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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.15  Ponta Grossa  2020  Epub 04-Jun-2020

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.15010.045 

Seção Temática: Políticas conservadoras na Educação Básica

Sempre atrás de um buraco tem um olho: racionalidade neoliberal, autoritarismo fundamentalista, gênero e sexualidade na Educação Básica*

Behind a hole there is always an eye: neoliberal rationality, fundamentalist authoritarianism, sexuality, and gender in Basic Education

Siempre detrás de un hueco hay un ojo: racionalidad neoliberal, autoritarismo fundamentalista, género y sexualidad en la Educación Básica

**Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutor em Educação pela UFRGS. E-mail: <fernandoseffner@gmail.com>.


Resumo:

Este artigo está estruturado em quatro tópicos a serviço de estabelecer relações entre a racionalidade neoliberal e o autoritarismo fundamentalista, sempre de olho nas questões em gênero e sexualidade no terreno da Educação Básica. Inicialmente, desenha-se o contexto político e cultural recente no Brasil. Em seguida, discute-se o contexto político e cultural recente no Brasil, fazendo uso dos conceitos de neoliberalismo, de racionalidade neoliberal, de democracia e de desdemocratização e de sujeito empreendedor. Posteriormente, o texto trata dos impasses envolvidos na abordagem dos temas em gênero e sexualidade na Educação Básica, a partir da etnografia de cenas escolares; além disso, lida com os conceitos de gênero; de sexualidade; de ideologia de gênero; de pedagogias do gênero e da sexualidade; e de diversidade e de pânico moral. Por fim, articulam-se as reflexões feitas nos tópicos anteriores ao uso da afirmação “o Estado faz o gênero e o gênero faz o Estado”, de forma a enfatizar que gênero, sexualidade e os elementos de ordem moral conservadora do atual Governo não são elementos acidentais do projeto de racionalidade neoliberal, mas, sim, estão em seu coração.

Palavras-chave: Racionalidade neoliberal; Políticas conservadoras; Pedagogias do gênero e da sexualidade

Abstract:

This paper is structured in four topics in the service of establishing relations between neoliberal rationality and fundamentalist authoritarianism, always keeping an eye on issues of gender and sexuality in the field of Basic Education. Initially, the recent political and cultural context in Brazil is outlined. Then, the recent political and cultural context in Brazil is discussed, making use of the concepts of neoliberalism, neoliberal rationality, democracy and de-democratization and the entrepreneurial subject. Subsequently, the text deals with the impasses involved in addressing issues of gender and sexuality in Basic Education school, based on the ethnography of school scenes; in addition, it deals with the concepts of gender; sexuality; gender ideology; pedagogies of gender and sexuality; and diversity and moral panic. Finally, the reflections made in the previous topics are articulated, using the statement “the State makes gender and gender makes the State”, in order to emphasize that gender, sexuality and the conservative moral elements of the current Government are not accidental elements of the neoliberal rationality project, but they are at its heart.

Keywords: Neoliberal rationality; Conservative policies; Pedagogies of gender and sexuality

Resumen:

Este artículo está estructurado en cuatro tópicos al servicio de establecer relaciones entre la racionalidad neoliberal y el autoritarismo fundamentalista, siempre atentos a las cuestiones de género y sexualidad en el campo de la Educación Básica. Inicialmente, se diseña el contexto político y cultural reciente en Brasil. En seguida, se discute el contexto político y cultural reciente en Brasil, haciendo uso de los conceptos de neoliberalismo; de racionalidad neoliberal; de democracia y desdemocratización; y de sujeto emprendedor. Posteriormente, el texto trata sobre los impases involucrados en el enfoque de los temas de género y sexualidad en la Educación Básica, basados en la etnografía de escenas escolares; además de eso, trata los conceptos de género; de sexualidad; de ideología de género; de pedagogías del género y de la sexualidad; y de diversidad y de pánico moral. Finalmente, se articulan las reflexiones realizadas en los tópicos anteriores al uso de la afirmación “el Estado hace al género y el género hace al Estado”, enfatizando que género, sexualidad y los elementos de orden moral conservadora del gobierno actual no son elementos accidentales del proyecto de racionalidad neoliberal, pero sí están en su corazón.

Palabras clave: Racionalidad neoliberal; Políticas conservadoras; Pedagogías del género y de la sexualidad

Dos fios que tramam o contexto atual

Eu tô aqui pra quê?

Será que é pra aprender?

Ou será que é pra sentar-se, me acomodar e obedecer?1

Esta escrita estrutura-se em quatro tópicos a serviço de uma hipótese. Neste primeiro tópico, desenha-se em largos traços o contexto político e cultural recente no Brasil, valendo-se de dados e de cenas e lidando com as noções de participação popular, democracia e regime conservador. No segundo tópico, discute-se esse mesmo contexto de forma ampliada, fazendo uso dos conceitos de neoliberalismo, de racionalidade neoliberal, de democracia e de desdemocratização e de sujeito empreendedor. O terceiro tópico ocupa-se dos impasses envolvidos na abordagem dos temas em gênero e sexualidade nas escolas de Ensino Fundamental e Ensino Médio e vale-se da etnografia de cenas escolares, além de lidar com os conceitos de gênero, de sexualidade, de ideologia de gênero, de pedagogias do gênero e da sexualidade, de ressentimento, de ódio, de nojo, de diversidade e de pânico moral. O quarto e último tópico articula e aprofunda as reflexões feitas nos tópicos anteriores, com o uso da afirmação “o Estado faz o gênero e o gênero faz o Estado”, enfatizando que gênero e sexualidade e os elementos de ordem moral conservadora do atual Governo não são elementos acidentais do projeto de racionalidade neoliberal, mas, sim, estão em seu coração. Busca-se, também, nesse quarto tópico, avançar algumas marcas desejáveis em um projeto de educação que se queira emancipador e preocupado com o aprofundamento da democracia.

A hipótese que o texto persegue é modesta. Ela apenas indica conexões entre o campo da racionalidade neoliberal e o campo do regramento moral conservador dos costumes em gênero e sexualidade. Todavia, isso ajuda a entender o conjunto de ataques dirigidos à escola pública e auxilia no traçado de estratégias pedagógicas que respeitem as diferenças, promovam o conhecimento científico argumentado e a produção de um mundo que valorize a diversidade humana. Em linhas gerais, a posição teórico-política deste artigo assume que o currículo, a cultura escolar, o trabalho docente e os conteúdos didáticos propostos são frutos de escolhas simultaneamente pedagógicas e políticas. Dito do modo mais conhecido, o ato pedagógico não se separa do ato político, embora distintos em intencionalidade (FREIRE, 2018). Dessa forma, decidir pela não-inclusão de temas em gênero e sexualidade no percurso escolar, reservando a abordagem de tais temas como exclusividade da família ou das religiões, retira questão de absoluta relevância do cotidiano escolar e das possibilidades de aprendizagem. Assumimos, aqui, que se aprende sobre gênero e sexualidade, se aprende a conhecer o próprio corpo e seus desejos eróticos, se aprende a respeitar - ou não - orientações sexuais diferentes da nossa e modos de viver o gênero que não são aqueles que guiam nossas vidas, se aprende a reconhecer um assédio moral, ou a fazer um assédio moral. O ambiente escolar é absolutamente generificado, e as tradicionais duas filas para ingresso na sala, os banheiros escolares divididos, as aulas de Educação Física separadas entre meninos e meninas são apenas uma pequena amostra, a mais visível, dessa generificação.

Reconhecemos que o leque de autores e de autoras e o número de conceitos mobilizados para dar conta dessa análise crítica é grande, ainda mais em artigo tão curto. No entanto, sentimos necessidade de lançar mão de um vocabulário que de fato expresse as compreensões e os desafios do tempo presente, e, por conta disso, são necessárias novas palavras, para novos sentimentos, ou antigos sentimentos vividos agora de modo novo, e para pensar impasses e questões que têm roupagens distintas de outras conjunturas, embora usando algumas das peças do mesmo vestuário de antigamente. Corremos o risco de ter posto lado a lado, nesta análise, categorias conceituais que não costumam estar próximas, como, por exemplo, nojo ao lado de democracia, ressentimento ao lado de racionalidade neoliberal. Aceitamos correr esse risco, no esforço de compreender desafios colhidos na etnografia de cenas escolares que nos fazem presenciar situações e demandas que causam profunda indagação para pensar uma escola que faça real diferença na vida de crianças e de jovens.

