Introdução
O Decreto Presidencial Nº 10.502, de 30 de setembro de 2020, instituiu a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida – PNEE-2020 (BRASIL, 2020a), pretendendo substituir a política vigente até então, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI) de 2008. Entretanto, a PNEE-2020 foi a política nacional de Educação Especial mais curta da história do Brasil, durando apenas cerca de 60 dias, envolta em grandes discussões e dividindo opiniões.
O referido Decreto foi suspenso pelo Supremo Tribunal Federal (STF) porque, ao contrário das leis, esse tipo de instrumento jurídico não tem poder de criar, extinguir ou modificar direitos e obrigações. Nesse sentido, o Decreto Nº 10.502/2020 foi considerado inconstitucional, por infringir leis vigentes, tais como a Convenção dos Direitos da Pessoas com Deficiência, aprovada pelo Decreto Legislativo Nº 6.949, de 25 de agosto de 2009 (BRASIL, 2009), com status de Emenda Constitucional no Brasil.
No presente estudo, propomos uma análise do conteúdo do Decreto Nº 10.502/2020, que instituiu a PNEE-2020. Em um primeiro momento, trouxemos uma breve apresentação do tema; em um segundo momento, considerações sobre o processo de construção da política, para, em seguida, proceder a uma análise do Decreto Nº 10.502/2020 apoiado no software Iramuteq1, a fim de compreender, por meio da análise textual, os elementos que formaram e constituíram a PNEE-2020.
Da Minuta da PNEE-2020 ao julgamento por inconstitucionalidade do Decreto Nº 10.502/2020
O sistema federal de educação brasileiro tem como seu órgão coordenador o Ministério da Educação (MEC), responsável pela Política Nacional Educacional Brasileira, em todos os níveis de escolarização. No campo da Educação Especial, até 2004, percebem-se simulacros de políticas, nos quais o direito à educação de pessoas com deficiências, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades e superdotação se apresentava nas leis e nos documentos oficiais. Enquanto, na prática, esse direito era, por vezes, negado, e nem mesmo a presença na escola, fosse ela comum e/ou especial, era amplamente garantida, conforme se pode constatar por meio das análises de dados estatísticos de matrículas no período supracitado e da história registrada por quem vivenciou tal período.
A partir de 2004, observa-se uma política mais contundente do MEC para garantir o direito do público-alvo da Educação Especial (PAEE) à escolarização no contexto das classes comuns de escolas regulares. Desde então, somam-se avanços, sobretudo na legislação, na normatização, no financiamento e, principalmente, na ampliação do acesso do PAEE à escola comum, que mais que quadruplicou as matrículas no período de 10 anos (KASSAR, 2011; MENDES, 2019; PRIETO, 2010).
A PNEEPEI (BRASIL, 2008) apresentou-se como orientação a estados e municípios, de modo a assegurar o direito de todos à educação regular; ou melhor, na organização de sistemas educativos inclusivos, tendo como foco o público-alvo constituído por sujeitos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento (TGD) e altas habilidades/superdotação (AH/SD). A Educação Especial ficou definida como modalidade de ensino não substitutiva à escolarização, perpassando todos os níveis, etapas e modalidades. Adicionalmente, garantiu o direito ao Atendimento Educacional Especializado (AEE), com professores especializados, tempos, espaços e recursos adequados às necessidades específicas de cada sujeito que demandasse tal atendimento, facultando sua oferta, conforme o Art. 8 do Decreto Nº 7.611, de 17 de novembro de 2011(BRASIL, 2011).
Em 2016, a crise política agudizou-se no país, ocorrendo o julgamento do impeachment da então Presidenta Dilma Rousseff, com seu afastamento do cargo. A partir daí, observam-se mudanças na condução da política de Educação Especial no país (KASSAR; REBELO; OLIVEIRA, 2019). Já em 2017, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI)/MEC sob a nova gestão, abriu diversos editais para seleção de consultores especialistas, financiados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), com o intuito de subsidiar estudos para a atualização de políticas públicas de Educação Básica e Ensino Superior, mais especificamente das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Especial no Brasil. Segundo Kassar, Rebelo e Oliveira (2019, p. 11): “A abertura de tais editais e a posterior contratação dos consultores indicaram a intenção clara de revisão da política de formação do sistema educacional inclusivo, nos moldes em que vinha sendo construído até o impeachment de Dilma Rousseff”.
A conclusão dos estudos, como era de se esperar, reforçou a tese revisionista2, e as primeiras resistências a essas iniciativas de mudanças surgiram por parte de diferentes coletivos, entre eles, o Ministério Público Federal e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd).
Tendo em vista que a política de inclusão escolar na realidade brasileira se fortaleceu durante os governos petistas, após o impeachment, e com o crescimento político da nova direita, o debate educacional também acabou sendo capturado por essa polarização entre direita e esquerda, a primeira defendendo a necessidade de revisão, enquanto a segunda sustentava a necessidade de manutenção da PNEEPEI (BRASIL, 2008).
