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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.16  Ponta Grossa  2021  Epub 20-Out-2021

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.15294.033 

Dossiê: Paulo Freire (1921-2021): 100 anos de história e esperança

As contribuições do pensamento de Paulo Freire para os estudos sobre as masculinidades

The contributions of Paulo Freire’s thinking to studies on masculinities

Las contribuciones del pensamiento de Paulo Freire a los estudios sobre las masculinidades

Alexandre Rodrigo Nishiwaki da Silva* 
http://orcid.org/0000-0003-4431-0062

*Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professor Adjunto do Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas (DTPP) e do Programa de Pós-Graduação Profissional em Educação (PPGPE) da UFSCar. Pesquisador do Núcleo de Investigação e Ação Social e Educativa (NIASE/UFSCar). E-mail: <alexandrerns@ufscar.br>.


Resumo:

Este artigo apresenta os resultados de pesquisa bibliográfica sobre as contribuições do pensamento de Paulo Freire para os estudos sobre as masculinidades realizados no âmbito de Doutorado em Educação. Nessa direção, apresenta-se, inicialmente, o contexto de vida e os principais conceitos da obra freireana relacionados diretamente ao objetivo deste trabalho, tais como liberdade, diálogo e conscientização. Em seguida, articulam-se as discussões filosófico-educacionais do autor com os estudos sobre as masculinidades, de modo a explicitar suas relações e seus distanciamentos. Por fim, reflete-se sobre como o pensamento de Paulo Freire ajuda a construir práticas sociais transformadoras que favorecem e promovem a masculinidade dialógica.

Palavras-chave: Paulo Freire; Relações de Gênero; Masculinidades

Abstract:

This paper presents the results of a bibliographical research about the contributions of Paulo Freire’s thinking to studies on masculinities carried out within the scope of Doctorate in Education. In this direction, we initially present the context of life and the main concepts of Freire’s work directly related to the objective of this paper, such as freedom, dialogue and conscientization. Then, we articulate the author’s philosophical-educational discussions with studies on masculinities, explaining their relationships and divergence. Finally, we ponder on how Paulo Freire’s thinking helps us to build transformative social practices that favor and promote dialogical masculinity.

Keywords: Paulo Freire; Gender Relationships; Masculinities

Resumen:

Este artículo presenta los resultados de la investigación bibliográfica sobre las contribuciones del pensamiento de Paulo Freire a los estudios sobre masculinidades realizados en el ámbito del Doctorado en Educación. En este sentido, se presenta, inicialmente, el contexto de la vida y los conceptos principales de la obra de Freire directamente relacionados con el objetivo de este trabajo, tales como la libertad, el diálogo y la concientización. En seguida, se articulan las discusiones filosófico-educativas del autor con estudios sobre las masculinidades, de modo a explicar sus relaciones y sus distanciamientos. Por fin, se reflexiona sobre cómo el pensamiento de Paulo Freire ayuda a construir prácticas sociales transformadoras que favorecen y promueven la masculinidad dialógica.

Palabras clave: Paulo Freire; Relaciones de Género; Masculinidades

Introdução

Neste trabalho, analisamos as contribuições do pensamento de Paulo Freire para os estudos sobre masculinidades. Embora suas ideias sejam inicialmente identificadas como fundamentais para compreendermos a educação em contextos de desigualdades, elas não se resumem a isso, e o aparato teórico construído pelo proeminente educador brasileiro em sua vasta obra nos aponta elementos para entendermos diferentes aspectos contemporâneos e a formulação de práticas transformadoras em diversas esferas. Reconhecemos a complexidade e a amplitude de suas reflexões amparadas em uma concepção progressista de sujeito, de educação e de sociedade. A partir de pesquisa bibliográfica, realizada no âmbito do Doutorado em Educação1, o presente artigo problematiza o conceito de masculinidade e, baseado em Paulo Freire, anuncia perspectivas superadoras da violência de gênero em um contexto fortemente marcado pela retomada de valores conservadores.

O estudo da masculinidade, objeto de análise teórica e conceitual, apresenta-se como um aspecto inovador, pois a problematização do conceito e suas implicações sócio-históricas encontram-se ainda dispersas no interior dos estudos de gênero, como podemos perceber em levantamento realizado nas bases de dados Education Resources Information Center (ERIC)2 e Scientific Electronic Library Online (SciELO)3. Na primeira plataforma, encontramos sob o descritor “gênero” (“gender”) 24.817 trabalhos desde 2011, o que revela que a pesquisa acadêmica sobre as relações de gênero tem uma produção bastante abrangente. No entanto, quando utilizamos o descritor “masculinidade” (“masculinity”), temos como resultado apenas 716 artigos no mesmo período, representando 2,88% do total; no entanto, nenhum deles utiliza Paulo Freire como referencial. Já na plataforma brasileira, com o descritor “gênero”, encontramos 12.217 artigos e com o descritor “masculinidades” localizamos 149 trabalhos, o que corresponde a 1,2% do total e, novamente, nenhum deles apresenta o pensador brasileiro entre suas referências.

O pesquisador francês Welzer-Lang apontava, já em 2008, que a dispersão dos estudos sobre a masculinidade podem ser compreendidos por dois fatores complementares: de um lado, o fato de que os movimentos intelectuais de mulheres estão comprometidos com a própria autonomia; de outro, o desinteresse dos homens em desvendar as artimanhas da sua dominância, ou ainda, “[...] a vontade dos homens dominantes de não divulgar seus segredos”4 (WELZER-LANG, 2008, p. 8, tradução nossa).

Segundo análise de Giffin (2005), a ideia da existência de um arquétipo da masculinidade patriarcal afastou os intelectuais homens dos estudos de gênero ao mesmo tempo em que o feminismo os expeliu de seu círculo. Para a autora, a inserção dos homens nesta seara e, sobretudo, nos estudos feministas, gerou grande polêmica; as mulheres os consideravam beneficiários do sistema social e, por isso, deveriam ser afastados da discussão que pretendia dá-las visibilidade.

