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Práxis Educativa

versión impresa ISSN 1809-4031versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.16  Ponta Grossa  2021  Epub 20-Oct-2021

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.16.17270.012 

Artigos

O corpo inorgânico no jovem Marx: um conceito-limite de antropocentrismo*

The inorganic body in the early Marx: a limit-concept of anthropocentrism

El cuerpo inorgánico en el joven Marx: un concepto límite del antropocentrismo

*Universidade da California, Berkley, Estados Unidos. E-mail: <pbutler@berkeley.edu>


Resumo:

Neste texto, a partir de uma interlocução com a objeção de Bruno Latour à tarefa da crítica, Judith Butler busca traçar um modo de abordar, sob uma perspectiva contemporânea, os manuscritos econômico-filosóficos de 1844 de Karl Marx. Para tanto, a autora interroga um famoso, porém enigmático parágrafo desses escritos iniciais de Marx quando ele se refere à natureza como o corpo inorgânico do homem. Assim, em primeiro lugar, Butler localiza este parágrafo no texto mais amplo de Marx e oferece um entendimento dessa ideia dentro do contexto dos argumentos gerais do autor. Por fim, ela sugere que uma consideração dessa noção do corpo inorgânico em Marx tem implicações atuais para a crítica, especialmente no que diz respeito à acusação de antropocentrismo.

Palabras-clave: Teoria Crítica; Corpo; Natureza inorgânica

Abstract:

In this text, based on an interlocution with Bruno Latour’s objection to the task of criticism, Judith Butler seeks to outline a way of approaching, from a contemporary perspective, Karl Marx’s 1844 economic-philosophical manuscripts. To this end, the author interrogates a famous but enigmatic paragraph in Marx’s early writings when he refers to nature as the inorganic body of man. So, first of all, Butler finds this paragraph in the larger text of Marx and offers an understanding of this idea within the context of the author’s general arguments. Finally, she suggests that a consideration of this notion of the inorganic body in Marx has current implications for criticism, especially with regard to the charge of anthropocentrism.

Keywords: Critical Theory; Body; Inorganic Nature

Resumen:

En este texto, a partir de una interlocución con la objeción de Bruno Latour a la tarea de la crítica, Judith Butler busca esbozar una forma de abordar los manuscritos económico-filosóficos de Karl Marx de 1844 desde una perspectiva contemporánea. Con este fin, la autora interroga un párrafo famoso pero enigmático de estos primeros escritos de Marx cuando se refiere a la naturaleza como el cuerpo inorgánico del hombre. Entonces, en primer lugar, Butler ubica este párrafo en el texto más amplio de Marx y ofrece una comprensión de esta idea dentro del contexto de los argumentos generales del autor. Finalmente, sugiere que una consideración de esta noción de cuerpo inorgánico en Marx tiene implicaciones actuales para la crítica, especialmente con respecto a la acusación de antropocentrismo.

Palabras claves: Teoría crítica; Cuerpo; Naturaleza inorgânica

O esforço para reviver e recuperar a teoria crítica e seus antecedentes intelectuais tornou-se mais difícil em um momento no qual a “crítica” é comumente denunciada como negativa, cética e antropocêntrica. Bruno Latour (2004), por exemplo, imagina que, quando falamos sobre o que é “crítica”, temos em mente um projeto completamente negativo, uma prática de desmascarar e desmantelar os pressupostos hegemônicos sobre o mundo. Essa teoria crítica apenas intensificaria o ceticismo e careceria de poder transformador e de compromisso com ideais emancipatórios. A validade desta alegação dependeria de uma consideração cuidadosa do que significa “negativo” e de um questionamento sobre se “o negativo” mereceria, de fato, uma reputação tão negativa. Ainda que uma abordagem “crítica” não objetive reproduzir formas de pensamento que ratifiquem modos de vida social reprodutores de dominação ou de submissão, não quer dizer que se recuse a reproduzir todas as formas de pensamento ou que se oponha a todos os fenômenos superficiais. Opor-se a uma forma de conhecimento naturalizada porque a opressão é tomada como certa dentro de seus termos não é opor-se a toda a natureza ou reivindicar que a natureza deva ser substituída por expressões de um poder expressivo puramente humano. Tornar um modo naturalizado de subjugação objeto de conhecimento não é destruir sua realidade, mas apenas formá-lo como um objeto de conhecimento, de julgamento e de transformação. Dessa forma, a negação – entendida como a suspensão do caráter dado da realidade – abre uma perspectiva crítica e condiciona precisamente a possibilidade das formas de intervenção e de aspiração que Latour nega ao projeto crítico. Não se abandona o mundo dos fatos, mas, ao se reconhecer um mundo, encontram-se modos de engajamento dinâmico com ele.

Um problema com a crítica de Latour à “crítica” é que ele se baseia em uma teoria crítica colocada desde uma consequente manifestação contemporânea da história a partir de um erro inaugurado por Kant. Latour (2004, p. 233) escreve:

O erro que cometemos, o erro que cometi, foi acreditar que não existia uma maneira eficiente de criticar as questões de fato, exceto afastando-se delas e direcionando a atenção para as condições que as tornavam possíveis. Mas isso significava aceitar muito acriticamente o que as questões de fato eram. Isso permaneceu fiel demais à infeliz solução herdada da filosofia de Immanuel Kant.

Latour parece entender o positivismo, aqui, como o objeto da crítica e continua a afirmar que as questões de fato precisam ser reavaliadas de um modo que afirme seu potencial e seus poderes agenciais. Esse pode muito bem ser o caso. Contudo, por que tal projeto seria antitético à crítica? Além do mais, seria correto Latour imaginar que os teóricos críticos fossem todos enredados por uma visão que fracassasse em atender às questões de fato (e as reformulasse como questões de interesse) a fim de discernir seu próprio potencial crítico? Latour parece perguntar se não é hora de parar de agir no mundo, mas, ao fazer essa afirmação – se é esta a sua afirmação –, parece imaginar a ação como uma atividade antropocêntrica, mesmo que haja uma significativa tradição da teoria crítica que conteste tal suposição.

Para Latour, a crítica é empreendida por um sujeito cujo principal objetivo é distanciar-se do mundo, e, assim, negar o domínio do que é (considerado como o que simplesmente é). Negação, para Latour, não pode produzir uma explicação que leve em conta a agência compartilhada no trabalho entre campos subjetivos e objetivos. Esse mal-entendido, em sua opinião, decorre da epistemologia kantiana. Além disso, esse mal-entendido fracassa em entender de forma apropriada que o domínio das “questões de fato” e das “questões de interesse” nos oferece possibilidades críticas. Sem dúvida, o argumento de Latour poderia ser facilmente refutado por uma consideração mais sutil da relação entre sujeito e objeto e entre natureza e vida no idealismo alemão, que demonstraria não ser bastante antitética com suas ponderações. De forma alternativa, outra crítica poderia mostrar que Latour equivoca-se quanto à negação, especialmente quanto à noção hegeliana de negação determinada, como parte de uma filosofia de imanência, que tem considerações importantes para uma descrição não positivista de natureza. A teoria crítica também tem oferecido uma variedade de posições contra o ceticismo, as quais são ignoradas quando Latour compreende o ceticismo como sendo a assinatura característica da teoria crítica. Finalmente, a posição kantiana que ele associa a um hipersubjetivismo, o qual abandona o domínio da realidade objetiva, não é nem uma caracterização justa e fundamentada de Kant nem uma das preocupações da teoria crítica.

No entanto, a crítica errante de Latour oferece uma oportunidade de abordar o aspecto “crítico” da teoria crítica em termos contemporâneos, através dos quais podemos vê-la emergir de situações de crise. Se a teoria crítica é separada do engajamento social e do ativismo, esvaziando o próprio domínio a partir do qual a problemática política emerge, ela se priva da capacidade de traçar essa mesma emergência. Essa importante relação entre trabalhar dentro e fora da academia está ligada ao problema adicional da fronteira entre a universidade e o mundo. Tal prática crítica nem se distancia dos fatos nem nega sua existência ou importância. Ao contrário, a constelação de quaisquer “fatos” se imprime em nossos pensamentos e, assim, o mundo age sobre nós e exerce uma demanda histórica sobre o pensamento. A demanda por intervenção nas mudanças climáticas é apenas um caso em questão. Uma objeção a como o ambiente tem sido intoxicado requer uma intervenção que permita sua desintoxicação e sua renovação. Essa não é uma forma de domínio, mas um reconhecimento de que as criaturas orgânicas exigem a continuação de suas vidas e da vida orgânica de forma mais geral. Então, sim, o pensamento crítico está imerso em questões de interesse, respondendo à demanda que essas questões nos colocam, mas também desafia a noção de que somos sujeitos que apenas fazem seus próprios mundos, pois que não somos formados e afetados por um mundo que nunca fizemos. Somos criaturas pensantes que registram violação e potência nas vidas somáticas em que vivemos, sentimos e pensamos. Apanhados pelo vetor temporal do passado, do presente e do futuro, pensamos dentro de um modo de pensamento formado por, contra – e até mesmo para – a impressão do mundo.

