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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.16  Ponta Grossa  2021  Epub 21-Out-2021

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.16.15355.055 

Artigos

O pensamento decolonial como estratégia de enfrentamento ao racismo estrutural no contexto escolar

Decolonial thinking as a strategy to face structural racism in the school context

El pensamiento decolonial como estrategia de enfrentamiento al racismo estructural en el contexto escolar

Patrícia Lorena Raposo* 
http://orcid.org/0000-0002-3923-757X

Roberta Santos de Almeida** 
http://orcid.org/0000-0002-8586-4697

Simone Cabral Marinho dos Santos*** 
http://orcid.org/0000-0001-8338-8482

**Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ensino (PPGE), da UERN/campus Pau dos Ferros. Docente da rede de ensino pública do Estado do Rio Grande do Norte, município Apodi-RN. E-mail: <patyloreraposo@hotmail.com>

**Graduada em Direito pelo Centro Universitário de Patos (UNIFIP). Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ensino (PPGE), da UERN/campus Pau dos Ferros. E-mail: <robertta_santos22@hotmail.com>

***Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Docente do Departamento de Educação e dos Programas de Pós-Graduação em Ensino (PPGE) e Planejamento e Dinâmicas Territoriais no Semiárido (PLANDITES), da UERN/campus Pau dos Ferros. E-mail: <simonecabral@uern.br>


Resumo:

Este artigo, de caráter teórico, busca problematizar abordagens conceituais de rompimento com o silenciamento epistêmico no espaço de ensino quanto à cultura e à história afro-brasileiras no espaço escolar, a partir do enfrentamento político-legal. Discute-se o processo de inferiorização social da população negra sob o viés conceitual de racismo proposto por Almeida (2018), ao situá-lo em condições estruturais da sociedade. Como alternativa epistemológica, traz-se a síntese cultural de Paulo Freire (2005) para relacionar o pensamento decolonial ao ensino antirracista. Esses construtos teóricos dão conta de apresentar alternativas para enfrentar a dinâmica do racismo e suas formas de manifestação no espaço escolar. Em reação à quebra de fenômenos que edificaram as situações e as condições do racismo estrutural no Brasil, dispositivos legais como a Lei Nº 10.639/2003 e a Lei Nº 11.645/2008 buscam coibir o racismo reproduzido institucionalmente na escola.

Palavras-chave: Racismo estrutural; Pensamento decolonial; Ensino antirracista

Abstract:

This article, of a theoretical nature, seeks to problematize conceptual approaches to breaking with the epistemic silencing in the teaching space regarding Afro-Brazilian culture and history in the school space, from the political-legal confrontation. The process of social inferiorization of the black population is discussed under the conceptual of racism proposed by Almeida (2018), by placing it in structural conditions of society. As an epistemological alternative, we bring Paulo Freire's cultural synthesis (2005) relating decolonial thinking to anti-racist teaching. These theoretical constructs are capable of presenting alternatives to face the dynamics of racism and its forms of manifestation in the school space. In reaction to the breakdown of phenomena that built the situations and conditions of structural racism in Brazil, legal provisions such as Laws 10.639 / 03 and 11.645 / 08 seek to curb racism institutionally reproduced at school.

Keywords: Structural racism; Decolonial thought; Anti-racist teaching

Resumen:

Este artículo, de carácter teórico, busca problematizar enfoques conceptuales para romper con el silenciamiento epistémico en el espacio de enseñanza sobre la cultura y la historia afrobrasileña en el espacio escolar, a partir del enfrentamiento político-legal. Se discute el proceso de inferiorización social de la población negra bajo el sesgo conceptual del racismo propuesto por Almeida (2018), al colocarlo en condiciones estructurales de la sociedad. Como alternativa epistemológica, se trae la síntesis cultural de Paulo Freire (2005) para relacionar el pensamiento decolonial con la enseñanza antirracista. Estos constructos teóricos dan cuenta de presentar alternativas para enfrentar la dinámica del racismo y sus formas de manifestación en el espacio escolar. En reacción a la ruptura de fenómenos que edificaron las situaciones y las condiciones del racismo estructural en Brasil, disposiciones legales como las Leyes Nº 10.639/2003 y Nº 11.645/2008 buscan frenar el racismo reproducido institucionalmente en la escuela.

Palabras clave: Racismo estructural; Pensamiento descolonial; Enseñanza antirracista

Introdução

Ao analisarmos a formação do Estado brasileiro, podemos notar que o processo de desenvolvimento interno está vinculado à história do racismo praticado contra o povo africano, forçosamente trazido à América do Sul para ser submetido ao trabalho escravo. Destituídos de sua humanidade, explorados e reduzidos à coisificação, ou à condição de outro, por europeus que expandiam seus domínios a povos e territórios para além-mar, os negros africanos tiveram suas vidas apagadas quando afastados das suas origens. Assim sendo, seus descendentes sofrem, até hoje, no Brasil, com o apagamento social advindo da condição imposta pelo colonizador. Para Almeida (2018), o racismo decorre da própria estrutura social, de uma suposta normalidade com que se estabelecem as relações que são parte da sociedade. O racismo ultrapassa as esferas individuais e institucionais, não sendo criado por elas, mas reproduzido. Entretanto, a estrutura social não é estática, é dinâmica, dado que as relações sociais de pessoas e grupos mudam, conforme se renova a vida social.

Neste artigo, discutimos o processo de inferiorização social da população negra sob o viés conceitual de racismo proposto por Almeida (2018), ao situá-lo em condições estruturais da sociedade. Como alternativa epistemológica, situamos a síntese cultural freiriana (FREIRE, 2005) ao relacioná-la ao pensamento decolonial e ao ensino antirracista. De fato, a estrutura social desenrola-se sob inúmeros conflitos, de forma que as instituições que a compõe, como a escola, podem posicionar-se contra essa corrente social de construção racista e combater a sua reprodução. Em reação à quebra de fenômenos que edificaram as situações e as condições do racismo estrutural, dispositivos foram criados nesse sentido, como é o caso da Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, a qual tornou obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do Ensino Fundamental ao Ensino Médio, ao mesmo tempo em que busca coibir o racismo reproduzido institucionalmente na escola (BRASIL, 2003).

Os povos negros africanos foram silenciados, perderam seus lugares geográficos e sociais. Com isso, suas identidades e seus filhos afro-brasileiros lutam, incessantemente, gerações a fio, para garantir lugar neste novo mundo, onde continuam como outros em função do racismo estrutural que está na base das relações sociais, políticas, econômicas e culturais no país (ALMEIDA; SANCHEZ, 2017). Nessa realidade, a cultura europeia foi difundida como única e superior, embora a população afro-brasileira componha, atualmente, 54% da população total do país, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNAD (BRASIL, 2017).

Estruturalmente, esse processo afeta diretamente a escola brasileira e, em especial, a forma como o ensino é realizado a fim de mascarar essa realidade. Ao mesmo tempo em que estabelece o parâmetro branco/europeu como sendo o universal, relega as demais culturas como inferiores, por serem consideradas de menor ou inexistente importância intelectual para serem abordadas no espaço educativo. Ao seguirmos o pensamento de Boaventura de Souza Santos (2018), poderíamos afirmar que a escola trata o saber branco/europeu como científico, ou saber legítimo, status negado a saberes locais, como os saberes produzidos pelos povos negros, o que resulta naquilo que o autor coloca como epistemicídio, que se realiza com a inferiorização ou a negação dos saberes produzidos fora do norte global.