Os trabalhos sobre masculinidade, antes residuais, ganham relativo destaque nos anos finais do século XX, especialmente nos países anglo-saxões. Giffin (2005) aponta que existe um sentimento de culpa e de arrependimento que atravessa o conceito de masculinidade, no qual ao homem é imposta, exclusivamente, a condição de opressor nas relações de gênero e poder. Os participantes desses primeiros estudos sobre os homens, tanto gays quanto heterossexuais, enfatizaram a modificação dos padrões masculinos e a dificuldade de compreender a relação entre a opressão de nível individual e as grandes estruturas sociais, políticas, econômicas e ideológicas, uma vez que “[...] os homens são marcados e brutalizados pelo mesmo sistema que os dá seus privilégios e poder” (GIFFIN, 2005, p. 49).

Assim, partir das discussões realizadas nos anos de 1980, o paradigma dos estudos sociais sobre os homens passa a compreender a importância das estruturas culturais e econômicas, o significado político e ideológico das diferentes masculinidades e a contradição inerente à dinâmica das relações de gênero. Para nós, os estudos sobre as masculinidades dialogam com os próprios limites da Modernidade, marco histórico-temporal deste artigo, e provocam nos sujeitos a racionalidade, de forma a possibilitar transformações nas relações de opressão. A Modernidade está em disputa e é nesse lugar que se encontram as reflexões aqui apresentadas, na busca pela ampliação da compreensão do conceito de masculinidade, na sua relação com a educação e no anúncio de formas mais igualitárias de sermos homens por meio das contribuições de Paulo Freire.

Concordamos com Habermas (1990) quando afirma que a modernidade tardia, caracterizada pelo confronto entre o novo e o antigo, cria uma concepção histórica da vida. Consideramos a modernidade um projeto inacabado, processual, complexo e possível de ser transformado. Em um contexto de guerras religiosas, crises migratórias, desigualdades latentes, ascensão de movimentos neoconservadores e do discurso do ódio, é preciso lutar, como nos lembra Habermas (1987), para construirmos uma formação discursiva da opinião e da vontade, de modo a assumir a racionalidade como força da modernidade reflexiva e estabelecer consensos humanizadores.

Os resultados que aqui apresentamos foram obtidos a partir de pesquisa bibliográfica já finalizada. A metodologia adotada, antes de procedimento rígido de análise e de interpretação, é um conjunto vivo de escolhas, percursos e desdobramentos teóricos; revela a forma como olhamos para a realidade e os anseios que temos ao olhar as coisas do mundo. Nossa escolha metodológica toma como princípio a transformação das relações sociais e a necessidade da construção de masculinidades igualitárias que superem a violência de gênero. Nessa direção, não nos esquivamos de declarar os pressupostos teóricos freireanos que nos balizam.

O resgate do pensamento pedagógico de Freire parece-nos fundamental para explicitar paradigmas educacionais e suas contribuições para o objetivo deste estudo. A reconstrução desse caminho não se dará como mera reprodução das ideias lançadas pelo autor analisado, mas está no bojo da crítica. Esforçamo-nos na construção de reflexões éticas e cientificamente coerentes, comprometidas com a justiça social e com valores como a amizade e o amor radical (GÓMEZ, 2004). Essa perspectiva, reunida na Metodologia Comunicativa Crítica (MCC) (GÓMEZ; PUIGVERT; FLECHA, 2011), é, por definição, dialógica.

Para Gómez Puigvert e Flecha, (2011), a MCC almeja não apenas explicar e entender as situações sociais, mas dirigir sonhos e utopias para transformar a sociedade. Nas palavras dos autores e da autora, “[...] a MCC é orientada para a construção de uma ciência social da possibilidade. Pesquisadores/as que utilizam esta metodologia buscam identificar os elementos que reproduzem desigualdades e os elementos que as transformam”5 (GÓMEZ; PUIGVERT; FLECHA, 2011, p. 241, tradução nossa).

A definição dos procedimentos metodológicos de um estudo precisa ser acompanhada de critérios e procedimentos que, aliados à concepção crítica, permitam que o/a pesquisador/a apresente suas reflexões a partir de um caminho claro e conciso. Como principal procedimento da pesquisa bibliográfica, a leitura, como afirmam Lima e Mioto (2007), é instrumento de aproximação e análise. Seguindo as definições das autoras, esta investigação teve como primeiro passo a escolha da temática, formulação/explicitação do problema e elaboração do plano de desenvolvimento da pesquisa registrados no Projeto de Pesquisa. Em seguida, buscamos a Investigação de soluções por meio da coleta da documentação e do material, organização dos dados e das informações presentes na bibliografia, tendo em vista a questão de pesquisa e as hipóteses.

A partir do levantamento, elaboramos a Análise explicativa das soluções por meio do exercício crítico de avaliar a pertinência do material para explicitar os objetivos da pesquisa. Por fim, realizamos a Síntese Integradora, a qual constitui o produto do processo de investigação resultante da análise, compreende a apreensão do problema, da investigação e das possíveis soluções. Tomamos, ainda, como premissa para a elaboração desta pesquisa, a historicidade dos objetos de análise, ou seja, a carga histórica que acompanha inevitavelmente os conceitos pesquisados. Neste trabalho, optamos por discutir inicialmente o contexto de vida do educador a partir de suas obras como fonte primária, uma vez que ele, em diversos momentos, relatou a importância de cada momento de sua vida para as elaborações teóricas que formulou.

A partir do contexto de vida, e articulado a ele, analisamos sinteticamente suas principais contribuições para o campo da educação e os conceitos que nos auxiliam na construção de um escopo teórico para a discussão sobre masculinidades. Por fim, amparados no pensamento pedagógico-político de Paulo Freire, estabelecemos algumas possibilidades para pensarmos as masculinidades a partir desse referencial, de forma a construir o que temos denominado de “masculinidade dialógica”.

Paulo Freire, contexto de vida e pensamento político-pedagógico

Paulo Freire (1921-1997) nasceu em Recife, Pernambuco, Nordeste brasileiro, de família de classe popular, pela qual em diversas oportunidades explicitou grande afeto. Foi no interior do ambiente familiar que se alfabetizou, na imortalizada “sombra da mangueira”, com a ajuda de sua mãe, com gravetos caídos e tendo o chão de terra do quintal como primeiro caderno.