Em meio a controvérsias, a SECADI abriu uma consulta pública, ainda em 2018, referente à minuta da “Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e ao Longo da Vida”, organizada pelo Núcleo de Excelência em Tecnologias Sociais (NEES), grupo de pesquisa da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), que desenvolveu uma plataforma para que tal consulta ocorresse, com versão preliminar da PNEE-2020 e com uma versão em Língua Brasileira de Sinais – Libras (BRASIL, 2018). No site da consulta pública, fora posto que:
O texto aqui apresentado é resultante de visitas técnicas nas cinco regiões brasileiras; estudos; levantamentos; discussões; relatório de consultorias e escuta de segmentos sociais interessados no assunto, dentre os quais se destacam pessoas que integram o público da Educação Especial, familiares e representantes, educadores, pesquisadores e lideranças na área.
Com base na realidade social e no compromisso com ela firmado, este texto indutor objetiva orientar os sistemas de ensino e estimular iniciativas inovadoras e coletivas, que visem ao progresso da educação e à valorização das singularidades e diversidades no mundo globalizado e desigual da sociedade do conhecimento, onde alternativas e pluralidade encontram sentido e lugar. Assim, o compromisso entre Estado, família e sociedade fazem a verdadeira educação. (BRASIL, 2018, n.p.).
Em resposta a essa minuta da consulta pública, surgiram movimentos de resistência:
Em 16 de novembro de 2018, pesquisadores, professores e estudantes reunidos em São Carlos-SP, no VIII Congresso Brasileiro de Educação Especial e no XI Encontro Nacional de Pesquisadores da Educação Especial (XI ENPEE), em Assembleia da Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial (ABPEE), com o apoio da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e do Fórum Nacional de Coordenadores dos Núcleos de Acessibilidade das Instituições Públicas de Educação Superior, Profissional e Tecnológica (IPESPTec), decidiram posicionar-se contrários a alterações na Política, no momento e nos moldes adotados, e divulgaram um documento crítico referente à Consulta Pública proposta para a “atualização” da atual Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva [...]. (KASSAR; REBELO; OLIVEIRA, 2019, p. 13).
Em outro documento oficial publicado (BRASIL, 2020b, p. 15), afirma-se que a PNEE-2020 “[...] começou a tomar forma em 2018 com observações, diálogos e constatações resultantes de visitas de consultores especialistas, oriundos de diferentes universidades brasileiras, realizadas nas cinco regiões do País”. As instituições visitadas não foram reveladas, o que tornou tal processo de construção vago e sem ampla participação democrática. Ainda, o processo de construção da minuta, apesar de ser referenciado no site da PNEE e em documentos oficiais como consultivo da população, nas cinco regiões brasileiras, é pouco transparente, uma vez que não menciona os consultores responsáveis por sua elaboração, os lugares visitados e as instituições que participaram do debate democrático e coletivo para o delineamento de uma nova política pública, gerando, já aí, impasses em relação ao teor do documento e a sua representatividade. Perguntas como: Em quanto tempo foi feita a PNEE-2020? Quem construiu ou coordenou o processo? Quais segmentos participaram? Quais pessoas do PAEE foram ouvidas?; entre outras questões que não foram suficientemente respondidas, criando uma situação de descontentamento entre aqueles que tinham interesse por esse campo da educação.
A versão na íntegra da consulta pública pode ser encontrada no site da PNEE3, a qual contém 45 tópicos, assim divididos nas “grandes áreas”: a) introdução; b) princípios, marco legal e regulatório; c) cenário atual; d) finalidades e objetivos; e) estudantes apoiados pela Educação Especial; f) serviços e recursos especializados; e g) diretrizes. Para cada um dos 45 itens, o respondente, após o cadastro no site, tinha de registrar: “Concordo Totalmente”; “Concordo Parcialmente”; “Indiferente”; “Discordo Parcialmente”; e “Discordo Totalmente”. Quando o respondente marcava uma das seguintes opções: “Concordo Parcialmente”, “Discordo Parcialmente” ou “Discordo Totalmente” em relação ao texto da minuta, tinha-se a opção de apresentar uma nova proposta para o texto da PNEE-2020. Posteriormente, os dados coletados no processo da consulta pública foram analisados por pesquisadores da área de Educação Especial por meio do software Iramuteq.
Participaram desse processo de sugestões à minuta da PNEE 8.329 pessoas de todo o Brasil, sendo o estado com a menor quantidade de pessoas participantes o Acre (11) e o com maior quantidade São Paulo (1.490). O público era majoritariamente constituído por mulheres (85,4%), mais de 67% do público da consulta tinha Pós-Graduação completa e cerca de 39% eram professores/as, 23,5% gestores/as e outros/as pertencentes a diferentes grupos (UFAL, 2018).
Após o processo de análise dos dados obtidos com base na consulta pública, por meio do software Iramuteq, procedemos à construção de um relatório final, o qual foi constituído de mais de 350 páginas e datado de dezembro de 2018. Nele, grande parte dos participantes da consulta pública concordou totalmente com todos os itens da PNEE, conforme apontado no relatório final e nos gráficos (UFAL, 2018). A conclusão do relatório final foi a de que havia “[...] tendência, em geral, para aprovação da íntegra do texto proposto para os tópicos, para todos os grupos” (UFAL, 2018, p. 303). Em cada um dos 45 itens da consulta pública, foi apontado, no relatório, “subsídios” para a escrita de uma nova proposta, especialmente para os itens em que foram apontadas maiores discordâncias.