Nos últimos anos, reacendeu-se o debate sobre o compromisso político dos profissionais educadores ao tratar questões do negro no ambiente escolar, com a Lei Nº 10.639/2003 e a Lei Nº 11.645, de 10 de março de 2008. Surgiram, assim, questões sobre possíveis alternativas a integrar essa luta. Desse modo, pretendemos responder às seguintes questões neste artigo: A escola por meio das mudanças propostas no ensino com a Lei Nº 10.639/2003 e a Lei Nº 11.645/2008 tem potencial para ampliar o acesso a uma episteme que, de fato, traga a cultura e a história negra para o ensino brasileiro? Qual a realidade epistemológica na seara do ensino que a Lei Nº 10.639/2003 precisa enfrentar? A escola é um espaço de reprodução ou de resistências e ressignificações?

De caráter teórico, este artigo busca problematizar abordagens conceituais de rompimento com o silenciamento epistêmico no espaço de ensino quanto à cultura e à história afro-brasileiras no espaço escolar, apesar do enfrentamento político-legal. Para isso, há a necessidade de construirmos discussões decoloniais que partam da realidade brasileira, as quais só poderão ser conduzidas quando se tornarem amplamente conhecidas. É importante compreendermos e refletirmos sobre as distorções para enfrentá-las, considerando a realidade de lutas, de vitórias e de derrotas atuais no combate ao racismo na escola. Trata-se de rompermos com barreiras que se apresentam dentro de uma perspectiva única, que é a branca e colonial. Para além do discurso colonial de uma universalidade branca, é preciso sabermos em que contextos práticos da realidade brasileira esse discurso se manifesta. A consciência crítica carece de ser permanentemente despertada, particularmente em espaços como a escola, forjada em contextos culturais distintos e de produção de alteridades.

Nos termos deste estudo, partimos de uma contextualização da condição de inferiorização dos negros, com o intuito de esclarecermos as origens do pensamento decolonial, compreendermos a estruturação do racismo e localizarmos sua origem na história do Brasil desde a colonização, iniciada no século XVI, e sua relação com as estruturas sociais na contemporaneidade quanto ao conhecimento construído e difundido na escola, de acordo com o conceito de racismo estrutural desenvolvido por Almeida (2018). Em seguida, abordamos o racismo estrutural e o mito da democracia racial sob o viés das mudanças legais na seara do ensino. Diante de um repertório de leituras, situamos a população negra na escola, em busca de compreendermos como o racismo se reproduz e como essa instituição se comporta diante dessa realidade, apesar da implantação da Lei Nº 10.639/2003, que inclui a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira no currículo escolar. Por fim, enfatizamos o ensino antirracista e a mudança de relações pedagógicas de um projeto decolonial dele decorrente, em sintonia com Freire (2005), de modo a permitir a convivência harmônica entre saberes, ao desconstruir a mentalidade colonial que enviesa ensino e escola.

Diferença e desigualdade: as condições históricas de produção e de reprodução

A modernidade europeia, referenciada nos ideais burgueses, inaugura um novo modo de produzir, assim como gera um novo ser humano. Durante o longo tempo que constituiu a Idade Média na Europa, período anterior à modernidade, as identidades apresentavam-se culturalmente sedimentadas, principalmente por meio da religião.

Com a expansão do continente europeu, a partir do século XVI, iniciou-se a formação do eurocentrismo como projeto da modernidade/colonialidade. Mais adiante, no século XVIII, despontou o “[...] sujeito do iluminismo, um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, consciência e de ação, que surgia a partir do nascimento do sujeito e com ele se desenvolvia, ainda que permanecesse o mesmo [...]” (HALL, 2011, p. 10-11).

A partir desse contexto, foi possível atribuir ao ser humano uma identidade, havendo “[...] a libertação do indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas” (HALL, 2011. p. 25). Trata-se do prenúncio da ciência e do mundo moderno, o que pode também ser caracterizado como um período de desordem, uma vez que o mundo natural, que tinha Deus como explicação para as coisas tangíveis e intangíveis, passou a ser explicado pelo próprio ser humano, que passou a intervir sobre a natureza das coisas. A ciência moderna fez, assim, um novo ser humano dotado de razão, que pensa e, logo, existe.

O ser humano assumiu o centro das relações, enquanto a Europa a centralidade do mundo, criando uma hegemonia que se reproduziu em diversos aspectos, a saber: social, cultural, político, filosófico e religioso, em que novas verdades foram criadas. Em contraposição, tem-se o projeto decolonial que problematiza a produção do conhecimento e das narrativas dominantes do pensamento. Com efeito, pesquisadores da decolonialidade têm lançado bases e categorias interpretativas da realidade a partir das experiências da América Latina e da África, por exemplo. Põe-se em xeque a crítica sob quem produz e para quem é produzido esse conhecimento, reconhecendo sujeitos e saberes subalternizados pela colonialidade. Boaventura de Sousa Santos é um dos autores que tem problematizado, em suas obras, o modelo de pensamento dominante a partir do centro europeu, trazendo como alternativa de pensamento o que ele denomina de Epistemologia do Sul, assim definida:

Entiendo por epistemología del Sur el reclamo de nuevos procesos de producción y de valoración de conocimientos válidos, científicos y no científicos, y de nuevas relaciones entre diferentes tipos de conocimiento, a partir de las prácticas de las clases y grupos sociales que han sufrido de manera sistemática las injustas desigualdades y las discriminaciones causadas por el capitalismo y por el colonialismo. (SANTOS, 2011, p. 35).

Em Boaventura de Souza Santos (2011, 2018), são afirmados os conhecimentos que foram subalternizados pela colonialidade, o que ampliou os modos de pensar, de ser, de agir e de sentir e, também, a forma de compreensão do mundo para além da ocidental. Dessa maneira, ao questionarmos o modelo de pensamento único, abrimos perspectivas para dar visibilidade aos contextos e às realidades sociopolítico-culturais distintas.

Há uma racionalidade monocultural que reproduz saberes, experiências e modos de vida aos grupos socialmente oprimidos pela colonização. Sob essa lógica, o resto do mundo precisa adequar-se e, por sua vez, o mundo intelectual e acadêmico. Sob o olhar do “outro”, os países colonizados foram observados, pensados e inventados. O projeto decolonial reivindica o protagonismo na produção do conhecimento, tornando-se imperativo ocupar o espaço como “nós mesmos”. Obviamente, como já nos ensina Freire (2005), mesmo que alguém esteja situado socialmente no lado oprimido das relações de poder não significa que pense e aja a partir do lugar de subalternidade. Contudo, a opressão é uma condição concreta e, como tal, pergunta Freire (2005): Quem melhor que os oprimidos para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? O autor responde que é necessário que os oprimidos desvelem o mundo da opressão e se comprometam, na práxis, com a sua transformação, em um processo de permanente libertação (FREIRE, 2005).

Retornando aos estudos decoloniais, segundo Ballestrin (2013), estes passaram por um processo de evolução. Nesse percurso, intelectuais latino-americanos criaram o grupo modernidade/colonialidade que, paralelamente a outros grupos, antecessores de estudos culturais e subalternos, assumiu como responsabilidade aprofundar a crítica a autores eurocêntricos, assim como a defesa teórica das especificidades do processo decolonial latino-americano, em oposição ao imaginário imperialista, por vezes encontrado em apertada síntese com a retórica democrática, não contemplada nos demais movimentos, como é possível interpretar em Mignolo (2008).