Antropocêntrico?

À luz da concepção acima de teoria crítica e de sua crítica, desejo realizar uma pergunta mais específica, a saber: qual o melhor modo de abordar, hoje, os manuscritos de Marx de 1844, de maneira a colocar a questão: o jovem Marx é, como é comumente assumido e da forma que Latour sugeriu mais recentemente, antropocêntrico? O que me leva a fazer essa pergunta é um famoso, porém muito enigmático parágrafo dos manuscritos que se referem à natureza como o corpo inorgânico do homem. Esta é uma afirmação surpreendente e tentarei, primeiro, localizá-la no texto de Marx e oferecer meu entendimento dessa ideia dentro do contexto dos argumentos gerais em seus escritos iniciais. Mais importante ainda, desejo sugerir que uma consideração dessa noção do corpo inorgânico em Marx tem implicações para a crítica contemporânea, especialmente no que diz respeito à acusação de antropocentrismo.

Essa é uma questão que foi colocada de uma maneira diferente por um conjunto de debates nos anos de 1970 e 1980, conduzidos por pesquisadores britânicos, especialmente John Clark (1989), quando procurou enfrentar a questão sobre se as opiniões de Marx seriam compatíveis com uma perspectiva ecológica, a qual, por sua vez, levou a uma série de investigações sobre o melhor modo de entender a teoria da natureza de Marx. Os debates levantados neste contexto são importantes não apenas porque os primeiros manuscritos de 1844 foram normalmente substituídos pelo trabalho posterior de Marx, especialmente por O Capital e Grundrisse, mas porque é amplamente aceito que os primeiros manuscritos se baseiam em uma teoria da alienação e uma teoria do sujeito que são, na melhor das hipóteses, especulativas e que se desviam da estrutura e dos objetivos da teorização do caráter estrutural ou sistêmico do capitalismo desenvolvido em O Capital e nos escritos subsequentes de Marx. Apesar de o retorno aos escritos iniciais de Marx não ter, necessariamente, o objetivo de recuperar ou de reabilitar sua descrição inicial do trabalho, neles são suscitadas questões sobre como entendemos o trabalho e o corpo laboral, o humano e a sua relação com a natureza e os outros processos vivos1.

Sabemos que o trabalhador atua sobre a natureza e que depende da natureza para fins de subsistência. Também sabemos, posso presumir, que o corpo é sensorial e que seu trabalho sobre objetos naturais implica um envolvimento sensorial com esses objetos. Porém, se a natureza é, em certo sentido, o “corpo inorgânico” do humano, outro tipo de relacionamento é postulado, ou seja, aquele no qual o corpo do humano não é mais exatamente discreto. Na verdade, seus limites não são realmente conhecidos ou cognoscíveis. Se há um corpo inorgânico do ser humano, e ele é todo da natureza, logo, o corpo humano se estende a toda a natureza, ou, inversamente, toda a natureza compreende o corpo humano. A relação do corpo humano com toda a natureza se mostra essencial para o corpo humano, ou a relação da natureza com o corpo humano se mostra essencial para a natureza. A forma como concebemos essa relação tem implicações para responder à questão de quão antropocêntricos são os primeiros manuscritos de Marx ou se existe uma crítica não examinada do antropocentrismo a ser encontrada nessas páginas. A minha sugestão é que precisamos reconsiderar essa alegação especulativa sobre a natureza como “corpo inorgânico” para responder a essa pergunta.

Chamar a natureza de “corpo inorgânico” mostra-se, em parte, enigmático, porque se refere a um corpo singular, sugerindo que, de algum modo, o corpo é uma unidade, mesmo que internamente diferenciada. Além disso, há uma pergunta óbvia sobre o porquê de a natureza ser chamada “inorgânica” em vez de “orgânica”. Qual é a diferença? Como a primeira se transforma na segunda? Podemos esperar que o orgânico se transforme no inorgânico como resultado do trabalho humano, mas neste caso – e em relação ao problema da subsistência – o inverso é, de fato, o caso. Para entender o que isso significa, temos, primeiro, que entender a diferença entre o orgânico e o inorgânico em Marx e ver o que essa diferença significa quando se torna duas modalidades de descrição do corpo ou, antes, duas modalidades pelas quais o corpo aparece.

Conforme espero mostrar, resta-nos inferir que o “homem” possui ambos os corpos: orgânico e inorgânico. “Seu” corpo orgânico é aquele que “ele” experimenta como limitado e discreto, separado do resto da natureza; mas a natureza – a inteireza da natureza – constitui o seu corpo inorgânico2. Assim, o “homem” é um corpo e se distingue de outro, mas a distinção também está naquilo que ele mesmo vive. Devemos presumir que existem dois corpos ou apenas um corpo que tem uma dimensão ou uma modalidade orgânica bem como inorgânica? Parece que o corpo orgânico – o que Marx chama de Leib humano – é discreto, mas o corpo inorgânico – o que ele chama de Körper – não é e, logo, não devemos assumir uma distinção absoluta entre essas duas dimensões. O que se torna imediatamente claro, no entanto, é que há um caráter vivo para o corpo orgânico (Leib) que é distinto do corpo inorgânico. O problema se torna mais complexo pelo fato de que, geralmente, Leib denota o corpo vivo e Körper significa uma densidade discreta simples, viva ou morta3. No entanto, não seria correto dizer que o corpo inorgânico está simplesmente morto. A natureza está viva, mas não no mesmo sentido que o corpo está. Assim, orgânico não está para inorgânico como a vida está para a morte. Orgânico e inorgânico são potenciais um do outro e o problema da vida parece atravessar essa distinção de uma maneira que ainda está para ser esclarecida.

Primeiro, no entanto, devemos perguntar: como essa distinção informa nossa interpretação do que está acontecendo com a afirmação sobre a natureza como “corpo inorgânico”, e com a questão mais ampla sobre se Marx, em seus primeiros manuscritos, propõe um relato antropocêntrico da natureza? A natureza é um objeto de trabalho e uma ocasião para autorreflexão do trabalhador, é a substância sobre a qual ele trabalha, bem como aquilo que sustenta sua existência: às vezes, o objeto pelo qual alguém trabalha é a comida. A natureza é, obviamente, uma base para a conexão do humano com outros humanos, mas é também aquilo que constitui o “ser genérico”, pois a criatura humana pode pertencer à sua própria espécie, mas, se essa espécie é uma dentre muitas das espécies e se, como espécie viva, está ligada a outras formas de vida, então precisamos entender que tipo de ligação ou de relação é essa. Isso pode muito bem nos aproximar do sentido da afirmação de Marx de que a “natureza é o corpo inorgânico do homem”.

Considerarei o parágrafo em que Marx introduz essa formulação mais à frente, mas antes me deixe oferecer alguns antecedentes. Nos anos de 1970 e 1980, teóricos marxistas no Reino Unido e em outros lugares se preocuparam com a questão de saber se as visões de Marx eram compatíveis com o pensamento ecológico. Alguns perguntaram: a afirmação de que a “natureza é o corpo inorgânico do homem” é uma afirmação ecológica? Será que os humanos devem agir ou estão naturalmente dispostos a agir como se seus próprios corpos fossem, em algum sentido, coextensivos à natureza? Este é o caso em que o homem age de tal maneira que participa organicamente na natureza? A ação adequada ao homem é também uma atividade natural, superando, por assim dizer, uma distinção radical entre a ação humana e o processo natural? John Clark (1989) salienta que Marx também descreve locomotivas e ferrovias como órgãos do cérebro humano, sugerindo, desse modo, que essas intuições humanas se desenvolvem a partir de ideias que emergem da consciência humana, mas também da dimensão orgânica do cérebro, uma vez que, sem o cérebro, essas ideias não existiriam (MARX, 1993) 4. O cérebro não é simplesmente a condição de possibilidade para a mente, mas parece, em certo sentido, gerador de invenções humanas, tais como locomotivas e ferrovias. Essas últimas não são simplesmente produzidas pelo cérebro/mente, mas, se quisermos, são órgãos do cérebro humano. O órgão não está no cérebro, ou não exclusivamente no cérebro, mas também está na expressão ou no trabalho em si. Esse é apenas um caso em que a expectativa de que os órgãos estejam necessária ou totalmente alojados dentro do corpo termina por não resultar muito certa, uma vez que eles não estão apenas nos meios de produção (ferrovias e locomotivas), mas estão ontologicamente ligados uns aos outros. Note como as ligações trabalham: as locomotivas são os órgãos do cérebro; a natureza é o corpo inorgânico dos humanos. Como entendemos essas equações ou equivalências ontológicas?

