Corpos[pandêmicos]; Ensino da arte; Subjetividade

Abstract:

In this essay, we discuss the bodies and the teaching of Art in social distancing. The objective is to reflect on the action and subjectivity of [pandemic]bodies in art education in the midst of chaos and social distancing. We emphasize the body as a sensitive and subjective place, at a time when COVID-19 puts the school in suspension. The discussion is based on theorists of teaching body art and the sensitive dimension in [pandemic]bodies. This reflection makes us realize that we were already in a state of anesthesia, but with this possible state of a sensitive pandemic, the body can absorb a range of aesthetic possibilities from sensitive experiences. There is, therefore, a challenge to the [pandemic]bodies of teachers and students bodies.

Keywords: Body; [Pandemic]bodies; Art teaching; Subjectivity

Resumen:

En este ensayo, discutimos los cuerpos y la enseñanza del Arte en distanciamiento social. El objetivo es reflexionar sobre la acción y la subjetividad de los cuerpos[pandémicos] en el arte educación en medio del caos y del distanciamiento social. Enfatizamos el cuerpo como un lugar sensible y subjetivo, en un momento en que el COVID-19 pone en suspensión a la escuela. La discusión se basa en los teóricos de la enseñanza del arte del cuerpo y de la dimensión sensible en los cuerpos[pandémicos]. Esta reflexión nos hace percibir que ya estábamos en un estado de anestesia, pero, con este posible estado de pandemia sensible, el cuerpo puede absorber una gama de posibilidades estéticas oriundas de las experiencias sensibles. Hay, por lo tanto, un desafío para los cuerpos [pandémicos] docentes y estudiantiles.

Palabras clave: Cuerpo; Cuerpos[pandémicos]; Enseñanza de arte; Subjetividad

Ato de início

Manifestou-se o manifesto vazio

Invocado pelas forças internas

Que se consolida o vazio

Transbordou-se em nossas mentes vazias

Vazio, vazio, vazio nosso

O que lhe preenche?

Tão questionado quanto nós

Será capaz de nos consumir como uma avalanche?

Vazio

Azio

Zio

Io

O

Vacio

Vide

ofo

Sempre tão acolhedor

Nos encontrou

Em um ato estarrecedor

Em nosso ser adentro

Anderson Devigili (2020)1

Em nossas vivências acadêmicas e profissionais na educação, juntamente às andanças pelo mundo, somos provocados por conceitos e teóricos sobre educação. Nesse contexto de pandemia, a arte surge como um respiro para nossos estudos em educação; no entanto, diante do vivido nesse momento de crise mundial, o que fazemos? Quais os reflexos atuais sobre os corpos e o ensino da arte? Como pensar corpos criativos nesse momento de pandemia? Nesse encontro com questionamentos que acenam um novo comportamento/panorama, ficamos e sentimo-nos vazios.

O Vazio, de Anderson Devigili, acenado no manifesto do artista está aqui em nós, nas nossas subjetividades e também em você. Está no contexto, mas não é um vazio qualquer, é um vazio do corpo que tenta, na relação com a vida, com os outros, um lugar de respiro. Será a arte esse lugar? Esse vazio pode ser prenhe!

Estamos, assim, em meio a perguntas, e elas invadem nosso cotidiano docente. O caminho aponta incertezas e desafios, diante do que compreendemos sobre subjetividade, sobre o corpo na escola e no ensino da arte. Frente às construções teóricas e nossas elucubrações, desenvolvemos um ato de escrita que venha elucidar ações em apropriações urgentes, de [re]existência, para aquilo que tratamos como arte educação no ensino da arte.

Estamos em meio a uma pandemia, em meio a um momento no qual todos os docentes são convocados a repensar a escola e os processos de ensinar e de aprender. Vimos, em meio ao caos da saúde e social, a escola ser o local primeiro a estacionar as suas atividades, considerando o lócus privilegiado de contágio que ela é, pois são corpos envoltos em uma pandemia - corpos[pandêmicos]2. Em consequência, escolas paradas e docentes tendo de repensar suas ações no contexto vivido na relação com seus discentes, independentemente do nível de escolaridade.

Diante do vazio que se estabelece no contexto escolar, há uma “gravidez” que se estabelece no contexto social e cultural que pulveriza a necessidade de os corpos criarem, dialogarem e externarem o que pensam e sentem diante do tempo vivido. A Arte é esse lugar privilegiado de criação do humano no contexto atual. Vimos, em todos os contextos virtuais, considerando o distanciamento social, os artistas criando. Durante a pandemia, Debora Diniz, por exemplo, elabora relicários (Figura 1) que, segundo ela: “Aqui são relicários de uma epidemia no Brasil” (DINIZ, 2020, n.p.), com imagens de pessoas que morrerem a cada dia vítimas da pandemia. Ela busca, na ação de criar, uma forma de pensar a vida e a morte e dar sentido a sua experiência diante do que sente.

Fonte:Diniz (2020, n.p.).