Para o grupo modernidade/colonialidade, a suposta independência política da América do Sul ao imperialismo branco europeu não se realizou, permanecendo uma dependência prática, teórica, política e epistêmica aos europeus e, em alguns casos, também aos Estados Unidos. Manteve-se, então, a manutenção da lógica que colocou o branco como centro do universo, em um processo hierárquico que escancarou uma universalidade branca que exclui latinos. No caso específico do Brasil, indivíduos que se classificam como brancos excluem indivíduos negros.

A idealização desse ser humano universal pela Ciência e pela Filosofia – branco, civilizado e cristão – suscitou um novo padrão de conhecimento que, sendo hegemônico, é dominante, tornando o outro diferente. Essa diferença ganhou conotação de desigual ou inferior, como enfatiza Lorde (2020), quando afirma que a diferença é invisibilizada, naturalizada e posta a serviço da segregação. As diferenças de raça, de sexo e de idade são reais, mas não são as diferenças em si as causadoras da segregação ou do abismo entre nós, mas a rejeição, a recusa em reconhecermos tanto as diferenças como distorções relativas à falsa nomeação às diferenças quanto seus efeitos na conduta e nas expectativas humanas.

Baseado em teorias racistas pseudocientíficas, o eurocentrismo afirmava a superioridade da raça branca em relação a outras etnias, com argumentos que se baseavam, entre outros, em comparação das medidas cranianas. Classificavam-se os negros como não civilizados, ou selvagens, colocando-os ainda como propensos à violência, mesmo sendo um fenômeno de origem social e não natural, assim como atribuíam às mulheres a susceptibilidade ao sexo ou à promiscuidade, argumento que marca negativamente os corpos negros femininos, como relata Gorender (2000). Tratava-se tão somente da transposição de um pensamento colonial, que precisa ser enfrentado, sendo a decolonialidade um movimento de resposta a essa colonialidade do saber.

Para Quijano (2009), o conceito de colonialismo diferencia-se de colonialidade por tratar-se de uma expressão de dominação/exploração imperialista de um eixo político localizado em outra região contra um povo de outra identidade, que não necessariamente implica uma relação de base racista. A colonialidade, por sua vez, ocorreu depois do que seria um fim formal do colonialismo, sendo, no entanto, marcada pela forte classificação racial/étnica do povo que se mantém dominado/explorado. O conceito de modernidade surgiu, então, como o universo em que experiências da colonialidade e do colonialismo vão se fundindo em atenção às demandas impostas pelo avanço do capitalismo. Tanto o conceito de modernidade como de colonialidade são expressões do poder do capitalismo.

O grupo modernidade/colonialidade destaca também, entre seus conceitos, a decolonialidade. Para Mignolo (2008), o pensamento decolonial estaria antecipadamente expresso no entendimento da colonialidade como parte da modernidade. Ballestrin (2013, p. 105) simplifica o conceito de decolonialidade ao defini-lo como um “[...] movimento de resistência teórico, prático, político e epistemológico, à lógica da modernidade/colonialidade”. Já Maldonado-Torres (2019) acrescenta ao conceito a ideia de coletivo, passando a ser uma proposta de futuro e, também, necessária para uma mudança coletiva e não apenas individual.

Nesse contexto, o trabalho compreende a decolonialidade como movimento que luta contra os efeitos que persistem do passado colonial na América do Sul, pois, conforme Quijano (2009), a colonialidade possui sua origem no colonialismo, sobre as dimensões prática, teórica, política e epistemológica contra uma ordem social baseada em desigualdades raciais, sociais, entre outras, para, com isso, construir um futuro de avanço coletivo entre os indivíduos que sofrem com a colonialidade. É importante destacarmos, no entanto, que este artigo se concentra sobre alguns dos efeitos epistemológicos que se expressam no Brasil e sua repercussão sobre o povo negro brasileiro.

A era moderna é marcada por tensões e contradições ideológicas. Por um lado, o humano branco ocidental propõe igualdade e liberdade entre os seres humanos, a partir de um universalismo abstrato que incorpora esse humano branco como ponto de referência. Por outro, acaba por servir para promover desigualdade e escravidão, materializando o racismo. Logo, igualdade e liberdade na prática tornam-se mutuamente excludentes.

Foi com a colonização que a branquitude se apresentou como referencial de universalidade e de superioridade, tendo papel central na construção do conhecimento pelas ciências. Esse mesmo processo impulsionou que povos e culturas fossem considerados não só inferiores, mas também que o conhecimento do ser humano branco ocidental fosse visto como um saber válido, universal e científico. Em relação a essa ideia hierárquica corrente, em favor de um saber científico branco europeu, o termo epistemicídio então criado é definido como sendo “[...] la destruccion de saberes rivales considerados como nos científicos” (SANTOS, B. de S., 2018, p. 36). Esse conceito define claramente em que posição de rejeição o saber europeu coloca os demais saberes assim como o negro, que não são tidos como dignos da acepção científica e universalizante. Destarte, um novo sistema de representações da realidade é criado, e a cultura europeia é inserida impositivamente sobre sujeitos não brancos.

Nesse processo, as histórias dos povos tradicionais são invisibilizadas, por meio da normativa dos saberes produzidos, enquanto lócus de reprodução dominante, totalitário e autoritário de ciência que não corresponde às necessidades humanas, opondo-se duramente ao senso comum e afastando-se da natureza. Notadamente, segundo Santos (2008, 1988), a construção rigorosa de leis pressupõe seletividade e a simplificação. Perde-se a complexidade e a capacidade de compreensão da natureza, pelo afã em dominá-la (SANTOS, 2008, 1988). Na contramão da inscrição de um saber dominante nos moldes do racismo epistemológico, está um saber epistemológico anticolonial e crítico que dá espaço aos diversos saberes e narrativas. O conhecimento que emerge dessas condições consiste, segundo Grosfoguel (2016), em elementos cujo

[...] privilégio epistêmico dos homens ocidentais sobre o conhecimento produzido por outros corpos políticos e geopolíticas do conhecimento tem gerado não somente injustiça cognitiva, senão que tem sido um dos mecanismos usados para privilegiar projetos imperiais/coloniais/patriarcais no mundo. A inferiorização dos conhecimentos produzidos por homens e mulheres de todo o planeta (incluindo as mulheres ocidentais) tem dotado os homens ocidentais do privilégio epistêmico de definir o que é verdade, o que é a realidade e o que é melhor para os demais. Essa legitimidade e esse monopólio do conhecimento dos homens ocidentais têm gerado estruturas e instituições que produzem o racismo/sexismo epistêmico, desqualificando outros conhecimentos e outras vozes críticas frente aos projetos imperiais/coloniais/patriarcais que regem o sistema-mundo. (GROSFOGUEL, 2016, p. 25).

Nesse viés, as relações hierárquicas construídas, de acordo com Grosfoguel (2016), contribuíram para o privilégio epistêmico visto até os dias de hoje, bem como para a manutenção da estrutura desigual e combinada produzida pelo imperialismo/colonialismo/patriarcalismo. Desse modo, sugere-se que a modernidade cria o colonialidade para perpetuar a desigualdade e a manutenção do poder/saber. Não havendo margem para o diverso, pois há o domínio dos sistemas simbólicos – linguagem, ideologia, cultura – e materiais – economia, conhecimento, política.

