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Práxis Educativa

versión impresa ISSN 1809-4031versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.16  Ponta Grossa  2021  Epub 21-Oct-2021

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.16.16809.051 

Artigos

Alfabetização de jovens e adultos: do discurso de combate à pobreza socioeconômica a políticas curriculares

Literacy of young people and adults: from the discourse of combating socioeconomic poverty to curricular policies

Alfabetización de jóvenes y adultos: del discurso de combate a la pobreza socioeconómica a las políticas curriculares

Arlindo Cornélio Ntunduatha Juliasse* 
http://orcid.org/0000-0003-4190-1887

*Professor na Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Rovuma (UniRovuma), Nampula-Moçambique, Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (ProPed) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: <ajuliasse@unirovuma.ac.mz>


Resumo:

Este texto é decorrente do aprendizado proveniente de escuta de alteridade que ressignifica pensamentos sobre alfabetização no contexto histórico-social de alfabetização de jovens e adultos em Moçambique. Discussões em torno dos estudos de Foucault e da Legislação moçambicana potencializaram a construção do texto, cujo objetivo foi compreender e questionar o lugar da alfabetização como direito nos discursos políticos de combate à pobreza, relacionando-os às práticas curriculares no contexto moçambicano. Destaca-se a ideia de pensar-se em uma perspetiva curricular que favoreça todos os sujeitos do espaço e do tempo escolar. Esse olhar de alfabetização é tecido como um direito à educação com referência especial à Educação de Jovens e Adultos. Por isso, é necessário promover a valorização das experiências locais e dos diferentes sujeitos dos processos pedagógicos como um dos possíveis caminhos de elaboração de políticas e práticas curriculares na alfabetização de jovens e adultos.

Palavras-chave: Alfabetização; Analfabetismo; Currículo; Direito à aprendizagem

Abstract:

This text is a result of the learning that comes from listening to otherness that re-signifies thoughts about literacy in the historical-social context of literacy of young people and adults in Mozambique. Discussions around Foucault’s studies and Mozambican legislation enhanced the construction of the text, whose aim was to understand and question the place of literacy as a right in political discourses to fight poverty, relating them to curricular practices in the Mozambican context. The idea of ​​thinking about a curricular perspective that favors all subjects of school space and time stands out. This view of literacy is woven as a right to education with special reference to the Education of Youth and Adults. For this reason, it is necessary to promote the valuation of local experiences and the different subjects of pedagogical processes as one of the possible ways of elaborating curricular policies and practices in the literacy of young people and adults.

Keywords: Literacy; Illiteracy; Curriculum; Right to Learning

Resumen:

Este texto es el resultado del aprendizaje que proviene de la escucha de la alteridad que resignifica pensamientos sobre alfabetización en el contexto histórico-social de la alfabetización de jóvenes y adultos en Mozambique. Las discusiones en torno a los estudios de Foucault y la legislación mozambiqueña potencializaron la construcción del texto, cuyo objetivo fue comprender y cuestionar el lugar de la alfabetización como derecho en los discursos políticos para combatir la pobreza, relacionándolos con las prácticas curriculares en el contexto mozambiqueño. Se destaca la idea de pensar en una perspectiva curricular que favorezca a todos los sujetos del espacio y tiempo escolar. Esta visión de la alfabetización es tejido como un derecho a la educación con especial referencia a la Educación de Jóvenes y Adultos. Se trata de un derecho fundamental, tener derechos que posibiliten el desempeño de un rol social, cívico y económico que va más allá de la enseñanza de la lectura y de la escritura. Por ello, es necesario promover la valorización de las experiencias locales y de los diferentes sujetos de los procesos pedagógicos como uno de los posibles caminos de desarrollo de políticas y prácticas curriculares en la alfabetización de jóvenes y adultos.

Palabras clave: Alfabetización; Analfabetismo; Currículo; Derecho al aprendizaje

Introdução

Este artigo constitui um relato que problematiza a questão da alfabetização de jovens e adultos no contexto moçambicano como direito à educação. A sua abordagem toma como referência a prática vivenciada pelo autor que iniciou a sua participação no movimento de alfabetização em 2002, como alfabetizador voluntário. Nessa época, não se exigia formação específica de magistério. Para alfabetizar, bastava ter pelo menos o Ensino Secundário concluído (ou não) e manifestar o interesse em participar das atividades, pois a falta de pessoal qualificado para essa área constituía um dos fatores que concorria para a fraca exigência da qualificação no recrutamento dos alfabetizadores. Enquanto isso, a participação dos alfabetizadores era motivada pela ampliação de suas experiências de vida e pela vontade de aprender ensinando os outros, visto que o ganho era mais simbólico do que remuneratório.

O contato com o movimento de alfabetização surgiu a partir de uma das atividades de desenvolvimento comunitário vinculadas ao curso de formação de professores para Ensino Primário da Escola de Formação de Professores do Futuro – Chimoio, em Moçambique. Tais atividades baseavam-se nos manuais do alfabetizador e do alfabetizando, concebidos pelo Ministério de Educação de Moçambique, a partir do currículo construído após a Independência Nacional, conquistada em 1975.