Figura 1 Relicários - obra da artista Debora Diniz 

Para Diniz (2020), em meio ao processo criativo: “O luto é uma experiência íntima, mas também pública. Por isso, o luto é sempre político”. Esse lugar de recriação é, ao mesmo tempo, um lugar de acolhimento e de ação do humano, na relação com o que vive e com o que está percebendo do mundo, pois inicia-se justamente “[...] nesse “corpo-a-corpo” primeiro mantido com o mundo que nos rodeia, a aventura do saber e do conhecer humanos” (DUARTE JR., 2001, p. 12, grifo do autor). Diante disso, como pensamos o docente nesse contexto? Como vemos nossa ação e atuação no contexto escolar e como essas se reverberam neste tempo vivido? Este texto não busca respostas, mas reflexões desses corpos[pandêmicos] docentes que vivem esse tempo, que se isolam, mas se conectam e se dilatam ao incerto. Incerto em todos os sentidos: a vida, a sociedade, a cultura, ao que, na relação conosco, nos subjetiva.

A temática deste estudo possui espaço no Grupo de Pesquisa Arte e Estética na Educação (GPAEE) da Linha de Pesquisa Linguagens, Arte e Educação, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação - Doutorado e Mestrado em Educação, da Universidade Regional de Blumenau (FURB). Junto ao grupo, dialogamos sobre a arte e a estética na relação com a educação, em busca de discutir a subjetivação do corpo docente, averiguando a influência das experiências estéticas e artísticas nas ações e nas sensações dos sentidos nos corpos, que se descobre, ou não, por meio do eu, do outro e do coletivo, em um contexto cultural de experiências - aquela “[...] que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece” (LAROSSA BONDÍA, 2002, p. 21), sejam elas estéticas ou não, ao modo em que acontecem na vida.

Este ensaio é uma revisão de literatura entrecortado ao que vivemos agora na condição de docentes em período de distanciamento social. Trazemos nossos relatos, extraídos dessas experiências docentes, vividas até então no Ensino Superior. Nesse sentido, buscamos posicionamentos teóricos que discutem sobre a arte educação, tendo por finalidade articular e fundamentar os conhecimentos de maneira clara na investigação (MINAYO; SANCHES, 1993). Esses posicionamentos são sistematizados de forma a dialogar com o texto, enquanto outros o adentram de maneira a corroborar e elucidar o contexto. Marcamos este ensaio com o vivido agora, com o que sentimos e percebemos ao nosso redor e que dialoga com discentes e como, nós docentes, nos provocamos a pensar e a repensar a docência em arte.

Somos professores de arte e artistas visuais que atuamos como docentes e pesquisadores em Educação no ensino formal. Atuamos com turmas virtuais em encontros síncronos. Assim, nosso questionamento surgiu com a necessidade de compreensão dos pressupostos epistemológicos que nos parecem não atingir nossos propósitos profissionais diante da atualidade, em distanciamento, frente às necessidades, por entendermos que eles podem vir a parar no tempo, de modo a anestesiar, negar a capacidade sensível, a incapacidade de sentir (DUARTE JR., 2001), a ação dos docentes de arte.

Desejamos falar do vivido, agora em tempos de distanciamento social, mas: “Como tomar a própria prática ou o ambiente de trabalho como objeto de pesquisa? Quais os desafios éticos e os cuidados que a investigação supõe?” (VIDAL; SILVA, 2019 p. 43). Diante desses questionamentos, colocamo-nos a pensar acerca dos acontecimentos em encontros síncronos com os discentes e, nesse sentido, como optamos por trazer dados de nossos encontros. Nosso intuito foi trazer as “dimensões da transparência” para o processo de escrita já que tínhamos como propósito pensar os corpos[pandêmicos] em tempo vivido durante a pandemia (VIDAL; SILVA, 2019, p. 45). Os excertos utilizados nesse ensaio foram gerados em encontros síncronos de aulas com grupos de acadêmicos de Licenciatura de Artes Visuais e Mestrado e Doutorado em Educação, ambos da FURB, entre os meses de abril e maio de 2020.

Dessa maneira, focamos nossa atenção à ação docente e atentamo-nos para a significação de movimento em um diálogo sobre as experiências sensíveis, aquelas acessíveis a nós por meio dos órgãos dos sentidos, captadas de maneira sensível pelo corpo e carregada de significado e sentido (DUARTE JR., 2001), que nos movem e nos fazem perceber os corpos[pandêmicos], tendo em vista tudo aquilo que de algum modo nos sensibiliza e movimenta o subjetivo de forma poética em nossas vidas. Buscamos, também, compreender conceitos sobre arte educação no ensino da arte, a partir de Bessa (1972), Fusari e Ferraz (2001), Barbosa (2002, 2011) e Richter (2004). Com eles, procuramos analisar possíveis posicionamentos, que venham a se relacionar com a ação no ensino da arte, no processo de distanciamento social que vivemos.

Reconhecemos, nos corpos, parte desse processo e, por esse motivo, aproximamo-nos dos estudos do corpo com Le Breton (2012), para contextualizá-los como corpos[pandêmicos] e, então, relacioná-los à subjetividade a partir de Maheirie (2002), Silva (2009) e Paín (2009). Nesse sentido, colocamos em questão o inconsciente e o consciente, os quais nos conduzem a perceber o processo de subjetivação nos corpos que vivem a pandemia. Ostrower (2014) acena com reflexões sobre o processo criativo do corpo.