É a partir desse entendimento que podemos ter em conta que parece contraditório falar-se em democracia em um contexto adverso como esse. O privilégio epistêmico é epistemicida (SANTOS, B. de S., 2018), pois inviabiliza qualquer outro saber produzido fora do eixo de dominação eurocêntrico, ou, para valer aos dias atuais, do norte global (SANTOS, B. de S., 2018). Escancara-se, assim, que o “[…] racismo é, acima de tudo, uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, ‘este velho direito soberano de matar’” (MBEMBE, 2018, p. 18). Contudo, em uma perspectiva histórica recente, com base nos esforços engendrados pelos movimentos sociais, os quais lutam por representação e visibilidade das populações excluídas ou subalternas e contra a micropolítica em curso, é possível vislumbrarmos resistência. Com essas indicações, consideramos a necessidade do questionamento do universalismo e, também, do sistema de produção de saberes reconhecer a diversidade epistêmica existente, para que seja possível falarmos em democracia ou equidade social.

No campo epistemológico, percebemos um interesse crescente em repensar as estruturas históricas de dominação, por intermédio de um movimento contrário ao determinismo eurocêntrico, qual seja: a globalização econômica e cultural. As identidades, antes fixas e rígidas, diluem-se e deslocam continuamente as subjetividades, como enfatiza Hall (2011). Esse processo dilui o ser humano universal criado pelo ocidentalismo e evidencia a diferença.

Assim sendo, na sala de aula, torna-se necessário considerarmos a possibilidade de um ensino de convivência entre essas diferentes epistemologias, que se baseie em uma relação dialógica e dialética, uma vez que deve haver a possibilidade de trazermos para a sala de aula um conhecimento que não seja parcial e excludente, em uma superação à verticalização e à hierarquia produzida pelo saber hegemônico eurocentrado.

Há a necessidade de criarmos ou expandirmos um conhecimento crítico que evidencie a falácia de uma superioridade europeia. Partindo da análise de que todos os seres sociais produzem cultura e vivem sob uma lógica simbólica que rege seus comportamentos, ainda que isso ocorra de forma inconsciente ou com base nas relações de poder, é importante reconhecermos que, no caso do Brasil, há um processo de inferiorização que atravessa todo o tecido social.

A institucionalização política do poder era realizada com a exclusão permanente do povo e o sacrifício consciente de um estilo democrático de vida [...]. Os interesses particularistas das camadas privilegiadas, em todas as situações, podiam ser tratados facilmente como “os interesses supremos da Nação”, estabelecendo uma conexão estrutural interna para as piores manipulações do exterior (FERNANDES, 2009, p. 21).

Observamos que, no Brasil, as desigualdades – racial, étnica e de gênero – se reproduzem a partir do processo de colonização do país, sendo parte do processo de colonialismo e de colonialidade das Américas. Esse movimento promoveu a escravização da população africana, solidificando o racismo desde o século XVI até os dias atuais, reforçado pela cultura que naturaliza essa desigualdade.

A colonização não imprimiu sua força e sua coerção sobre os corpos somente, pois o seu efeito mais nocivo recai sobre as mentalidades, ou sobre o imaginário, que afetou uma população inteira de escravizados e se perpetua como colonialidade aos seus descendentes. Nessa perspectiva, o negro deve incorporar-se à luta e adquirir consciência de sua realidade e de seu protagonismo. Esse movimento poderá ser realizado por meio de uma conscientização crítica que implica grande responsabilidade, segundo Fernandes (2017). Como saída, Gomes (2003) aponta que homens e mulheres, por intermédio da cultura, “[...] podem se adaptar ao meio, mas também o adaptam a si mesmos e, mais do que isso, podem transformá-lo” (GOMES, 2003, p. 75-76).

Desse modo, é preciso compreendermos que as teorias eurocêntricas foram impostas como parte de um projeto político de domínio e que o conhecimento decolonial pode introduzir elementos novos para impor mudanças na ordem social. Ao tratarmos do contexto brasileiro, essa compreensão eurocêntrica/hegemônica reproduzida pelas instituições traduz-se em desigualdade, mas que pode e deve ser revista, de forma a permitir um espaço em que os diferentes saberes possam conviver harmonicamente, a partir de uma reflexão crítica que valorize o saber não branco e questione a hegemonia eurocêntrica.

Racismo estrutural e o mito da democracia racial

Até aqui, construímos uma espécie de mapa para ajudarmos a compreender as tensões estabelecidas nas relações étnico-raciais na contemporaneidade, para, assim, esclarecermos a razão e a natureza do racismo estrutural – tecido nas relações sociais ou epistemologias – e sua relação com a modernidade europeia. Para Almeida (2018), o racismo é uma forma de violência reproduzida no tecido social de modo institucional e cultural, o qual elaborou os fundamentos do racismo, definindo-o, ainda, como estrutural, na medida em que a noção de inferioridade, designada por critérios étnicos e raciais, surgiu na estrutura das relações sociais, seja de natureza política, econômica, jurídica, seja familiar. É por estar na estrutura das relações que o racismo transcende as esferas individual e institucional, e, de fato, ao reproduzi-lo, naturalizam conjecturas que valoram o negro como inferior, criando uma espécie de normatização das desigualdades originadas do racismo.

O racismo estrutural, no Brasil, é reforçado por uma ideologia oriunda do período colonial e mantida na realidade atual como tecnologia da colonialidade, com o objetivo de manter o status de superioridade do branco entre as instituições sociais, dentre elas, a escola. É importante ressaltarmos que essa noção de superioridade de uma suposta raça branca sobre a negra é construída histórica, cultural e politicamente e não se dá somente em função de cor, mas das circunstâncias que conduziram essa população branca a acessar bens materiais e simbólicos, como nos afirma Almeida (2018).

No Brasil, as teorias eugenistas do século XIX conduzem a ideia de branquear a população, por meio da miscigenação. Quando a classe dominante percebeu que esse processo não se daria rapidamente e precisava lidar com a realidade, Freyre (2006) publicou Casa Grande e Senzala, como um apaziguador das raças, no qual ele romantiza a escravidão e, consequentemente, o racismo, advogando que este não existiria no Brasil, e que este seria um país formado por herdeiros de negros, de brancos e de índios. Há uma clara tentativa de conciliar as raças negra e índia na figura do sujeito branco brasileiro. Colocado dessa forma, entende-se que essas culturas teriam trazido contribuições para o brasileiro que inegavelmente se enxergava como branco, formando a democracia racial. É um mito criado na obra que mantém imperceptível e silente o privilégio branco, calcado em interesses políticos e de manutenção de poder, como cita Gorender (2000).

O mito da democracia entre as raças segue camuflando as tensões e a resistência dos povos oprimidos desde a época da colonização e a ausência de representatividade dos negros nos espaços e nos debates públicos, servindo, principalmente, de fundamento para discursos como a meritocracia, os quais contribuem de forma decisiva à manutenção de uma sociedade desigual e para denunciar a ausência do Estado, que se firma como mais uma instituição racista, quando deveria ser responsável pela garantia de direitos e cidadania.

É graças ao movimento social negro, principalmente a partir da década de 1970, que vimos o antirracismo universalista ser substituído pelo antirracismo diferencialista (MUNANGA, 2015). Assim, a luta por direitos teve início e, no decorrer do tempo, passou a impor mudanças ao ordenamento jurídico em relação à participação da população negra nos diversos espaços sociais e de uma conscientização do povo negro.