A participação do público, 8.329 pessoas, foi considerada muito pequena para um processo de consulta pública, o que talvez se justifique pelo pouco tempo disponibilizado para o acesso e para os comentários e, também, pela divulgação insuficiente por parte do Governo. No documento (BRASIL, 2020b), por exemplo, foi apontado que, em 2018, em relação à Educação Básica, havia 1.228.719 professores que tinham pelo menos um estudante PAEE em suas salas de aulas (BRASIL, 2020b, p. 26) e, ainda, que mais de 13 mil professores eram PAEE em 2018 (BRASIL, 2020b, p. 26). Entretanto, apenas 39% dos 8.329 participantes da consulta pública eram professores e opinaram sobre o assunto.
Depois da entrega do relatório, em dezembro de 2018, no mês seguinte, janeiro de 2019, houve mudanças no Poder Executivo, com a posse do novo Presidente da República. Com isso, a proposta de uma nova PNEE foi engavetada por quase dois anos até ser publicada em 2020, em outubro, na página 6 do Diário Oficial da União (DOU). A publicação revela um documento diferente daquele finalizado no relatório de 2018, sendo uma versão simplificada com vários itens suprimidos.
O Decreto Nº 10.502, publicado no dia 1 de outubro de 2020, continha o texto referente à nova PNEE: “Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida” (BRASIL, 2020, n.p.). O referido Decreto foi assinado pelo Presidente da República, pelo Ministro da Educação e pela Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em cerimônia realizada no Palácio do Planalto e transmitido ao vivo pelo Youtube4 no canal do Planalto, em 30 de setembro de 2020. Nessa cerimonia, foi também divulgado um vídeo alusivo ao Dia dos Surdos e um segundo vídeo que seria veiculado como propaganda da nova política. Após os vídeos, o Ministro da Educação procedeu ao seu discurso no qual esclareceu:
Urge reconhecer que muitos estudantes não estão sendo beneficiados com a inclusão em classes comuns e que estudantes, familiares, professores e gestores escolares, clamam por alternativas. O Governo Federal não tem sido insensível a essa realidade. Em resposta a esse clamor, nasce a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, voltada para estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades e superdotação. (BRASIL, 2020f, 23:13-23:59).
Ao final, o Ministro complementou seu discurso reforçando que a PNEE-2020 valorizaria a singularidade, bem como o direito do estudante e de sua família na escolha do AEE, e mencionou, como ações nesse âmbito, a possibilidade de escolarização em classes e escolas bilíngues e especiais. Por fim, ficou evidenciado que a adesão dos entes federados seria voluntária.
Ao final da cerimônia, deu-se a assinatura do Decreto pelo Presidente da República, pela Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pela primeira-dama5 e pelo Ministro da Educação. Cabe destacar que, alguns dias após o lançamento da PNEE-2020, foi publicado um documento de 124 páginas pela Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação intitulado Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida (BRASIL, 2020b), no qual constam: a) as disposições gerais e as definições; b) os princípios e os objetivos da PNEE; c) o público-alvo; d) as diretrizes; e) os serviços e os recursos; f) os atores; g) a implementação; h) a avaliação e o monitoramento; e i) as disposições finais. Tal documento trouxe mais esclarecimentos sobre o Decreto assinado em 30 de setembro, com diversas informações e algumas referências de autores da área de Educação Especial para subsidiar o texto da PNEE-2020.
Decorridos 26 dias da publicação da PNEE-2020 e diante de uma divisão de opiniões entre educadores, familiares, pesquisadores da área de Educação Especial e da sociedade em geral, frente ao Decreto Nº 10.502, foi ajuizado um pedido pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB Nacional), via Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), com solicitação de medida cautelar, submetido ao Supremo Tribunal Federal (STF), em 26 de outubro de 2020 (BRASIL, 2020c)6.
No dia 3 de dezembro, foi publicada, no Diário de Justiça Eletrônico (DJE), a decisão monocrática do Ministro relator do processo a respeito do pedido impetrado pelo PSB: “Pelo exposto, concedo a medida cautelar pleiteada, ad referendum do Plenário, para suspender a eficácia do Decreto nº 10.502/2020, submetendo esta decisão à referendo na sessão virtual que se inicia no dia 11/12/2020” (BRASIL, 2020d, p. 26, grifos do autor).
Mais de uma dezena de instituições, após o dia 3 de dezembro 2020, requereram admissão no feito na qualidade de amici curiae. O relator do processo deferiu, assim, alguns pedidos para ingresso nos autos das instituições que requisitaram o papel de serem colaboradoras da Corte Julgadora, subsidiando com elementos técnicos e científicos a matéria do objeto da controvérsia, ou melhor, a intervenção de terceiros, em razão da representatividade que estes têm e a expertise no tema a ser julgado (LULIA; DOMINGUES, 2018).
No dia 19 de dezembro de 2020, foi finalizado o julgamento virtual sobre a PNEE-2020 e publicada, dois dias após, uma liminar referendando a decisão pela suspenção da eficácia do Decreto Nº 10.502/2020. Posteriormente, no dia 3 de fevereiro de 2021, foi publicado o despacho deferindo medida cautelar para suspender os efeitos do Decreto Nº 10.502 e, assim, para subsidiar o julgamento definitivo do feito, estabelecendo prazo para manifestações das autoridades requeridas e vistas, ao Advogado-Geral da União e ao Procurador-Geral da República (BRASIL, 2020c).