Ao refletirmos que, por meio do ensino da arte, podemos investigar a percepção dos corpos[pandêmicos] na relação com a subjetividade, podemos compreender que os corpos estão na relação com os contextos sociais e culturais que podem interferir nas experiências estéticas, quando, por exemplo, em distanciamento social. Por tal motivo, arriscamo-nos a chamar esses de corpos[pandêmicos], pois, mesmo não sendo infectados pela COVID-19, todos nós, de alguma maneira, somos afetados pela pandemia. Diante desse posicionamento, elencamos nosso objetivo: refletir sobre a ação e a subjetividade dos corpos[pandêmicos] na arte educação em meio ao caos e ao distanciamento social. Dito isso, a seguir, discorremos sobre os corpos[pandêmicos], a subjetividade e a escola em suspensão; em seguida, dissertamos sobre os corpos[pandêmicos] e o ensino da arte; e, por fim, tratamos de uma possível consideração sobre o corpo[pandêmico].

Corpos[pandêmicos] e subjetividade: a escola em suspensão

Na atualidade, o ensino da arte estende-se para os diversos níveis de escolaridade, o que, por vezes, pode levar alguns docentes a compreenderem o ensino da arte como algo sistemático e codificado, resposta de currículos e ementas construídas e levadas como única orientação para o ensino da arte. Esse processo pode vir a anestesiar os corpos, e, em se tratando de corpos[pandêmicos], existe um rompimento, uma mudança nos processos de ensino, ao observarmos o panorama da pandemia e do distanciamento social.

No entanto, o que existe na escola são “[...] as vidas/corpos que habitam e pulsam, em sua multiplicidade, nos/dos/com os cotidianos escolares” (AMORIM, 2017, p. 15). Idem agora ao que se encontra nas casas - vivem e habitam as casas corpos vivos, pulsantes em suas multiplicidades. Como em casulos, os corpos[pandêmicos] [re]existem em distanciamento social.

Esse processo anestésico dos corpos nos fica claro quando Foucault (1999) levanta questões sobre a disciplina, a qual, para ele “[...] tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos” (FOUCAULT, 1999, p. 298). Partindo desse pressuposto, podemos pensar que os corpos[pandêmicos], já treinados e domesticados, podem perder sensibilidades e serem afetados, esgotados, por se encontrarem diante de uma fragilidade social que envolve o distanciamento e o uso de recursos ainda não concretos para o ensino, desestabilizando processos de fruição na relação com a arte e a vida. Nesse sentido, atentamos a essa dimensão sensível humana, buscando considerar a sensibilidade dos corpos[pandêmicos] nos processos subjetivos.

Com Foucault (1999, p. 298), deparamo-nos com a reflexão sobre processos que nos condicionam a sermos vistos como uma grande massa coletiva e não partir de nossa singularidade: “E, depois, a nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário uma massa global, afetada por processos como nascimento, a morte, a produção, a doença, etc.”. Devido aos números da COVID-19, dos números do distanciamento social, do fechamento das escolas e dos novos moldes de pensar o ensino síncrono ou a distância, podemos pensar nas patologias que os corpos[pandêmicos] passam a viver.

A ação na escola perpassa o docente, o qual, em nosso entender, é o sujeito que pode compreender os corpos[pandêmicos] em novos cenários, em que a escola já não é mais um lugar de encontros. O próprio docente também é aqui compreendido como um corpo[pandêmico] que pulsa, que sente. Vemo-nos, nesse cenário, como corpos em situação de pandemia, além da pandemia viral, que todos conhecemos e vivemos, a constatação do deslocamento do que é ser professor e da ação docente nesse novo contexto.

Com isso, defendemos que é na ação docente que se reconhece a sensibilidade dos corpos[pandêmicos] nesse novo cenário. Nesse sentido, na relação com o contexto e com os outros, o docente pode potencializar, por meio da fruição, mesmo que por vezes, reflexos sociais que são direcionados por um contexto sociocultural em que o ser humano está inserido, pois o corpo é e se torna um corpo, em função de sua relação com o mundo (LE BRETON, 2012). Nesse contexto, reconhecemos que a subjetividade está intrínseca à dimensão sensível, mesmo que em distanciamento social. Para Duarte Jr. (2001, p. 127), sensível é “[...] sabedoria detida pelo corpo humano e manifesta em situações as mais variadas [...]”. Temos, assim, a união do corpo em matéria com a mente em um movimento dialógico, pois não há separação entre mente e corpo (DUARTE JR., 2001).

Temos tratado do ensino da arte e do processo de desenvolvimento da subjetividade do corpo na escola (BARBOSA, 2011), mas não estávamos preparados para os corpos[pandêmicos], o que nos faz esvaziar, em um sentido de vazio diante do que acontece. Para Barbosa (2011), a arte na educação deve ser compreendida como uma expressão do corpo como cultura, nos alertando para as identidades. Segundo Barbosa (2011), é por meio da arte que podemos desenvolver nossas percepções e, também, imaginar. A arte na educação deve, por conseguinte, ser percebida como capacidade crítica que permita uma análise sobre a realidade. Nesse ato de compreender a ação docente, agora em corpos[pandêmicos], precisamos observar suas relações subjetivas, mesmo que a distância, porém se fazendo presente por meio de mecanismos que levem a escola aos corpos[pandêmicos], pois compreendemos que a escola é o lugar do encontro desses corpos[pandêmicos], em distanciamento social, os quais possuem fluxos contínuos, conscientes e inconscientes.