Gomes (2003) afirma que o racismo se ancora na negação do acesso da população negra à escolarização e, consequentemente, à produção de saber, sendo a escola espaço em que esse racismo se difunde. Existe uma necessidade de novos olhares, novos discursos e novas práticas e, assim, novas posturas políticas para combater o racismo. Uma escola democrática contribui para a formação de uma sociedade também democrática, em que coexistam diferenças, as quais não sejam compreendidas desigualmente.

Para que aconteça o processo de emancipação dos sujeitos, deve dar-se a emancipação epistêmica, a qual retira da centralidade o ideário eurocêntrico que criou a colonialidade do saber e, por conseguinte, a colonialidade do poder, tornando invisíveis as subjetividades periféricas. A partir de uma quebra desse paradigma, em nome da visibilidade e da vocalização desses sujeitos subalternos e excluídos, é que podemos pensar a democracia.

Com base nesse contexto, a publicação do documento Retrato das desigualdades de gênero e raça, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), com base em indicadores oriundos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sobre diferentes campos da vida social de 1995 a 2015, permite-nos uma maior compreensão acerca das desigualdades raciais existentes. Nesse documento, consta-se que:

Apesar dos avanços nos últimos anos, com mais brasileiros e brasileiras chegando ao nível superior, as distâncias entre os grupos perpetuam-se. Entre 1995 e 2015, duplica-se a população adulta branca com 12 anos ou mais de estudo, de 12,5% para 25,9%. No mesmo período, a população negra com 12 anos ou mais de estudo passa de inacreditáveis 3,3% para 12%, um aumento de quase 4 vezes, mas que não esconde que a população negra chega somente agora ao patamar de vinte anos atrás da população branca. (IPEA, 2017, p. 2).

Desse modo, mesmo após a Constituição Federal de 1988, denominada “Constituição Cidadã”, e a introdução de ações afirmativas como as cotas étnico-raciais, a população negra ainda vivencia uma situação de desigualdades. Nesse sentido, é possível percebermos que são muitos os desafios a serem enfrentados para o acesso desse grupo ao sistema educacional e que ainda há um longo caminho para a promoção da equidade.

Em que pese a legalidade, o direito é um instrumento utilizado pelo Estado que serviu tanto para legitimar a discriminação racial, a exemplo do apartheid, como um instrumento de transformações sociais oriundas de pressões dos movimentos antirracistas. É nesse contexto de enfrentamento do racismo institucional na escola que situamos a Lei Nº 10.693/2003.

A Lei Nº 10.639/2003: implicações e possibilidades no espaço escolar

Os negros possuem seus espaços desconsiderados ou reconhecidos, ao longo do tempo, como menos significativos. Tal fato torna-se relevante, visto que a maioria da população brasileira é negra (BRASIL, 2017). Diante dessa constatação, coerentemente é possível afirmarmos que o povo brasileiro conhece mais a história dos povos nórdicos ocidentais do que a história e, também, a cultura dos seus antepassados.

Paralelamente a essa realidade, podemos destacar, ainda, que o Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravidão negra. Isso se reflete em toda a sociedade brasileira, inclusive na educação. Outros efeitos foram sentidos pelo homem negro e pela mulher negra, em virtude de circunstâncias como esta, desde a falta de identificação com a sua cor até a falta de acesso a cargos públicos importantes. O brasileiro é negro, em sua maioria, mas, quando liga uma televisão, a maior parte das pessoas na tela é branca. Fatos como esses conduziram a ações afirmativas, a políticas governamentais que buscam diminuir as desigualdades entre negros e brancos, de modo a reconhecermos as diferentes raças e etnias que possuem hoje uma maior representatividade quantitativa na sociedade brasileira: negros, índios e brancos.

Dentre as mudanças importantes com o processo de redemocratização política no campo da educação, podemos destacar a Lei Nº 10.639/2003 (BRASIL, 2003), resultado da luta do movimento negro desde a década de 1980 no Brasil (GOMES, 2017). Essa Lei surgiu, então, como uma forma contestadora do currículo existente e como proposta de avanço democratizante nos espaços educacionais (ALMEIDA; SANCHEZ, 2017).

A Lei Nº 10.639/2003 altera os artigos 26-A e 79-B da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) –Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que propõe que as escolas passem a trabalhar a história e a cultura negra (BRASIL, 2003). Em seguida, a Lei Nº 11.645/2008 trouxe a necessidade de falar também da história e da cultura indígena nas salas de aula brasileiras (BRASIL, 2008). A Lei Nº 11.645/2008, ao ser criada, não fez a Lei Nº 10.639/2003 perder seu efeito. Inclusive, muitos pesquisadores associados ao movimento negro ainda preferem se referir à Lei Nº 10.639/2003 em seus trabalhos, considerando que eles não evidenciam, em seus estudos, a questão indígena.

Segundo Almeida e Sanchez (2017), na condição de política afirmativa, a Lei Nº 10.639/2003, possui um caráter compensatório inegável, uma vez que possibilita uma desconstrução de mentalidades e práticas preconceituosas, que se tornaram sequelas do longo período de escravização brasileiro. Apesar de sua importância inegável na esfera do ensino brasileiro, a sua simples existência não torna suas proposições efetivas, podendo, no entanto, ser um caminho para mudanças.

O Parecer CNE/CP Nº 3, de 10 de março de 2004 (BRASIL, 2004a), e a Resolução Nº 1, de 17 de junho de 2004 (BRASIL, 2004b), com objetivo de instituir as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, foram elaborados, inclusive como respaldo teórico, para colocar em prática a Lei Nº 10.639/2003 (BRASIL, 2003). Em ambos, enfatiza-se, por exemplo, a necessidade de construção de práticas educativas que combatam o racismo nas escolas brasileiras a fim de garantir sua efetivação (BRASIL, 2004a, 2004b).

A pesquisa de Almeida e Sanchez (2017), a qual considerou os trabalhos realizados nos primeiros dez anos de implementação da Lei Nº 10.639/2003 e as políticas públicas realizadas paralelamente a fim de garantir sua efetivação, observou quais os obstáculos existentes para sua implementação. Segundo os autores:

Identificamos, na análise desses levantamentos, diversas dificuldades no processo de implantação da Lei 10.639/2003, relacionadas à formação de profissionais de ensino, à disponibilidade e à divulgação de recursos para o ensino, à intolerância religiosa, entre outros. Esses fatores indicam pouca preocupação em estabelecer vínculos entre políticas públicas relacionadas a essa lei (incluídas a própria lei e suas regulamentações posteriores) e entre elas e as demais políticas educacionais, o que garantiria certo grau de coesão entre as políticas, favorecendo a implementação de todas elas. Consideramos, ainda, que o cerne dos problemas enfrentados na execução da Lei 10.639/03 encontra-se na sua inserção em um sistema educacional com bases ideológicas racistas. (ALMEIDA; SANCHEZ, 2017, p. 59).

Logo, entendemos que sancionar a lei não é suficiente para torná-la efetiva. Uma política pública que se volta para uma alteração tão profunda no espaço da educação, considerando sua própria razão de existência, demanda um olhar complexo porque precisa abranger docentes já formados e em efetivo trabalho, além daqueles em formação. Paralelamente a isso, é importante considerarmos que muitos desses formadores incorporaram o mito da democracia racial e não reconhecem o racismo como problema social, o que vai além da intolerância religiosa. Assim, é necessário que esses aspectos sejam considerados na construção de qualquer currículo que pretenda formar professores acerca da cultura e da história afro-brasileira, para que eles possam disseminar com seus alunos tais conhecimentos e contribuir para uma real mudança social. Outros aspectos relevantes, que inclusive contribuem para alimentar a negação do racismo, reside no sistema de ensino atual, que se volta à construção de trabalhadores e não de indivíduos de forma integral, dificultando o enraizamento da temática, além das peculiaridades de cada contexto regional e local, diante da extensão territorial brasileira.