No inteiro teor do acórdão, publicado em 12 de fevereiro de 2021, é possível ter acesso à integra do texto da decisão e ao relatório com os votos dos Ministros7. A decisão dos Ministros pela inconstitucionalidade do Decreto, segundo apresentado pelo relator da ação, justifica-se pelo fato de o Decreto inovar no ordenamento jurídico, “[...] considerando que o seu texto não se limita a pormenorizar os termos da lei regulamentada, mas promove a introdução de uma nova política educacional nacional, com o estabelecimento de institutos, serviços e obrigações [...]” (BRASIL, 2020e, p. 3, grifo do autor). Ressaltamos que Decretos não podem ter natureza autônoma, mas regulamentar. Nesse sentido, o relator complementa que o Decreto contém a “[...] implementação de escolas e classes específicas para atendimento de alunos da educação especial, em contexto de aprendizagem separado dos demais educandos” (BRASIL, 2020e, p. 7, grifo do autor), a saber: nas escolas e nas classes especializadas e nas escolas e nas classes bilíngues de surdos; e cita uma série de legislações na qual deveria ter se pautado, mas inovou e divergiu. Destacamos, aqui, algumas delas: Constituição Federal de 1988, Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996; Decreto Presidencial Nº 6.949/2009; Decreto Nº 7.611/2011; Declaração de Salamanca e, ainda, uma outra ADI Nº 5.357/DF8 sobre a obrigatoriedade das escolas privadas e públicas de ofertar um atendimento educacional adequado e inclusivo às pessoas com deficiência. Na decisão da ADI Nº 5.357, o Ministro Edson Fachin ressaltou que “[...] o ensino inclusivo milita em favor da dialógica implementação dos objetivos esquadrinhados pela Constituição da República” (BRASIL, 2020e, p. 11, grifo do autor).
O relator discorre, ainda, sobre as vitórias do grupo de pessoas com deficiência, resultado de um processo de conquistas sociais. A inclusão escolar não deve/deveria ser encarada sobre o viés de construção de nova instituição, ou ensino separado, mas, sim, “[...] adaptação de todo o sistema de educação regular” (BRASIL, 2020e, p. 15, grifo do autor). Destaca, também, que “[...] o ordenamento constitucional não proíbe a existência de classes e escolas especializadas” (BRASIL, 2020e, p. 18, grifo do autor). O relator finaliza com seu voto, pelo deferimento de ADI do Decreto: “Nesses termos, reitero que suspender o ato impugnado é medida que homenageia a segurança jurídica” (BRASIL, 2020e, p. 22).
O Ministro Roberto Barroso votou com ressalvas, por referendar a medida cautelar, que, embora traga à tona a questão da educação bilíngue para estudantes surdos por meio da Libras, ressaltou, em seu voto, a importância desta na educação desses sujeitos. Nesse sentido, uma das entidades amici curiae foi a representante das pessoas surdas, a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis), a qual atuou na sustentação oral e ressaltou a importância de espaços bilíngues para o desenvolvimento da primeira língua desses sujeitos, a Libras, e como segunda língua na modalidade escrita, o Português.
Para o Ministro Marco Aurélio, o Decreto “[n]ão inovou na ordem jurídica e não se mostra ato normativo abstrato autônomo”. Ele acredita que não cabe atuação do Supremo nesse caso. Assim, o Ministro votou pela divergência ao relator, dada à inadequação da via escolhida para o pedido de sua inconstitucionalidade (BRASIL, 2020e, p. 12).
Por fim, como relatado, a vida do Decreto foi curta, cerca de 60 dias, mas toda sua construção foi, desde o início, conflituosa o bastante para dividir muitos pesquisadores/as da área de Educação Especial, gerando gastos públicos, desde sua construção, com consultorias, visitas especializadas, contratação para elaboração do site e da consulta, análise dos dados, cerimônia, campanhas publicitárias etc.
No dia 11 de fevereiro de 2021, o PSB Nacional recorreu novamente ao STF, considerando que o Ministério da Educação vem reiteradamente descumprindo a liminar, na medida em que valida a PNEE-2020, pois orienta e incentiva gestores sobre sua aplicação, além de continuar com material de divulgação em redes sociais, ignorando dessa forma a medida de suspensão do Decreto.
Em síntese, considerando-se toda a polêmica e divisão que o Decreto Nº 10.502/2020 provocou, o presente estudo teve como objetivo empreender uma análise textual desse documento, a fim de contribuir para o debate sobre a PNEE-2020.
Procedimentos metodológicos
Esta pesquisa utilizou a abordagem qualitativa, de cunho exploratório. Para apoiar a análise dos dados dos 18 artigos presentes na PNEE: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, Decreto Nº 10.502/2020, assim denominada de PNEE-2020, utilizamos o software Iramuteq, gratuito (código aberto) e ancorado no software estatístico R e na linguagem de programação python (SOUZA et al., 2018).
O uso do Iramuteq é um apoio ao processamento de dados na pesquisa qualitativa, no qual, entre as vantagens de seu uso, está: a organização e a separação das informações, e, por consequência, o aumento da eficiência do processo em relação às análises manuais, que tornam o processo oneroso ao pesquisador, despendendo do tempo para a categorização e para a contagem das palavras que surgem no texto. Com o uso do Iramuteq, após a limpeza do corpus textual, processa-se a informação em segundos, o que favorece o trabalho do pesquisador (SOUZA et al., 2018).