Carolyn Merchant (1990) aponta que o orgânico, no século XVII, se referia aos órgãos, às estruturas e à organização dos seres vivos. Inorgânico, por sua vez, referia-se à ausência de órgãos corporais. O humano pareceria, portanto, orgânico, e a natureza externa seria inorgânica se seguirmos essa distinção. Porém, no caso de Marx, como argumentam Foster e Burkett (2000, 2001), o sentido de “inorgânico” se referiria especificamente à extensão do corpo humano e às suas atividades a partir do uso de ferramentas e de instrumentos e, portanto, a uma argumentação técnica dos poderes corporais. No entanto, como Foster e Burkett também apontam, nenhuma dessas distinções pode capturar o contexto hegeliano da distinção de Marx5. Esse entendimento ressalta a apropriação da natureza para fins de amplificação dos poderes humanos. Como espero mostrar, a distinção entre corpo orgânico e inorgânico é, por conseguinte, relativa, e muda de acordo com a forma como entendemos a relação entre o trabalho e os meios para viver. De fato, no coração dessa discussão, Marx oferece uma forma alternativa de considerar o trabalho que não é nem destacadamente humanista nem modelada pela dominação.

Em todo caso, a ideia de uma amplificação técnica do corpo sugerida pela consideração das ferrovias como órgãos do cérebro está distante do modelo de trabalho artesanal que informa a discussão de Marx sobre a alienação humana e o valor do trabalho. A consciência humana é aquela que, por meio do trabalho, busca se exteriorizar em um objeto natural a fim de obter um reflexo de seu valor no objeto que transforma pelo trabalho. Toda a teoria da alienação é baseada nesta teoria inicial e generalista do valor do trabalho. A teoria da alienação, todavia, também tende a assumir que há atividades humanas essenciais e que o trabalho é a principal entre elas. O trabalho fornece o que é necessário para viver; também expressa potenciais humanos essenciais; e nos conecta com outros seres trabalhadores, atualizando nosso ser genérico (JAEGGI, 2016).

Humanista?

Os esforços, nas últimas décadas, para ir além dos primeiros escritos de Marx foram baseados em uma série de argumentos, dentre os quais o principal é o caráter especulativo e infundado da própria teoria inicial do trabalho. Particularmente, Louis Althusser forneceu uma crítica poderosa ao jovem Marx, alegando que ainda estava sob a influência do humanismo de Feuerbach, e insistindo que a sua descrição das capacidades e dos requisitos humanos essenciais constituía uma antropologia filosófica que deveria ser substituída por um relato estruturalista da ideologia. Em seu ensaio “Marxismo e humanismo”, Althusser (2015) cita a formulação-chave de Marx nos manuscritos de 1844: “Comunismo [é] a apropriação efetiva da essência humana pelo e para o homem [...] esse comunismo é, enquanto naturalismo consumado = humanismo” (MARX, 2004, p. 105)6. Althusser contrasta uma visão ideológica do humano a uma descrição científica, isto é, a um relato estrutural de como o capitalismo trabalha para produzir o sujeito. Ele critica o humanismo feuerbachiano do jovem Marx por basear seu projeto crítico na noção de que a realidade social produzida nos termos da economia política contradiz a essência do homem. O problema com essa visão, é claro, é que se deve, primeiro, assumir o que é a essência humana a fim de mostrar como a realidade presente produz uma realidade alienada. Nesse modelo, a alienação deve ser entendida como uma contradição que precisa ser resolvida. Althusser (2015, p. 187) escreve:

A história é a alienação e a produção da razão na desrazão, do homem verdadeiro no homem alienado. Nos produtos alienados do seu trabalho (mercadorias, Estado, religião), o homem, sem sabê­lo, realiza a essência do homem. Essa perda do homem, que produz a história e o homem, supõe antes uma essência preexistente definida. Ao final da história, esse homem, transformado em objetividade inumana, não terá mais do que tomar, como sujeito, a sua própria essência alienada na propriedade, na religião e no Estado, para vir a ser o homem total, o homem verdadeiro.

Althusser observa justamente que esse recurso à natureza humana como o fundamento da organização política e da teoria política exigiu aceitação de um humanismo teórico que não tem fundamento. Quem é este “homem” que ancora a organização social na economia política? A grande contribuição de Althusser foi insistir que esse homem é, ele mesmo, um produto dessa economia compreensível apenas em relação às suas estruturas sociais constituintes. Em face desse humanismo primitivo, Althusser conta-nos, Marx passou a aceitar uma teoria anti-humanista, que se baseava em uma análise da prática humana. Em “Marxismo e humanismo”, Althusser (2015, p. 185) afirma que o afastamento de Marx do antropocentrismo aconteceu quando ele se voltou para “os diferentes níveis específicos da prática humana (prática econômica, prática política, prática ideológica, prática científica) nas suas articulações próprias, fundadas nas articulações específicas da unidade da sociedade humana”. De todo modo, uma prática estaria relacionada a uma estrutura social ao invés de estar relacionada a uma ideia de essência humana ou de atividades humanas essenciais. A conclusão foi que, se tomarmos qualquer atividade humana como definitiva do homem, obliteramos o poder constitutivo das estruturas sociais. Para Althusser, não pode haver análise da ação humana fora do contexto da estrutura humana. Ao seguir esse imperativo, o jovem Althusser argumentou que a transição de uma análise ideológica para uma análise científica se tornaria possível. O humanismo, e todos os seus pressupostos, é uma ideologia. E ideologias não são em si invenções da “consciência”, mas parte da própria estrutura da sociedade.

A teoria da interpelação de Althusser seguirá a seguinte afirmação: os sujeitos são produzidos pelas sociedades de maneira que reproduzem – ou procuram reproduzir – as estruturas da sociedade. As ideologias, no entanto, não podem ser entendidas como puramente instrumentais. Elas representam a relação imaginária dos indivíduos com as condições de sua existência. Poderíamos desenvolver este ponto por algum tempo, especialmente com o auxílio da obra de Étienne Balibar, mas, por enquanto, notemos simplesmente que o humanismo, expresso sintomaticamente pelo jovem Marx, é considerado uma ideologia, isto é, representa uma relação imaginária com as condições de existência e não se qualifica como ciência. Não nos diz nada sobre a essência do homem. Na verdade, falar de uma essência é fugir mais uma vez das estruturas sociais e de suas relações imaginárias com as condições de existência. À medida que essas condições mudam historicamente, o mesmo ocorre com a relação imaginária com essas condições. E, uma vez que essas condições são transformadas ao longo do tempo e, portanto, por definição, sujeitas à transformação, também o é a relação imaginária com essas condições. A questão-chave é, assim, deslocada de o que é o homem? ou o que é essencial para o homem? – perguntas que pertencem a uma versão teoricamente humanista da antropologia filosófica – para a pergunta qual é a relação imaginária com as condições de vida? – o que nos leva a uma compreensão específica e complexa do sujeito à luz da psicanálise e da história. Esta é uma trajetória maravilhosa que não posso continuar aqui. Contudo, é perceptível que a preocupação com a alienação é substituída por uma preocupação com a ideologia. Com efeito, até certo ponto, a alienação tornou-se tão manchada por suas concepções humanistas que a maioria dos intelectuais de esquerda não retornou ao tema por várias décadas.

Aqueles de nós que têm trabalhado com os domínios do estruturalismo e do pós-estruturalismo ao longo das últimas décadas têm uma dívida profunda com o revolucionário movimento intelectual de Althusser. Minha própria dívida com essa mudança de perspectiva é enorme, independentemente de ter ou não sabido disso. Porém, assim como Étienne Balibar recentemente procurou retornar à ideia de uma antropologia filosófica para perguntar se consideramos seus possíveis significados, também estou perguntando se atribuir um humanismo inequívoco ao jovem Marx é totalmente justificável. Althusser estava, a meu ver, com razão ao afirmar que não precisamos colocar, em primeiro plano, uma contradição entre a essência da natureza humana e as condições reais da vida para desenvolver uma crítica ao capitalismo. Um problema é a confiança na contradição para expor o problema, outro é a presunção sobre o que constitui as atividades essenciais dos seres humanos. Se continuarmos sem confiarmos na contradição ou no humanismo, o que resta? O imaginário não é redutível à imaginação humana. O exame de Lacan por Althusser procura estabelecer como o humano é constituído dentro do imaginário, mas não como sua origem. Esse é outro excelente tema, mas não é exatamente o meu ponto neste ensaio.