Cumpre agora estabelecer alguns marcos de um curto recorrido histórico por onde boa parte do texto vai se mover: o que inicia nas articulações da Constituição Federal de 1988 e chega aos dias de hoje. Após atravessar o período da Ditadura Civil-Militar (1964-1985), a sociedade brasileira envolveu-se fortemente na produção de uma nova Constituição Federal. Esta é a Constituição que mais contou com participação popular, no formato tanto individual - envio de cartas com sugestões - como coletivo, por pressão de grupos sociais dos mais diversos - na forma de documentos coletivos demandando direitos -, com proposição de emendas populares a partir de coleta de apoios. Isso se refletiu no texto constitucional, que aprovou mecanismos como plebiscito, referendo, projetos de lei de iniciativa popular, estratégias consultivas como o e-Cidadania, ouvidorias, etc. Igualmente importante foi a criação de uma rede de conselhos que visam efetuar o controle social das políticas públicas nas mais diversas áreas, permitindo a participação dos sujeitos diretamente envolvidos pelas políticas. De modo igualmente importante, a Constituição Federal de 1988 ampliou direitos individuais, direitos e garantias sociais e alocou importantes recursos para as áreas de educação, de saúde, de cultura e de previdência, além de ter criado estruturas de defesa desses direitos e garantias.

A conjuntura de produção da Constituição Federal de 1988 está marcada pela emergência e visibilidade de grande número de identidades sociais e culturais organizadas no país, fruto da afirmação a partir de diferentes marcadores sociais da diferença: gênero, raça, orientação sexual, pertencimento religioso, deficiência, região, geração, ocupação profissional, classe, escolaridade, ideologia política, preocupação com o meio ambiente, etc. Tal cenário gerou a categoria analítica “novos movimentos sociais”, no esforço de compreender a natureza e as demandas desses atores sociais para além do tradicional movimento sindicalista. Tal categoria inspirou-se em análises no âmbito mundial (LACLAU, 1986) e produziu frutos próprios na realidade brasileira (SCHERER-WARREN, 2006).

Inspiramo-nos aqui em algumas das preocupações desses autores e autoras, no sentido de entender que conflitos se desenham, como se formam as novas identidades que se organizam em movimentos sociais, que relações elas guardam com o cenário internacional e latino-americano, o que elas demandam do Estado, que visão de política estas manifestam, que conexões os diversos movimentos articulam entre si, o que revelam dos novos dinamismos da sociedade, como se organizam em redes. E, de modo mais importante, buscamos saber de que ferramentas teóricas necessitamos para dar conta de interpretar o que ocorre, ou que modelos explicativos podem ser construídos, a articular as conexões entre o local e o global.

Todo esse esforço é feito guardando o foco em dois marcadores sociais, gênero e sexualidade, para conhecer seus modos de transversalidade, de organização política e ativismo e de empoderamento dos sujeitos. Também buscamos entender como e por que os temas em gênero e sexualidade são produtores de certo “pânico moral” entre agrupamentos conservadores, que passam o tempo todo a se ocupar de seu regramento com frases ao estilo “menino veste azul, menina veste rosa”, enquanto, ao mesmo tempo, tais temas conquistaram um tom celebrativo e festivo em outros círculos, ilustrado entre outros pelas paradas do orgulho gay (CAMARGOS, 2018).

O Brasil que se envolve na produção da Constituição Federal de 1988, e que depois atua politicamente na sociedade civil organizada, é composto por sujeitos associados a um grande número de partidos políticos e a movimentos como os de sem-terra, de sem teto, dos deficientes, dos aposentados, dos ecologistas, das mulheres, dos homens não violentos, de tal ou qual profissão, de jovens, de velhos ou terceira idade, desta ou daquela religião, deste ou daquele local ou região, com preferência por tal ou qual ritmo musical, de uma ou de outra das culturas juvenis, dos portadores desta ou daquela patologia, dos que necessitam deste ou daquele serviço de atendimento especial, das diferentes orientações sexuais, estas enfeixadas na sigla que veio crescendo por acréscimo de letras (FACCHINI, 2005) e que hoje se costuma grafar como LGBTQIA+2. Interessa salientar aqui que a explosão de movimentos sociais dando voz a diferentes identidades culturais no espaço público move-se no sentido de obter direitos civis, políticos e sociais, dando corpo à antiga máxima - “o direito a ter direitos”: “Esta nova situação, na qual a ‘humanidade’ assumiu de fato um papel antes atribuído à natureza ou à história, significaria nesse contexto que o direito a ter direitos, ou o direito de cada indivíduo de pertencer à humanidade, deveria ser garantido pela própria humanidade” (ARENDT, 1989, p. 332).

Esse é um processo que pode ser também pensado como de luta pela cidadania, de obtenção para todos e todas dos direitos que, por muito tempo, estiveram reservados a apenas alguns. Com a Constituição Federal de 1988, buscou-se responsabilizar o Estado, a sociedade e as empresas por essa garantia de direitos. Para a questão que nos interessa mais de perto neste artigo, convém sublinhar o surgimento das categorias “cidadania sexual e de gênero” (VECCHIATTI, 2018, p. 449) e “direito democrático da sexualidade” (RIOS, 2006), consolidadas tanto no movimento social quanto em manifestações do poder judiciário e em políticas públicas. Essas categorias indicam que a pertença de gênero e de sexualidade não apenas constrói identidades e coletivos, como está pensada em conexão com a democracia, e demanda proteção legal, como é o caso de legislações como a do nome social, a do direito à união civil, as sentenças que asseguram o direito de transmissão de herança ou inclusão do companheiro ou companheira em plano de saúde, as diretrizes do direito à cirurgia do processo transsexualizador. Em todas essas situações, o que impedia o acesso a certos direitos era unicamente um marcador de gênero ou sexualidade, tal ou qual preferência erótica. Com isso, a pertença de gênero - ser homem ou ser mulher ou não assumir nenhum dos gêneros - e a pertença de orientação sexual - nuvem de posições que se estrutura em torno dos marcadores heterossexual, homossexual e bissexual - foi amplamente politizada, conquistando direitos reservados antes apenas aos sujeitos cisgêneros, aqueles e aquelas que se reconhecem no sexo designado ao nascer e vivem o gênero correspondente socialmente.

Outro elemento desse processo de ampliação democrática pós-Constituição Federal de 1988 é que ele colocou em evidência as complexas relações de poder entre “a maioria” e “as minorias”, introduzindo também a noção de “grupos socialmente vulneráveis” ou “pessoas em situação de vulnerabilidade social”. Nos enfrentamentos que envolvem os marcadores de gênero e sexualidade, a disputa política foi vivida por muitos como ameaçadora, dando margem a ressentimentos e a acusações de que as minorias estavam recebendo “privilégios”. Mais ainda, de que o país vivia algo como uma “ditadura gayzista” ou “uma ditadura gay” e até mesmo a constatação de que “a era da ditadura feminista chegou”. Tal clima justificou inúmeras proposições legislativas em municípios e estados de um “Dia do Orgulho Heterossexual”, em evidente contraposição às paradas gays, paradas do orgulho gay ou paradas da diversidade, e a criação pelo mercado do “Dia do Homem”, com propósito de venda de produtos cosméticos.

Com relação às masculinidades heterossexuais, disseminou-se um vocabulário com categorias como “masculinidade hegemônica”, “masculinidades tóxicas”, “masculinidades violentas”. Numerosas revistas e jornais publicaram matérias dando conta da “crise da masculinidade” ou da “crise do homem”. O ponto crítico da tensão dá-se até os dias de hoje em torno de certa noção de que a maioria poderia vetar comportamentos das minorias, por razões simplesmente de não aprovação moral, como ao afirmar que “dois homens não podem andar de mãos dadas na rua, pois isso é moralmente reprovável”. A judicialização de muitas dessas questões, estratégia utilizada pelo movimento LGBTQIA+, e o surgimento de políticas públicas como o “Brasil Sem Homofobia - Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB e de Promoção da Cidadania Homossexual”3 estabeleceram precedentes que mostraram que a desaprovação moral não podia implicar criminalização, ainda mais que, na totalidade desses casos, não estava em disputa algum prejuízo a terceiros ou ato criminoso. A tensão nas relações entre a maioria e as minorias voltou ao discurso político com muita força na eleição presidencial de 2018. O candidato que venceu, Jair Bolsonaro, já anunciava de longa data que seu Governo não iria aceitar supostas imposições das minorias. Uma das falas mais claras acerca dessa questão foi feita em comício na cidade de Campina Grande, em 8 de fevereiro de 2017:

Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de estado laico não. O estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. Vamos fazer o Brasil para as maiorias. As minorias têm que se curvar para as maiorias. As minorias se adequam ou simplesmente desapareçam4.