Neste estudo, o currículo é entendido, conforme Lopes e Macedo (2011), como uma prática de poder, de significação e de atribuição de sentidos. No entender das autoras, o currículo seria o resultado do cruzamento entre os discursos sociais e culturais que concebem realidades, dirigem e projetam as identidades tendo em consideração que tanto as identidades como as subjetividades são resultantes de processos discursivos. O currículo concebido em 1983, a partir da Lei nº 4/83, de 23 de março (REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, 1983), que cria o Sistema Nacional de Educação de Moçambique, buscou construir uma nova sociedade baseada em ideais socialistas, com o objetivo de lutar contra o analfabetismo e o subdesenvolvimento herdados do sistema colonial. Na sequência, desde 1983, aos dias atuais, o país tem vindo a experimentar diversas transformações políticas, econômicas e sociais que requerem, também, transformações curriculares, no sentido de adequar-se a essas novas conjunturas.

Por conseguinte, o Programa Quinquenal do Governo para o período de 1995-1999 foi esboçado com a intenção de proporcionar a satisfação das necessidades fundamentais do povo moçambicano, em especial dos grupos sociais considerados vulneráveis (os jovens, os adultos, as mulheres/raparigas, crianças de rua). No âmbito desse interesse, a educação é considerada como um instrumento central para a melhoria das condições de vida. Assim, tanto o Ensino Primário quanto a alfabetização de adultos são definidos como áreas prioritárias do Governo por permitirem “[...] a eliminação do analfabetismo, conferindo aos cidadãos os conhecimentos fundamentais, nomeadamente a aprendizagem da leitura, da escrita e do cálculo” (REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, 1995, p. 9). Para tanto, debates sobre políticas curriculares, pensadas a partir de uma série de questões fundamentais relativas ao conhecimento e as suas formas concretas de organização educacional têm impulsionado o desenvolvimento da alfabetização.

Pela mesma razão, a Estratégia Nacional de Alfabetização e Educação de Adultos em Moçambique, para o período de 2010 a 2015, propunha a revisão do currículo e a realização de “[...] ações de formação e capacitação, em parceria com outros intervenientes a todos os níveis [...]” (CONSELHO DE MINISTROS, 2011, p. 29). Daí que se levantam as seguintes questões de reflexão: De que forma os contextos sociais, político e institucional estão sendo articulados com as experiências curriculares dos alunos? Quais são as diretrizes implícitas e explícitas nos discursos do futuro (social, político e econômico) dos alunos? Como essas diretrizes curriculares os preparam para tal futuro?

No que se refere ao processo de alfabetização, o alfabetizador, na qualidade de sujeito praticante, reinventava-se nas suas práticas alfabetizadoras em um contexto de diversidade cultural, pois os alfabetizados apresentavam uma diversidade tanto de nível cultural quanto de alfabetização. Alguns ainda não tinham frequentado a escola, outros tinham frequentado apenas as classes iniciais e abandonaram com noções básicas, e outros ainda haviam concluído o primeiro ciclo do ensino básico, tendo interrompido os estudos na 6ª ou 7ª classe. Essa diferenciação de níveis de escolaridade pressupunha necessidades e capacidades diferentes de aprendizagem. Esse contexto exigia uma formação pedagógica para melhor lidar com a diversidade do grupo, adequando os conteúdos de aprendizagem à realidade de cada educando.

Foi a partir dessa experiência que se ampliou, portanto, o desejo de fazer uma reflexão dos discursos do combate à pobreza em uma perspetiva multidimensional que se articula com um currículo de alfabetização “rudimentar” que não vai além dos domínios da leitura, escrita e cálculos. A relação entre currículo e pobreza estabelece-se, aqui, não só como ensino de conhecimentos, mas também no conhecimento do próprio fenômeno de pobreza em suas múltiplas dimensões. Tal conhecimento viabiliza o alfabetizado a compreender a sua realidade social, possibilitando-lhe participar ativamente no desenvolvimento da sua comunidade. No entanto, nesse processo, constatam-se os desafios de distância de casa-escola-casa, a problemática da fome, a insuficiência de materiais didáticos necessários para as atividades escolares e, em outros casos, destacam-se aspetos relacionados à renda familiar e seus efeitos que afetam direta ou indiretamente o desempenho pedagógico dos alunos. Percebe-se, então, que, na concepção e na implementação do currículo, seja importante refletir sobre esses aspetos da realidade cotidiana do aluno, de modo a assegurar que a escola desempenhe o seu papel de transformação social.

O conceito de pobreza é inspirado na abordagem de desenvolvimento de Amartya Sen (2010), que se contrapõe à ideia de desenvolvimento como aumento da renda e da pobreza como baixa renda. Sen (2010, p. 120) coloca em foco a pobreza como “[...] privação de capacidades básicas em vez de meramente como baixo nível de renda, que é critério tradicional de identificação de pobreza”. Tomando como base os dizeres de Sen (2010), concorda-se com a sua perspectiva pelo fato de não envolver negação da ideia de que a renda baixa é claramente um dos indicadores principais da pobreza por privar a capacidade de uma pessoa, mas por melhorar o entendimento da natureza das causas da pobreza, desviando a atenção principal dos meios para os fins que as pessoas parecem ter razão para buscar.