No distanciamento social, reconhecemos os impactos na subjetividade. Ela movimenta os corpos[pandêmicos]. A subjetividade, antes de tudo, pode ser lida como

[...] aquilo que diz respeito ao indivíduo, ao psiquismo ou a sua formação, ou seja, algo que é interno, numa relação dialética com a objetividade, que se refere ao que é externo. É compreendida como processo e resultado, algo que é amplo e que constitui a singularidade de cada pessoa. (SILVA, 2009, p. 170).

Embora a subjetividade refira-se àquilo que é interno, ela não necessariamente tem sua origem no interior do corpo, pois seu desenvolvimento ocorre na troca contínua entre o interno e o externo (SILVA, 2009). Antes do distanciamento, no Brasil, já víamos cenas de distanciamento e isolamento social na Ásia e na Europa. De alguma maneira, já estávamos prevendo que a pandemia aqui chegaria. Mesmo assim, não nos preparamos; e, de repente, escola e nós professores percebemo-nos pouco sensíveis a como lidaríamos com essa situação.

Duarte Jr. (2001) levantou questões sobre possíveis desestímulos ao refinamento dos sentidos humanos promovidos pelo mundo atual, em que nem mesmo nossas casas, nossas conversas, nossa alimentação e nosso relacionamento com a natureza expressavam afeto e sensibilidade; assim, encaminhava-nos a níveis grosseiros, insensíveis e mecânicos de viver. Segundo Le Breton (2012), o processo da subjetividade dá-se por meio das interações do corpo com o seu meio social, pois, por meio do corpo, o homem apropria-se de elementos que servem de sistemas simbólicos para compartilhar com os membros de sua comunidade. Certos de que o processo subjetivo se dá nas interações dos corpos[pandêmicos], nossos vazios parecem preencherem ainda mais nossos corpos[pandêmicos], diante de tudo que víamos discutindo. E assim o vazio nos habita.

Para Le Breton (2012, p. 8), “[...] ao nascer, a criança é constituída pela soma infinita de disposições antropológicas que só a imersão no campo simbólico, isto é, a relação com os outros, poderá permitir o desenvolvimento”. E à medida que essa imersão acontece na escola, fruto das relações vivenciadas no mundo por esse corpo, ele produz significações. Essas significações, em um contexto de pandemia, pressupõem uma mudança nos corpos e permitem humanizar a objetividade no mundo, compondo, assim, corpos[pandêmicos] constituídos na relação com o distanciamento social.

Escola. Segundo Touraine (1994, p. 20), “[...] a escola deve ser um lugar de ruptura com o meio de origem e de abertura ao progresso ao mesmo tempo pelo conhecimento e pela participação em uma sociedade fundada sobre princípios racionais”. A partir disso, pensamos a escola como um espaço dinâmico em interações, que acolhe as particularidades de cada corpo. Entretanto, a escola está fechada! Como ela vai, então, promover o reconhecimento das diversidades, aceitando-as e respeitando-as, ao mesmo tempo que contribui para a construção da unidade coletiva? De algum modo, há um vazio no comportamento/panorama atual, diante da cultura presente no espaço escolar.

Feldhaus (2018) define esse espaço como corpo-escola-arte, porém este nos parece ter desaparecido. O corpo-escola-arte ajuda-nos a tecer relações que podem ser estabelecidas por grupos sociais que integram esse tipo de espaço, onde corpos vivem e participam - mesmo que as relações sejam estabelecidas pelo simples fato de que: “O homem é um ser histórico; move-se na ordem de uma perpetuação” (PAIN, 2009, p. 20). No entanto, “[...] são necessários à criança alguns anos antes que seu corpo esteja inscrito realmente, em diferentes dimensões, na teia de significações que cerca e estrutura seu grupo de pertencimento” (LE BRETON, 2012, p. 8). Isso nos alerta para uma nova preocupação acerca de questões do espaço escolar, pois a subjetividade pode inferir nos corpos[pandêmicos] por meio do viver em um corpo que viveu a pandemia. E agora: corpo-tecnologia-escola-arte-casa? Nesse sentido, Feldhaus (2018) trabalha o conceito de corpo-escola-arte para discutir este lugar como um campo expandido de atuação docente, em uma perspectiva criativa para um olhar crítico, ético e político. Podemos, com ele, pensar na Arte como lugar de “aberturas” para pensar desvios e entregar-se ao momento vivido.

Em uma noite mediada por tecnologia, um estudante entra em sala virtual. Estávamos a conversar sobre imagens de Sebastião Salgado e sobre o manifesto liderado pelo Artista Salgado para proteger os Indígenas Brasileiros da COVID-19.

Estou com febre, sei que devo ficar na aula, mas não consigo. Fui ao posto, o médico acha que estou com COVID, mas não tem teste para quem não está ainda com febre em 39 graus. (Estudante de Graduação 1, 2020).

Silêncio! O silêncio foi longo, e, depois de um tempo, percebemos que o vírus estava no grupo. A sala é virtual, protege os corpos, mas os corpos são mais do que matéria.