O campo educacional foi também palco de enfrentamentos na redação da Constituição Federal de 1988, com um número recorde de propostas e de participação popular e de grupos organizados. Como produto final, a Carta Magna assegurou o dever do Estado para com a educação e estabeleceu princípios largamente democráticos ao ensino na escola pública brasileira: igualdade de condições para acesso e permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; gestão democrática do ensino público (BRASIL, 1988).

A Legislação Federal decorrente da Constituição e boa parte das legislações estaduais e municipais aprofundaram a noção de participação social na escola, de preparação para cidadania, de inclusão social, de gestão democrática, de garantias e direitos de aprendizagem, de formação docente adequada e cursada no Ensino Superior, de garantia de matrícula e de ampliação da oferta de vagas na modalidade escola de turno integral. Além disso, decretos e portarias inseriram, nas grades curriculares, a obrigatoriedade de temas dos mais diversos, como o ensino religioso, a educação das relações étnico-raciais, a abordagem de gênero e sexualidade como temas transversais, a educação para a paz, a educação para o trânsito, o cuidado com a alimentação e correta nutrição, os princípios de cidadania, a inclusão digital, os programas de saúde, a educação em e para os Direitos Humanos, a inserção das disciplinas de Sociologia e Filosofia de modo obrigatório no Ensino Médio.

Embora possamos apontar numerosos problemas, precariedades e não cumprimento à lei no atendimento escolar brasileiro, o crescimento dos níveis de escolarização no Brasil, após a Constituição Federal, foi o maior já obtido em nossa história, na qual a educação foi sempre louvada como importante, mas nunca o acesso a ela foi devidamente efetivado, em uma clara estratégia de manter os grupos subordinados sem instrumentos de negociação e poder. No cenário contemporâneo, não é mais possível viver a condição infantil e juvenil no Brasil sem ser em estreita conexão com a escola. Questão relevante para o que vimos abordando nesse texto é que houve um nítido recuo da família e das religiões no regramento das culturas juvenis, que agora dialogam e buscam informações na conexão com as culturas digitais e com a escola, especialmente nos temas em gênero e sexualidade, conforme já demonstrado em numerosos estudos (SEFFNER; PICCHETTI, 2016).

Fruto desse percurso social e constitucional, ao abordar questões em gênero e sexualidade, é cada vez mais claro que se fala em democracia, equidade de gênero, distribuição de privilégios e oportunidades, acesso a bens e a garantias legais. Gênero é um elemento estruturante das relações sociais, e discutir relações de gênero é discutir relações de poder e hierarquias na sociedade, o mesmo valendo para os debates que envolvem as diferentes orientações sexuais. No campo educacional, o embate, de um lado, dá-se entre um pensamento pedagógico de natureza moralmente conservadora combinado com uma racionalidade neoliberal, que visa retirar da escola temas considerados políticos, ideológicos, questões de gênero e sexualidade; e, de outro lado, um conjunto de proposições pedagógicas que enfatiza o valor da diversidade, reconhece o caráter de negociação entre as diferenças do espaço público, toma a escola como lócus privilegiado para a alfabetização científica em todos os campos. Não por acaso, os movimentos sociais que militam na mão autoritária e conservadora se identificam como “escola sem partido” e “ideologia de gênero”, e são movimentos que enfatizam a retirada de temas das grades curriculares.

Ao não propor a inclusão de outros temas, esses movimentos contribuem para reificar o caráter supostamente neutro dos conhecimentos escolares - isso explica a aversão que demonstram às ideias do educador Paulo Freire - e reificam as desigualdades em gênero e sexualidade, que só têm chance de serem corrigidas em um ambiente de debate e de proposições de equidade - e, por conta disso, atacam tudo que lhes pareça manifestação do pensamento feminista. Essa situação pode ser examinada com o uso mais detalhado de outras categorias, o que se faz no próximo tópico. O título que demos ao tópico final deste artigo - Entre políticas conversadoras e políticas conservadoras - busca sintetizar um pouco os dilemas enfrentados: governos com políticas conservadoras insistem em dizer a todo instante que não se deve falar disso ou daquilo - e passam o tempo inteiro falando justamente dos tais temas que insistem que não se deve falar; enquanto isso, em governos democráticos, temos políticas públicas que estimulam o debate sobre os temas, buscando conhecer as posições, construir eventuais consensos, manter os dissensos de modo claro, esclarecido e respeitoso.

Racionalidade neoliberal, autoritarismo fundamentalista e democracia

O período histórico que enfocamos neste texto é marcado pela progressiva hegemonia do pensamento neoliberal. O neoliberalismo é mais conhecido - ou reconhecido - por um conjunto de valores e de medidas, tais como as privatizações, as concessões de bens públicos a entidades privadas, as parcerias entre o público e o privado, a noção de austeridade fiscal, a política do estado mínimo, a ênfase em desregulamentação e flexibilização das relações de trabalho, o elogio ao empreendedorismo individual, a constante alusão ao mercado como fonte única de boas práticas, a defesa do livre comércio, ao corte de despesas governamentais e ao destaque do individualismo. Praticamente todos os elementos listados dizem respeito à face econômica do neoliberalismo. Para os fins deste artigo, interessa aproximar o neoliberalismo ao que denominamos racionalidade neoliberal, entendida como um conjunto de práticas, de normas regulatórias, de narrativas e de valores éticos e morais, dos quais nos valemos para construir comportamentos, julgar comportamentos alheios, bem como atribuir a algumas vidas a possibilidade de vidas que valem a pena serem vividas, e a outras como vidas que não são dignas de viver. Essa compreensão está em sintonia com Dardot e Laval (2016) e Laval (2004), que entendem o neoliberalismo como amplo conjunto de discursos, de práticas, de dispositivos, de epistemologias e de artefatos culturais, que incidem no governo da humanidade, ali instalando, entre outras, a noção de concorrência e o entendimento de que as liberdades privadas são superiores às liberdades públicas. Tal compreensão também está alinhada às reflexões de Foucault, quando afirma que: “O que está em questão é saber se, efetivamente, uma economia de mercado pode servir de princípio, de forma e de modelo para um Estado [...]” (FOUCAULT, 2008, p. 159). O modo como olhamos para o neoliberalismo busca inspiração na proposta de Nildo Avelino:

Tomados em perspectiva genealógica, liberalismo e neoliberalismo constituem para Foucault acontecimentos discursivos (Foucault, 1969). Assim como a loucura, o hospital, a prisão e a sexualidade, liberalismo e neoliberalismo constituem acontecimentos discursivos que determinam aquilo que somos, fazemos e pensamos em nossa atualidade. A partir disso, a tarefa da crítica seria a de questionar como foram possíveis a sua aceitabilidade, [...] para revelar na contingência da sua história a fragilidade capaz de franquear novas possibilidades de ser, fazer e pensar em nossa atualidade. [...]. Ocorre com o liberalismo e o neoliberalismo o mesmo que com a sexualidade: é preciso pensá-los como acontecimentos discursivos cuja existência só é possível a partir do sujeito de suas práticas. Então, não se trata de combatê-los como falsos ou aceitá-los como verdadeiros, mas de mensurar os efeitos do seu investimento sobre a subjetividade dos indivíduos. Sendo o liberalismo e o neoliberalismo, tanto quanto a sexualidade, indissociáveis daquilo que somos, fazemos e pensamos no presente, melhor que atacá-los ou defendê-los, seria preciso perceber historicamente quais foram às condições de possibilidade que permitiram seus efeitos de determinação sobre nossa subjetividade. (AVELINO, 2016, p. 246).