De modo geral, percebe-se que o currículo deve proporcionar saberes tendentes à expansão das liberdades das pessoas, sendo uma das características importantes nesse processo a participação dos beneficiários na construção do seu currículo. Assim, as pessoas tornam-se não só beneficiárias, mas também agentes do processo de desenvolvimento, o qual deve, antes de tudo, beneficiar a todos, baseando-se no princípio de participação ativa e livre de cada e qualquer um. A constituição dessas liberdades deve servir de instrumentos efetivos para a redução da pobreza, conforme Sen (2010, p. 16) quando explicita que “[...] a privação de liberdade econômica pode gerar a privação de liberdade social e política, vice e versa”.

As discussões decorrentes dos diversos grupos de estudos têm provocado a percepção de questões curriculares em Moçambique, que desvelam múltiplas possibilidades para os seus utentes, em que se destaca não só as ofertas das capacidades do domínio da leitura, escrita e do cálculo, mas também, e fundamentalmente, a aquisição de habilidades para a vida que dialogam com os seus usos sociais no cotidiano. Essa multiplicidade de enfoques faz pensar, embora não de forma inicial, a ocorrência do aprendizado da leitura e da escrita em diferentes espaços e tempos que atravessam o território escolar (ou não).

Ao longo deste artigo, recorreu-se à intertextualidade tendo em consideração a influência que os textos de Foucault produzem na escrita, em diálogo com outros textos previamente lidos, com destaque para Fasheh (2004), Sen (2010) e Silva (1998) e pensando na ideia gerativa de que o texto se faz, se trabalha por meio de um entrelaçamento perpétuo, em que “[...] o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolve ela mesma nas secreções construtivas de sua teia” (BARTHES, 1987, p. 82). Neste estudo, valeu-se igualmente de documentos legislativos no intuito de fazer um recorte do período pós-independência nacional de Moçambique.

Alfabetização e educação de jovens e adultos em Moçambique

O processo de alfabetização em Moçambique está imbricado com a história do país, que, no entender de Brito (2009), foi marcada por dois processos estruturantes do ponto de vista social e político. O primeiro começou com a fundação da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), em 1962, que, posteriormente, assumiu a luta na forma de confrontação militar contra o regime colonial a partir de 1964. Desse processo de luta, resultou a Proclamação da Independência, em 1975, e a instituição de um sistema monopartidário, em que o partido e o Governo se confundiam. O segundo processo foi o da Guerra Civil que se seguiu imediatamente após a Independência e que se prolongou até 1992, opondo o movimento de Resistência Nacional de Moçambique (RENAMO) ao Governo da FRELIMO, que culminou com a introdução do sistema político multipartidário.

No decurso dessa conjuntura histórica, a alfabetização de adultos foi definida como uma das prioridades do primeiro governo pós-independência, tendo, em 1978, realizado a primeira campanha de alfabetização que “[...] substituiu as desorganizadas atividades de alfabetização ‘voluntárias’ em larga escala em todo o país” (JOHNSTON, 1986, p. 101). Após, seguiram-se outras campanhas que buscavam mobilizar a população para as atividades de ensino e de aprendizagem de adultos com duração de nove meses, as quais eram oferecidas fora do horário de trabalho.

De acordo com o relatório do AFRMAP1 (2012), as atividades de alfabetização passaram a ser realizadas basicamente por provedores não governamentais, tais como associações, grupos comunitários e organizações religiosas. Esses provedores têm vindo a enfrentar dificuldades relacionadas ao processo de ensino que somente ocorre na Língua Portuguesa, limitando as populações pouco habituadas ao seu uso. Destaca-se, igualmente, o excesso de burocratização que retirou das “[...] campanhas seu ímpeto inicial, a falta de material e de treinamento dos instrutores (que) desmotivou alunos e instrutores, e a falta de atenção às peculiaridades das diferentes regiões do país (que) alienou uma parte dos moçambicanos das atividades de alfabetização” (AFRIMAP, 2012, p. 147).

Vale lembrar, porém, que, ao longo da história, os moçambicanos conviveram e convivem com outros povos. Dessa confluência, Moçambique caracteriza-se em duas sociedades: 1) matrilineares com os povos Chewa-Nyanja, Maconde, Makwa-Lomwé, Nsenga, Pimbwe e Yao; e 2) patrilineares com os povos Bitonga, Chopi, Nguni, Shona e Tsonga. Na simbiose dessas duas influências, encontram-se, na região do vale do Zambeze, os povos Chuabo, Sena, Nhungwe e, na zona costeira patriarcal islâmica, os povos Mwani e Macuas. Portanto, as práticas curriculares de alfabetização devem ser pensadas tendo em consideração essa diversidade de povos, dos seus aspetos sociais, históricos, políticos, ideológicos e linguísticos. Os estudos linguísticos em Moçambique ainda continuam em abertos quanto ao número de línguas e dialetos existentes, porém vale a apena destacar 23 línguas bantu, segundo Da Silva (2013), o qual cita o mapa estatístico do Núcleo de Estudos de Línguas Moçambicanas. Assim sendo, escolher uma delas como nacional seria uma tentativa de selecionar para excluir, não só formas linguísticas, mas determinados grupos. O lugar dessas línguas no currículo de alfabetização continua a ser questionado.