Os 18 artigos constantes na PNEE: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida originaram 18 segmentos de textos, separados por uma linha de comando. Assim, para o primeiro artigo do Decreto Nº 10.502/2020, a linha de comando foi: **** *art_1; para a segunda linha: **** *art_2; e assim sucessivamente. Após essa ação, foi dado início ao processo de revisão de todo o texto do documento, com a uniformização das siglas, a retirada dos símbolos e a junção de palavras compostas, como, por exemplo, Educação Especial, que passa a ser escrita assim no corpus: educação_especial, de modo que o software interprete como uma expressão única (Quadro 1). Palavras com hífen também foram substituídas pelo underline ( _ ). Sinais gráficos como: º, números romanos, recuo de parágrafo, margens, tabulações do texto, entre outros, foram todos ajustados. O texto ficou, ainda, sem mudança de linha e optamos por deixar todas as palavras em letras minúsculas, seguindo, assim, uma formatação criteriosa para o melhor aproveitamento possível por parte do software das palavras presentes no corpus de análise, conforme Quadro 1.
Quadro 1 Junção de termos para processamento do corpus textual
Altas habilidades ou superdotação | altas_habilidades_superdotação |
Art nº | art_n. |
Atendimento Educacional Especializado | aee |
Classes bilíngues | classes_bilíngues |
Classes e escolas especializadas | classes_especializadas e escolas_especializadas |
Classes e escolas regulares inclusivas | classes_regulares_inclusivas e escolas regulares inclusivas |
Classes especializadas | classes_especializadas |
Classes regulares e Classes regulares inclusivas |
classes_regulares_inclusivas |
Conselho Nacional de Educação | cne |
Educação bilíngue | educação_bilíngue |
Educação especial | educação_especial |
Escolas bilíngues | escolas_bilíngues |
Escolas especializadas | escolas_especializadas |
Escolas regulares inclusivas | escolas_regulares_inclusivas |
Exame Nacional do Ensino Médio | enem |
Instituições de Ensino Superior | ies |
Libras | língua_brasileira_de_sinais |
Língua portuguesa | língua_portuguesa |
Material didático | material_didático |
Nº | número |
Política Nacional de Educação Especial | pnee |
Público-alvo | público_alvo |
Salas de Recursos | salas_de_recursos |
Sistema de Avaliação da Educação Básica | saeb |
Surdez | surdos |
Tecnologia assistiva | tecnologia_assistiva |
Tradutores-intérpretes | tradutores_intérpretes |
Transtornos Globais do Desenvolvimento | tgd |
Fonte: Elaborado pelos autores com dados da PNEE (2020a).
Antes da junção dos termos, foi realizada uma ampla discussão entre os pesquisadores/autores, todos com experiência na área de Educação Especial, para que o software pudesse filtrar e realizar uma análise consistente com o objetivo da pesquisa. Depois desse processo de tratamento do texto, o arquivo foi salvo em UTF-8 (Unicode Transformation Format 8 bit codeunits) para que a análise pudesse ser realizada. Vale ressaltarmos que o Iramuteq não faz a análise dos dados, cabendo essa tarefa ao pesquisador, sendo o programa responsável por entregar um produto garimpado ou minerado, de modo a favorecer o trabalho do pesquisador.
O software identifica, ainda, a quantidade de palavras, perfazendo cálculos de “[...] frequência média e número de hápax (palavras com frequência um); pesquisa o vocabulário e reduz as palavras com base em suas raízes (lematização); cria dicionário de formas reduzidas, identifica formas ativas e suplementares” (CAMARGO; JUSTO, 2013, p. 515). No Quadro 2, é possível verificar quais foram as palavras usadas na presente análise e a frequência encontrada para cada uma delas.
Quadro 2 Frequência das palavras utilizadas para a análise e a geração dos resultados
vida | 26 | língua | 9 |
aprendizado | 26 | recurso | 8 |
educandos | 24 | modalidade | 8 |
inclusivo | 23 | especializado | 8 |
equitativo | 23 | escolas_regulares_inclusivas | 8 |
surdo | 21 | educacional | 8 |
pnee | 20 | tgd | 7 |
educação | 19 | forma | 7 |
educação_especial | 16 | escolas_bilíngues | 7 |
deficiência | 16 | educar | 7 |
serviço | 14 | classes_bilíngues | 7 |
aee | 14 | planejar | 6 |
ensino | 12 | língua_portuguesa | 6 |
escolar | 10 | implementação | 6 |
desenvolvimento | 10 | escola | 6 |
altas_habilidades_superdotação | 10 | centro | 6 |
língua_brasileira_de_sinais | 9 | apoio | 6 |
Fonte: Elaborado pelos autores com dados da PNEE (2020a).
A fim de obtermos melhor clareza das representações gráficas geradas pelo Iramuteq, decidimos por realizar a análise com todas as palavras com frequência igual ou superior a seis (Quadro 2), pois usar palavras com frequência igual ou inferior a cinco deixaria as figuras poluídas e perderia, assim, a essência visual que o Iramuteq produz em algumas de suas análises. A título de exemplo, foram 226 palavras que apareceram apenas uma única vez no documento.
Na análise, chegamos aos seguintes resultados:
Número de textos = 18 (refere-se aos 18 artigos presentes na PNEE).
Segmentos de textos = 52.
Número de formas distintas = 439.
Número de ocorrências = 2014.
Número de hápax: 226 (palavras que apareceram apenas uma vez).