O esforço para ir além dos escritos iniciais de Marx tem sido apoiado não somente pela brilhante leitura de Althusser, mas também por aqueles que afirmam que a relação de Marx com a natureza é principalmente de dominação. Além disso, argumenta-se que Marx não previu a destruição da natureza, que resultaria de um modo desenfreado de produção. Se a essência humana é trabalhar com a natureza, e assim é para sempre, para que a essência humana seja perpetuamente realizada, a natureza deve permanecer um recurso ilimitado. Esse ponto corresponde à ideologia produtivista de Marx (BAUDRILLARD, 1975), mesmo que condene explicitamente o impulso em direção à extensão ilimitada da produção. Nos manuscritos de 1844, pelo menos, o trabalho é entendido como uma apropriação da natureza ou, para formular melhor, uma expropriação da natureza. Se essas são necessariamente formas de dominação, permanece, no entanto, uma questão.

A natureza não é somente aquilo sobre o que os humanos atuam, mas pertence propriamente ao sujeito que trabalha; algo que fica mais claro quando o trabalhador é reduzido a uma luta pela subsistência física. Os aspectos naturais e físicos do trabalho humano não são os mesmos, mas a reprodução da pessoa física é necessária para que o trabalho continue. Natureza, às vezes, pode significar o físico, mas também é uma relação de uma criatura natural com outras criaturas ou com a vida, ou mesmo com os processos vivos. Os seres humanos perdem sua essência quando trabalham apenas pela subsistência, isto é, para se reproduzirem como seres vivos. O trabalho que cria valor é diferente do trabalho para subsistência. Privado de um senso adequado de trabalho, o humano não seria capaz de realizar sua consciência no objeto que cria. Ele se torna cada vez mais preocupado com a sua subsistência ao invés de preocupar-se com a realização de seus poderes essenciais, ponto no qual a natureza física e a consciência divergem uma da outra.

De fato, uma dimensão da alienação consiste no fracasso do trabalhador em se reconhecer como uma consciência realizada, uma vez que se torna um objeto, um instrumento, uma forma de trabalho cujos lucros são calculados e explorados por aqueles que possuem os meios de produção. Por meio desse processo, ele é privado da atividade espiritual ou consciente humana. Assim, a natureza, considerada externa ao trabalhador, é necessária para a sua vida, que é também natureza, e fornece o objeto para o trabalho, especialmente quando o trabalho é considerado em um modelo artesanal. Sob as condições da economia política capitalista, na qual o trabalho não pertence ao trabalhador, na qual seu trabalho é valorizado de acordo com sua permutabilidade, quanto mais ele trabalha, menos ele é remunerado e mais comprometida está a sua subsistência física. Aqui, vemos uma versão de uma contradição operativa no relato da alienação, mas é uma contradição condicionada, que só se torna possível quando o trabalho já não mais assegura a subsistência. Mesmo assim, não há maneira de separar a questão da subsistência da realização, embora a essência que se realiza seja aquela que deve persistir na vida para si e para os outros – na verdade, esses dois últimos propósitos fazem parte da própria essência. A essência não pode ser separada do caráter vivo do trabalhador.

Se fôssemos nos referir à “natureza humana” nesse sentido, emergiria uma espécie de tensão, senão, uma contradição, uma vez que o sentido do que é natural – incluindo os requisitos de subsistência – está pressuposto pelo sentido do que é “humano”: a realização das potencialidades humanas essenciais. E, no entanto, podemos perguntar: o natural é apenas uma condição de possibilidade para a realização do humano, é uma parte própria do humano? O humano tem sua própria parte da natureza, sua própria natureza e, se assim for, como está relacionado com outras partes e com outras naturezas? Essa última questão é levantada pelo conceito de ser genérico de Marx, que suscita, por sua vez, a questão de saber se a consideração da natureza em Marx, ou mesmo no Hegel sobre o qual se baseia, é distintamente humana ou se essa distinção deriva de um conjunto vital de diferenças e, assim, postula o humano de um modo descentrado, como uma parte apropriada de uma natureza maior. Em sua discussão sobre o trabalho estranhado, Marx se refere à natureza como o material sobre o qual o trabalhador atua, mas também ao meio de vida do trabalhador. Assim, a natureza se vincula às noções de materialidade, à vida e ao que é viver, bem como aos meios de vida. Marx (2004, p. 81) escreve o seguinte:

Examinemos agora mais de perto a objetivação, a produção do trabalhador, e nela o estranhamento, a perda do objeto, do seu produto.

O trabalhador nada pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior sensível (sinnlich). Ela é a matéria na qual o seu trabalho se efetiva, na qual [o trabalho] é ativo, [e] a partir da qual e por meio da qual [o trabalho] produz.

Mas como a natureza oferece os meios de vida, no sentido de que o trabalho não pode viver sem objetos nos quais se exerça, assim também oferece, por outro lado, os meios de vida no sentido mais estrito, isto é, o meio de subsistência física do trabalhador mesmo.

Quanto mais, portanto, o trabalhador se apropria do mundo externo, da natureza sensível, por meio do seu trabalho, tanto mais ele se priva dos meios de vida segundo um duplo sentido: primeiro, que sempre mais o mundo exterior sensível deixa de ser um objeto pertencente ao seu trabalho, um meio de vida do seu trabalho; segundo, que [o mundo exterior sensível] cessa, cada vez mais, de ser meio de vida no sentido imediato, meio para a subsistência física do trabalhador.

Segundo este duplo sentido, o trabalhador se torna, portanto, um servo de seu objeto. Primeiro, porque ele recebe um objeto de trabalho, isto é, recebe trabalho; e, segundo, porque recebe meios de subsistência. Portanto, para que possa existir, em primeiro lugar, como trabalhador, e, em segundo, como sujeito físico.7

Por conta disso, a natureza emerge, primeiro, como o mundo exterior sensível, a condição do trabalho do trabalhador. Ele deve atuar sobre a natureza; deve ter um objeto sensível diante de si. O trabalho é executado por meio de uma atuação que se realiza sobre e a partir do objeto. O trabalho humano anima o objeto e sua realização requer esse objeto para esse propósito. Nesse sentido, então, o trabalho humano anima o objeto. O objeto não é em si mesmo animado, nem anima nada além de si próprio. Mas por que não? Por que o caráter animado do objeto depende de humanos que o animem? Por que a animação encontra sua fonte no humano?

Essa formulação parece confirmar o entendimento antropocêntrico da visão de Marx, sugerido pelas ontologias orientadas aos objetos derivadas do quadro teórico oferecido por Bruno Latour. A segunda afirmação, no entanto, complica a primeira. A natureza fornece aos seres humanos os meios de vida. E isso é verdade por duas razões distintas, porém relacionadas. A primeira é que a natureza fornece o objeto sobre o qual trabalhar, de modo que não existe trabalho sem natureza (pelo menos de acordo com esse modelo de trabalho), sem o seu objeto. O trabalho, porém, é necessário para a vida humana no sentido de subsistência. Sob as condições da economia política, deve-se trabalhar para subsistir como um sujeito físico, e, assim, a própria continuação da existência sensível depende da capacidade de encontrar e manter um trabalho que lhe proporcionará um salário que possa garantir os meios de subsistência. Quanto mais alguém trabalha no objeto sensível, quanto mais explorado é o trabalho, mais valor é extraído dele para fins de acumulação de lucro. O resultado, Marx nos diz, é que a própria subsistência física do trabalhador segue ameaçada. Isso é diferente da não realização de suas expressivas capacidades humanas, ainda que se relacionem. A subsistência física não é suficiente para realizar essas capacidades expressivas, mas sua realização não pode ocorrer sem ela.