Entretanto, uma das tentativas de propor um currículo em línguas nacionais pode ser constatada no estudo de Mutemba (apudMAGAIA, 2010) ao referir que, com a chegada das missões religiosas cristãs evangélicas, diferentemente da missão católica portuguesa – que fazia de tudo para acabar com as línguas nacionais e sentimentos culturais dos povos do território moçambicano –, os protestantes pegaram as línguas étnicas, traduziram a Bíblia e as canções religiosas, alfabetizaram, tendo, assim, conseguido misturar-se com os africanos e, dessa forma, conhecido as suas culturas. Parece evidente afirmar que “[...] a igreja se engajou na alfabetização para que as pessoas entendessem a Bíblia e, assim, melhor as moralizava” (CASTIANO; NGOENHA, 2013, p. 160).

Tendo em consideração essa situação, introduziu-se um Programa de Alfabetização em Línguas Moçambicanas, no âmbito do Projeto de Educação Bilíngue. Inicialmente, foram ensaiadas as duas línguas do norte (emakhuwa e cinyanja), duas do centro (cisena e cindau) e uma do sul do país (cichangana). Mais tarde, produziram-se materiais de ensino em outras línguas nacionais que gradualmente foram sendo introduzidas na alfabetização como auxiliares aos processos de ensino e de aprendizagem da leitura e da escrita em Língua Portuguesa.

O lugar da alfabetização nas políticas públicas de Educação: do discurso a práticas curriculares

Em Moçambique, a educação de adultos constitui-se como tema de política educacional, sobretudo a partir da década de 1970. Entretanto, as suas raízes estão na experiência educativa da colônia e nas escolhas políticas da FRELIMO desde a luta de libertação, nos anos de 1960 e 1970, atravessando o período revolucionário e socialista pós-independência, nos meados dos anos de 1970 e 1980, até a atual fase de liberalismo econômico e pluralismo político.

Esse contexto faz pensar na complexidade da dimensão cultural da educação que se pretendia ofertar ao povo, com o sentimento de que os valores a serem veiculados deveriam ser do povo com toda a sua diversidade, pois entende-se que um currículo baseado na/pela diversidade cultural favorece que todos os sujeitos de educação desenvolvam habilidades, atitudes e conhecimentos necessários. Do ponto de vista de James Banks (1999 apudCANDAU, 2002), esses conhecimentos diversificados permitem atuar no contexto da sua própria cultura étnica, no da cultura dominante, assim como possibilitam interagir com outras culturas e situar-se em contextos diferentes de sua origem.

Uma possível contradição da ideia do currículo de alfabetização praticado na rede escolar moçambicana pode ser visualizada nas falas de Samora Machel (1975), primeiro Presidente de Moçambique pós-independência quando afirmou que, por um lado, a educação deveria conciliar com a diversidade racial, de cor, de etnia ou religião existente até então. Por outro, defendia a construção de “um só povo”, “uma só nação”, “uma só cultura”, do “Rovuma a Maputo” (de norte ao sul do país).

Para tanto, o enquadramento legal está disponível na Lei nº 4/83 de 23 de março, que criou o Sistema Nacional de Educação em Moçambique, definindo a educação como direito e dever de todos os cidadãos, que se traduz na igualdade de oportunidades de acesso a todos os níveis de ensino e na educação permanente e sistemática de todo povo (Lei nº 4/83, Art. 1º). Posteriormente, um dos componentes mais significativos do atendimento educativo a jovens e adultos foi preconizado pela Lei nº 6/92 de 6 de maio, que revisa a primeira lei, enquadrando a educação de adultos no ensino extraescolar e nas modalidades especiais do ensino escolar.

Quanto ao ensino escolar, lê-se no Artigo 31 da Lei nº 6/92 que o ensino de adultos é aquele que é organizado para os indivíduos que já não se encontram na idade normal de frequência do sistema de ensino geral e formação técnico-profissional, incluindo aqueles que não concluíram. De acordo com essa lei, têm acesso a essa modalidade de ensino os indivíduos a partir dos 15 anos para o ensino primário e a partir de 18 anos para o ensino secundário. Por seu turno, segundo o Artigo 35 da Lei nº 6/92, o ensino extraescolar “[...] engloba as atividades de alfabetização, aperfeiçoamento e atualização cultural e científica e realiza-se fora do sistema regular de ensino” (REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, 1992, p. 9), com o objetivo de aumentar os conhecimentos e desenvolver potencialidades nos indivíduos como complemento da formação escolar ou suplemento da sua carência.