Enquanto racionalidade que busca governar e produzir a vida dos indivíduos, o neoliberalismo depende de uma ação estatal enérgica, embora aparentemente se possa pensar que ele pouco investe no poder de Estado. Essa ação enérgica dá-se tanto pelo que ele promove, quanto pelo que de modo insistente ele diz que não se deve fazer ou falar. Trazendo para as questões que são o foco deste artigo, podemos afirmar que nunca um presidente falou tanto em sexo, em gênero, em mulheres, no feminismo, na pornografia ou na homossexualidade como Jair Bolsonaro, no que é auxiliado por ministros e outras figuras do primeiro ao último escalão de governo5. Ainda que defendendo um empreendedorismo individual, o regime neoliberal é autoritário, flertando com o fascismo conforme pesquisadores já indicaram (SAFATLE, 2019), e aposta na intervenção estatal para que a chamada “livre iniciativa” aconteça do modo desejado. Para tanto, questões de ordem moral tornam-se relevantes à regulação, e a esse tema voltaremos mais adiante.

A Constituição Federal de 1988 completa 32 anos em 2020. Ela responde por um curto, mas denso, momento democrático na vida pública brasileira, que registra em verdade poucos episódios assim em seus mais de 500 anos de história. Nesse período pós-1988, muitas questões sociais puderam ser debatidas como casos políticos, e não simplesmente como casos de polícia, o que era a tradição brasileira. Contudo, é visível que essa democracia vem perdendo densidade, e isso implica as questões de gênero e sexualidade, especialmente em sua interface com a educação. Para além de perder densidade no Brasil, observa-se no mundo todo um processo de progressivo recuo de confiança na democracia e em seus aparatos - partidos, casas legislativas, eleições, parlamentares - como instrumentos capazes de melhorar a vida das populações (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018). Para o exame do contexto da América Latina, valemo-nos dos dados produzidos pela Corporación Latinobarómetro6, uma instituição de pesquisa sem fins lucrativos, sediada em Santiago do Chile, que, desde 1995, coleta informações via entrevistas em países da região, construindo indicadores que nos permitem saber da satisfação ou não com a democracia, estando o Brasil incluído na investigação desde o ano inicial. O último relatório disponível analisa os dados coletados em 2018, e nele é possível perceber que todos os indicadores de confiança na democracia caem, apresentando as cifras mais negativas desde que as pesquisas foram iniciadas em 1995:

Hay que parafrasear a la reina de Isabel para describir lo que le ha pasado a América Latina, y decir que 2018 ha sido un “annus horribilis”. Desde el inicio de la transición a la democracia América Latina pocas veces había vivido um período más convulsionado de su historia como el actual. No se trata de revoluciones o de grandes acontecimientos sociales, sino mas bien de la suma de hechos significativos que van conformando un cuadro muy nítido. Estas convulsiones no se han producido por protestas como fue al inicio de esta década, sino mas bien por los resultados de las contiendas electorales, las acusaciones de corrupción, los presidentes presos, las empresas corruptas, las migraciones masivas más altas de la historia. Todo aquello nos indica que en 2018 hemos presenciado como espectadores el fin de la tercera ola de democracias. [...] En el mundo entero hay retrocesos de la libertad, la justicia, la equidad, en pueblos que habían logrado avanzar en ello. América Latina no es una excepción en este contexto, tenemos nuevos autoritarismos en países que tuvieron una transición a la democracia, al igual que en la ex Europa detrás de la “cortina de hierro” hay retrocesos de la democracia7. (LAGOS, 2019, p. 1).

Por um lado, quase todos os países do mundo são democracias, e a democracia aparece como um valor importante em qualquer discurso, sendo, por conta disso, um conceito bastante popular, até mesmo para dirimir conflitos cotidianos, em frases do tipo “temos que resolver isso democraticamente”. Por outro, ela parece estar em processo de esvaziamento, e aqui nos valemos das considerações de Wendy Brown (2018) e de seu conceito de desdemocratização, que nos alerta para o fato de que as pessoas vivem em democracias, praticam os rituais democráticos, mas eles são uma encenação um tanto sem conteúdo e eficácia para elas, pois não se produz efetivamente um poder popular, uma representação da vontade da maioria na tomada das decisões. Daí a autora se indaga:

Nas regiões do mundo que desde algum tempo têm navegado sob a bandeira democrática, como se deu que o povo não esteja de nenhuma forma governando em comum e para o comum? Que constelação das forças e fenômenos da modernidade tardia evisceraram a substância da já limitada democracia moderna? (BROWN, 2018, p. 293).

A autora recorre a um conjunto de fatores, dos quais destacamos a ideia de que democracia se converteu em uma marca do ocidente e do capitalismo, mas sem substância e bastante vazia. Dizemos que nós ocidentais somos democratas, em geral em oposição aos orientais - chineses não são democratas, na África as democracias não sobrevivem, na Rússia não há condições para uma verdadeira democracia -, mas nós mesmos não sabemos definir as condições para uma democracia eficiente e representativa da vontade da maioria. Grande número de políticos afirma o núcleo da definição grega de democracia - o governo é do povo -, mas não estabelece as regras para que tal assertiva se efetive. O poder corporativo empresarial, que desde o surgimento do capitalismo comprometeu a noção de igualdade da democracia ocidental, no contexto atual está formado por

[...] grupos que compram (ou viram) políticos e modelam abertamente a política nacional e internacional, nem de que a mídia pró-corporativa que lhes pertence ridicularize a ideia da informação pública e da responsabilidade do poder. Mais que uma interferência, as grandes democracias são testemunhas de uma fusão do poder dos grupos e do poder do Estado: a transferência maciça das funções do Estado para o setor privado, desde as escolas [às] prisões, passando pelo exército; banqueiros de negócios e CEO que se convertem em ministros ou chefes de gabinete; estados proprietários latentes com enorme capital financeiro e, acima de tudo, um poder estatal desavergonhadamente atraído pelo projeto de acumulação do capital através de sua política fiscal, ambiental, energética, social e monetária, para não mencionar o fluxo de assistência direta e apoio a todos os setores do capital. (BROWN, 2018, p. 293).

O apetite dos grandes grupos para tomar as rédeas do Estado pode ser mensurado pelo crescimento da desigualdade, com os mais ricos se apoderando de fatias consideráveis da riqueza total na grande maioria dos países do mundo, quase todos democracias, o Brasil sendo um país de destaque nesse processo (OXFAM BRASIL, 2019). A população, o povo que é o núcleo da definição de democracia, participa de modo passivo dos rituais democráticos, sem conseguir, por meio deles, modificar suas condições de vida. Conforme destaca Brown (2018), mesmo as chamadas eleições livres estão amplamente dominadas pelas estratégias de marketing, e nem de longe se destinam a representar as necessidades da maioria da população. Dessa forma, candidatos, programas e partidos assemelham-se mais a marcas de produtos a serem escolhidos em prateleira de supermercados e não a bens públicos.

Em sintonia com o que afirmamos anteriormente, Brown estabelece conexões entre esse processo e a racionalidade neoliberal, afirmando que

[...] o neoliberalismo como racionalidade política lançou um assalto frontal contra os fundamentos da democracia liberal, deslocando seus princípios de constitucionalidade, igualdade diante da lei, liberdades políticas e civis, autonomia política e universalismo no rumo dos critérios do mercado: razões de custo-benefício, eficiência, rentabilidade e eficácia. (BROWN, 2018, p. 294).

Com isso, e para o tema que nos interessa da cidadania sexual e de gênero e também do direito democrático da sexualidade anteriormente citados, ocorre um enfraquecimento das garantias da proteção devida pelo Estado às identidades de gênero e de sexualidade, da transparência de procedimentos policiais e jurídicos, da responsabilidade pela manutenção de serviços a essa população, da confirmação de compromissos de acesso à educação, à saúde e aos direitos previdenciários, de campanhas efetivas contra a intolerância de gênero e sexual, dentre outros instrumentos para um estado de bem-estar social. A autora estabelece outras condições que trazem erosão ao conteúdo das democracias e finaliza afirmando que: “Por um lado a democracia perde sua forma e contornos politicamente necessários e, por outro, os estados abandonam qualquer pretensão de encarnar a soberania popular e de cumprir a vontade popular; um processo já iniciado pela racionalidade neoliberal [...]” (BROWN, 2018, p. 296).