Da infância em Jaboatão dos Guararapes à escolaridade tardia no Colégio Osvaldo Cruz (COC), o educador sempre demonstrou apreço pela docência. Em 1952, após lecionar no próprio COC e dirigir o Setor de Cultura e Educação do Serviço Social da Indústria (SESI), foi nomeado professor interino de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas Artes de Recife. Para Ana Maria de Araújo Freire, foi nessa instituição que Paulo Freire aprofundou sua leitura crítica do mundo. Lá a

[…] troca entre as experiências marcadamente teóricas com a outra mais empírica e prática levou Paulo ao desafio de encontrar inéditos viáveis, soluções transgressoras de acompanhamento da repetição milenar do já feito e do já dito, e acreditando nos sonhos, lutar por um projeto de um mundo através da educação para a libertação. (FREIRE, 2006, p. 93).

A primeira metade da década de 1960 foi marcada pelo crescimento da participação popular alavancado pelos governos populistas e os movimentos sociais que se espalhavam em iniciativas que iam da reforma agrária ao direito à educação. Freire foi entusiasta desses processos e colaborou ativamente com eles. Nesse período, a experiência mais marcante, certamente, foi a de Angicos, município do interior do Rio Grande do Norte, devastado pela seca e pela pobreza extrema, no qual o autor colocou em ação uma prática de alfabetização engajada, transformadora e politicamente comprometida.

A vida de Paulo Freire foi atravessada por rupturas, amorosidade e luta, entre o Nordeste brasileiro e a infância pobre, o exílio e os contextos de empréstimo, a África e as africanidades, a universidade e o partido político. Do primeiro livro, Educação e atualidade brasileira, ao último publicado em vida, Pedagogia da autonomia, os conceitos freireanos foram ganhando reflexibilidade e profundidade epistemológica, acompanhando o desenvolvimento histórico e social, revelando sua disponibilidade para o diálogo e a construção coletiva do conhecimento.

Em Educação e atualidade brasileira (FREIRE, 2002), publicado originalmente em 1959, o educador discutiu, por um lado, um Brasil desigual, cheio de contradições e conflitos, e um Nordeste empobrecido. Por outro lado, o intelectual já demonstrava o otimismo crítico de suas reflexões, organicamente democráticas e transformadoras, impondo um novo paradigma para a teoria e a prática educacional. Desde a primeira obra, Freire apresenta o engajamento político como ponto fundante da libertação das consciências colonizadas e a necessidade da luta diante de uma sociedade de antagonismos: “O problema educacional brasileiro, de importância incontestavelmente grande, é desses que precisam ser vistos organicamente. Precisam ser vistos do ponto de vista de nossa atualidade. No jogo de suas forças, algumas ou muitas dentro delas, e antinomia umas com as outras” (FREIRE, 2002, p. 9-10).

As bases do pensamento freireano são representadas, desde o início, por três elementos: o diálogo, a participação e a relevância da cultura. Esses princípios opõem-se radicalmente ao centralismo, ao antidiálogo, ao autoritarismo e ao assistencialismo; frutos da inexperiência democrática da sociedade brasileira e do interesse das classes dominantes, tão presentes na década de 1950, que perduram e se reafirmam na atualidade em estruturas sociais e valores conservadores.

A contradição existente entre o diálogo e o antidiálogo pode ser considerada como ponto nevrálgico na obra do autor. Em linhas gerais, o diálogo deve ser o balizador de uma educação que se pretende libertadora, enquanto o antidiálogo transforma as relações humanas em práticas autoritárias e aprisionadoras. Assim, no encontro com a própria ontologia, o ser humano é apresentado como “[...] ser de relações e não de só contatos, não apenas está no mundo, mas com o mundo. Estar com o mundo resulta de sua abertura à realidade […]. Ligação que, pela própria essência, jamais será de dominação ou de domesticação, mas sempre de libertação” (FREIRE, 2003b, p. 47-49).

A educação assume nesse pensamento uma característica transformadora em uma sociedade marcada pelo conflito; uma educação democrática e comprometida com a superação de aparatos autoritários e sistemas repressivos de manutenção do poder. A possibilidade histórica que a escola e a educação representam exige dos professores e das professoras compromisso político de luta contra a opressão e instrumentos da ação cultural libertadora (FREIRE, 2003a, 2003b).

O ideal transformador explicita sua intencionalidade com a formação crítica, de forma a reconhecer educadores/as enquanto agentes da transformação que compartilham amorosamente com os/as educandos/as a busca por “ser mais” (FREIRE, 2008). Essa proposta pedagógica refere-se à necessidade de construir uma prática voltada à inclusão dos homens e das mulheres na História como sujeitos transformadores e não como objetos de um contexto em que prevalecem as consciências oprimidas, acríticas e desumanizadoras.

O diálogo surge como um elemento novo e potencializador, e os processos de ensino e de aprendizagem ganham uma conceitualização libertadora. Para Freire (1983), é fundamental na prática educativa uma perspectiva problematizadora na qual educador/a e educando/a aprendem mutuamente, compartilhando saberes cada vez mais elaborados. Em direção oposta, uma educação bancária, portanto, não libertadora, aplica o antidiálogo ou a extensão do conhecimento aos/às ignorantes, aos/às que não sabem, resultando na invasão cultural. Segundo o autor:

Toda invasão sugere, obviamente, um sujeito que invade. Seu espaço histórico-cultural, que lhe dá sua visão de mundo, é o espaço de onde ele parte para penetrar outro espaço histórico-cultural, superpondo aos indivíduos deste seu sistema de valores. O invasor reduz os homens do espaço invadido a meros objetivos de sua ação. (FREIRE, 1983, p. 26).

Dessa forma, a proposta pedagógica freireana é aquela na qual homens e mulheres se empenham na luta pela própria liberdade e pela liberdade dos/as outros/as e reconhecem criticamente a própria condição, necessidade sine qua non para sua libertação consciente. A pedagogia do/a oprimido/a, humanista e libertadora, é a associação orgânica entre o desvelamento crítico do mundo e sua transformação.