A falta de recursos financeiros de uma formação que considere as peculiaridades da realidade de cada professor e de acesso aos recursos didáticos que visem o combate ao racismo, bem como uma concatenação entre políticas públicas, são apenas alguns elementos que contribuem para que, hoje, a aplicação da lei seja confundida com comemorações no espaço escolar voltadas ao dia da consciência negra ou que tratem a história e a cultura negra como algo exótico (GOMES, 2003). Ao considerarmos, ainda, a Lei Nº 10.639/200: “Cabe ponderar que o processo de implementação de tais leis e políticas nem sempre corresponde à radicalidade emancipatória das reinvindicações que o originaram” (GOMES, 2017, p. 36).

São muitos aspectos a considerarmos para que a atual realidade epistemológica do espaço escolar possa mudar e favorecer uma alteração não apenas nos conteúdos, mas na forma como eles são ensinados inicialmente aos professores e, em sequência, aos alunos. É importante construirmos um outro olhar que integre formas que possam ultrapassar a simplória relação entre criar uma lei e impor aos professores que a coloquem em prática. É preciso pensarmos em metodologias de ensino que atinjam primeiro os professores, para que, a posteriori, estes atinjam seus alunos. Nessa encruzilhada, está a escola. Como nos alerta Nádia Santos (2018, p. 84), “[...] o silêncio que ainda impera dentro das instituições de educação precisa ser quebrado, dando lugar às muitas vozes e identidades que estão em seu interior e são desconsideradas enquanto sujeitos de direitos a uma educação que seja para todos”. Na prática, a autora chama atenção para o papel estratégico da escola no enfrentamento às situações de conflitos étnicos e combate ao racismo e à discriminação (SANTOS, N. F., 2018).

A construção e a forma como a aparente estratégia de implementação dessas leis foram realizadas, considerando apenas a implementação em disciplinas escolares, conduz à visão de que, antes de tudo, se pensou nos alunos em sala de aula e se desconsiderou a essencial formação dos professores. Por isso, a necessidade de enfatizarmos as propostas de ensino para os professores, a priori.

Ensino antirracista: um encontro com Freire

Florestan Fernandes (2009), ao tratar do período colonial e de seus efeitos na realidade brasileira, menciona a importância da superação do racismo, a fim de termos um espaço de fato democrático. Desse modo, compreendemos que as mudanças ocorridas não foram suficientes para garantir a emancipação ao povo negro, visto que a nossa estruturação se deu em um contexto que legitimava uma cultura de racismo, a qual segue nos dias atuais. Entendermos essas características da formação do negro é de grande importância para que este grupo seja reconhecido na realidade social do país, com condições de exercer todos os seus direitos livremente sem que sua cor seja utilizada como um elemento de exclusão e inferiorização. Para tanto, acreditamos no importante papel do ensino para conscientizar o negro sobre sua identidade racial na luta contra a exclusão social e ao branco para enxergar seus privilégios e engajar-se de fato na luta antirracista.

Se Fernandes (2017) esclarece que a ausência da democracia se caracteriza pela exclusão de um grupo, negros e negras, Freire (2005) propõe a escola como um espaço libertador dos sujeitos, que os permita se construírem como indivíduos políticos, críticos, capazes de refletir sobre a sua realidade e transformá-la. Dentro desse processo, surge o ensino dentro do universo da educação, como uma tecnologia capaz de atuar contra o racismo estrutural.

Para Freire (2005), o processo de ensino não se faz de forma uniforme e objetiva. O ensino faz-se por meio de uma ação dialógica em que o professor vai juntamente ao aluno construindo o conhecimento sem estabelecer para com ele um papel repressor, na intenção de formar um sujeito crítico – processo conhecido por síntese cultural, uma das maiores contribuições para os estudos decoloniais. Desde a possibilidade de reconhecimento aos saberes ancestrais e de natureza no povo negro que se une ao aspecto de investigação desse saber, é garantida ao aluno a oportunidade de construir reflexivamente o seu conhecimento e entender criticamente sua realidade, norteando, assim, o processo educativo.

Segundo Quijano (2005), a proeza do norte global não foi criar apenas uma narrativa de superioridade e de centralidade histórica, cultural e da modernidade, mas fazer com que os oprimidos pela colonialidade acreditassem nessa suposta verdade que atendia aos interesses europeus. Nessa conjuntura, a proposta de Freire (2005) adequa-se aos ideais decoloniais. A síntese cultural de Freire (2005) comporta-se como a expressão do giro decolonial (MALDONADO-TORRES, 2019) na medida em que é uma atitude para romper com a colonialidade na expressão de poder, de saber e de ser. A luta contra o poder colonial manifesta-se pois busca deslegitimar a dominação sobre o condenado, o qual Freire (2005) também chama de oprimido. O avanço contra a colonialidade do saber ocorre na reversão do conhecimento do oprimido, fazendo-o retomar seu próprio saber, de modo a analisar criticamente o saber do opressor e seu papel de cegar o condenado sobre seu próprio conhecimento, o qual propõe o saber do opressor como superior. É a proposta de uma mudança direta que afeta a colonialidade do ser quando busca descaracterizar o aspecto de oprimido que foi determinado pelo opressor. Dessa forma, a síntese cultural é uma ação que se propõe como elemento de luta contra a opressão da lógica modernidade/colonialidade.

A síntese cultural trata-se de um processo dialógico, dialético, de empoderamento, de conscientização e de transformação social. Nela, a investigação funde-se com a ação, em uma dinâmica que organiza o saber para construir um novo a partir de um olhar no passado. Não em qualquer passado, mas naquele que se perpetua no presente, que é atual, sendo, entretanto, encoberto pelas narrativas do norte global, mas que informa a cultura e a história verdadeira do povo oprimido. Garante-se, assim, um olhar realista sobre os efeitos da colonialidade do poder.

A realidade, nesse processo, é trazida à vida por meio de uma palavra geradora ou temática que seja significativa ao povo. Para chegar-se a essa palavra ou temática, é realizada uma ação dialógica com os oprimidos, com o intuito de investigar o que eles pensam. A partir dessa ação, o processo dialógico permanece com ênfase em trocas que possam conduzir ao esclarecimento dos condenados por meio da conscientização. Não existe uma clara separação entre a investigação e a ação. Esse processo é realizado com cuidado, à medida que as narrativas do opressor são internalizadas no oprimido, a fim de que seja possível uma real conscientização da realidade (FREIRE, 2005). Todo esse processo dialógico ocorre em um formato dialético, em que os saberes de quem ensina são confrontados com os saberes de quem é ensinado, construindo um algo novo que, no entanto, tem o compromisso de retomar a verdade do oprimido em uma construção que abarca a atualidade. Por fim, essa organização da verdade constitui-se como uma transformação social, por meio do empoderamento do povo oprimido.