Inserindo esse debate no campo educacional, temos vivido entre derivas autoritárias - como é o caso dos ataques do Movimento Escola sem Partido e do Movimento Ideologia de Gênero, ou a extinção de políticas públicas de proteção social à diversidade de gênero e sexualidade na escola e até mesmo a expansão das escolas cívico-militares - e explosões sociais - como tem sido o caso recorrente de violências nas escolas, ou como foi o caso do ciclo de ocupações em escolas públicas em 2016, conforme examinado em Seffner (2017). As escolas têm gestão democrática, assegurada por legislações em todos os níveis, o que tem sido objeto de embates com grupos autoritários. A gestão democrática não diz respeito apenas à eleição da direção, mas fala também na consulta ao coletivo de alunos e alunas em questões de sociabilidade e socialização.

Na etnografia de cenas escolares que desenvolvemos, foi possível flagrar complexas negociações e interações entre os movimentos sociais em gênero e sexualidade, as culturas juvenis e a cultura escolar, produzindo tensões entre os modos de nomear as identidades, conforme se abordará no próximo tópico. Ainda duas questões permitem estabelecer conexões entre democracia, cultura escolar e temas em gênero e sexualidade. A primeira delas diz respeito à presença cada vez mais forte de coletivos de alunos e alunas gays e lésbicas e, também, travestis e transexuais nas escolas públicas de Ensino Médio. As lideranças desses coletivos por vezes desejam maior participação na vida partidária, e se chocam com as estruturas dos partidos, dominadas em geral por oligarquias, facções e lideranças antigas. Fruto dessa tensão, cresce, no Brasil, o debate de candidaturas chamadas de “candidaturas cidadãs” ou de “candidaturas avulsas” - de pessoas não filiadas a partidos. Não por acaso, nas eleições dos últimos anos, em particular no nível municipal, proliferaram propostas claramente marcadas por gênero - na forma de candidaturas coletivas de mulheres - ou por orientação sexual - os melhores exemplos foram lideranças de jovens travestis e transexuais disputando vagas em câmaras e assembleias. A segunda questão que chama atenção diz respeito ao uso do que há alguns anos se chama de “linguagem politicamente correta” no ambiente escolar.

Identidades de gênero e sexualidade, que historicamente sofreram processos de marginalização e estigma no cotidiano escolar, reivindicam cada vez mais serem chamadas pelos nomes que lhes são positivos. Numerosas escolas e redes escolares legislaram acerca do uso do nome social e, para além disso, estabeleceram modos respeitosos de nomear alunos e alunas homossexuais e travestis e transexuais. Os grupos que se opõem a isso, em geral fazendo chacota com o “politicamente correto”, claramente se sentem ameaçados por uma perda de poder em humilhar os sujeitos não conformes à heteronormatividade e à cisgeneridade. Quando grupos vulneráveis pressionam pelo uso de uma linguagem que não provoque sua humilhação, eles avançam um novo padrão moral e, também, uma concepção de espaço público como local de respeito à diversidade. O ambiente escolar é um laboratório potente para o exercício dessas negociações que envolvem os temas já tratados aqui referentes à democracia e à racionalidade neoliberal, bem como os elementos da cultura escolar.

Na sala de aula tem gênero e tem sexo!

Iniciamos este terceiro tópico com uma cena, extraída do diário de campo de projeto de pesquisa já referido no início do artigo. Omitimos a identificação da escola e dos personagens envolvidos e mantivemos certas incorreções gramaticais próprias da oralidade para fluidez da narrativa. A cena faz-nos perceber como os temas em gênero e sexualidade são presentes na cultura escolar, e como a escola é lugar efetivo das pedagogias do gênero e da sexualidade, modos de aprender sobre esses temas, de forma explícita - pela abordagem nas aulas e nos materiais didáticos - ou de forma implícita - por meio de brincadeiras, de conversas, de discussões e de organização do espaço escolar. A circulação desses temas provoca situações de ressentimento, de ódio, de nojo, de pânico moral, de elogio da diversidade, e organiza coletivos, faz e desfaz amizades, explica, inclusive, aprendizagens escolares.

Escola de ensino médio, turno noturno, bairro distante do centro da cidade de Porto Alegre, classe com predominância de alunos e alunas negros e pardos, cerca de 20 alunos, com equilíbrio de gênero. É uma noite muito fria, estou sentado no fundo da sala, aguardando o início da aula de História. A professora escreve no quadro enquanto a turma se ajeita. A sala tem várias janelas sem vidros, e por ali entra um vento gélido. Quatro meninas sentam próximas umas das outras, e dividem duas mantas enormes para se abrigar, pois querem ficar perto da janela, e poder olhar para fora, de onde se vislumbra o pátio. Entram dois meninos na sala, observo que estão de moletom e gorro, mas de bermudas, com esse frio todo! Um deles parece ser gay, pelas roupas, adereços, gestos, modo de cumprimentar os colegas. Ele é convidado para sentar entre as meninas, e logo se ajeita ali, dividindo uma das mantas. O outro menino pergunta: “eu posso sentar aí também?”. A resposta vem muito afirmativa de uma das meninas: “não, tu é muito abusado”. Ele retruca: “lá vem o feminismo”. Ela responde “não é feminismo, é respeito”. A professora se volta para a turma, e informa “hoje vamos estudar a situação da mulher negra no Brasil Colônia, e isso que está acontecendo aí tem a ver com o que vamos abordar, as humilhações que sofriam as mulheres negras por conta dos abusos dos seus senhores”. O menino que foi rejeitado pelas colegas abre um sorriso e diz “eu não devia ter vindo na aula hoje, eu sabia que eu ia me incomodar, agora é tudo contra os homens”. Os outros meninos da classe riem alto e fazem alarde, o que faz a professora intervir. O menino que foi acolhido pelas colegas para sentar com elas retruca “eu também sou homem”. O outro responde: “mas eu sou mais homem, é comigo que elas implicam”. Escuto claramente de um dos outros meninos, sentado no fundo da sala logo à direita de onde estou, a frase “é por isso que tu não senta com a gente, tu não é homem” em voz um tanto abafada, mas que foi escutada por outros dois colegas, que riram, mas tudo de modo discreto. A professora corta a discussão encaminhando a distribuição de um texto enquanto faz a chamada. Embora as falas pareçam duras, o clima é de bastante amizade entre todos e todas. A mesma menina que enfrentou o menino rejeitado para sentar junto, no decorrer da aula o convida para o trabalho em grupo, e aproveita que ele está sentado agora junto a ela e diz que ela pode fazer os exercícios de Matemática da recuperação que ele pegou, mas apenas se ele pagar o lanche dela hoje, pois ela está sem dinheiro. O menino aceita, e comenta “ainda bem que eu estou com emprego fixo, ganhando bem”. A menina retruca “nem relógio trabalha mais de graça, pois agora é celular”. O comportamento desse menino ao longo das atividades, divergindo do que eu fui levado a crer nesse início da aula, foi de envolvimento e participação. Após a leitura da narrativa de vida de uma escrava negra separada de seus filhos e abusada pelo senhor, em caso que chegou aos tribunais do período colonial deixando registro, o menino se envolveu no debate, e citou um abuso ocorrido com uma prima sua, na casa onde ela era empregada doméstica, não ficando claro se foi um assédio ou se efetivamente configurou um abuso sexual consumado. Claramente essa fala do menino foi em parte um “reparo” por conta de sua atitude tida como abusadora, denunciada pela colega. A participação na aula esteve mais concentrada entre as meninas, mas a grande maioria em algum momento se manifestou, e dentre os meninos os que mais se manifestaram foram os dois já citados na contenda principal, e de modo para mim um tanto surpreendente, um dos que havia rido da frase “é por isso que tu não senta com a gente” debateu com o menino gay, vindo os dois a concordar sobre questão relativa a subordinação dos negros até aos dias de hoje no país. Em dado momento do debate do caso da escrava, pensando nos dias atuais, foi citada a música “Dona de mim”, da cantora Iza 8, que foi trazida por uma menina que claramente se assumiu como lésbica, e que eu não havia reparado até aquele momento. Sua fala enfatizou que era difícil para as mulheres serem donas da sua vida, mas “eu sou dona de mim, como diz na música, e sei que por causa disso falam mal de mim, mais do que por eu ser lésbica”. Na escrita final individual cada aluno e aluna deveria responder à pergunta “o quanto desses casos está presente até hoje na sociedade brasileira”? Feita a entrega para a professora e a aula encerrada, tive acesso aos textos. No texto do menino inicialmente rejeitado a argumentação usava de modo coerente as noções de racismo e de sexismo como elementos que se perpetuam por séculos no ordenamento social brasileiro, configurando uma modalidade de autoritarismo. Ao final do texto, com caneta de outra cor, o menino havia escrito “Ele Não”. Claramente seu texto havia contado com sugestões das meninas do grupo, e inclusive no uso da caneta colorida. (Excerto de diário de campo adaptado para este artigo. Fonte: Arquivo da pesquisa).