Paulo Freire estabelece uma relação intrínseca entre educação e política. A prática pedagógica junto aos oprimidos e às oprimidas é compreendida como uma ação cultural para a liberdade, por isso não pode se dar fora do campo político. Se escolhermos a educação como ferramenta de libertação, não existe outra possibilidade a não ser estabelecer relações democráticas entre educandos/as e educadores/as e, consequentemente, uma postura combativa diante da desigualdade. Nessa direção, educadores e educadoras não são os/as detentores/as do poder e do autoritarismo, muito menos os educandos e as educandas são vazios/as e receptores/as de saber, “[...] ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os argumentos de autoridade já não valem. Em que, para ser-se, funcionalmente autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas” (FREIRE, 2008, p. 68).

Construir práticas democráticas, na escola e fora dela, é um dos objetivos centrais e permeiam toda sua formulação teórica. A democracia é espaço de debate, de luta, de conflito, e só pode ser alcançada se compreendemos nossa função histórica, pois, ao denunciarmos a opressão, somos capazes de anunciar um mundo possível, resistindo às ideologias conservadoras e às práticas pedagógicas excludentes.

A partir das ideias apresentadas até este ponto, podemos afirmar que o pensamento freireano é marcado por uma profunda compreensão histórica. Para ele, não existe ação social fora da reflexão sobre as condições sociais e temporais, e a educação dá-se criticamente no espaço-tempo. Assim, a prática pedagógica é compreendida como um ato de conhecimento por meio da aproximação crítica da realidade que gera ações transformadoras, ou, ainda, dá-se na ação-reflexão-ação, por isso praxiológica. De acordo com Freire:

Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens. Por isso mesmo, a conscientização é um compromisso histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem sua existência com um material que a vida lhes oferece. (FREIRE, 1979, p. 35).

Paulo Freire coloca-se na dianteira do pensamento pedagógico para alcançar o fim último da educação: a transformação radical da estrutura social e das relações de poder. Não por acaso, o educador pernambucano tem sua trajetória marcada pelo profundo envolvimento com diferentes movimentos sociais progressistas, na educação popular, nas lutas sociais pela democracia e pela liberdade.

A defesa do educador pela radicalidade das transformações sociais revela-se na explicitação das diferenças de classes e das relações econômicas, mas não ignora a capacidade crítica que tem o sujeito de, em comunhão, conscientizar-se e lutar. Aqui merece destaque a solidariedade como um paradigma necessário se o desejo é estar no mundo com os/as outros/as democraticamente. Para estar no mundo com os/as outros/as é fundamental que uma postura curiosa e crítica seja ferramenta do pensamento consciente, a partir da empatia e da compreensão do outro enquanto sujeito legítimo.

Este importante pensador brasileiro colocava-se claramente no campo da libertação das classes populares, defendia que as pessoas resgatassem a voz que lhes foi roubada, participava das questões políticas e sociais do país. Por isso, sonhava com a superação dos horrores a que os sujeitos foram sendo levados, à fome, à miséria, à violência; ele defendia incessantemente a “[...] mobilização popular, organização política e liderança lúcida, democrática, esperançosa, coerente e tolerante” (FREIRE, 2005, p. 36).

Freire construiu teoria pedagógica alinhada com a democracia, com a liberdade, com a autonomia e com a transformação. A educação freireana está organicamente atrelada à ação política. Nessa direção, a prática educativa faz-se na reflexão, na escolha e na luta pela cidadania negada. Para o educador, como especificidade humana, a educação é inerente ao movimento histórico, explicita controvérsias e contribui para a construção crítica dos conhecimentos, politizando o saber. Assim, o conhecimento vai se constituindo em ferramenta pedagógica ao mesmo tempo em que se desvela em ato político.

A teoria formulada por Paulo Freire marca a História da Educação, sua concepção ontológica centrada no diálogo, a participação ativa dos/as oprimidos/as no processo educativo, a busca por relações democráticas, pela superação das desigualdades sociais, pela solidariedade, são características de um pensamento comprometido com os/as mais pobres. Sua proposta educativa, carregada de esperança, lança no campo da educação as preocupações do Sul, como ele mesmo gostava de dizer. É uma pedagogia nordestina, latino-americana, amorosa e transformadora e, também, uma pedagogia profundamente humanista, universalista e histórica.

Paulo Freire deixou um imenso legado: a educação como ação política baseada no diálogo; suas ideias explicitam um modelo solidário, de gente que pode e tem o direito de “ser mais”. A amplitude de suas ideias permite-nos múltiplas possibilidades de análise no campo da Educação e das Ciências Humanas. É sob a influência de seu pensamento filosófico-educacional que passaremos a analisar suas contribuições para os estudos sobre as masculinidades.

Paulo Freire e as possibilidades de uma masculinidade dialógica

As obras de Paulo Freire apresentam uma ampla gama de conceitos que, articulados, formam uma complexa teoria; suas reflexões constroem um aparato epistemológico que nos ajuda a compreender diversas questões da formação humana e da educação. A possibilidade da transformação social e a crença nas pessoas na qualidade de seres de reflexão e ação por meio do diálogo animam sua obra e são o motor de seu pensamento. Assim, como afirma Sousa (2021), o pensamento freireano

[...] alude ao posicionamento político de educadoras e educadores diante das inúmeras injustiças sociais (de classe, de gênero, de orientação sexual, étnico-raciais, geracional, etc.), levando ao engajamento no compromisso autêntico e solidário de lutar com educandas e educandos em direção à humanização e à superação das opressões e das injustiças identificadas. (SOUSA, 2021, p. 4).

Para Freire (2008), os processos sociais e educativos são capazes de transformar as consciências ingênuas em consciências críticas. Essa passagem de uma para a outra revela sua fé inabalável na humanidade. A primeira consciência, relacionada à concretude, aos objetos, às coisas, desenvolve-se fora da história, destituindo os sujeitos da subjetividade e da ação; já a segunda é caracterizada pela capacidade de desprender-se criticamente das coisas por meio da reflexão, pela aquisição da liberdade e, consequentemente, se assumindo enquanto agente histórico.