O trabalhador não pode trabalhar nesse objeto e obter desse trabalho os meios de viver. Quanto mais trabalha no objeto, menos possui os meios para viver. Nesse sentido, o trabalhador se torna um servo do objeto. Entretanto, isso só é verdade à medida que o objeto pertence a alguém ou a um sistema que busca manter sua vida viva o suficiente para continuar a trabalhar. E isso é verdade apenas devido a que o objeto do trabalho é uma condensação desse poder, desse sistema. Porém, quando o trabalho está em grande oferta, até a subsistência do trabalhador não é mais necessária. O trabalho pode ser extraído do ser vivo e o ser vivo pode adoecer ou morrer e aqueles que possuem os meios de produção encontrarão outro trabalhador de quem o trabalho pode ser extraído até que sua fisicalidade esteja esgotada ou quebrada além da possibilidade de reparação. Assim, o trabalhador atua sobre a natureza a fim de garantir sua própria subsistência, mas a organização do trabalho é tal que, quanto mais trabalha no objeto, mais o valor do seu trabalho é separado da sua subsistência e sua vida é ameaçada. Quanto mais ele trabalha no objeto sensível, mais sua própria existência sensível é colocada em perigo. Ele corre o risco de perder sua fisicalidade, sua existência sensível, sua própria vida, perseguindo os meios de vida dentro de um sistema de trabalho que deseja e é capaz de dispensar sua vida. O trabalho não o sustenta nem fornece subsistência, mas se torna o meio pelo qual a subsistência é posta em perigo. Desta forma, o trabalho se desvia do objetivo da realização de poderes ou de atividades essenciais.

Os meios de vida são chamados de “subsistência” na linguagem da economia política. Linguagem que coloca, em primeiro plano, a continuação da vida física do trabalhador e demonstra a condição de precariedade induzida (que será mais bem elaborada nos textos posteriores de Marx), imposta não apenas por um sistema capitalista de trabalho, mas por condições nas quais o trabalho é temporário, contingente, em que a substitubilidade e a dispensabilidade radicais do trabalhador tornam-se a norma.

Poderíamos ser tentados a dizer que Marx entendeu o proletariado como o nome para o potencial coletivo do trabalhador, e que, hoje, a precariedade é o melhor nome para o coletivo daqueles para quem o trabalho é ilusório, temporário e para quem a dívida se tornou impagável. Podemos, no entanto, ver mesmo no jovem Marx que uma compreensão de precariedade já estava em ação, mesmo que precariedade não seja um termo seu. Precariedade é a ameaça constante à perspectiva de subsistência física do trabalhador ou, aliás, para quem não consegue encontrar trabalho, para aqueles que são regularmente abandonados por um sistema de trabalho que os considera exauríveis e substituíveis e para os quais pouca ou nenhuma proteção social existe, para quem toda a ideia de proteção social desaparece.

A subsistência não é simplesmente a condição para a realização do trabalho. É também o objeto do trabalho e o padrão variável usado pelos modos de produção capitalista. Na verdade, um argumento que Marx apresenta é que os padrões de subsistência são regulados por aqueles que procuram explorar o trabalhador. Não há um padrão de subsistência, não há um conjunto de requisitos acordado. Esses requisitos são estabelecidos por aqueles que buscam mantê-los a um mínimo padrão, ou pelos que são indiferentes à possibilidade de o trabalhador se machucar, adoecer, tornar-se incapacitado ou até morrer. Ou, quando se presume que os trabalhadores serão substituídos à vontade, a subsistência como um padrão não existirá como tal, uma vez que dificilmente é necessária para fins de produção. E embora, como vimos, Marx faça uma distinção entre o domínio da necessidade física e o verdadeiro domínio da liberdade humana, ele nos mostra, ao mesmo tempo, que essa distinção, na melhor das hipóteses, é tênue. Para entender essa consideração, precisamos entender que tipo de animal o humano é, o que significa que temos mais duas noções a considerar em nossa reconsideração dos manuscritos de 1844. A primeira é o ser genérico e a segunda é a afirmação de Marx de que a “natureza é o corpo inorgânico do homem”.

Um intercâmbio contínuo

Consideremos o parágrafo de “Trabalho estranhado” em que ambos os conceitos são discutidos conjuntamente:

O homem é um ser genérico (Gattungswesen), não somente quando prática e teoricamente faz do gênero, tanto do seu próprio quanto do restante das coisas, o seu objeto, mas também – e isto é somente uma outra expressão da mesma coisa – quando se relaciona consigo mesmo como [com] o gênero vivo [ênfase minha]8, presente, quando se relaciona consigo mesmo como [com] um ser universal, [e] por isso livre.

A vida genérica, tanto no homem quanto no animal, consiste fisicamente, em primeiro lugar, nisto: que o homem (tal qual o animal) vive da natureza inorgânica, e quanto mais universal o homem [é] do que o animal, tanto mais universal é o domínio da natureza inorgânica da qual ele vive. Assim como plantas, animais, pedras, ar, luz, etc., formam teoricamente uma parte da consciência humana, em parte como objetos da ciência natural, em parte como objetos da arte – sua natureza inorgânica, meios de vida espirituais, que ele tem de preparar prioritariamente para a fruição e para a digestão –, formam também praticamente uma parte da vida humana e da atividade humana. Fisicamente o homem vive somente destes produtos da natureza, possam eles aparecer na forma de alimento, aquecimento, vestuário, habitação etc. Praticamente, a universalidade do homem aparece precisamente na universalidade que faz da natureza inteira o seu corpo inorgânico, tanto na medida em que ela é 1) um meio de vida imediato, quanto na medida em que ela é o objeto/matéria e o instrumento de sua atividade vital. A natureza é o corpo inorgânico do homem, a saber, a natureza enquanto ela mesma não é corpo humano. O homem vive da natureza significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de ficar num processo contínuo para não morrer. Que a vida física e mental do homem está interconectada com a natureza não tem outro sentido senão que a natureza está interconectada consigo mesma, pois o homem é uma parte da natureza.

Na medida em que o trabalho estranhado 1) estranha do homem a natureza, 2) [e o homem] de si mesmo, de sua própria função ativa, de sua atividade vital; ela estranha do homem o gênero [humano]. Faz-lhe da vida genérica apenas um meio da vida individual. Primeiro, estranha a vida genérica, assim como a vida individual. Segundo, faz da última em sua abstração um fim da primeira, igualmente em sua forma abstrata e estranhada.9 (MARX, 2004, p. 83-84).

Sabemos que, para Marx, a alienação pode ser do objeto do trabalho e da atividade laboral, mas também do ser genérico (Gattungswesen). Em que sentido, porém, o humano pode ser tomado como um ser genérico? Em primeiro lugar, Marx explica que o humano é um ser genérico tanto em um sentido prático quanto teórico, mas apenas à medida que faz da espécie seu objeto e se considera uma espécie entre outras espécies. Marx chega a fazer referência a si como uma espécie contemporânea e viva à medida que se percebe como um ser universal, e, portanto, livre (Wesen). Podemos razoavelmente esperar que os humanos se distingam dos animais com base no fato de que os humanos alcançam ou evidenciam liberdade e universalidade como um aspecto de seu ser genérico, e os animais não. De fato, Marx nos dá razões para fazê-lo quando escreve, por exemplo, que o “caráter genérico” do homem é a “atividade consciente livre” e que isso diferencia os seres humanos dos animais. Além disso, a característica que distingue o “homem” como um ser genérico é a de poder tomar a própria vida como um objeto, não apenas para si mesmo, mas também “toda a natureza”. Sob esse aspecto, apenas o “homem” produz universalmente, e não os animais. Ao mesmo tempo, no entanto, Marx aborda essa distinção de outro ângulo: aprendemos que os humanos são animais entre os animais, e que a animalidade nunca é superada enquanto os humanos se relacionam entre eles como seres genéricos. Quando falamos sobre a vida da espécie, das Gattungsleben, nós nos referimos àquilo que comumente caracteriza humanos e animais. Marx torna esta questão mais precisa quando afirma que a vida das espécies consiste no fato de que, fisicamente, tanto os seres humanos quanto os animais vivem (von: “de, a partir de”) da “natureza inorgânica”. Ao contrário da expectativa inicial, verifica-se que aquilo que é universal nos seres humanos se revela universal nos animais, uma vez que essa natureza inorgânica é o próprio campo ou domínio da universalidade. Marx descreve, aqui, uma relação de dependência da natureza sem a qual nem os humanos nem os animais podem sobreviver. Ambos estão unidos nessa dependência, nessa exigência de encontrar e de garantir um meio de vida para preparar e ornar uma natureza exterior palatável para os fins de subsistência. Homens e animais não têm uma vida separada do processo pelo qual eles vivem na (ou da) natureza. Além disso, devem tratar – Marx usa a palavra Zubearbeiten – essa natureza e prepará-la para o consumo ou para o prazer. Uma forma de natureza funciona, assim, sobre outra forma de natureza.