A escola em suspensão. Uma nova escola constitui-se nessa relação. Se o encontro dos corpos na escola é marcado pela relação com a cultura do contexto escolar, estes se subjetivam e desenvolvem em si per si sua interação com o espaço que interfere no modo e no estado de seus corpos (LE BRETON, 2012). Há um conjunto de fatores no espaço que a escola pode designar: paredes, relação com os corpos dispostos na sala de aula, comportamento estrutural, sentimentos e emoções instigados ou, até mesmo, impostos pela escola. Segundo Tuan (1983, p. 151), o espaço “[...] transforma-se em lugar à medida que adquire definição e significado”. À medida que acontece um processo de significação, os corpos podem vir a se subjetivar diante do que lhe é apresentado, porém os corpos[pandêmicos] estão à deriva e nos parecem não encontrar um espaço. Assim, esse “virtual” é um novo espaço, o qual o corpo não habita, precisa criar uma relação íntima para aconchegar-se e tornar-se um lugar.

Ao pensar em lugar, podemos trazer a Arte para um respiro. Tendo o ensino da arte como ideal de exploração da subjetivação dos corpos[pandêmicos], buscamos um entender, um vazio, para dialogar com o conhecimento que é estabelecido nas relações sociais um com o outro, com o saber e com o lugar. “Essa perpetuação não termina com a reprodução do indivíduo, mas prossegue pela transmissão do conhecimento, que é também transmissão de formas de ser, de formas de crer” (PAIN, 2009, p. 20). Em meio à pandemia, com formas de ser e de fazer arte diferenciadas, por meio de temas que discutem a vida e nosso sistema, que formas reproduzimos?

Ao entendermos os conceitos que envolvem tanto experiência e estética, em um universo que circunda a arte na escola, buscamos reconhecer os corpos[pandêmicos]. Neste ensaio, enfatizamos que a estética indica a capacidade de o ser humano sentir a si próprio e ao mundo em um todo integrado (DUARTE JR., 2000). A nosso ver, os atos experienciados nesse processo de distanciamento podem levar a ações que ressoam esteticamente na atuação dos corpos[pandêmicos] em seu meio.

Os atos ausentes de movimentos dos corpos[pandêmicos] podem decorrer de suas experiências que se modificam no meio. O falar, o cheirar, o sentir na pele e o ouvir desdobram-se em microespaços de vivência. Os corpos[pandêmicos] sensibilizam-se ou não com os acontecimentos, reduzidos à espacialidade. A pandemia parece deformar as expressões dos corpos[pandêmicos] que lutam e relutam por interlocuções subjetivas com o lugar. Tudo isso se deve pela compressão de que os corpos[pandêmicos] subjetivam suas expressões diante da linguagem experienciada, pois, segundo Nóbrega (2005, p. 607): “Somos seres corporais, corpos em movimento”.

Visto isso, podemos caracterizar que a pandemia estabelece outras relações as quais os corpos[pandêmicos] desconhecem. Nesse percurso, há uma tentativa vazia de [re]familiarizar-se com o meio. Por que vazia? Porque há uma lacuna no entre, acompanhada por comoções internas e externas. Assim sendo, os corpos[pandêmicos] podem explorar situações de expressões corporais, as quais teriam por objetivo fazer perceber-se de acordo com a percepção do seu mundo em distanciamento. “O corpo não é sujeito até que conheça. É sujeito porque conhece, e é sujeito a esse conhecimento” (PAÍN, 2009, p. 15).

A ação dos corpos e a escola podem estar suspensos, o que dessegura os corpos[pandêmicos], de modo que eles não sejam reconhecidos, em função de um vazio, que permeia seus processos de desenvolvimento pessoal, por vezes frágeis de relações afetivas e singulares diante do cenário atual. Assim, uma lacuna é preenchida na medida em que a ação docente aceita seu microespaço na relação com o macroespaço, pois: “Pensamos as vidas/corpos nos cotidianos escolares como sujeitos em processos de autoria de sua arte de viver, individual e coletivamente” (AMORIM, 2017, p. 118).

Corpos[pandêmicos] e o ensino da arte

Em um dos encontros mediados pela tecnologia, em tempo síncrono, com um grupo de estudantes de Graduação em Artes Visuais, um estudante pede um tempo:

Professora, posso ler um poema? Diante de tantos problemas, vamos respirar poesia um pouco? (Estudante de Graduação 2, 2020).

De repente, a aula toma outro lugar, toma outra direção e a tensão que estava no ar, diante da preocupação em ter aulas, manter os conteúdos, manter o tempo e a relativa produtividade é questionada. Vimos, então, um potente lugar de descoberta de um corpo que desloca o docente, que também escreve e pesquisa. Percebemos, desse modo, que o corpo docente se constitui na relação com os estudantes e se percebe em pandemia junto aos contextos educativos. Algumas das descobertas relacionadas ao corpo na educação não se limitam apenas ao corpo que é educado nas escolas, mas no seu percurso de vida, compreendendo os diferentes contextos culturais em que “[...] a corporeidade é, existe e possui, através da cultura, significado” (MOREIRA, 2012, p. 135). Mobilizar o docente para estar preparado a ocupar esse espaço de descoberta e acompanhar os corpos[pandêmicos] nesse processo de distanciamento social que se torna cotidiano norteiam pressupostos mediados por experimentos incertos, que podem acolher o vazio e observar a ação docente diante da arte educação.