A confiança na transformação das pessoas e do mundo reveste o pensamento freireano de esperança, não uma esperança passiva de quem aguarda por um mundo melhor, mas uma esperança militante, viva, de quem constrói um mundo possível, mais humano, justo e igualitário. A esperança, do verbo esperançar, em um povo que, a partir da compreensão crítica da realidade, age para transformá-la.

Ao longo de suas reflexões, o autor vincula solidamente a consciência crítica à construção da democracia. A importância da democratização das relações sociais e, por extensão, da formação de personalidades democráticas atravessam suas obras, e o diálogo desponta como componente central na educação para a democracia. Para Cambi (1999), importante historiador italiano da educação, a pedagogia de Freire é resultado da consciência política, colocada ao lado dos/as pobres, por meio do desenvolvimento de processos de ensino e de aprendizagem que vão muito além da simples decodificação das letras. O processo educativo defendido pelo educador pernambucano é o da capacidade humana de tomar a palavra, de interpretar o mundo, do modo de colocar-se na História.

Freire defendeu a educação emancipadora das classes populares para levá-las a participar da vida coletiva. Está presente em sua obra um forte apelo político, radical e democraticamente orientado, destinado a mudar a sociedade por meio da denúncia das mazelas sociais e do anúncio de possibilidades transformadoras de uma pedagogia dos sonhos possíveis.

No que se refere ao objeto deste trabalho, Paulo Freire discute diretamente as relações de gênero em alguns momentos de sus trajetória intelectual. Essa preocupação é resultado de suas reflexões sobre a construção de uma sociedade menos opressora e mais igualitária em todas as dimensões. É nessa direção que o autor se refere à linguagem como reveladora do machismo. Após ser interpelado por feministas norte-americanas, Freire (2003a) reconheceu que:

Mudar a linguagem faz parte do processo de mudar o mundo. A relação entre a linguagem-pensamento-mundo é uma relação dialética, processual, contraditória. É claro que a superação do discurso machista, como a superação de qualquer outro discurso autoritário, exige ou coloca a necessidade de, concomitantemente como o novo discurso, democrático, anti-discriminatória, nos engajarmos em práticas também democráticas. (FREIRE, 2003a, p. 68).

Para Freire (2003a), a linguagem não é um problema menor, pelo contrário, é elemento fundamental ao desejar-se a mudança do mundo no sentido de fazê-lo menos perverso. O educador compreende que o discurso revela a discriminação das mulheres e reproduz práticas conservadoras incompatíveis com qualquer posição progressista.

A recusa à ideologia machista, que implica necessariamente a recriação da linguagem, faz parte do sonho possível em favor da mudança do mundo. Por isso mesmo, ao escrever ou falar uma linguagem não mais colonial eu o faço não para agradar as mulheres ou desagradar os homens, mas para ser coerente com minha opção por aquele mundo menos malvado de que falei antes. (FREIRE, 2003a, p. 68).

Não se trata, porém, de idealmente acreditar que a mudança da linguagem resulta naturalmente na mudança do mundo, a linguagem inclusiva é apenas uma das etapas para construirmos relações mais igualitárias e democráticas. Dessa maneira, não é possível conciliar uma linguagem machista com comportamentos progressistas, muito menos comportamentos dialógicos com uma linguagem autoritária.

Viezzer (2006) relata uma experiência com o educador brasileiro bastante interessante. Durante um encontro com educadores e educadoras, a autora questionou Freire sobre as relações de gênero e a superação das desigualdades. Ela teve a seguinte resposta:

Eu jamais teria escrito Pedagogia do Oprimido se, ao mesmo tempo, eu me permitisse oprimir as minhas filhas, minha esposa e as mulheres com quem trabalho. As mulheres estão corretas ao organizarem-se e decidir o que deve ser transformado em relação às opressões que hoje sofrem. E nós, educadores, precisamos entendê-las, ouvi-las e acompanhar as mudanças que ocorrem graças às suas iniciativas6. (VIEZZER, 2006, n.p., tradução nossa).

Podemos afirmar que, para Paulo Freire, não é possível pensar uma educação libertadora com e para as classes populares sem discutir a dimensão de gênero, de raça, de regionalismo, de religião e de idade. No que tange especificamente às relações de gênero, a educação deve debruçar-se sobre as variadas contradições existentes na sociedade, que extrapolam as classes sociais. Esse ponto de vista se aproxima das contribuições de Scott (1995) quando afirma que, para a compreensão das questões sociais, é preciso desvelar os “nós”, em outras palavras, realizar uma aproximação epistemológica da sociedade a partir de diferentes categorias analíticas, com destaque para gênero, classe, raça.

Em nossa leitura, a concepção de aprendizagem freireana aponta para a direção das relações de gênero baseadas no diálogo, conflituoso e solidário, entre diferentes saberes que são validados pelo coletivo. Freire (2001), em conversa com o Professor Donaldo Macedo, reconhece a legitimidade das críticas a ele feitas pelas feministas e admite que a opressão de gênero foi tardiamente incluída em sua obra. Ao retomar sua história de vida, o educador ressaltou que a brutalidade com que os homens tratam as mulheres estava naturalizada, saltando aos seus olhos inicialmente as relações de classe e raça. No entanto, o educador percebeu a necessidade de “[...] uma posição muito crítica contra todas as formas de discriminação e expressões de opressão, incluindo a posição opressiva que as mulheres brasileiras, especialmente as mulheres negras, estão submetidas” (FREIRE, 2001, p. 260).

Segundo Freire (2001), a prática pedagógica libertária depende do entendimento da opressão e, ao mesmo tempo, do confronto dos homens com sua posição opressiva. Aqui o educador explicita os elementos básicos de sua compreensão sobre as relações de gênero: “[...] acredito que não é suficiente para as mulheres libertarem-se da opressão dos homens, que são, por sua vez, oprimidos pela sociedade como um todo, mas que juntos movam-se simultaneamente para cortar as correntes da opressão” (FREIRE, 2001, p. 265).

O pensador brasileiro afirma que mulheres e homens precisam se engajar na luta contra a opressão feminina e assumir suas diferentes posições para que, juntos/as, desenvolvam estratégias efetivas de superação. É preciso, segundo o autor, que homens, mesmo os oprimidos socialmente por diferentes motivos, se reconheçam enquanto opressores das mulheres e assumam a consciência crítica, e que, ao manter a coerência da luta pela própria liberdade, renunciem ao papel de opressor sobre as mulheres para com elas lutar.