Esta não é uma forma de trabalho que domina a natureza, nem é necessariamente parte do sistema de troca. Esse “trabalho sobre” e esse “trabalho com” a matéria, concebido como uma forma de preparação, caracteriza a preparação de alimentos tanto quanto descreve a preparação dos objetos da ciência ou da arte (consideradas como domínios teóricos). Observados teoricamente, esses objetos constituem a natureza espiritual inorgânica do homem, mas, quando considerados na prática, constituem a natureza inorgânica material do homem, isto é, são como parte da promoção e da reprodução do ser e dos seres vivos. O espiritual e o material não se diferenciam de maneira atemporal, ambos se transformam dependendo de como são abordados. Além disso, essas dimensões da natureza inorgânica não são simplesmente objetos externos sobre os quais o humano trabalha, mas constituem parte daquilo que o humano é. Sabemos que o humano muda o objeto a partir do trabalho e que o trabalho passa a refletir o trabalhador humano. Contudo, também é o caso de considerar que o trabalhador é alterado por seu objeto e por todo o sistema da natureza. Esses últimos são uma parte própria de sua atividade. Na verdade, constituem o corpo laboral em um sentido muito específico em que o corpo tem agora uma dimensão orgânica e inorgânica. A distinção entre essas duas dimensões varia a depender de uma abordagem teórica ou prática da natureza. Como essa distinção funciona e o que esse tipo de dualidade do corpo implica para Marx e para o suposto antropocentrismo de seus primeiros escritos?

De uma perspectiva contemporânea, temos motivos para perguntar: por que a natureza, ou parte dela, foi descrita como “inorgânica”? Podemos razoavelmente esperar que animais e humanos dependam da natureza orgânica, no sentido de que dependem de alimentos ou de materiais naturais usados como abrigo. Entretanto, em que sentido a madeira, por exemplo, é inorgânica ou, sob que condições, a madeira se torna inorgânica no sentido de Marx? Meu entendimento é que, em primeiro lugar, a natureza orgânica é animada enquanto a natureza inorgânica permanece inanimada ou (des)animada. Em segundo lugar, uma árvore é compreendida como orgânica até que seja transformada em madeira utilizável e, assim, se torne “inorgânica” nos termos de Marx. A madeira mantém seu caráter material, mas sua vida deriva agora da atividade humana que a prepara para uso, consumo ou prazer. À medida que trabalhado com e trabalhado sobre o objeto se torna inorgânico e inanimado, mas também adquire uma qualidade animada como consequência da forma desse trabalho.

Essa passagem apoiaria inequivocamente a tese de que Marx afirma a dominação humana da natureza para a expressão de uma universalidade própria ou distintamente humana? Ou há algo mais acontecendo, uma relação entre humanos, animais e natureza que não pode ser centrada no humano? A certa altura, Marx descreve essa relação como um “intercâmbio”, sugerindo que aquilo que é universal na natureza é essa dependência das criaturas vivas da natureza para continuar a viver. Poderíamos usar a palavra subsistência (Subsistenz) para descrever essa exigência humana de viver da natureza, mas subsistência é um padrão variável derivado da economia política, que é diferente do sentido de dependência viva posto em relevo por Marx. Talvez, persistência seja a melhor palavra para descrever a atividade e o objetivo de buscar os meios de viver. Neste parágrafo-chave, no qual apresenta a natureza como o corpo inorgânico do homem, Marx afirma que, num sentido prático, a universalidade dos humanos aparece no processo de transformar a totalidade da natureza em seu corpo inorgânico: Die Universalität des Menschen erscheint praktisch eben in der Universalität, die die ganze Natur zu seinem unorganischen Leib macht10 (MARX, 2008, p. 36). A natureza inorgânica não existe como tal, mas é alcançada a partir de uma certa forma de trabalho. Esse estabelecimento da natureza inorgânica ocorre quando a natureza se torna o meio imediato de vida (Lebensmittel). A natureza é dispensada de sua qualidade animada, pois anima, dá vida ou mantém vivo o trabalhador. Sua matéria é, por assim dizer, transformada em objeto e produto (Werkzeug) da atividade vital do trabalhador.

Sejamos claros: não há atividade de vida e não há vida sem esta Natureza. E o universal, longe de caracterizar uma liberdade pura ou uma forma desencarnada de razão, é, pelo menos em um sentido significativo, precisamente essa dependência de viver de forma co-existente com todos os seres vivos, humanos ou animais. Assim, quando afirma que a “natureza é o corpo inorgânico do ser humano”, Marx está alegando que somente como inorgânica a natureza pode manter o humano vivo.

Pode soar contraintuitivo; todavia, Marx trabalha com uma distinção específica entre orgânico e inorgânico que deriva em parte da filosofia da natureza de Hegel. Marx, primeiro, explica esta frase da seguinte maneira: “O homem vive da natureza significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de ficar num processo [bestandigem Prozeß] contínuo para não morrer” (MARX, 2004, p. 84). Seu argumento é esclarecido: a criatura humana não é separável dos processos vitais dos quais depende e esse intercâmbio contínuo, esse processo em andamento, é precisamente o que se entende por universalidade. A natureza “está relacionada” (zusammenhängt) com seu próprio ser, e essa relação, esse processo contínuo, é, ou constitui, o corpo inorgânico dos humanos. A natureza se torna inorgânica, mas continua a ser um Leib em vez de um Körper até que a natureza entre nessa troca (embora o próprio Marx mude de uma primeira referência ao unorganisches Körper para uma segunda referência ao unorganisches Leib, para marcar a diferença). De fato, a troca com a natureza que caracteriza essa forma de trabalho transforma a natureza orgânica em uma realidade inorgânica. Esse processo é válido para atividades psíquicas e espirituais bem como para comer e beber.

O humano, Marx afirma, faz parte da natureza. Enquanto come, é absorvido pela natureza. Se a criatura humana viva tem tanto um Körper quanto um Leib, parece que tem dois corpos, ou melhor, um corpo que aparece sob duas perspectivas distintas, mas relacionadas: uma perspectiva, animada e buscando viver, pertencente a si mesma e que é Leib, e a outra é a natureza da qual depende e com a qual está em intercâmbio contínuo e que é Körper. Um corpo vivo, em outras palavras, só pode persistir se houver uma troca contínua com a natureza, de modo que as condições para a persistência sejam fornecidas e preparadas para a continuação da vida. A continuação do intercâmbio é a continuação da própria vida, da vida humana, de modo que não há vida sem intercâmbio, e não há nenhuma maneira de conceituar a vida fora do âmbito desse intercâmbio. Corpo humano nenhum pode viver sem o corpo da natureza; ele é e não é seu próprio corpo e sua sobrevivência depende dessa duplicação. Esse intercâmbio envolve dependência, intercâmbio (não troca), e animação e estabelece o corpo da natureza como essencial ao corpo do homem.

Marx nos pede que imaginemos essa unidade ao mesmo tempo em que afirma o humano em sua dependência das criaturas de um mundo natural que é trabalhado de tal forma a oferecer um meio de vida, e só de forma que sustente a continuação, a persistência da vida de cada ser genérico. Terminamos, aqui, não com uma visão direta dos humanos dominando a natureza, mas com criaturas humanas, dependentes da natureza, bem como das atividades pelas quais a natureza se torna suporte e sustento para os seres vivos. O humano não busca, nessa forma de trabalho, colher um reflexo de si mesmo na natureza, mas trabalha com a natureza para assegurar os meios de vida. Essa forma de trabalho pode se tornar dominação ou destruição da natureza para uso humano, consumo e troca (lucro). Porém, se assim fosse, já não seria a forma de atividade laboral que tem como fim a conquista de um meio de vida não tanto para o indivíduo, mas para o ser genérico, esse domínio mais amplo de sociabilidade relacionado ao que Hegel chamou de sistema de necessidades. Lembremos que, somente sob condições em que os indivíduos são separados dos modos de trabalho social, é que se encontram buscando os meios para viver por conta própria. Esse é um efeito das formações sociais e econômicas, não uma premissa ontológica de seu funcionamento.

Caso esteja certo – e outros também colocaram esse argumento (FOSTER; BURKETT, 2001) –, talvez tenhamos que considerar esse uso muito específico dos termos orgânico e inorgânico na obra de Marx. Foster e Burkett (2001, p. 452) salientam que considerar a influência hegeliana em Marx mostraria que não há distinção absoluta (ou “obstáculo”) entre orgânico e inorgânico, mas apenas “uma relação dialética de interdependência”. Assim, os autores questionam a suposição de que a teoria do trabalho de Marx é instrumentalista, sugerindo que esse mal-entendido se deve às maneiras particulares pelas quais as noções de orgânico e inorgânico emergem em sua obra. Essa perspectiva foi ampliada de forma afirmativa por Jason Moore (2015, p. 7) quando se refere a “uma concepção aberta de criação de vida, que vê os limites do orgânico e do inorgânico como sempre mutáveis” e, posteriormente, apela para “uma linguagem que compreende a relação irredutivelmente dialética entre a natureza humana e a extra-humana/sobre-humana” (MOORE, 2015, p. 7)11. A dialética que se desdobra nesse lugar do corpo inorgânico, entretanto, requer uma teoria perspectivista e uma prática da variação de perspectiva, pois é apenas a partir da perspectiva do organismo humano que a natureza aparece como inorgânica (e isso não implica refutar a afirmação de que a natureza é em si orgânica); significa apenas que a natureza se transforma de orgânica em inorgânica à medida que entra no processo pelo qual o humano vivo e orgânico Leib busca os meios de viver. A natureza é orgânica, por assim dizer, em si mesma, mas considerada da perspectiva humana, ela se torna inorgânica quando passa a sustentar o humano, ponto no qual é a vida humana que é sustentada e animada pela natureza.