Parece evidente que um sistema escolar visto nesses moldes “[...] é proclamado como conformante da república e da democracia enquanto conformador da cultura nacional” (ARROYO, 2011, p. 270, grifo do autor). É instigante pensar como eram e são vistos os coletivos populares e suas histórias emaranhadas pela diversidade cultural do povo em conformação com a edificação da ideia de uma cultura, uma identidade e memória nacional. Como nos alerta Arroyo (2011, p. 270), é provável que sejam considerados como “um fardo do passado, do retrocesso, do primitivismo”. Esse fardo, se possível não deve ser lembrado, mas se lembrado, deve responder um desejo imperioso de deixá-lo para trás como uma mancha negativa que se herdou do colonialismo.

Ki-Zerbo (2006, p. 28) chama atenção ao considerar que “[...] o capitalismo produziu muitas invenções e impeliu os povos para novas realizações. Mas ao mesmo tempo, sempre produziu a pobreza”. Conforme o autor, no tempo pré-colonial e mesmo durante a colonização, as sociedades africanas eram marcadas por certo equilíbrio dos rendimentos, do nível de vida e do poder de compra dos diferentes seguimentos da população. Daí a necessidade de se refletir mais sobre as razões que levam as pessoas a se alfabetizarem.

A análise dos resultados referentes às razões que levariam alguém a participar do processo de alfabetização permite verificar que as pessoas se alfabetizam para não se sentirem responsabilizadas pelo empobrecimento da sua família, da comunidade, do país. Outras se alfabetizam porque entendem que o analfabetismo silencia as vozes populares. Outras, ainda, porque consideram que o processo de alfabetização abre múltiplas possibilidades de resistência social. Na sequência, outros encontram na alfabetização uma oportunidade de se tornar como os outros, letrados. Enfim, parece claro que o movimento todo é o de que somos obrigados a alfabetizar, e não parece ser apenas direito de escolha, pois deve-se estudar para ter emprego, para ganhar dinheiro, para o exercício da cidadania ou para sobreviver. Evidentemente, o trabalho pressupõe alfabetização, pressupõe conhecimento letrado; sem esse conhecimento, poucos são os empregos que possibilitam alguém a ter uma vida digna. Portanto, o direito declarado acaba não sendo efetivamente um direito. O discurso de direito assume um carácter fascista, dissimulado, visto que ele esconde muitas coisas. Percebe-se, então, que há ainda uma ordem explicita ou implícita de que isso é o que se tem a fazer, quebrando, desse modo, a liberdade, pois ela “[...] representa a capacidade do ser humano para inventar, para se projetar para diante rumo a novas opções, adições, descobertas” (KI-ZERBO, 2006, p. 17).

Com efeito, quando a constituição declara que a educação é um direito e dever, é reafirmar que ela constitui uma obrigação para cada e qualquer um. Diante disso, tem-se a possibilidade de escolher se pode-se ou não alfabetizar-se. Daí a necessidade de pensar-se não só sobre os currículos politicamente concebidos, mas também os praticados de modo a compreenderem-se os elementos que dele emergem.

As práticas curriculares que vêm sendo desenvolvidas devem ser repensadas para que se destinem a um público conhecido, porque parece que a escola de que se está falando, aqui, sabe poucas coisas sobre os seus educandos. Evidentemente, os alunos estão a falar a toda hora e os envolvidos no processo oficial parecem não os escutar. Além disso, quando se fala de direito e dever, não se quer dizer que a oferta está aí e quem quiser pode ou não se escolarizar. Mais do que isso, o Governo oferece não porque é bonzinho, mas porque é pressionado por outros países, pelo sistema capitalista, excludente e que gera morte.

Contudo, não são apenas os excluídos que morrem, os incluídos também morrem; a única diferença está na escolha entre morte lenta e morte súbita. Em outras palavras, se incluir-se, vai morrendo aos poucos, mas se se excluir, a morte é brutal, sem piedade e sem direito a um funeral digno. O pior de tudo isso é que os seus restos mortais ficam à deriva, jamais lembrados, e, se lembrados, talvez apenas como um mau exemplo da humanidade.

Aqui a tática, como ensina Certeau (2012), surge como uma alternativa disponível para ser usada. Essa tática consistiria em aprender a sobreviver de acordo com o que está posto e não de acordo com o que se deseja. Essa é a globalização, uma imposição do sistema capitalista para o mundo inteiro. É como se o mundo inteiro vivesse como uma pequena Europa, cultural, epistemológica, política, econômica e socialmente.

Esse ensinamento Certeauniano possibilita outro olhar sobre práticas cotidianas no contexto escolar (ou não) em que os sujeitos não escapam do contato com a cultura escrita, ajudando-os a mergulhar nas formas subterrâneas de conviver com políticas impostas, instituídas por um “lugar de poder e do querer” (CERTEAU, 2012, p. 94). Refere-se às relações instituídas, às “burlas” dos consumidores de tais políticas, de que fala Certeau. Trata-se da arte do fraco, especialmente das invenções dos professores e dos alunos, as formas como interpretam as políticas curriculares, as suas maneiras de aprender e praticar a arte de ler e de escrever, os sentidos emergentes dessas práticas, procurando, com isso, questionar o que eles aprendem com esse currículo quando estão aprendendo a ler e a escrever.