Em uma das atividades, solicitou-se, aos acadêmicos, um vídeo arte. Todos os envolvidos trouxeram, como temática, relações com a pandemia. Interessante observarmos que, mesmo não sendo o pedido direto, foi o tema recorrente no material gerado pelo coletivo. Um acadêmico afirmou:

Em meio à pandemia, minha posição inicial é a posição do feto e a esse lugar desejo voltar, voltar ao ninho, voltar a me sentir seguro. (Estudante de Pós-Graduação 1, 2020).

O encontro é com o eu, com a subjetividade na relação com o contexto e como a vida se faz em meio à pandemia. Os corpos[pandêmicos] anseiam por um lugar de subjetivação que ampare possíveis expressões que só ele pode conhecer. “Assim, o corpo não é somente uma coleção de órgãos arranjados segundo leis da anatomia e da fisiologia. É, em primeiro lugar, uma estrutura simbólica, superfície de projeção passível de unir as mais variadas formas culturais” (LE BRETON, 2012, p. 29).

Diante do estado de distanciamento social, percebemos que os corpos[pandêmicos] vivem contextos pouco evidenciados na vivência escolar. As ações são desafiadas por meio do que os corpos[pandêmicos] trazem, partilham, e do que a comunidade escolar pode, entre espaços de luta de interesses, trazer para este momento. No entanto, agora, em meio a pandemia, parte desses interesses se transformam, pois, com a tecnologia, vimos outras realidades presencialmente em nossas telas. “Entramos” nas casas dos corpos[pandêmicos] cientes de que o docente não é um educador que intervém na vida privada dos estudantes (TOURAINE, 1994), embora percebamos seus corpos[pandêmicos] indexados a vazios resultantes de modelos e de métodos de ensino que se desalinham nas vivências. Assim sendo, a tecnologia aproxima-se de um lugar, de uma intimidade pouco acessada. No entanto, guarda silêncios que nem sempre são trazidos à tona durante os encontros.

Na relação com a potência da arte, da arte que está agora em fervência, podemos perceber nos corpos[pandêmicos] discentes desejos e medos, lugares que seus corpos[pandêmicos], já situados na pandemia, pouco acessavam. O vazio é perceptível e percebemo-nos na incapacidade de lidar com o novo, e, decorrente disso, o aligeiramento vem à tona no ensino. Assim, a ação docente coloca-se em contextos não imaginados.

Um outro vídeo desse coletivo, daquele conjunto de vídeo arte, acenado anteriormente, elaborados em uma aula de arte, um acadêmico filmou-se com um saco de lixo na cabeça (Figura 2). Seu trabalho dialoga com a performance e seu corpo assim se coloca na relação real entre a vida e a morte.

Desejei sentir o que era a falta de ar! (Estudante de Pós-Graduação 2, 2020).

Fonte: Acervo dos autores (2020).

Figura 2 Produção artística desenvolvida como vídeo performance pelo estudante de Pós-Graduação 2 

A aula de arte pode ser esse lugar no qual a empatia surge, coloca-se e desloca-nos ao que estamos vivendo. A arte, segundo Richter (2004), tem suas características intrínsecas por colocar os corpos em estados inusitados e inesperados. Segundo Richter (2004), o ensino da arte deve confrontar os corpos, em liberdade, e buscar experimentações que transbordem a criação por meio da imaginação, em uma ação frente ao desconhecido. Corpos[pandêmicos] podem usar da experiência para se estesiar, fruindo arte, no decorrer dos acasos no distanciamento. Pensamos o ensino da arte como fonte para amenizar os corpos[pandêmicos] diante do que vivem, mesmo que os contextos nos levem a mediações experimentais.

A partir de Richter (2004), o ensino da arte tende a atos de liberdade dos corpos em seus processos de criação. Isso nos permite perceber que a ação docente vinculada no processo de desenvolvimento da percepção e da sensibilidade cria subsídios para a compreensão do processo estético e artístico, tendo em vista que “[...] o estético e o artístico frequentemente se entrecruzam” (EATON, 2008, p. 93)

Essa ação em um processo criativo, para Bessa (1972), tem uma finalidade de construção de personalidade dos corpos. Nesse sentido, a autora elucida que o ensino da arte deve possibilitar aos corpos o acesso ao intelecto, à sensibilidade e à habilidade manual na criação. Aqui conseguimos perceber que o criar é um ato de ação. Segundo Bessa (1972, p. 11): “Criar é um dos atributos mais preciosos da pessoa humana: equivale a viver intensamente”.

Com Richter (2004) e Bessa (1972), podemos perceber as relações voltadas à capacidade de inventar, o que nos faz refletir que o ensino da arte tende a sensibilizar os corpos[pandêmicos], para as descobertas por meio de percepções. Isso dá subsídios para a compreensão de processos criativos, em que a linguagem é experienciada, mesmo que vazia, mas prenhe de necessidades existenciais e de encontros.