Essa última consideração é, com certeza, uma visão marcadamente antropocêntrica. Logo, parece que refutei minha tese de que uma tendência não antropocêntrica pudesse ser encontrada nos primeiros escritos de Marx. Há, no entanto, um processo de compensação em ação nesse trabalho para viver que inverte a ordem da sequência transformadora que acabamos de traçar e faz parte da unidade dialética que está sendo representada. Marx também está argumentando que os humanos são e devem ser entendidos como parte de uma natureza orgânica mais ampla. Quando a vida humana finda, ela se torna puro Körper, (des)animada, mas também coextensiva com uma natureza que não é mais abordada para garantir o sustento humano. O corpo não é mais sustentado pela natureza e, assim, se torna natureza em um sentido distintamente não antropocêntrico, que sempre foi uma potencialidade de sua versão viva, precisamente porque a morte é um potencial na e da vida (um potencial na vida, mas que é realizado como uma necessidade em um momento que é, em grande parte, imprevisível). Portanto, não existem duas naturezas e não há dois corpos, mas há uma oscilação perpétua de perspectivas (orgânica/inorgânica) a depender de se a natureza é abordada teórica ou praticamente, facilitada por esse modo prático de trabalho que prepara a natureza como um meio de viver para o humano. A mesma natureza parece inorgânica quando é externa à vida humana, como algo fora de si. Isso pode acontecer por meio de uma perspectiva teórica, mas também por meio de uma perspectiva na qual o problema da subsistência não guia a perspectiva e a abordagem humana (com a implicação de que a teoria é uma forma de não sentir fome).

Para compreender a relação variável entre o corpo orgânico e o inorgânico (e para garantir que não sejam aceitos como dois tipos separados de substâncias), é importante retornar a Hegel, cuja influência sobre os escritos iniciais de Marx dificilmente pode ser colocada em dúvida. De fato, parece que Marx se baseia na discussão de Hegel ao elaborar as próprias visões sobre o corpo inorgânico do homem, que é a totalidade da natureza e também sua noção de ser genérico. Na Enciclopédia das Ciências Filosóficas, Hegel (1995, p. 219) observa que o ser vivo vive dentro de si, que “o ser vivo existe somente como esse processo que se renova continuamente no interior de si mesmo”, mas que sua corporeidade pode se tornar um objeto para si mesmo, aparecer como algo externo e, nesse momento, seu corpo aparece como “natureza inorgânica” (HEGEL, 1995, p. 218). A natureza inorgânica, curiosamente, existe no ser vivo “como um querer [als ein Mangel]” (HEGEL, 1995, p. 72). Seus órgãos são distintos; eles são externos uns aos outros, e o corpo aparece não como um corpo vivo, mas como um poder externo: “O ser vivo se contrapõe a uma natureza inorgânica à qual se refere como potência dela, que ele assimila” (HEGEL, 1995, p. 219). O ser vivo quer o que é externo a si mesmo para viver, mas também para “superar” essa externalidade. Hegel (1995, p. 219) escreve que “a natureza inorgânica, que é subjugada pelo ser vivo, suporta isso porque é, em si mesma, o mesmo que a vida é para si mesma. No Outro, assim, o ser vivo apenas se une a si mesmo”.

Com a morte, a “espécie”12 prova ser mais poderosa que o ser vivo individual. E a externalidade é superada, porém, não pela valorização do ser vivo, mas pela afirmação da interdependência dialética que é a própria vida. Hegel (1995, p. 225) acrescenta: “Para o animal, o processo do gênero [die Gattung] é o ponto mais alto da sua vitalidade”. O que o “processo da espécie” faz, no entanto, é provar que esta vida, a vida imediata, é mediada, posto que, pertencente à vida dos outros, encontrando seus meios de viver apenas na organização social e econômica da vida – ou, pelo menos, esta seria a variante marxista da afirmação de Hegel. O ser vivo não é simplesmente existente, imediato, mas mediado e gerado; e, assim como é gerado noutro lugar, também desaparece em seu imediatismo. É uma vida que retorna a si mesma em vida, embora a vida imediata não seja igual à mediada, e o inorgânico ceda ao orgânico na morte.

Quando Marx fala sobre subsistência, não está se referindo ao estado estacionário de continuação como um organismo, mas a uma atividade renovada e contínua, que é necessária para a continuação da vida, para a própria persistência. À medida que um ser vivo é gerado, ele é animado, trazido à vida, e só então anima, por sua vez, o mundo externo. Tornar-se animado em função de ser gerado significa que os poderes da animação estão, desde o início, fora do sujeito humano, como o são as formas de interdependência que condicionam e definem a criatura social orgânica, o ser genérico, que já não está em conformidade com o humanismo convencional. Embora esteja além do escopo da discussão atual, gostaria de vincular essa ideia de persistência ao desejo de viver. O desejo de viver pode ou não emergir do organismo humano, mas essa relação com a alteridade é denominada de desejo, de falta, sugerindo que persistência e desejo de persistir podem não ser totalmente separáveis. O esforço de superar a externalidade pode assumir a forma de dominação ou dissolução, mas, aqui, se delineia outro processo, que nos aproxima de formas de trabalho relacionadas à manutenção e que, às vezes, é chamado de trabalho reprodutivo.

O organismo humano está ligado à natureza inorgânica por sua própria vida, e pode se tornar inorgânico para si mesmo, vivendo como um ser animado em alguns aspectos e (des)animado em outros. O corpo não é, em seu mundo natural, uma entidade ontologicamente separada, mas um processo relacional entre termos que podem ser separados ou unificados. O corpo está dentro da natureza e pertence a ela à medida que esse processo contínuo, se interrompido ou se destruído, possa expor o corpo à precariedade, sendo um intercâmbio contínuo que requer renovação – e as condições para renovação.

O que podemos aprender com os escritos iniciais de Marx é que há condições em que o desejo de viver se torna mais possível, condições de trabalho que sustentam ou fracassam em sustentar, formas de trabalho que sustentam ou deixam de sustentar, e que o desejo de viver é sempre um desejo de viver neste mundo, e de uma forma específica. Quando o mundo não é mais sustentável, e a persistência é ameaçada, o que acontece com o desejo de viver? Se viver é um intercâmbio entre esse corpo vivo e o corpo de natureza inorgânica ao qual está inelutavelmente ligado, e a organização social e econômica do sustento destrói – ou ameaça destruir – essa troca, o desejo de viver pode muito bem estar em perigo.

Como mediados, somos espécies, sempre mais e menos do que este corpo, e esse corpo se estende a outros e às próprias condições de vida. Nem a persistência nem o desejo de viver podem ser considerados óbvios. São capacidades ou atributos menos essenciais do que as possibilidades sociais de persistência que são animadas ou amortecidas, dependendo das condições de vida, incluindo a presença ou a ausência de trabalho, formas de trabalho que sustentam ou que destroem corpos, formações econômicas que regularmente abandonam aqueles que empregam sobre uma base contingente, políticas que implicam dizimação de pensões, ou a perda total de bem-estar e proteção social. E, no entanto, a aceitação dessa interdependência e o descentramento do sujeito vivo nela implicado oferecem outro caminho para pensar sobre a interdependência e, talvez, em última instância, sobre a solidariedade que recusa a estrita distinção entre a condição humana e um ambiente sustentado e sustentável. O ser humano não está na natureza nem a apreende simplesmente como um objeto de conhecimento, mas seu conhecimento é vital desde o início sem, portanto, exemplificar uma forma de vitalismo.