No espírito do ensinamento foucaultiano, segundo o qual os fatos não existem por si mesmos e nem são determinados por algum motor ou sentido último, as tramas são sempre múltiplas. Procura-se outro olhar sobre a alfabetização de adultos que busca as vozes dos educandos para com eles conceber as matrizes curriculares que proporcionem o desenvolvimento como liberdade defendida por Amartya Sen (2010), o qual consiste no alargamento das liberdades reais de que a pessoa goza, contrastando com perspetivas restritas de desenvolvimento que o identificam com crescimento do produto nacional bruto, com aumento das receitas pessoais, com a industrialização, com progresso tecnológico ou com a modernização social. Trata-se de um enfoque sociológico de desenvolvimento que propõe a remoção das principais fontes de privação de liberdade, tais como: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos. Na perspetiva de Sen (2010), a liberdade seria a peça central para o processo de desenvolvimento, como avaliadora, como escala de medição e como razão de eficácia, pela livre condição das pessoas.

Ainda lendo Foucault, percebe-se a dimensão histórica de produção da posição do sujeito a partir “[...] de que fala e é falado, do lugar do alfabetizado, de quem entrou em uma sociedade letrada, de quem parece ter assumido a função de autoria e que pode falar do outro: que só pode existir aí no discurso como objeto referido” (SILVA, 1998, p. 14). Que parece ter sido convencido a seguir os mesmos caminhos de desenvolvimento que supostamente o produtor do discurso diz ter percorrido, como se, seguindo esse percurso, automaticamente ocorreria o combate à pobreza e o consequente desenvolvimento. E o outro, na condição de objeto, sem poder produzir, devido ao seu lugar, limita-se a reproduzir o discurso, mas recorrendo às suas próprias forças (recursos escassos) de que dispõe. Como seria possível percorrer a mesma distância, ao som do mesmo apito de arranque, mas usando meios diferentes de competição, se é que podemos chamar de competição? Estaríamos a priori a excluir os incapacitados ou os marginalizados. Como descrito por Ki-Zerbo (2006, p. 21), “[...] os conceitos de competitividade e rentabilidade levam a uma espécie de darwinismo económico, em que só os mais aptos [...] sobreviverão”.

O colonialismo substituiu inteiramente o sistema africano. Fomos alienados, substituídos por outros, inclusive no nosso passado [...]. O “pacto colonial” queria que os países africanos produzissem apenas os produtos em bruto, matérias primas a enviar para o norte. Esse pacto colonial, dura ate hoje [...]. Quando juntamente com Kwane Nkhruma, Amílcar Cabral e outros, nos batíamos pela independência africana, replicavam-nos: vocês nem podem produzir uma agulha, como querem ser independentes? Mas porque razões os nossos países não podiam produzir uma agulha? Porque, durante cem anos de colonização, tinham nos remetido para esse papel preciso: não produzir nem sequer uma agulha, mas matérias-primas, isto é, despojar todo o continente. (KI-ZERBO, 2006, p. 25).

Conforme observam Cook-Gumperz (2008), em resposta a essa citação, questiona-se se os educandos esperam entender-se no passado e no presente para filtrar tantas promessas de futuro incerto que os currículos proclamam. Não se diz que a história é mestra da vida? Mas que história, que passado terão de aprender? Onde se aprende? Descobrirão as pegadas da sua condição no presente? Encontrarão nos currículos essas pegadas do seu passado e as marcas de viver o seu presente as possibilidades reais de um futuro?

No início, acreditava-se, desconfiando, no discurso de que erradicando o analfabetismo por meio do processo de alfabetização também se participaria na erradicação da pobreza para, na sequência, participar do desenvolvimento social e pessoal desejado. “Esta desconfiança, diz respeito ao estereótipo como um princípio de instabilidade absoluta, que não respeita nada” (BARTHES, 1987, p. 57). No entanto, que jogo seria esse de visibilizar o analfabeto e o analfabetismo e (in)visibilizar o alfabetizado e a alfabetização no discurso político-jurídico?

Trata-se de “[...] conjuntos de enunciados muito heterogêneos, formulados pelos ricos e pelos pobres, pelos sábios e pelos ignorantes, protestantes ou católicos, oficiais do rei, comerciantes ou moralistas” (FOUCAULT, 1996, p. 68). Pode-se, então, recorrendo à Foucault, afirmar que todo o sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes dominantes que eles trazem. Foi pensando nessa maneira de apropriação do discurso por meio do currículo de alfabetização que se olhou a problemática relação de erradicação do analfabetismo e o combate à pobreza. Ou melhor, pensar na alfabetização de adultos como meio e fim que se articula com o desenvolvimento.