Assim, o corpus geral da análise foi constituído por 18 textos, separados por 52 segmentos de textos (ST), com aproveitamento de 44 ST (84,62%). Emergiram 2014 ocorrências (palavras, formas ou vocábulos), sendo 439 palavras distintas, e, como já elencado, 226 palavras que apareceram uma única vez.
Com base nesse processamento, procedemos à criação da nuvem de palavras e à análise de similitude a partir do texto da PNEE-2020 tratado pelo Iramuteq. Utilizamos, assim, nesta pesquisa, formas mais visuais para apresentar os resultados e as discussões ao leitor, no que diz respeito ao que trata efetivamente o texto da PNEE-2020. Por fim, ressaltamos que o Iramuteq ainda permite a possibilidade dos seguintes tipos de análises: estatísticas textuais clássicas; pesquisas de especificidades de grupos; classificação hierárquica descendente; análises de similitude e nuvem de palavras, tendo sido usado, nesta pesquisa, uma pequena parte do que o software propicia (KAMI et al., 2016).
Resultados e discussões
Com o corpus limpo e seguindo todas as orientações constantes no manual do Iramuteq, realizamos o comando para “rodar” os dados e, a posteori, analisar os produtos gerados pelo software. Para apresentação dos resultados e das discussões, as palavras-chave da PNEE-2020, processadas pelo Iramuteq, foram escritas em itálico, para uma melhor visualização.
A Figura 1, a seguir, da nuvem de palavras, surgiu após a seleção das palavras ativas que, neste caso, foram as com frequência entre 6 e 26 (Quadro 2), organizadas graficamente em função da frequência; desse modo, as palavras que mais aparecem são as que têm maior tamanho na figura, e as menos frequentes são as de menor tamanho. A nuvem de palavras é considerada uma análise lexical simples, porém muito interessante no tocante aos resultados, já que as palavras-chave do texto da PNEE-2020 ficaram em evidência, mostrando, ao leitor, os focos tratados no texto de uma forma bastante visual e didática.

Fonte: Elaborada pelos autores com dados da PNEE (2020a).
Figura 1 Nuvem de palavras do texto da PNEE
Ao analisar a Figura 1, as palavras com maior evidência são algumas das quais se referem ao próprio nome da política: PNEE, inclusiva, equitativa, aprendizado e vida (BRASIL, 2020a). Nesse sentido, ao reafirmar o compromisso com o título da política, o PNEE esclarece que “[...] é importante o entendimento de que a equidade e a inclusão devem estar tanto nas políticas como nas ações de cada instituição de ensino [...]” (BRASIL, 2020b, p. 102), o que ressaltaria o compromisso de uma PNEE-2020 inclusiva e equitativa a todos, mas que, contraditoriamente, se mostra no decorrer do texto menos “equitativa” do que se anunciava, posto que separaria segmentos do público-alvo, pois estes seriam endereçados a espaços educacionais específicos.
Outras palavras em destaque são as que se referem ao público da PNEE-2020, os educandos, com destaque para os surdos (bem como palavras relacionadas a esse público, em específico: língua, língua portuguesa, Libras, escolas bilíngues e classes bilíngues), que estão em maior evidência [as pessoas surdas] ao longo do texto do que qualquer outra deficiência, TGD e as altas habilidades ou superdotação. O PAEE é definido, na PNEE-2020, como sendo aquele com: deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação; logo, são termos de destaque, pois toda a política gira, ou deveria girar, em torno de todos esses sujeitos de forma equitativa.
Palavras como educação, Educação Especial, escolas regulares inclusivas, AEE, implementação, e outras, têm grande relevância no texto da PNEE-2020, conforme podemos notar na nuvem de palavras (Figura 1). Tais palavras são recorrentes no texto e, às vezes, usadas como sinônimos: “O uso do termo ‘regular’ pode gerar confusão, visto que as escolas especializadas também fazem parte da rede regular de ensino. Ou seja, escolas especializadas não são irregulares e todas as escolas, sejam comuns, sejam especializadas, devem ser inclusivas” (BRASIL, 2020b, p. 19).
Nesse contexto, palavras usadas com significados próximos denotam uma PNEE que deveria contemplar a todos com serviços e recursos adequados às especificidades do seu público. Assim, o documento altera o conceito de AEE, de um serviço de apoio à escolarização na escola comum, para qualquer tipo de escolarização, pois tira o foco do princípio de inclusão escolar garantido até então.
Uma segunda análise (Figura 2) foi feita por meio da análise de similitude (ou semelhança), na qual é possível a identificação das coocorrências existentes entre as palavras e a figura formada, indicando a conexidade entre as palavras e auxiliando, assim, na identificação do conteúdo do corpus analisado, neste caso, a PNEE-2020. Esse tipo de análise baseia-se na teoria dos grafos e produz gráficos da livraria “IGRAPH” do R (MARCHAND; RATINAUD, 2012).

Fonte: Elaborada pelos autores com dados da PNEE (2020a).
Figura 2 Análise de Similitude do texto da PNEE
A Figura 2 está organizada em torno de três grandes eixos principais: 1) O primeiro (indicado com a seta 1) pauta o nome e a perspectiva adotada no documento (PNEE: equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida); 2) o segundo (indicado pela seta 2 no centro) diz respeito aos estudantes com deficiência (exceto surdos), TGD e altas habilidades ou superdotação; e, no outro extremo, 3) o terceiro (indicado pela seta 3) refere-se às pessoas surdas e aos desdobramentos destinados a esse público.