Essa cena é do tipo “final feliz”, pois muita coisa leva a crer que o menino foi tocado pela discussão, pelos textos, pela argumentação da professora, pelas imagens que ela trouxe, pela pressão da colega e por algumas letras de música citadas pelas meninas durante o debate em aula, e, talvez, tenha modificado seu modo de pensar. Podemos também imaginar que, em especial na escrita final, o aluno estava se dirigindo à professora, percebida como simpática ao feminismo. Não temos a pretensão de “adivinhar” o resultado da aula na compreensão de cada um. O que queremos salientar é a conexão produtiva entre um tema objeto de disputa na turma e um tema similar na aula de História, em contexto diferente do contemporâneo. Pensando nessa cena e em outras já registradas, a discussão mostrou que, no ambiente daquela sala de aula, foi possível tensionar as tradicionais hierarquias de gênero, que colocam o homem heterossexual no topo, seguido da mulher heterossexual, depois o homossexual, depois a lésbica; por fim, travestis e transexuais. A diversidade da classe - onde estavam representados negros, pardos e brancos, meninos e meninas, heterossexuais e homossexuais - e o encaminhamento da aula permitiram debater sobre o tema, e isso é o que importa em termos de estratégia pedagógica.

A aposta é de que o debate, as leituras, as argumentações afetem alunos e alunas, e igualmente a professora, produzindo aprendizagens significativas. Também valorizamos o fato de que a escola proporcionou um argumentado confronto de posições, como se espera do espaço público. “A vida urbana pressupõe encontros, confrontos das diferenças, conhecimentos e reconhecimentos recíprocos (inclusive no confronto ideológico e político) dos modos de viver, dos ‘padrões’ que coexistem na Cidade” (LEFEBVRE, 2001, p. 22). Quando o menino diz “agora é tudo contra os homens”, localizamos nesse “agora” certa pista de ressentimento, certa memória de um passado onde a ordem era outra, com certeza mais favorável a ele, homem heterossexual. Há aqui um sentimento social e cultural que pode ser definido como “retórica da perda”:

A retórica da perda seria uma tática discursiva articulada por diferentes lideranças sociais e políticas (dentre elas, religiosas) baseada em um imperativo: o retorno da ordem, da previsibilidade, da segurança, da unidade. Ou seja, diante do sentimento de insegurança, de ameaça em termos patrimoniais, físicos, financeiros e morais, articulou-se um discurso que produzia uma sensação de segurança, uma esperança de retorno ao passado (ainda que idealizado) do pleno emprego, das definições de papéis entre homens e mulheres - base da família e de toda a vida social tal como “existia”, da garantia de ir e vir em segurança. A religião operou como uma rede institucional de apoio. Mas este sentimento de ameaça e o desejo de solução imediata por uma via “enérgica” foi partilhado por um contingente muito maior de pessoas sem uma orientação necessária de qualquer institucionalidade. (CUNHA, 2019, p. 1).

Para muitos, a sensação de perda se “resolve” segregando as minorias, como mecanismo para restaurar esse tempo de ordem que se perdeu. Um desfecho positivo é entender que há de conviver-se com essa perda e mudar os modos de ser e de lidar com os demais, valorizando o pluralismo democrático. Na própria cena etnografada, é possível perceber alguns mecanismos que auxiliaram os meninos a viverem com isso: garantia de afeto das meninas, possibilidade de diálogo e concordância com o menino gay em outro momento, boa condução do debate por parte da professora, que estimulou a fala de todos e todas e soube respeitar os tempos de cada um, valorizando as intervenções. Em outras cenas já etnografadas, o desfecho da retórica da perda é violento, com a defesa de retorno do país ao tempo dos militares, das leis severas, com a sustentação de rígidos padrões morais e inclusive da pena de morte, na imensa maioria dos casos feitas pelos meninos heterossexuais que, de algum modo, se sentem ameaçados pela voz de minorias que antes viviam no silêncio da sala de aula. Quando o outro menino diz “é por isso que tu não [se] senta com a gente”, ele coloca em ação a estratégia do nojo, que pode desembocar na dinâmica do pânico moral e dali chegar ao ódio e ao desejo de eliminação física do outro.

Abordando a sociedade como um sistema de significações, José Carlos Rodrigues (2006) se ocupa em analisar os nojos corporais, derivados de cheiros, de líquidos, de cores, de sensações, de coisas, a partir de entrevistas pessoais e análise de artefatos culturais. O nojo não é tomado como algo essencialmente biológico pelo autor, que enfatiza os modos pelos quais nossa cultura produz a sensação de nojo, e inclusive a ânsia de vômito que pode dela derivar. Uma conclusão importante do autor é de que o nojo é produzido socialmente pela percepção de algo fora do lugar correto. O lixo, quando na lata do lixo, não produz nojo. Colocado sobre a mesa de jantar, produz. A saliva, quando no interior da boca, não produz nojo. Entretanto, se cuspimos algo e nos sobra um fio de saliva, e esse fio de saliva encosta na terra e a ela nos conecta, somos tomados de um súbito nojo. O menino gay, junto aos demais meninos heterossexuais, produz um desconforto que estamos aqui associando ao nojo. Ele, de certa forma, polui aquele grupo de meninos, lança suspeita sobre os demais. Se ele está junto ao grupo das meninas, ele parece estar no lugar correto, e com ele se pode até conversar9. Poder-se-ia dizer que o menino gay “achou o seu lugar”, e nessa expressão está reforçada a hierarquia social a qual nos referimos anteriormente, a organizar o mundo e trazer tranquilidade a todos e todas, pois cada um “conhece seu lugar”. O pânico moral é outro conceito que auxilia a analisar as reações frente aos temas em gênero e sexualidade. Ele pode ser definido como

[...] mecanismo de resistência e controle da transformação societária conhecido como pânicos morais, aqueles que emergem a partir do medo social com relação às mudanças, especialmente as percebidas como repentinas e, talvez por isso mesmo, ameaçadoras. (MISKOLCI, 2007, p. 103).

O conceito de pânico moral permite lidar com processos sociais marcados pelo temor e pela pressão por mudança social. Este conceito se associa a outros de muitas áreas como desvio, crime, comportamento coletivo, problemas e movimentos sociais, pois permite esclarecer os contornos e as fronteiras morais da sociedade em que ocorrem. Sobretudo, eles demonstram que o grau de dissenso (ou diversidade) que é tolerado socialmente tem limites em constante reavaliação. (MISKOLCI, 2007, p. 112).

Já houve tempo em que uma menina lésbica ou um menino gay simplesmente não seriam tolerados na escola. Há uma cena clássica no romance O Ateneu (POMPÉIA, 1996), ambientada na conjuntura do final do Segundo Reinado, em que o amor de um aluno, Cândido Lima, por um colega, é descoberto a partir de uma carta encontrada no dormitório. A cena de execração pública dos dois rapazes é demonstrativa de outros tempos, embora possa ser lida por nós como um passado que nunca passa, pela presença ainda em muitas escolas, e só podia conduzir à expulsão dos envolvidos. Na cena descrita no início deste tópico, o menino gay e a menina lésbica conquistaram o direito de estar entre os demais, marcando sua pertença sexual. No entanto, a situação não é vivida com absoluta aceitação.