A aproximação entre educação e política na obra de Freire se estende também às relações de gênero, para ele “a luta de gênero é política” (FREIRE, 2001, p. 266). Segundo o autor, não é possível transformar as relações de gênero sem ter em conta os mesmos princípios defendidos para a educação. Freire (2001) é enfático ao afirmar que a questão principal é a libertação e a construção de estruturas libertadoras, tanto para homens quanto para mulheres.

Gómez (2004), ao discutir os modelos atrativos e suas relações com a violência contra as mulheres em perspectiva freireana, apresenta o amor romântico como alternativa transformadora das relações opressoras em relacionamentos. Isso corrobora com o conceito de amor defendido por Freire (2001, p. 272): “[...] o amor não é um gesto, é um ato e um ato de libertação, que implica a comunhão dos sujeitos que amam e se amam. [...] se impõe a superação da contradição dominadores-dominados para que haja amor verdadeiro”.

O pensamento de Paulo Freire apresenta-nos uma abordagem educacional baseada no diálogo e na transformação social, o que exige de nós uma postura solidária, coerente e esperançosa. Para o educador, a prática pedagógica deve, antes de tudo, promover encontros igualitários nos quais cada pessoa tem a oportunidade de compreender a realidade social criticamente para transformá-la.

As diretrizes igualitárias, solidárias, dialógicas e transformadoras de Paulo Freire explicitam um pensamento alinhado radicalmente com uma sociedade mais democrática. Esses ideais educativos estão imbuídos de esperança e de possibilidades amorosamente revolucionárias. O educador pernambucano ensinou-nos que a prática pedagógica é uma ação política baseada no diálogo e que pode transformar as relações sociais.

No que tange diretamente ao objeto deste artigo, parece-nos que a associação entre educação e política em Freire se estende às relações de gênero; desse modo, a luta por relações mais igualitárias e dialógicas entre homens e mulheres é uma luta política. O educador compreende que as relações de gênero se desenvolvem no interior das relações sociais de opressão, o que nos impõe a necessidade de explicitar com clareza e coerência de que lado estamos, com quem e contra quem lutamos e que sociedade sonhamos construir. Isso exige dos homens não apenas um comportamento igualitário em relação às mulheres, mas que se comprometam politicamente à masculinidade com o fim da opressão.

Paulo Freire inaugura um pensamento pedagógico que nos oferece elementos que transformam as práticas sexistas e superam o machismo na escola e fora dela. O autor é enfático ao defender que a libertação e a construção de relações libertadoras são pontos centrais para a edificação de uma sociedade amparada em valores solidários, igualitários e democráticos. Dentre os elementos transformadores da teoria freireana, no sentido das masculinidades, podemos citar o diálogo e as relações amorosas. O primeiro por ser motor das relações sociais e principal elemento de transformação. Já o amor, como ato de libertação, é revolucionário e, portanto, colocar as relações amorosas no âmago da discussão sobre masculinidades nos impõem práticas dialógicas em detrimento de práticas autoritárias e violentas, típicas das masculinidades opressoras.

Baseados em teorias dialógicas, com destaque para o pensador brasileiro, estudos de Flecha, Puigvert e Ríos (2013), Padrós (2012), Puigvert, Christou e Holford (2012), Ríos (2015) e López de Aguileta et al. (2020) têm demonstrado cientificamente que as novas masculinidades alternativas, àquelas que combatem a violência contra as mulheres, têm no diálogo e na construção de relações dialógicas seu aporte de intervenção no mundo. O diálogo, conceito central na obra de Freire, surge como instrumento transformador para a compreensão e a socialização no interior de novas masculinidades.

Padrós (2012) afirma que é preciso investir em medidas e projetos educativos que tenham como centralidade a discussão das masculinidades como forma de prevenção à violência de gênero. Nessa direção, a educação, além de rechaçar o modelo masculino opressor, deve esforçar-se para promover novos modelos, não violentos, mais solidários e igualitários, nos moldes defendidos por Freire (1979, 2001, 2003a, 2003b).

Gómez (2004) lembra-nos que o amor é central na discussão sobre a masculinidade e a forma de socialização dialógica. O amor como elemento histórico, uma construção humana, não pode ser analisado a partir de uma determinada “química” ou instinto, pois essa visão apenas justifica a realidade por meio de alternativas não racionais e, muitas vezes, conservadoras e violentas. A partir dessa premissa, do amor histórico, Gómez (2004) afirma que nos sentimos atraídos por pessoas que são consideradas socialmente “bonitas” e que representam o poder diante das demais.

Na direção da transformação das relações amorosas, Gómez (2004), baseado no pensamento de Paulo Freire, aponta quatro elementos considerados fundamentais: (a) radicalização da democracia, (b) protagonismo social, (c) centralidade do diálogo e do consenso e sentido e (d) re-encanto na comunicação. Assim, a linguagem não pode mais ser utilizada a serviço de um determinado fim, mas para encontrar, por meio do diálogo, acordos em igualdade de condições entre as pessoas. Essa reconfiguração da comunicação promove, então, um novo sentido para as relações amorosas.

Podemos dizer, e a concepção dialógica confirma, que a linguagem do desejo e as relações afetivo-sexuais, como nos aponta Gómez (2004), são construções sociais e como tais podem ser transformadas. O levantamento realizado por Flecha, Puigvert e Ríos (2013) aponta que a compreensão das relações amorosas é fundamental para a superação da violência de gênero. Para os autores e a autora, em relação à tipologia da masculinidade, nem todos os homens que exercem a masculinidade opressora são violentos, mas todos os homens violentos aderem a essa masculinidade.

Como alternativa à violência de gênero, Flecha, Puigvert e Ríos (2013) propõem o desenvolvimento de novas masculinidades alternativas; para isso, o contexto da desigualdade exige a construção de espaços sociais que valorizem concepções solidárias e igualitárias. A socialização preventiva transforma a sociedade ao tornar atrativas a solidariedade, a empatia, a seguridade e a amabilidade, valores fundamentais para a prevenção da violência. Dessa forma, é possível promover relações igualitárias com base no diálogo e redefinir os modelos atrativos por meio de atos comunicativos.