No Eixo 1, temos a concentração de palavras com referência ao nome da PNEE e, ao lado (tangenciando), termos como: implementação, desenvolvimento, escolar e forma, constituindo uma primeira divisão feita pelo software. O capítulo VII da PNEE-2020 versa especificamente sobre a implementação de ações, por meio da elaboração e da definição de objetivos, estratégias, diretrizes, critérios, operacionalização e mensuração da política. Assim sendo, a palavra implementação aparece com destaque no documento com todo um capítulo destinado a ações com essa finalidade. A palavra desenvolvimento tem relação com os sujeitos da política, no sentido do progresso contínuo das potencialidades desse público da PNEE-2020. A palavra escolar está relacionada aos apoios recebidos pelo PAEE, bem como pelos ambientes, enfim, todo o conjunto da escola e sua forma: equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida.
O PNEE (BRASIL, 2020b, p. 41, grifo nosso) enfatiza que “[...] a abordagem educacional inclusiva que subjaz à PNEE-2020 reafirma o direito não apenas de matrícula, mas de permanência e de aprendizagem exitosa para todos os educandos nas escolas regulares, caso seja esta a escolha”. O texto em destaque reafirma a subdivisão feita pelo Iramuteq, pois tais palavras empregadas no documento (BRASIL, 2020b) concentram grande parte da abordagem da PNEE-2020.
Destacamos a expressão “exitosa para todos”, que poderia ser compreendida como uma espécie de propaganda/slogan político (BRASIL, 2020b) e, ao mesmo tempo, como uma meta a ser alcançada, já que aponta, relativamente ao ano de 2019, que apenas 38,7% dos estudantes PAEE receberam AEE e, dos docentes da Educação Básica, que tinham educandos PAEE, apenas 5,8% realizaram algum tipo de formação continuada em Educação Especial (BRASIL, 2020b). Essa expressão parece querer marcar que essa “nova política” avançaria no sentido de conferir aprendizagem de melhor qualidade (“exitosa”) para todos.
No centro da Figura 2 (Eixo 2), é possível identificar os educandos com deficiência, TGD e altas habilidades ou superdotação, os sujeitos “centrais” da PNEE-2020, aos quais estão ligadas palavras como: recursos, serviços, ensino e Educação Especial, tais como o AEE e os centros de atendimentos como um direito ao PAEE. Além disso, a PNEE-2020 considera a Educação Especial como “[...] um direito de todos que demandam seus recursos e serviços, e os educandos devem ser atendidos de maneira equitativa” (BRASIL, 2020b, p. 41).
No outro extremo, temos os educandos surdos e a valoração da Libras (Eixo 3), como língua de instrução e primeira língua, das escolas e das classes bilíngues, e a língua portuguesa na modalidade escrita como segunda língua. As escolas regulares inclusivas também se constituem como uma opção na PNEE-2020 e contemplam, assim, além dos surdos, todo o PAEE. A PNEE-2020 indica que escolas bilíngues e escolas especializadas fariam parte de um rol de escolas inclusivas, como citado anteriormente e, por essa razão, os termos estão próximos um dos outros e no campo da surdez, indicando que “[...] um sistema educacional inclusivo é aquele que oportuniza o acesso, a permanência e o êxito na aprendizagem de todas as pessoas, sem exclusão” (BRASIL, 2020b, p. 48).
Assim, as pessoas surdas parecem compor um grupo separado dos estudantes PAEE e, aparentemente, a PNEE-2020 configurar-se-ia como duas políticas em uma, com ações diferenciadas para dois grupos distintos.
Considerações finais
O presente artigo buscou propiciar o entendimento do histórico da PNEE-2020, desde a sua elaboração, o processo de consulta, a publicação, a ação de inconstitucionalidade e a revogação. Procuramos tecer uma análise pormenorizada, com destaque para detalhes que, por vezes, sem o tratamento da informação como o realizado, não estariam acessíveis.
O teor do Decreto Nº 10.502/2020 fica evidenciado quando foi usada a análise de similitude, pois houve uma divisão: a) pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e superdotação/altas habilidades, de um lado; e b) pessoas surdas do outro. Identificamos ainda que a PNEE-2020, apesar de dar destaque à educação bilíngue de surdos e concentrar várias partes do texto para esse fim, pouco propõe de efetivamente novo, se considerarmos o texto do Decreto Nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005 (BRASIL, 2005), vigente, que trata dessa matéria de forma pormenorizada e indica responsabilidades e destinação de recursos, bem como do Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014 – Lei Nº 13.005, de 25 de junho de 2014, mais especificamente na meta 4.7 (BRASIL, 2014), o que não gerou inovações às pessoas surdas, mas vem reafirmar o que já estava sendo preconizado anteriormente.
A PNEE-2020 parece ter sido elaborada para garantir o direito à escolaridade ao longo da vida; todavia, essa escolaridade foi ampliada no sentido de poder ser realizada em espaço exclusivo, retrocedendo a perspectiva internacional de atendimento escolar ao PAEE na escola de todos (princípio da educação inclusiva que foi desprestigiado). Da forma como está redigida, favorece o não atendimento desse público na escola comum, o seu isolamento em escolas especiais e não garante que o Estado se responsabilize por esses estudantes, já que o espaço para a iniciativa privada/filantrópica, nesse campo, fica preservado, podendo até ser ampliado em função da disputa pelo financiamento público.