Vivemos uma onda conservadora com forte impacto nas relações de gênero, e o movimento conhecido como ideologia de gênero é uma das demonstrações disso. No dia 3 de janeiro de 2019, ampla cobertura jornalística mostrou cenas da posse de Damares Alves como Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, em que ela anunciava o início de uma nova era, onde “menino veste azul, e menina veste rosa”10. Tais declarações causam impacto cultural e permitem caracterizar essa onda conservadora como reação a muitas das conquistas do período democrático que analisamos no primeiro tópico, atacando de forma direta os conceitos apresentados de cidadania sexual e de gênero e direito democrático da sexualidade. Embora parte importante da sociedade não demonstre uma aceitação pacífica das conquistas de direitos do universo LGBTQIA+, ocorre que seus valores normativos já estão em vigor em códigos, leis, políticas públicas, diretrizes, julgados de tribunais, rotinas administrativas, e, no caso brasileiro, são representados de modo positivo em novelas, propagandas e séries fílmicas, além de constarem como conteúdo escolar. Esses direitos conquistados reforçam a sensação, já analisada anteriormente, de perda de privilégios, embora tenham sido na prática conquistas que igualaram os indivíduos, não fazendo com que uns ultrapassem os demais, como quer crer a noção de privilégio. No Brasil, operou-se uma reconfiguração da sociedade civil, envolvendo noções como lugar de fala, de direitos humanos, de valorização das políticas públicas de inclusão e diversidade, de questionamento das hierarquias de gênero e de sexualidade, de mobilidade, de visibilidade, que tanto ajudou a produzir uma sociedade mais afeita ao pluralismo democrático, mas que, no limite, pode produzir o ódio que mata os “diferentes”.

Entre políticas conservadoras e políticas conversadoras

O título deste artigo afirma que sempre atrás de um buraco tem um olho. Em verdade, são dois olhos. Um deles é o olho do autoritarismo fundamentalista moral, em especial o de viés religioso, que perscruta e fala sem parar daquilo que diz que não se deve fazer nem falar, em especial de sexo, junto do qual vem gênero, e por associações diversas ingressam no debate categorias como mulher, homossexualidade, feminismo, pornografia, etc. e tal. O outro olho é o olho da racionalidade liberal, que podemos tomar aqui como o olho da razão de mercado, que tudo quer transformar em metas, métricas, desempenhos, quantitativos, resultados, gestão, lucros para poder auditar. É a hipótese que perseguimos, que buscou estabelecer relações entre a racionalidade neoliberal e o autoritarismo fundamentalista, sempre de olho nas questões em gênero e sexualidade no terreno da Educação Básica.

Não temos uma visão conspirativa da história, e, por conta disso, não achamos que essas conexões são fruto de um acerto explícito entre os integrantes desses movimentos, que teriam sentado em uma mesa e “combinado” o que fazer. Reconhecemos que há numerosas evidências de articulação concertada entre as lideranças dos movimentos Escola sem Partido e Ideologia de Gênero, conforme discutido em Penna (2017). Entretanto, por um lado, a dispersão de iniciativas tanto no campo dos ataques à gênero e à sexualidade quanto no campo dos ataques à liberdade de ensinar nos mais diversos locais do país não permite afirmar uma atuação explicitamente coordenada. Por outro lado, são movimentos que têm sua superfície de emergência no mesmo tempo histórico, no movimento já descrito que conjuga privatização e desdemocratização. Assumimos, com isso, que, quando a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos afirma que “menino veste azul e menina veste rosa”, isso nada tem de questão secundária, ou algo que se faz para desviar a atenção da população de outra coisa mais importante, a modo de uma “cortina de fumaça”. O elemento conservador nos valores e no comportamento é característica central das ações que hoje corroem a democracia e atacam a escola pública brasileira, e atua em estreita conexão com os elementos autoritários, de transformação dos adversários políticos em inimigos que devem ser exterminados, em privatização do espaço público.

Para o caso escolar, são estratégias que implantam modalidades de seleção, modos de gestão, desenhos curriculares, estratégias de avaliação, regras de formação docente que progressivamente transformam valores públicos em valores da ordem do privado e do mercado, em linguagem bastante conhecida de quem trabalha no campo educacional: a falar de competências, de habilidades, de desempenho, de gestão. De modo simples, afirmamos que a cultura escolar necessita da democracia para bem se exercer, e a democracia necessita da cultura escolar para produzir-se democraticamente. Conforme demonstramos anteriormente, questões de gênero e de sexualidade são componentes essenciais da cultura escolar, tanto na dimensão cognitiva - aprende-se sobre gênero e sexualidade - quanto na dimensão da sociabilidade - na interação com os colegas há sempre elementos em gênero e sexualidade a organizar hierarquias - quanto na dimensão da socialização - entendida aqui como aprendizado progressivo das regras que organizam o viver em sociedade, e que no limite é também o aprendizado da estrutura legal de nossa existência, em que o regramento em gênero e sexualidade está presente em muitas dimensões. Contudo, queremos avançar nessas conclusões do artigo para outro patamar, engendrando de modo mais vigoroso gênero e políticas de estado:

Partimos da premissa de que o gênero, articulado a outros eixos de produção de diferenças sociais e desigualdades de poder, não deve ser concebido e tratado como um tema ou campo de estudos específico e autônomo nas ciências sociais e nem restrito a algumas arenas particulares e marginais da vida política e das práticas governamentais. Trata-se, antes, de um modo de regulação social e produção de diferenças e hierarquias que tem importância estratégica na constituição e na compreensão da própria forma política estatal e suas tecnologias de governo. Nesse sentido, apostamos que o gênero deva estar também no centro dos estudos que pretendem entender as relações de poder constitutivas das arenas políticas contemporâneas e, em especial, das organizações burocráticas estatais e das formas de governo por elas engendradas e performatizadas. (VIANNA; LOWENKRON, 2017, p. 1-2.).

O cerne da modesta hipótese que vimos avançando aqui - mostrar conexões entre racionalidade neoliberal e gerenciamento da moral em gênero e sexualidade - pode ser dita como: o gênero faz o Estado, e o Estado faz o gênero. Em outras variantes, podemos afirmar: as políticas públicas fazem o gênero e a sexualidade, e o gênero e a sexualidade fazem as políticas públicas. A educação é uma política pública, e a escola um espaço público. Quando afirmamos a importância da democracia, estamos falando da criação de ambientes de pluralismo democrático, de diversidade de ideias e também diversidade de gênero e de orientações sexuais, de um direito democrático da sexualidade e da possibilidade de contar com uma cidadania sexual e de gênero, estamos falando em liberdade de expressão, que compreende também a liberdade de ensinar e a liberdade de aprender. A democracia sexual e de gênero está no coração da democracia. Um conjunto variado de forças vem empurrando a sociedade brasileira para discursos de ódio, de ações de intolerância, de políticas públicas baseadas em argumentos da fé e não em conhecimento científico, estímulo a considerar os adversários como inimigos, legislação que favorece o armamento dos que têm posses para tal, a indicar um retorno ao momento histórico em que a questão social era um caso de polícia, e não de política.

A escola pública brasileira tem sido um importante local onde a histórica invisibilidade das minorias foi sendo superada. Os números da inclusão de crianças e de jovens após a Constituição Federal de 1988 comprovam que, hoje, as mulheres, os negros e os pardos, as travestis e os transexuais, os jovens homossexuais e as lésbicas estão em grande número na escola. A todos e todas foi assegurado o direito à educação. E é nesse território de negociações entre as culturas juvenis e a cultura escolar que tem se produzido muitos avanços em políticas públicas de combate à discriminação e de valorização da diversidade, em particular no eixo do gênero e da sexualidade. Em qualquer sala de aula que tenhamos entrado para realizar etnografia de cenas escolares, defrontamo-nos com meninas feministas, meninos gays, meninas lésbicas, travestis e transexuais assumidos e buscando respeito, além de uma diversidade de sujeitos que experimentam novos modos de existir e se denominam de não binários, pansexuais, poliamorosos, sujeitos queer, bissexuais, etc. Tal fenômeno é em nosso entender um alargamento dos modos de viver, e deve ser saudado e colocado em conexão com a desejável democracia que queremos. Em vez disso, temos hoje forças vigorosas a criminalizar as orientações sexuais e as performances de gênero que fogem ao padrão binário, familista, da hierarquia em que o homem heterossexual é sempre mais importante do que a mulher heterossexual, que só ganha importância por estar a seu lado.