Para Freire (2012), Freire e Shor (2013), a transformação social pretendida não pode ocorrer sem o empoderamento do povo. Inclusive, os autores destacam essa transformação social como o encontro com a liberdade (FREIRE; SHOR, 2013). Sob o olhar de Alves e Oliveira (2021), Paulo Freire reclama ao professor o papel de articulador diário no processo de transformação coletiva, que, por meio do conhecimento científico, emancipa e liberta. Parafraseando Paulo Freire, as autoras destacam que a “[...] transformação ocorre de maneira ativa, crítica e, na educação, isso se denomina práxis, ou seja, a capacidade de reflexão sobre a ação” (ALVES; OLIVEIRA, 2021, p. 8). Assim, leva-se em conta uma prática baseada no diálogo, cuja essência liberta e emancipa.

Como resultado dessa reflexão, elucidamos, em especial, o termo empoderamento, que se popularizou nos estudos feministas negros. Segundo Berth (2018), esse termo foi criado por Freire e Shor (2013) quando eles utilizaram, inicialmente, a palavra empowerment. Esse termo traz em especial elementos que engrandecem a ação decolonial da síntese cultural. Ele destaca a consciência que estabelece uma relação especial do indivíduo tocado pelo processo que conduz ao crescimento do grupo do qual ele faz parte. Não existe empoderamento individual sem um alcance coletivo, da mesma forma que não existe a síntese cultural e, de acordo com Maldonado-Torres (2019), uma decolonialidade que não seja uma ação coletiva. Nesse processo, o indivíduo ao reconhecer a verdade conduz o seu povo à união a fim de transformar a realidade. O indivíduo, ao ser tocado pela síntese cultural, apenas se empoderará e transformará a realidade se isso for uma ação coletiva, se sua nova consciência o permitir se juntar ao seu povo e realizar uma ação decolonial.

É interessante observarmos que essa transformação social depende de fato de uma ação, pois a conscientização não é elemento suficiente para sua realização. É necessária a ideia da ação política, que Freire (2012) esclarece em Pedagogia da esperança, e que se torna uma ação coletiva quando analisamos sobre a lógica do empoderamento. Já a Pedagogia do oprimido de Freire (2005) favorece uma pedagogia alternativa que tem na reflexão sua mola condutora, que foge da incorporação de uma ideia que a reduza à mera denunciadora das epistemologias dominantes que norteiam os conteúdos ensinados na escola. Há, assim, uma proposta de reencontro crítico com os conhecimentos dessa realidade social. É por meio dessa proposta que o professor pode confrontar-se com suas vivências no espaço de sala de aula e compreender as construções raciais nas suas atitudes, podendo construir alternativas para refazer sua forma de ensinar de maneira inclusiva para com os alunos.

É possível, inclusive, pensarmos em uma proposta intercultural a partir da dialogicidade, presente na síntese cultural de Freire (2005), a qual considere uma visão de igualdade e diferença que atuem de forma a se complementarem em um enredo inclusivo dentro do espaço escolar e não em uma relação paradoxal da atual suposta normalidade pedagógica, que conduz à desigualdade e à padronização. Por compreendermos a diferença como uma contraposição à igualdade, falha que deve ser considerada desde a formação do professor, é necessário o confronto com o sistema padronizante do ensino, que alimenta a relação de desigualdade, excluindo o negro quando o professor, por exemplo, pensa que ele não é capaz, que não merece o mesmo tratamento atencioso ou que as ofensas raciais deferidas a ele são apenas brincadeiras, como observou Cavalleiro (2017). Igualmente, Candau (2012) afirma: “Não se deve contrapor igualdade a diferença. De fato, a igualdade não está oposta à diferença, e sim à desigualdade, e diferença não se opõe à igualdade, e sim à padronização, à produção em série, à uniformidade, a sempre o ‘mesmo’, à mesmice” (CANDAU, 2012, p. 27).

Por meio dos estudos decoloniais, podemos observar que a matriz eurocêntrica retira do negro o direito de reconhecer-se no espaço escolar de forma positiva. Dessa maneira, o ensino tradicional utiliza-se do espaço escolar para mantê-lo inferior e afastado de sua própria história e cultura, em um esquema que corrobora a manutenção do racismo estrutural, pois, na condição de instituição, a escola reproduz práticas e símbolos que alimentam a ideia de inferioridade contra o negro.

No Brasil, é possível observarmos reproduções do racismo nos conteúdos vistos em sala de aula, sem refletir a realidade vivida pelo povo negro e muito menos a sua história. Moore (2010) denuncia um embranquecimento de povos negros, alertando para contextos e revisionismos que atacam sua cultura e sua história. Para o autor, os estudos sobre a história da África nos diferentes níveis de ensino mantêm a abordagem linear-fatual, direcionada e “[...] frequentemente laudatória, à nobreza dominante em detrimento de uma análise transversal do conjunto social” (MOORE, 2010, p. 159). A especificidade dos povos e das sociedades africanas foram negligencias na história. Ocorre que, segundo Moore (2010, p. 160), “[...] o empenho eurocêntrico deixou um legado raciológico que, ainda hoje, continua dominando os estudos africanos, constituindo um sério obstáculo para elucidação da realidade histórica desse continente”. Como resposta a esse desafio, o autor destaca a Lei Nº 10.639/2003 como um marco no Brasil, mas, na América Latina, como um instrumento de mudança e de fortalecimento da identidade negra, da história e das lutas silenciadas e/ou negadas na escola, mesmo em constante ameaça de operacionalização e aplicação “[...] pelas forças conservadoras que atuam no judiciário e na política [...]” (MOORE, 2010, p. 124).

Silva (2017) destaca o currículo eurocêntrico brasileiro a partir da constatação de que a história e a cultura são contadas sob o olhar dos brancos. São os feitos dos grandes heróis brancos que são narrados, sendo os heróis negros, muitas vezes, embranquecidos. Essa realidade, inclusive, foi observada por alunos em pesquisa sobre autobiografias em que um grupo reclamava da falta das histórias e da cultura negra na sala de aula, e, por isso, teve de procurar fora da escola. Esses estudantes faziam uso do RAP como forma de contar sua verdadeira história, unindo-se em uma aliança que permitiu uma identificação cultural do grupo e, consequentemente, o fortalecimento de sua autoestima para lidarem com o preconceito e estabelecerem laços dentro da própria comunidade (WELLER, 2008).

Autores afro-brasileiros, como Machado de Assis, também foram embranquecidos pela história, enquanto outros foram esquecidos, como Carolina Maria de Jesus, que, apenas há alguns anos, teve seu talento reconhecido. Os livros didáticos brasileiros sempre foram repletos de caracterizações negativas do negro sem demonstrá-lo em posições de sucesso. Nesses livros, sempre existiram associações das imagens do negro a situações de marginalidade e de pobreza, dando reforço à forma como a história e a cultura do negro é silenciada ou abordada apenas dentro do contexto da escravidão (SPENGLER; DEBUS, 2019). Essa situação foi amenizada quando o Governo Federal instituiu, em 2003, a necessidade de revisões desses livros em relação à abordagem do negro e de sua cultura, com a publicação da Lei Nº 10.639/2003 (BRASIL, 2003).