O esforço para mostrar a dualidade na teoria inicial de Marx se relaciona, claro, com a questão de saber se Marx pode e deve ser mobilizado para a política ambiental. Essas são questões urgentes, mas não é possível prosseguir com elas aqui. Se há uma dualidade no corpo humano, distintamente humano, é aquela que afirma e desafia essa distinção, insistindo no caráter vivo do pensamento e da necessidade de viver. A natureza do trabalho não é simplesmente refazer a natureza como um reflexo e como expressão dos poderes humanos, mas subjugar os poderes humanos a partir de modos de trabalho que presumem que a vida humana e a teia da vida estão conectadas desde o princípio. A atividade dinâmica que tem como objetivo a produção de uma vida vivível necessariamente limita os poderes do humano em relação ao mundo vivo e declara uma dependência sem a qual nem a vida, nem o pensamento, nem o trabalho são possíveis. Essa natureza que não é, esse paradoxo, pode dar lugar a uma dialética que dificilmente poderá ser compreendida seguindo somente uma única sequência, às custas de outra, na exposição de Marx. Uma prática crítica neste e para este mundo deve intervir na destruição acelerada de várias espécies e na ameaça da mudança climática para a continuação do mundo como o conhecemos até agora. Qualquer projeto de justiça social que seja crítico, que busque interromper a aceleração da destruição ecológica, deve começar com a presunção de um mundo em que todas as vidas são valorizadas igualmente, em que a todos é dada a sua liberdade expressiva por razões de igualdade, em que somos ligados ao mundo dos vivos no nível da necessidade, do desejo e da obrigação. Portanto, esse corpo, embora separado do corpo da natureza, está vinculado a ele, e esse vínculo, essa relação, é o que agora queremos afirmar como “corpo”.

Notes

1Ver, por exemplo, a obra Labor of Dionysus: A Critique of the State-Form de Antonio Negri e Michael Hardt (1994) e a reformulação do trabalho não só como um modo de produção, mas como o modo performativo de produzir o político.

2Nota dos editores: em termos de gênero, ao se referir ao “homem” e, especificamente, ao trabalhador como homem neste trecho e ao longo do artigo, a autora segue a própria prática de Marx (e a de seus tradutores) nos manuscritos de 1844 e em outros textos.

3Esta distinção torna-se mais importante no século XX para Merleau-Ponty e depois para Helmuth Plessner. A esse respeito, ver Hans-Peter Krüger (2010).

4Nota do revisor: em português, conferir Marx (2011).

5Mais recentemente, ver também Jason W. Moore (2015).

6Nota do revisor: neste trecho, Butler faz uso da obra For Marx de Louis Althusser (2005) – em português, Por Marx – para citar a frase presente nos Manuscritos de 1844 de Karl Marx, obra traduzida no Brasil como Manuscritos econômico-filosóficos (MARX, 2004). Optamos por fazer referência aqui à tradução para o português tanto do texto de Marx quanto do de Althusser. Também optamos por utilizar as traduções para o português, quando disponíveis, de outras obras marxistas citadas pela autora ao longo do texto.

7

Em alemão:

Betrachten wir nun näher die Vergegenständlichung, die Produktion des Arbeiters und in ihr die Entfremdung, den Verlust des Gegenstandes, seines Produkts.

Der Arbeiter kann nichts schaffen ohne die Natur, ohne die sinnliche Außenwelt. Sie ist der Stoff, an welchem sich seine Arbeit verwirklicht, in welchem sie tätig ist, aus welchem und mittelst welchem sie produziert.

Wie aber die Natur [die] Lebensmittel der Arbeit darbietet, in dem Sinn, daß die Arbeit nicht leben kann ohne Gegenstände, an denen sie ausgeübt wird, so bietet sie andrerseits auch d[ie] Lebensmittel in dem engern Sinn dar, nämlich die Mittel der physischen Subsistenz des Arbeiters selbst.

Je mehr also der Arbeiter die Außenwelt, die sinnliche Natur, durch seine Arbeit sich aneignet, um so mehr entzieht er sich Lebensmittel nach der doppelten Seite bin, erstens, daß immer mehr die sinnliche Außenwelt aufhört, ein seiner Arbeit angehöriger Gegenstand, ein Lebensmittel seiner Arbeit zu sein; zweitens, daß sie immer mehr aufhört, Lebensmittel im unmittelbaren Sinn, Mittel für die physische Subsistenz des Arbeiters zu sein.

Nach dieser doppelten Seite bin wird der Arbeiter also ein Knecht seines Gegenstandes, erstens, daß er einen Gegenstand der Arbeit, d.h., daß er Arbeit erhält, und zweitens, daß er Subsistenzmittel erhält. Erstens also, daß er als Arbeiter, und zweitens, daß er als physisches Subjekt existieren kann. Die Spitze dieser Knechtschaft ist, daß er nur mehr als Arbeiter sich als physisches Subjekt erhalten [kann] und nur mehr als physisches Subjekt Arbeiter ist (MARX, 2008, p. 39).

8Nota do revisor: Butler se utiliza tanto da versão em alemão quanto da versão em inglês da obra de Marx. Nesta última, o conceito de Gattungswesen foi traduzido como species-being, tomado, por sua vez, em português como ser genérico. No uso da autora, entretanto, a recorrência de species-being contém um apelo à noção ecológica de espécie, que não é possível de ser mantida inteiramente na tradução para a língua portuguesa.

9

Em alemão, a passagem completa afirma o seguinte:

Der Mensch ist ein Gattungswesen, nicht nur indem er praktisch und theoretisch die Gattung, sowohl seine eigne als die der übrigen Dinge, zu seinem Gegenstand macht, sondern – und dies ist nur ein andrer Ausdruck für dieselbe Sache – sondern auch indem er sich zu sich selbst als der gegenwärtigen, lebendigen Gattung verhält, indem er sich zu sich als einem universellen, darum freien Wesen verhält.

Das Gattungsleben, sowohl beim Menschen als beim Tier, besteht physisch einmal darin, daß der Mensch (wie das Tier) von der unorganischen Natur lebt, und um so universeller der Mensch als das Tier, um so universeller ist der Bereich der unorganischen Natur, von der er lebt. Wie Pflanzen, Tiere, Steine, Luft, Licht etc. theoretisch einen Teil des menschlichen Bewußtseins, teils als Gegenstände der Naturwissenschaft, teils als Gegenstände der Kunst bilden – seine geistige unorganische Natur, geistige Lebensmittel, die er erst zubereiten muß zum Genuß und zur Verdauung – so bilden sie auch praktisch einen Teil des menschlichen Lebens und der menschlichen Tätigkeit. Physisch lebt der Mensch nur von diesen Naturprodukten, mögen sie nun in der Form der Nahrung, Heizung, Kleidung, Wohnung etc. erscheinen. Die Universalität des Menschen erscheint praktisch eben in der Universalität, die die ganze Natur zu seinem unorganischen Körper macht, sowohl insofern sie 1. ein unmittelbares Lebensmittel, als inwiefern sie [2.] die Materie, der Gegenstand und das Werkzeug seiner Lebenstätigkeit ist. Die Natur ist der unorganische Leib des Menschen, nämlich die Natur, soweit sie nicht selbst menschlicher Körper ist. Der Mensch lebt von der Natur, heißt: Die Natur ist sein Leib, mit dem er in beständigem Prozeß bleiben muß, um nicht zu sterben. Daß das physische und geistige Leben des Menschen mit der Natur zusammenhängt, hat keinen andren Sinn, als daß die Natur mit sich selbst zusammenhängt, denn der Mensch ist ein Teil der Natur.

Indem die entfremdete Arbeit dem Menschen 1. die Natur entfremdet, 2. sich selbst, seine eigne tätige Funktion, seine Lebenstätigkeit, so entfremdet sie dem Menschen die Gattung; sie macht ihm das Gattungsleben zum Mittel des individuellen Lebens. Erstens entfremdet sie das Gattungsleben und das individuelle Leben, und zweitens macht sie das letztere in seiner Abstraktion zum Zweck des ersten, ebenfalls in seiner abstrakten und entfremdeten Form (MARX, 2008, p. 36).

10Nota do revisor: Butler faz referência tanto ao trecho em alemão quanto à versão inglesa. Na tradução para o inglês, a citação está em Marx (1978, p. 75).

11Observo que algumas formas de trabalho humano, incluindo a escravidão, também são consideradas como inorgânicas, isto é, não vivem em si mesmas, mas apenas servem de instrumento para o propósito de continuar a vida daqueles que são considerados como verdadeiramente sujeitos vivos. Esta distinção foi usada para fins específicos dentro do capitalismo racial. Ver, por exemplo, Davis (1998).

12Nota do revisor: assim como na tradução inglesa de Marx, a tradução para o inglês da obra de Hegel (1991) citada por Butler se utiliza da expressão species (espécie em português), onde a tradução para o português faz uso da expressão gênero.

Referências

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Recebido: 02 de Outubro de 2020; Aceito: 01 de Janeiro de 2021; Publicado: 11 de Janeiro de 2021

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