A invisibilidade das minorias é um elemento que estrutura a história brasileira. Mais do que isso, é um modo de governar a sociedade brasileira, estabelecendo que alguns não merecem ser vistos e nem lembrados, e muito menos ter direitos. Por conta disso se preserva a hierarquia que supõe alguns com vidas mais preciosas e viáveis do que outros, que podem ser mortos ou ser deixados a morrer. A invisibilidade das minorias não é apenas simbólica. Uma escola que não fala em gênero e em sexualidade não fala de mulheres, de homossexuais, de lésbicas, de travestis e de transexuais. Passa a imagem de que essas pessoas não existem, ou se existem não têm direito à vida plena. E os números brasileiros de assassinato nesse campo são brutais.

Defendemos uma escola pública que supere as políticas de produção do ódio, do medo e do silêncio, e se paute por políticas de conversa sobre os temas. Apostamos em um elemento que está no núcleo da noção histórica de modus vivendi, a capacidade de grupos e de pessoas de construírem negociações entre pontos de vista diferentes e até antagônicos, sem necessariamente considerar que quem pensa diferente é um inimigo que merece linchamento moral. Estimulamos um projeto educacional público que valorize o debate em termos de gênero e de sexualidade, não como carreiras individuais ao estilo “seja o que você quiser”, mas assumindo que a liberdade pessoal é tão importante quanto a igualdade de oportunidades. A liberdade pessoal, se assumida na lógica do sujeito empreendedor, não leva em conta a importância do debate acerca da igualdade de oportunidades, e termina por não enfrentar o crescimento da desigualdade no mundo. Essa desigualdade não é apenas econômica ou financeira. O Brasil tem uma história de precariedade em pesquisas com envergadura nacional e busca ativa de dados sobre temas em gênero e sexualidade, o que já é em si uma ferramenta de invisibilidade, mais ou menos como quem diz “vamos acabar com os termômetros, assim acabamos com a febre”. Entretanto, todos os indicadores disponíveis mostram aumento nos números do feminicídio no país11, e manutenção ascendente na curva de assassinatos de pessoas LGBTQIA+12. Não discutir certos temas durante o percurso escolar é retirar a cidadania daquelas pessoas para quem esses temas são vitais, e implica injustiça curricular:

Educar é ajudar que as crianças aprendam a conhecer bem como e porque é o seu mundo e, ao mesmo tempo, obrigá-las a considerar alternativas, a gerar capacidades para imaginar outros futuros melhores. Toda práxis educativa deve fazer com que os alunos sintam que podem algo [...]. Uma educação emancipadora é sempre muito crítica e, ao mesmo tempo, otimista, pois deve ajudar a nos dotar de confiança para continuar aprendendo e melhorando. (SANTOMÉ, 2018, p. 45).

Os ambientes democráticos escolares são aqueles onde há liberdade de expressão para proliferação de perguntas e de estratégias de escuta; para levantar questões e obter respostas argumentadas a dúvidas; para visualizar os impasses e construir alternativas de negociação em torno deles; para efetuar questionamentos às normas e saber que elas podem ser modificadas pela ação humana; para manifestar-se e saber que é possível organizar movimentos sociais. É o que estamos chamando de modo muito resumido de políticas conversadoras. Estas se opõem a políticas conservadoras, que buscam frear o diálogo e os mecanismos de proteção social.

*Este artigo é em parte fruto da etnografia de cenas escolares, das leituras e dos estudos realizados na execução do projeto de pesquisa “Processos culturais e pedagógicos de produção, manutenção e modificação das masculinidades no âmbito da cultura escolar: reiterações e transgressões da norma”, que conta com financiamento do CNPq, Processo nº 308086/2018-0.

1Estrofes iniciais da música “Estudo Errado”, composição de Gabriel O Pensador, inserida no álbum “Ainda É Só o Começo”, 1995, Sony Music.

2Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, queer, intersex, assexuais e o sinal mais indicando uma adição que contempla pansexuais, não binários, poliamorosos, e outras orientações ou modos de viver gênero e sexualidade que vêm se criando.

3Documento de proposição oficial dessa política pública. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/brasil_sem_homofobia.pdf>. Acesso em: 14 jan. 2020.

4A fala pode ser conferida na íntegra em vídeo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=BCkEwP8TeZY>. Acesso em: 2 jan. 2020.

5Na história brasileira, apenas conseguimos lembrar o episódio que envolveu Fernando Collor de Mello quando, em abril de 1991, no meio do mandato presidencial, afirmou em entrevista que “havia nascido com aquilo roxo”, dando com isso a entender que possuía energia suficiente para enfrentar os desafios inflacionários que assombravam o país.

6O conjunto de pesquisas produzidas, os artigos analíticos e o banco de dados podem ser acessados de modo livre no site oficial da instituição em <http://www.latinobarometro.org/lat.jsp>. Acesso em 12 jan. 2020.

7“Para descrever o que aconteceu com a América Latina e dizer que 2018 foi um ‘annus horribilis’, é preciso que se parafraseie a Rainha Isabel. Desde o início da transição para a democracia, a América Latina poucas vezes viveu um período tão convulsionado como o atual. Não se trata de revoluções ou de grandes acontecimentos sociais, mas, melhor dizendo, da soma de acontecimentos significativos que vão conformando um quadro nítido. Essas convulsões não foram produzidas por protestos como os do início da década, mas sobretudo pelas disputas eleitorais, pelas acusações de corrupção, pelos presidentes presos, pelas empresas corruptas, pelas migrações massivas mais volumosas da história. Tudo isso nos indica que, em 2018, presenciamos como espectadores o fim da terceira onda de democracias. [...]. No mundo inteiro, há retrocessos de liberdade, de justiça, de equidade, em povos que haviam conquistado avanços nessas questões. A América Latina não é uma exceção nesse contexto, pois temos novos autoritarismos em países que tiveram uma transição para a democracia. De modo igual ao que houve na ex-Europa, por trás da ‘cortina de ferro’, há retrocessos na democracia.” (LAGOS, 2019, p. 1, tradução nossa).

8Música “Dona de mim”, cantada pela cantora Iza, autoria da letra de Arthur Marques, inserida em seu disco de lançamento, igualmente intitulado Dona de Mim, Warner Music Brasil, 2018.

9Situação de notícia recorrente na mídia brasileira que revela o mesmo mecanismo que associa desconforto, nojo e sensação de algo no lugar errado é o uso do banheiro feminino por travestis e transexuais. No momento de escrita deste artigo (janeiro e fevereiro de 2020), pelo menos cinco episódios desses foram matéria de ampla divulgação nos meios jornalísticos e televisivos, sempre com protestos de coletivos LGBTQIA+ posteriores ao acontecimento, explicações por parte da instituição e muito debate. Um deles pode ser conferido em: <https://revistaforum.com.br/lgbt/manifestantes-fazem-protesto-em-shopping-de-maceio-acusado-de-transfobia/>. Acesso em: 4 jan. 2020.

10A notícia, bem como o vídeo com a cena da posse e da declaração pode ser conferida em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/01/03/damares-diz-que-video-e-metafora-e-que-meninos-e-meninas-podem-usar-qualquer-cor.ghtml>. Acesso em: 20 jan. 2020.

11Reportagem Investigativa do jornal apontou que o feminicídio cresce no Brasil e explode em alguns estados. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/02/feminicidio-cresce-no-brasil-e-explode-em-alguns-estados.shtml?fbclid=IwAR3rLB1M0ZbTp84zx6pgv6iiA8YD0wXa-z-eV82fqWCWvlhrTQmkWnmhFsE>. Acesso em: 22 fev. 2020.

12Retrospectiva 2019: Brasil registra uma morte por homofobia a cada 23 horas, aponta entidade LGBT. Disponível em: <https://agenciaaids.com.br/noticia/retrospectiva-2019-brasil-registra-uma-morte-por-homofobia-a-cada-23-horas-aponta-entidade-lgbt/>. Acesso em: 29 dez. 2019.

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Recebido: 31 de Março de 2020; Revisado: 12 de Abril de 2020; Aceito: 13 de Abril de 2020; Publicado: 23 de Abril de 2020

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