Na tentativa de operar analiticamente nessa paisagem, optando por se mover e ser movido pelas problematizações Foucaultianas, colocou-se ser “alfabetizado” ou “analfabeto” nesse espaço polêmico, buscando o discurso colonial e pós-colonial que aparenta ser tão poderoso quanto exclusivo e que vem sendo reproduzido pelos outros, sim, os outros, habitantes dessa terra colonizada, onde os poderosos se transformaram e se transformam em donos de tudo, e os donos de nada, sem poder, sem terra na própria terra e analfabetos do alfabeto dos outros, (in)visibilizados, pobres e que precisam de erradicar essa pobreza, para se ser como os outros, provavelmente como os considerados desenvolvidos, depois de os terem subdesenvolvido e que parece continuarem operando de outros modos.

Lopes e Macedo (2011) criticam a abordagem curricular que concebe a escola e o currículo como aparato de controlo social. A importância da escola para o desenvolvimento econômico do país ressaltada em múltiplos momentos é uma das expressões dessa crença, assim como o destaque que a ela se dá como espaço de socialização dos sujeitos. Por isso, “[...] aprende-se na escola não apenas o que preciso para entrar no mundo produtivo do trabalho, mas códigos a partir dos quais se deve agir na sociedade” (LOPES; MACEDO, 2011, p. 26).

Estruturalmente, as políticas públicas de combate à pobreza em Moçambique são desenhadas com base na Constituição da República e visualizadas na Agenda 2025, de onde consta a visão mais ampla da Nação em longo prazo, com objetivo de estabelecer novos caminhos para impulsionar o desenvolvimento. Esse instrumento tem sido traduzido nos Programas Quinquenais de Governo (PQG, 1995-1999; 2000-2004; 2005-2009; 2010-2014 e 2015-2018), os quais são operacionalizados pelos Planos de Ação de Redução da Pobre Absoluta (PARPA I, 2001-2005; PARPA II, 2006-2010, PARP, 2011-2015). Mais tarde, esses documentos legais foram convertidos em Planos Estratégicos Setoriais de acordo com as especificidades de cada Ministério.

Assim, em todos esses documentos, o combate à pobreza constitui o foco central. Quanto ao setor da Educação, a Constituição da República de Moçambique (REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, 2004) define a educação como um direito de todo cidadão (Artigo 88) e uma estratégia para a unidade nacional, a erradicação do analfabetismo, o domínio da ciência e da técnica, bem como a formação moral e cívica dos cidadãos (Artigo 113). O Governo considera a alfabetização um direito humano dos cidadãos e uma estratégia crucial no combate à pobreza. Por isso, ela é definida, por um lado, como a aquisição de noções básicas de leitura, escrita e cálculo; e, por outro lado, como um processo que estimula a participação nas atividades sociais, políticas e econômicas, permitindo uma educação permanente e contínua. Entretanto, o Plano Estratégico de Educação e Cultura (2012-16) refere que, apesar do crescimento econômico, 54% da população ainda vive abaixo da linha da pobreza em consequência de uma estagnação na diminuição da pobreza no período entre 2002/2003 e 2008/2009 no âmbito nacional (INDE, 2009).

Assim, os dados da pesquisa empreendida referem que, aquando da Proclamação da Independência Nacional (1975), o analfabetismo atingia 93% da população; em 2001, a taxa reduziu-se para 56,5%. Nas zonas rurais, a taxa de analfabetismo situava-se em 72,2% (dos quais 85% eram mulheres), enquanto nas zonas urbanas a taxa era de 33% (dos quais 46,2% eram mulheres). A taxa de escolarização subiu de 43,6%, em 1999, para 62,6%, em 2002 (REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, 2003, p. 7), e a taxa de analfabetismo diminuiu para 48,1% em 2008. Esperava-se que, até 2015, reduziria para 30%, uma meta que ainda não foi alcançada.

A taxa de analfabetismo em Moçambique tem vindo a melhorar significativamente desde o início da luta de libertação nacional até aos dias atuais. Isso não assusta a ninguém, pois era de se esperar, com os trabalhos e os esforços que têm sido envidados, ao longo dos anos, para esse cenário. Contudo, as taxas sugerem outras reflexões relacionadas ao significado da redução do analfabetismo na vida dos sujeitos e da comparação das condições de vida do sujeito alfabetizado-pobre e do outro sujeito analfabeto-pobre, tendo em conta os benefícios/resultados provenientes dos diversos programas de alfabetização e educação de adultos.

Com a ajuda de Certeau (2012), entende-se que as estatísticas se contentam em classificar, calcular e tabular esses elementos; e fazem-no com categorias e segundo taxinomias conforme às de produção industrial. Por isso, elas só captam o material utilizado pelas práticas de consumo. De acordo com o autor, essa capacidade classificatória suprime a possibilidade de representar as trajetórias táticas que, segundo critérios apropriados, selecionam fragmentos tomados nos vastos conjuntos da produção para, a partir deles, compor histórias originais. “Contabiliza-se aquilo que é usado, não as maneiras de utilizá-lo” (CERTEAU, 2012, p. 92).