As contribuições de Paulo Freire são fundamentais para a construção de novas masculinidades ancoradas em princípios educativos dialógicos e um referencial teórico transformador. O educador brasileiro projeta uma masculinidade enraizada no humanismo e na militância, uma masculinidade potencialmente transformadora. Desde suas primeiras formulações, o diálogo apresentou-se como um elemento transformador das relações sociais e da sociedade como um todo.

Em Pedagogia do oprimido (FREIRE, 2003a), por exemplo, ao explicitar a educação antidialógica como antítese da educação libertadora, o autor é enfático ao dizer que a comunicação e o diálogo são característicos da segunda, quando a primeira é marcada justamente pela imposição e pelo autoritarismo. No que tange à masculinidade, assim como os estudos de Flecha, Puigvert e Ríos (2013), podemos inferir que o pensamento freireano corrobora e fornece instrumentos para a construção de masculinidades solidárias e igualitárias – as novas masculinidades alternativas.

No contexto das novas masculinidades alternativas, os elementos que normalmente são considerados na sociedade patriarcal são modificados e reconfigurados em valores dialógicos. A força das novas masculinidades está em confluência com os ideais de Paulo Freire na luta e na convicção política, na transformação das relações opressoras e na defesa de ideais igualitários. A construção dessas novas masculinidades encontra-se com o pensamento freireano na busca por valores solidários, na transformação das relações afetivo-sexuais, contra a discriminação e pela legitimação de diferentes identidades. As novas masculinidades partem da prerrogativa de combater o patriarcado e estabelecer relações dialógicas e comunicativas entre os gêneros, de forma a converterem-se em agentes de transformação social.

Como alternativa teórica para a construção das novas masculinidades alternativas, parece-nos bastante apropriado ressaltar o pensamento freireano. Em artigo de Redondo-Sama (2016), a autora afirma que existe uma intrínseca relação entre a dialogicidade de Paulo Freire e as novas masculinidades alternativas. Segundo a autora, Paulo Freire e seus princípios fundantes garantem o desenvolvimento de práticas e o surgimento de modelos de masculinidade que podem transformar as relações sociais e superar a opressão.

Para Redondo-Sama (2016), por um lado, a literatura científica traçou um paralelo contundente entre a construção da masculinidade e da liderança; assim, faz parte da socialização masculina a ideia de formar líderes homens. Dessa forma, existe uma associação direta entre as características dos ditos “líderes” e a masculinidade; tanto uma quanto a outra dependem de um posicionamento centrado na força, no autoritarismo e na racionalidade. Por outro lado, a autora afirma que em contextos escolares, assim como em funções majoritariamente femininas como a enfermagem e o cuidado, exige-se dos/as líderes um posicionamento diferenciado, mais “feminino”, aberto ao diálogo e capaz de negociar (REDONDO-SAMA, 2016). Por isso, conclui a autora, os espaços educativos têm potencial transformador ao favorecer lideranças dialógicas que se afastam do modelo da masculinidade hegemônica, de modo a contribuir com a formação de novas masculinidades alternativas.

Ganham força em todo o mundo movimentos de homens que buscam superar o modelo tradicional da masculinidade e almejam a construção de uma sociedade dialógica. Para isso, reforçam a diversidade das masculinidades e questionam a própria masculinidade na medida em que defendem uma masculinidade forjada no diálogo e em uma identidade de gênero igualitária. Ancorados no pensamento freireano, podemos definir três tipos de masculinidade: a masculinidade opressora, representante de um tipo masculino de comportamento violento, autoritário e antidialógico; a masculinidade oprimida, a qual, no exercício de estar sendo, esforça-se em se conscientizar de sua condição desumanizada; e a masculinidade dialógica, que busca, em conjunto com os outros homens e mulheres, lutar pela libertação e pela democracia.

Não é difícil perceber que muitos homens, mesmo que individualmente, têm questionado suas condutas e suas opções de vida, o que resulta em dois movimentos distintos: por um lado, novos modelos de masculinidade estão surgindo; por outro, a masculinidade opressora busca novos mecanismos, por vezes mais violentos, para manter sua dominância.

A obra de Freire contribui para a construção da masculinidade dialógica, baseada na formação de práticas igualitárias. O educador é um intelectual que apresenta bases teóricas transformadoras para a educação e para as relações de gênero. Suas análises e suas formulações filosóficas buscam uma sociedade mais humana, para a formação de homens e de mulheres que possam viver, como ele diz, em comunhão.

Somos signatários da proposta pedagógica freireana baseada no diálogo e a consideramos como fundamental para a educação dos meninos e das meninas ao almejar-se superar a opressão e a violência de gênero. A masculinidade dialógica, igualitária e transformadora que encontramos em Freire é um importante instrumento para a transformação das relações sociais e estabelece parâmetros éticos para o campo dos estudos sobre as masculinidades em perspectiva libertadora.

Últimas palavras

Este trabalho nasceu de múltiplos anseios e muitas inquietações. De um lado, a imersão e os desdobramentos da imagem masculina no interior da escola como professor dos anos iniciais e na Educação Infantil e, posteriormente, como formador de professores/as, ambientes majoritariamente femininos. De outro, a compreensão da educação como elemento transformador das relações de opressão. Nestas últimas palavras, tentaremos explicitar elementos que aportam possibilidades para a construção de uma masculinidade dialógica e igualitária que contribua para a superação da violência.

As reflexões que desenvolvemos ao longo deste artigo tiveram como objetivo responder à uma questão bastante clara: Qual a contribuição de Paulo Freire para os estudos sobre masculinidades? Essa pergunta parece-nos carregada de historicidade, uma vez que, para compreendê-la, foi preciso assumir que a masculinidade é espaço de disputa política. O pensamento freireano está imbricado em processos históricos, os quais correspondem a determinado projeto de sociedade, projeto de formação, projeto de educação e, por que não, projeto de masculinidade forjado com a finalidade de estabelecer relações igualitárias, de solidariedade, de diálogo e de transformação social.