Todas essas situações elencadas são manifestações de um racismo estrutural reproduzido institucionalmente em uma lógica excludente, a fim de manter o equilíbrio de uma sociedade alicerçada na lógica do privilégio branco sobre a subjugação do negro, construído no processo histórico e político do Brasil (ALMEIDA, 2018). Trata-se de uma cortina de fumaça que alimenta a antiga premissa do mito da democracia racial sobre uma suposta igualdade por trás de uma história e cultura cientificamente valorada que não permite ao negro enxergar-se. Nessa lógica cruel, retira-se do negro a possibilidade de construir para si uma autoafirmação positiva e crítica de sua realidade, pois seus feitos, suas qualidades, seus heróis lhe são negados. O apagamento histórico e cultural do negro na escola é, acima de tudo, uma prática epistemicida. Silenciosamente a estrutura mantém o negro em condições inferiores para o equilíbrio de uma sociedade racista.

Tal racismo no espaço escolar é confirmado ainda em pesquisas como de Fazzi (2012), Jango (2017) e Cavalleiro (2017), inclusive nas relações sociais dentro da escola, o que demonstra a necessidade de tratarmos de forma afirmativa a cultura e a história negra, para haver um real combate ao racismo estrutural.

Não estamos aqui trazendo a questão de combate ao racismo para uma discussão curricular como algo extracurricular ou mesmo transversal, comumente tratado em alguns espaços escolares. Partilhamos do pensamento de Gomes (2003, p. 81), o qual aponta que o papel da discussão da cultura negra na educação é “[...] ressignificar e construir representações positivas sobre o negro, sua história, sua cultura, sua corporeidade e sua estética”. Buscamos, assim, que as políticas afirmativas possam integrar-se no espaço escolar.

Para compreendermos essa conjuntura, suas principais características e possibilidades, é importante que os grupos subalternos possam conhecer sua história e sua identidade cultural, que também se expressam como linguagem da sociedade, e que seja vista no currículo escolar de forma crítica e positiva. Desse modo, é importante que sejam construídas leituras que possibilitem um maior realismo ao lidar com os processos históricos e conjunturais, e reafirmem a perspectiva de mudanças do ponto de vista social e democrático.

Partindo de pressupostos freireanos, é por meio do pensamento crítico que é possível enxergarmos a realidade de exclusão brasileira. O povo negro perde os seus direitos, em detrimento de um grupo branco e minoritário, que detém os instrumentos epistemológicos. A ausência de criticidade no espaço escolar só interessa àqueles que politicamente se beneficiam pela exclusão do povo negro (FREIRE, 2005).

Dalarosa (2008) destaca, em seu texto, como a educação, com o passar do tempo, serviu como meio de formar os sujeitos com base no que era demandado nos espaços sociais, os quais são historicamente dominados pela epistemologia de privilegiados, sobre a história e a cultura do povo negro. Nesse sentido, ao considerarmos o aspecto estrutural do racismo, no Brasil, a própria política é uma instituição que o reproduz. Esse é um fato constatado, pois as mudanças legislativas expressas na Lei Nº 10.639/2003 e na Lei Nº 11.645/2008, as quais combatem o racismo nas escolas, apenas surgiram devido à luta do movimento negro. Contudo, uma estratégia realmente eficaz impede-as de atingir um ensino igualmente eficaz na luta antirracista.

É nesse contexto que se faz necessário enaltecermos a relevância do ensino dentro da escola na construção do indivíduo e, consequentemente na sua percepção de mundo, visto que tanto os elementos implícitos como explícitos do ambiente escolar são relevantes e contribuem de alguma forma para a atividade que pode ser desenvolvida a partir do ambiente escolar (CHARLOT, 2013).

Considerações finais

Neste artigo, debruçamo-nos sobre a natureza das contradições no ensino dentro da escola sob o olhar do pensamento decolonial, a qual avalia os discursos e as práticas relativos à presença, ao acesso e à produção de saberes legados à população negra. Consideramos, para tanto, a efetividade do combate ao racismo estrutural e ao epistimicídio nas escolas brasileiras com a criação da Lei Nº 10.639/2003 e da Lei Nº 11.645/2008. Como alternativa pedagógica no espaço escolar, situamos a síntese cultural freiriana.

A existência de um saber hierárquico branco europeu nas escolas brasileiras, que nega e anula os saberes afro-brasileiros, por meio da adoção de uma prática epistemicida, faz da escola um espaço contraditório, que, ao alimentar o racismo estrutural, penaliza diretamente as crianças negras e indiretamente toda a sociedade, naturalizando aspectos que conduzem à inferiorização do negro. O Brasil possui contornos de uma herança colonial que historicamente vem naturalizando práticas e discursos racistas reproduzidos em diferentes contextos sociais, sendo a escola um deles.

A necessidade de combater o racismo na escola conduziu à criação da Lei Nº 10.639/2003 e da Lei Nº 11.645/2008, as quais teriam grande papel como veículos de resistência em um espaço de reprodução de práticas e de discursos racistas, que favorecem uma episteme vinculada a ideias colonialistas. O papel dessas leis, obrigando o ensino da história e da cultura afro-brasileira, apesar do avanço jurídico e político, tornam-se letras mortas quando não acompanhadas de políticas públicas efetivas no combate ao racismo. A ineficácia de políticas públicas impede a disseminação dessas leis a todas as escolas brasileiras, o que delimita o potencial que elas poderiam oferecer à escola, em defesa de um ensino que se dedicasse à cultura e à história negra, como mecanismos de enfretamento ao racismo estrutural. Isso poderia, inclusive, permitir a construção de saberes afro-brasileiros entre os alunos, que, disseminados para além da escola, podem atingir outras instituições, substituindo as práticas e os símbolos racistas presentes nas relações sociais no Brasil.

O contexto epistemológico da educação brasileira precisa de estratégias para combater o racismo. Nesse sentido, a síntese cultural freiriana (FREIRE, 2005) torna-se uma possível alternativa, culminando em reais mudanças e trazendo o pensamento decolonial ao ensino brasileiro, que passa a ser inclusivo e não favorecedor das práticas de desigualdade na escola, a partir do não respeito à diferença.

A forma estrutural como o racismo se manifesta também na escola nos mostra que esta pode também ser um meio útil para a naturalização de práticas e discursos antirracistas. Embora os dispositivos legais previstos não tenham conseguido efetivar-se, a escola continua sendo um espaço de resistência, com potencial para a ressignificação de saberes racistas. A realidade atual claramente ainda se coloca como um palco de reprodução racista, o que impede a construção de um espaço plural na escola.

É importante destacarmos que a mudança para uma sociedade plural, de fato, demanda uma discussão ampla, que leve à quebra dessa estrutura que coloca os saberes brancos/europeus acima dos saberes negros. Não é admissível que o saber negro continue a ser visto como um saber encaixado dentro do universo de ensino confortavelmente branco/europeu, transformando-o, então, em um discurso paralelo e distante, fazendo do negro um ser exótico, tendo a sua história e cultura ilustradas em contextos singulares, comumente reconhecidos apenas nas datas comemorativas. Essa prática, por sua vez, favorece a adoção de antigas táticas de desvalorização e de apagamento, suscitando, posteriormente, no questionamento sobre os reais saberes negros, uma vez que este permanece como sendo outro. Uma sociedade verdadeiramente democrática precisa estabelecer uma leitura de real igualdade nas diferenças, sem conduzir a padronização ou a desigualdade, de forma que as diferenças possam ser um aspecto universal e não pertencente ao universal, rompendo com o status dos saberes brancos/europeus, sem criar outras formas de hierarquia.

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Recebido: 10 de Maio de 2020; Revisado: 26 de Abril de 2021; Aceito: 27 de Abril de 2021; Publicado: 07 de Maio de 2021

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