O que se está tentando captar, representar, explorar e transmitir aqui é emprestado de Silva (1989) quando argumenta que o analfabeto adquire visibilidade, e a escrita traz a possibilidade de uma solução nova para a manutenção de antigas desigualdades, para homogeneizar a heterogeneidade. Por isso, diz-se que essa modernidade, esse capitalismo, essa globalização, chegou com muita brutalidade. Se perguntarmos se, há mil anos, havia tanta fome na África, na Ásia, na América Latina, provavelmente a resposta seja: não tanta fome, ou não existia simplesmente. Então, poderíamos dizer que não estamos fazendo outra coisa se não ofertar um currículo educacional que acompanhe o ritmo dessa globalização.

Tecendo considerações finais para iniciar o debate

A ideia que se debateu neste trabalho fundamenta-se em duas dimensões. A primeira defende a concepção de um currículo de alfabetização de adultos com pretensões simplistas de erradicar o(s) analfabetismo(s), com a promessa de que, com isso, se pode combater à pobreza e garantir a aprendizagem permanente. Essa promessa constitui-se em si uma limitação, pois “[...] considerar uma pessoa como analfabeta, significa tratá-la em termos do que lhe falta, em lugar do que a pessoa possui e faz” (FASHEH, 2004, p. 157). Para o autor, a pessoa considerada analfabeta pode possuir conhecimento e sabedoria fantásticos, podendo expressar-se de várias formas, e ignorar esse potencial constitui uma forma de utilização da linguagem para controlar tanto o que a mente vê como o que não consegue ver. Por isso, “[...] precisamos analisar não somente o que a alfabetização acrescenta na forma como é concebida e implementada, mas também o que subtrai ou torna invisível” (FASHEH, 2004, p. 159). Recorrendo à Foucault (1996), essa declaração explicita acerca do analfabetismo e da alfabetização, ela dá conta que basta pensar em tudo isso para supor que a exclusão, longe de estar apagada, se exerce de outro modo, segundo linhas distintas, por meio de novas instituições e com efeitos que não são de modo algum os mesmos, mas que concorrem para a marginalização do analfabeto-pobre.

A segunda ideia sugere que os “alfabetismos” deveriam se preocupar não só com a erradicação de analfabetismo, mas, e principalmente, em promover a ideia de formação de leitores e escritores, aproveitando as suas potencialidades para adicionar outros saberes considerados necessários para o alcance daquilo que se deseja – garantido que o aprendiz não perca o que já possui. Por isso, Fasheh (2004) defende que, no processo de erradicação do analfabetismo, não se esmaguem os analfabetos. Nessa perspectiva, a alfabetização deve ser encarada como meio e instrumento que assegura o direito não só de aprendizagem ao longo de toda vida, mas, e fundamentalmente, entender que ela é um direito de ter direitos e, por isso, é desenvolvimento – supondo que à medida que se vai caminhando em busca do desenvolvimento, vão se ampliando as liberdades, reduzindo as privações e melhorando, desse modo, as condições de vida.

O processo de alfabetização de adultos provenientes do discurso dominador é ao mesmo tempo propagador de inclusão quanto de exclusão social. Aqui o sujeito aparenta estar carregado de entusiasmo, de uma vida melhor que espera alcançar no futuro, em uma espécie de transformar as incertezas de hoje em certezas do amanhã.

Em suma, concordar-se-ia com o ensinamento de Mia Couto (2011, p. 8), segundo o qual a “[...] esperança é última a morrer ainda que possa ser a primeira a matar-nos. Estaremos mortos se aceitarmos conviver, com cinismo, num mundo em que fazemos de conta acreditar”. Percebe-se, então, que os programas de alfabetização se caracterizam pela inadequação das propostas curriculares às possíveis necessidades e interesses dos alunos que participam dos programas de alfabetização e, principalmente, pela minimização dos problemas decorrentes desse processo. Por isso, é necessário promover a valorização das experiências locais e dos diferentes sujeitos dos processos pedagógicos como um dos possíveis caminhos de elaboração de políticas e de práticas curriculares na alfabetização de jovens e adultos.

As reflexões finais apontam que, ao estabelecer uma estratégia curricular, implica uma organização prévia de experiências e situações de aprendizagem realizadas por docentes da escola ou redes de ensino de forma a levar a cabo um processo educativo. Para tal, é necessário ter em consideração uma série de questões que se escondem, mas que estão em disputa o tempo todo. Tais questões devem tornar-se objeto de formulação teórica e política, visto que os sujeitos são mais sensíveis as suas particularidades e atentos aos processos de aprendizagem da leitura e da escrita do outro como legítimas formas de aprendizagem.

1The Africa Governance, Monitoring and Advocacy Project (AfriMAP) é uma iniciativa das quatro fundações africanas da Soros Foundation Network, tendo sido estabelecida em 2004 com o objetivo de monitorar as atividades dos Estados africanos e de seus parceiros de desenvolvimento em relação à observância dos padrões de direitos humanos, Estado de Direito e prestação de contas pelo Governo.

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Recebido: 30 de Setembro de 2021; Revisado: 09 de Abril de 2021; Aceito: 10 de Abril de 2021; Publicado: 20 de Abril de 2021

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