A construção do conceito de masculinidade percorre caminhos parecidos com os percursos da educação, de modo a configurar um campo de disputa política e ideológica. Esse conceito é a expressão da tentativa analítica de compreender as características socialmente atribuídas aos homens, em outras palavras, como se estabelece nas relações sociais o poder masculino e quais as formas de superá-lo. Vale ressaltarmos que, na tipificação das características masculinas, a força, a violência, a reclusão dos sentimentos, etc., não podem ser consideradas fora dos contextos históricos; a masculinidade constitui-se historicamente, mantém-se e transforma-se no interior das relações sociais.

No que tange ao objeto deste trabalho, consideramos a obra de Paulo Freire como instrumento potente na luta contra a opressão e a violência de gênero. Ao retomarmos o pensamento do autor para o campo da educação, compreendemos que ela está organicamente atrelada à ação política; a prática educativa faz-se na reflexão, na escolha e na luta pela história negada aos oprimidos e às oprimidas.

Para Freire, o processo de conhecimento, a formação política, a construção de relações éticas, a busca pela boniteza, a ciência e a técnica apresentam-se como indissociáveis dos seres humanos. Como especificidade humana, a educação dá-se na história e a transforma, ela explicita contradições, possibilita a construção crítica dos conhecimentos, politiza o saber como ferramenta pedagógica.

A obra do autor marca o pensamento pedagógico ao defender politicamente a participação ativa dos excluídos e das excluídas nas práticas educativas. Só assim a educação consegue alcançar suas finalidades, quais sejam: o estabelecimento de relações democráticas entre todos e todas e a superação das desigualdades sociais.

Os princípios igualitários, solidários, dialógicos e transformadores de Paulo Freire revelam um pensamento comprometido radicalmente com a construção de uma sociedade mais justa. A proposta educativa freireana está imbuída de esperança e de possibilidades, de preocupações amorosamente revolucionárias. O educador nordestino ensinou-nos que a educação é uma ação política baseada no diálogo e que pode, com luta e comprometimento, transformar as relações sociais.

Acreditamos que a associação entre educação e política em Paulo Freire se estende às relações de gênero. A luta por relações mais igualitárias e dialógicas entre homens e mulheres configura-se também como uma luta política. O autor compreende as questões de gênero a partir de uma concepção ampla do conceito. As relações de gênero desenvolvem-se no interior das relações sociais de opressão, o que nos impõe clareza e coerência ao tomarmos posição e lutarmos pela sociedade que sonhamos construir.

Dentre os elementos transformadores da teoria de Paulo Freire, no sentido da masculinidade dialógica, podemos citar as relações amorosas. Assim como Gómez, Puigvert, Flecha (2015) e Ríos (2015), Paulo Freire defende que o amor, na qualidade de ato de libertação, é revolucionário. Nessa direção, recolocar as relações amorosas no centro do debate sobre masculinidades significa valorizar práticas dialógicas em detrimento de práticas autoritárias e violentas, típicas das masculinidades opressoras.

Outro elemento transformador no pensamento de Paulo Freire para a compreensão e a socialização no interior de masculinidades dialógicas é justamente o conceito central em sua obra: o diálogo. Estudos de Gómez, Puigvert e Flecha, (2011), Padrós (2012), Ríos e Christou (2010), López de Aguileta et al. (2020) e Ríos (2015) têm demonstrado cientificamente que as novas masculinidades alternativas, aquelas que combatem a violência contra as mulheres, têm no diálogo e na construção de relações dialógicas aporte substancioso de luta.

Paulo Freire é um intelectual que nos fornece bases teóricas transformadoras para a educação de um modo geral, e para as relações de gênero e a masculinidade em particular. Suas análises e suas formulações dão-nos elementos filosóficos para a busca de uma sociedade mais humana, para a formação de homens e de mulheres que possam viver, como ele diz, em comunhão. Paulo Freire projeta uma masculinidade enraizada no humanismo e na militância, uma masculinidade potencialmente transformadora.

Não hesitamos em afirmar que as formulações teóricas do educador colaboram com a superação da violência de gênero. Paulo Freire ensinou-nos que, para transformar o mundo, é preciso estarmos conscientes do mundo que desejamos, mais justo e solidário. Acreditamos que a proposta pedagógica de Paulo Freire, baseada no diálogo, é fundamental para a educação dos meninos e das meninas quando se almeja transformar a opressão e superar a violência de gênero. Em suma, o projeto de masculinidade na obra de Paulo Freire, baseado na formação de práticas igualitárias e transformadoras, é o da masculinidade dialógica.

Notes

1Esta pesquisa de Doutorado, intitulada Relações de gênero nos clássicos da didática: reflexões possíveis acerca da ideia de masculinidade (SILVA, 2017), foi realizada no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e orientada pelo Prof. Dr. Celso Aparecido Conti.

2Plataforma do Instituto de Ciências da Educação, vinculado ao Ministério da Educação dos Estados Unidos. Levantamento realizado no dia 28 de abril de 2020.

3Maior e mais importante plataforma de artigos científicos do Brasil. Levantamento realizado em 28 de abril de 2020.

4No original: “[...] la volonté des hommes dominants ne pas divulguer leurs secrets” (WELZER-LANG, 2008, p. 8).

5No original: “[…] the CCM is oriented toward building a social science of possibility. Researchers using his methodology aim to identify both the elements that reproduce inequalities and the elements that transform them” GÓMEZ et al., 2011, p. 241).

6No original: “Yo jamás habría escrito Pedagogía del Oprimido si, al mismo tiempo, yo me permitiese oprimir a mis hijas, mi esposa y las mujeres con quien trabajo. Las mujeres hacen bien en organizarse y decir lo que tiene que ser cambiado en relación a las opresiones que hoy sufren. Y nosotros, educadores, precisamos entenderlas, oirlas, y acompañar los cambios que ocurrieran gracias a sus iniciativas” (VIEZZER, 2006, n.p.).

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Recebido: 06 de Maio de 2020; Revisado: 02 de Março de 2021; Aceito: 03 de Março de 2021; Publicado: 12 de Março de 2021

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