Para Fusari e Ferraz (2001, p. 24), os corpos podem explorar a arte por meio de experiências sensíveis: “[...] ver, ouvir, mover-se, sentir, pensar, descobrir, exprimir, fazer, a partir dos elementos da natureza e da cultura, analisando-os, refletindo, formando, transformando-os”. Essas ações revelam os sentidos nos corpos[pandêmicos], suspensos, mas abertos a percepções.

Apoiamo-nos em Richter (2004) quando percebemos que o ensino da arte tem, por vezes, o objetivo de sensibilizar os corpos para as descobertas no espaço e no tempo de sua cultura no momento em que vivemos. Segundo Richter (2004), as experiências dos corpos precedem uma formação e uma transformação, não sozinhas, mas em ação como em um “[...] acontecimento da pluralidade e da diferença, como aventura em direção ao desconhecido, como produção infinita de sentidos” (RICHTER, 2004, p. 21)

As expressões de todas as vivências no ensino de arte podem tornar-se experiências marcadas nos corpos[pandêmicos] que vivem a ação formativa durante a pandemia. A nosso ver, por meio das andanças em espaços de educação formal, observamos práticas de ensino da arte, as quais, talvez, já não tenham mais lugar nesse nosso processo existencial. É como se esse tempo nos apresentasse uma desordem necessária para repensarmos e aceitar o vazio, preenchendo lacunas de ações perceptíveis a essa realidade, desestruturando métodos e bases na aprendizagem.

Em nossos estudos e conversas, percebemos que é necessário reconhecer os corpos[pandêmicos]. Já não são mais os mesmos corpos, e não voltarão a ser os mesmos, pois suas expressões podem derivar de resíduos do que vivemos. Talvez, um expressar em ação docente no qual “[...] liberta-se da tensão, ajusta-se, observa o mundo que o rodeia, desenvolve percepções e imaginação, adapta-se, organiza pensamentos, sentimentos, sensações, forma hábitos de trabalho, educa-se” (BESSA, 1972, p. 11).

Um terceiro vídeo é de um acadêmico que sai de sua casa e filma uma árvore. Junto a essa árvore, ele respira fortemente, marcando um ritmo de respiração em um lugar aberto, mas a câmera está aberta e acompanhando a árvore (Figura 3). Por vezes, parece que sua respiração se confunde com a da planta e, juntos, respiram longa e calmamente.

Desejei isso, me conectar com a natureza, dela dependemos. Agora mais do que nunca precisamos de ar. (Estudante de Pós-Graduação 3, 2020).

Fonte: Acervo dos autores (2020).

Figura 3 Produção artística desenvolvida como vídeo pelo estudante de Pós-Graduação 3 

Sua declaração desloca-nos ao tema da pandemia, mas, de outra forma, na relação de tempo que a natureza está pedindo ao ser humano. No entanto, é preciso atentar-se que cada corpo[pandêmico] irá se expressar de acordo com seu meio, mediado por outros corpos[pandêmicos]. Isso permeia ações e estilos próprios, em função de suas subjetividades e individualidades. Os corpos[pandêmicos] não deixaram de ser os corpos, mas evidenciam suas expressões, como: movimentos, atitudes e posições. Quando expressados, tomam conta dos corpos[pandêmicos] “[...] sensações, emoções, sentimentos e pensamentos com seu corpo, integrando-o, assim às suas outras linguagens expressivas como a fala, o desenho e a escrita” (STOKOE; HARF, 1987, p. 15), como registros e histórias que ficam e são guardados em si.

Diante do exposto, percebemos que as expressões ligadas às experiências estéticas e artísticas vivenciadas em outros contextos não escolares, durante a pandemia, continuam sendo ações sensíveis, em que o corpo se apresenta como elemento ativo, simbólico e expressivo na construção das subjetividades.

Nesse sentido, a relação entre a arte e os corpos[pandêmicos] são inerentes, pois, para vivenciarmos determinadas ações estéticas e artísticas, dependemos extremamente de nossas ações em experiências sensíveis, bem como de sensações abstraídas dessas experiências, para deixarmos de ser meros espectadores para sermos corpos das experiências estéticas e artísticas, durante a pandemia. Como afirma Paín (2009, p. 21), “[...] consideramos a criação de conhecimento, o pensamento voltado para a realidade, tão inconsciente quanto o pensamento voltado para o desejo, os dois, em sua produção, são inconscientes”. Ostrower (2014) define os dois em um princípio dialético do processo criador, visível nos processos artísticos contemporâneos. “É um processo contínuo que se regenera por si mesmo e onde o ampliar e o delimitar representam aspectos concomitantes, aspectos que se encontram em oposição e tensa unificação.” (OSTROWER, 2014, p. 26). Por isso, a necessidade do encontro e de tentar subsídios que aflorem a percepção estética desses corpos[pandêmicos].

No contexto da escola em suspensão, destacamos que o ensino da arte “[...] assim como o próprio viver, o criar, é um processo existencial. Não abrange apenas pensamentos nem apenas emoções” (OSTROWER, 2014, p. 56), mas um ato político de olhar para o mundo e fazer da arte esse lugar de compreensão da dimensão humana e sensível dos sujeitos. O ensino da arte deve expandir instrumentos teóricos e práticos das experiências artísticas, cujos corpos[pandêmicos] sejam percebidos, contemplados e sensibilizados. Os corpos[pandêmicos] sensibilizados podem encontrar processos, inconscientemente, por resgatar lembranças, que constituem os seus corpos marcados por experiências.