Ao mesmo tempo, como justificativa para o afastamento do princípio da inclusão, assegura aos surdos o direito à escola bilíngue – na qual a língua de instrução é a Libras (reinvindicação antiga da comunidade surda), sem garantir apoio do Estado para isso. Os entes federados poderão realizar as ações, mas o Governo Federal não assume no documento como será feita a destinação dos recursos. Em contexto de restrição de recursos e orçamentos, cabe questionarmos: A quem caberá financiar a construção de escolas bilíngues e formar os profissionais?
A questão da educação bilíngue de surdos, que precisaria ser tratada de forma plural, contemplada antes de tudo por políticas linguísticas nacionais, torna-se a justificativa para pôr abaixo um projeto de educação inclusiva mais amplo para todo o PAEE, que vem sendo implementado no país desde meados dos anos 2000 (KASSAR, 2011; MENDES, 2019; PRIETO, 2010). Muito precisa ser feito e melhorado, mas muito se aprendeu nas escolas inclusivas sobre esse público, e, nunca antes tantos estudantes PAEE frequentaram a Educação Básica em seus níveis mais altos e chegaram à Educação Superior. Portanto, ainda que a PNEEPEI mereça ser revista, a solução definitivamente não passa pela perspectiva de abandonar o princípio da inclusão, instituído por meio de Emenda Constitucional no Brasil.
A tentativa de usar as necessidades educacionais específicas do alunado surdo, para justificar uma mudança nos princípios da Educação Especial brasileira, fica evidenciada na forma de condução do cerimonial de lançamento da PNEE-2020. Por essas razões, o texto da política tem problemas de coerência interna. O próprio PAEE (assim definido na política) sofre tratamento diferenciado, culmina em eixos e proposições desarticuladas que, ao analisar a similitude e a conectividade entre as palavras, geradas pelo Iramuteq, fica revelado.
O uso do Iramuteq na avaliação da PNEE-2020 permitiu um olhar atento e cuidadoso ao material, o que qualificou o processo de categorização e potencializou os resultados da pesquisa qualitativa. Desse modo, foi possível compreender do que trata a política, de uma forma visual e didática. A análise de similitude apontou resultados interessantes, sobretudo em relação à divisão e à separação dos surdos dos demais educandos PAEE, apontando uma política fragmentada e que vem reafirmar o que já estava proposto às pessoas surdas em legislações anteriores.
Os impactos da PNEE-2020 seriam ainda mais fortemente sentidos quando da elaboração das diretrizes da Educação Especial pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), que, conforme o documento proposto (BRASIL, 2020b), avançaria na criação de: classes e escolas especializadas; educação bilíngue para pessoas surdas, com deficiência auditiva e surdocegueira; avaliação da deficiência de forma biopsicossocial; ênfase na família no processo de escolha educacional; e aumento do número de centros especializados.
Há uma série de controvérsias no Decreto Nº 10.502/2020, desde o incentivo para mais participação da família, mas que esbarra na “incapacidade” do estudante em se beneficiar ou não da escola regular inclusiva e na participação de uma equipe multiprofissional em tal decisão. Assim sendo, de fato, a família teria opções para escolher? Ademais, como as famílias terão assegurado o direito de escolher qual é a melhor escola para seus filhos, em um país em que, na maioria dos municípios, não há opções para escolhas? As famílias, por vezes, têm de escolher a opção menos ruim e, assim, irão defrontar-se com orientações de que a escola comum não está preparada para seus filhos.
O Decreto Nº 10.502/2020 também contraria a estratégia 4.8 do PNE, a qual enfatiza o direito à oferta da educação inclusiva e veda “[...] a exclusão do ensino regular sob alegação de deficiência e promov[e] a articulação pedagógica entre o ensino regular e o atendimento educacional especializado” (BRASIL, 2014, p. 3). Além disso, contraria tratados internacionais, legislações e outros documentos, pois incentiva a manutenção de um sistema de educação alternativo e paralelo às pessoas com deficiência, a terceirização e a privatização da Educação Especial.
O Decreto Nº 10.502/2020 ainda vem alterar, ou melhor, contrariar a Constituição Federal, em seu Art. 205, que reafirma a educação como direito de todos e dever do Estado e da família, objetivando o pleno desenvolvimento da pessoa (BRASIL, 1988). Não há menção, no Art. 205, à separação dos sujeitos com deficiência ou à criação de um sistema educacional diferenciado para eles. Outrossim, o Decreto Nº 10.502/2020 provocou a divisão dos movimentos sociais históricos que lutam pelos direitos dos estudantes PAEE, confrontando a comunidade surda, os movimentos dos familiares, os setores públicos e privados da Educação e Educação Especial
Esta pesquisa não se encerra aqui, mesmo porque o destino do Decreto Nº 10.502/2020 e a política que ele tentou instituir ainda é indefinido. Entretanto, a análise abre novos caminhos no uso de softwares de análises textuais para o campo da Educação Especial, e deixa registrada a importância da consulta na construção de políticas públicas e a devida observância dos princípios inclusivos adotados pelo Brasil, sobre a convenção das pessoas com deficiência. Isso nos torna uma nação que deve zelar ainda mais pelo direito das pessoas com deficiência a uma educação que seja contemplativa das suas diferenças e nos mesmos espaços que todas as demais.