O fazer artístico aqui é compreendido como uma ação complexa de observação e de relação com a realidade e imaginação que potencializa os processos artísticos dos corpos[pandêmicos] que observam as casas, os apartamentos, as ruas, os objetos, as paisagens pelas janelas, etc. Encontram, na materialidade artística e na linguagem, a possibilidade de apresentar e refratar a realidade forjada na relação entre o mundo e o seu eu subjetivo de forma objetiva, amparados no ensino da arte, “[...] desviantes como obra de arte pensada a partir de uma “Estética da Existência” (AMORIM, 2017, p. 89).

Uma possível consideração sobre o corpo[pandêmico]

Tendo em vista os fatos apresentados, concluímos que, quando criamos meios para que os corpos[pandêmicos] participem intrinsecamente de um processo estético e artístico, podemos possibilitar vivências estéticas isoladas. Visto o desconhecido e o romper dos encontros, a escola virou um macroespaço delimitado por alternativas, espaços “virtuais” que parecem, por vezes, preencher o vazio já preenchido. A rotina escolar está em suspenso. Houve uma quebra da rotina, que força os corpos[pandêmicos] a ressignificarem sua existência, frente à pandemia.

As vivências tornam singular a forma de compreender o mundo e relaciona-se diretamente com a subjetividade dos corpos[pandêmicos], que aprendem para conhecer, até o jeito do uso de uma máscara, feita manualmente pelas mãos de um ente querido. Esse aprendizado poderá reensinar ou reestruturar a sociedade, antes acostumada a regras ditadas sobre o que consumir, o que vestir, em que acreditar ou como se comportar.

Com os estudos de Le Breton (2012), podemos concluir que, ao abordar a sociologia do corpo, fica claro que os corpos, agora corpos[pandêmicos], são reflexos do passado, vivendo novos modos de vida. Comportamentos que fazem esses corpos[pandêmicos] estabelecer meios para inserir-se na sociedade, em um âmbito social desigual que encarna o comportamento hegemônico sobre o outro.

Os corpos[pandêmicos], como lugar íntimo, guardam em si as diferentes emoções que podem ser exploradas no ensino da arte. Cabe o desafio, ao docente de arte, permitir a ação que instiga o potencial subjetivo dos corpos[pandêmicos] no processo poético durante as práticas no ensino de arte, mesmo que estas aconteçam por meios virtuais. O cenário parece incerto3, alguns esperam pelo retorno das atividades, como se nada houvesse mudado, mas o que sentimos é que já não seremos mais os mesmos, não somos mais os mesmos.

Diante disso, podemos refletir que, nos momentos de subjetivação, os corpos[pandêmicos] podem se fazer presentes ou não, é apenas uma questão de comportamento, diante do panorama em que se vive. Conectar, desconectar, adaptar, romper, reconfigurar - essa dinâmica de escola e de ensino já traduz impactos sobre nossas próprias práticas. É uma realidade que se estende da escola às universidades.

A arte, a nosso ver, sempre possibilitará o encontro do eu com o inconsciente e o consciente, mesmo que ausente dos encontros ou do vazio de percepções. Nós, como arte educadores, acreditamos na arte como potência; e, nesse cenário, em que a pandemia bateu a nossa porta, o corpo precisou e vem precisando se perceber em uma condição comportamental, quase que genética, em se distanciar.

As reflexões realizadas aqui entre Bessa (1972), Fusari e Ferraz (2001), Barbosa (2002, 2011) e Richter (2004) ajudam a compreender um caminho histórico e cultural do ensino da arte, no qual, por exemplo, não basta apenas uma habilidade manual ao corpo ou à compreensão do contexto histórico da arte, mas é necessário que esses corpos sintam em sua pele as diferentes experiências estéticas sensíveis nos corpos, agora corpos[pandêmicos].

A ação dos corpos[pandêmicos] podem absorver uma gama de possibilidades estéticas a partir de experiências sensíveis no campo da arte. “Todos os nossos prazeres e tristezas, todas as experiências das cores, dos sons, das formas, das tessituras, dos perfumes que nós temos, todo sentimento de amor e de raiva têm um modelo artístico” (IANNINI; GARCIA; FREITAS, 2015, p. 43).

Os corpos[pandêmicos] querem falar, descobrir, sentir. Assim, exprimem suas emoções subjetivas por meio dos sentidos, que somente os corpos[pandêmicos], vivendo em distanciamento, conseguem traduzir em seus percursos de vidas, quase que virtuais. Como corpos pensantes e criativos que são, cedem-se ao vazio para recriarem em microespaços, para um dia, poder explorar os macroespaços.

1Poema do estudante Anderson Devigili, acadêmico do curso de Artes Visuais, em processo criativo, da Universidade Regional de Blumenau. Não publicado.

2Pandêmico: adjetivo - “[...] que se refere a ou tem o caráter de pandemia, epidemia que atinge vastas regiões” (DICIO, 2020, n.p.).

3Há muito em jogo no campo da economia e política no momento.

Referências

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Recebido: 24 de Maio de 2020; Revisado: 10 de Julho de 2020; Aceito: 11 de Julho de 2020; Publicado: 13 de Julho de 2020

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