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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.16  Ponta Grossa  2021  Epub 20-Out-2021

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.16.16218.026 

Dossiê: Paulo Freire (1921-2021): 100 anos de história e esperança

A humanização Freiriana: processos de formação docente nos documentos que orientam os currículos dos cursos de Pedagogia*

The Freirean humanization: the teacher training processes in the documents that guide curricula of Pedagogy courses

La humanización Freiriana: procesos de formación docente en los documentos que orientan los currículos de los cursos de Pedagogía

Vanessa Cristina Girotto Nery** 
http://orcid.org/0000-0003-2802-7240

Ana Maria da Silva Barbosa*** 
http://orcid.org/0000-0002-9501-790X

**Doutora em Educação e Professora da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL), Minas Gerais. E-mail: <vanessagirotto30@gmail.com>.

***Mestranda em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Pedagoga pela Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL), Minas Gerais. E-mail: <barbosaana520@gmail.com>.


Resumo:

Trata-se de um estudo em torno dos processos de humanização presentes nos documentos que orientam os currículos dos cursos de formação de professores, mais especificamente o curso de Pedagogia, no Brasil. O objetivo consistiu em compreender as formas como a construção desse conceito foi orientada nesses documentos. O pensamento freiriano é a centralidade nas discussões trazidas por entender-se que ele pode auxiliar a construção de um novo paradigma pedagógico, tendo como princípio a formação para a humanização. O estudo guiou-se por uma pesquisa documental e os dados foram analisados pelo viés da pesquisa qualitativa. Como resultado, apresentam-se discussões em torno da formação de professores em conexão com os documentos legais. Tecem-se reflexões com o intuito de aproximar legislação, professores e pesquisadores, de forma humanizada.

Palavras-chave: Humanização; Pedagogia; Documentos oficiais

Abstract:

This is a study on the humanization processes present in the documents that guide the curricula of the courses, specifically the course of Pedagogy, in Brazil. The main purpose was to understand the ways in which the construction of this concept was guided in these documents. The Freirean thinking is central to the discussions brought up as it is understood that it may assist in the construction of a new pedagogical paradigm, based on the principle of training for humanization. The study was guided by a documentary research, and the data were analyzed according to a qualitative perspective. As a result, discussions about teacher training in connection with legal documents are developed. Reflections are conducted with the aim of joining legislation, teachers and researchers in a humanized way.

Keywords: Humanization; Pedagogy; Official documents

Resumen:

Se trata de un estudio sobre los procesos de humanización presentes en los documentos que orientan los currículos de las carreras de Formación Docente, más específicamente la carrera de Pedagogía. El objetivo consistió en comprender las formas cómo la construcción de este concepto fue orientada en estos documentos. El pensamiento freiriano es el centro en las discusiones que se generan al comprender que éste puede ayudar a la construcción de un nuevo paradigma pedagógico, teniendo como principio la formación para la humanización. El estudio fue guiado por una investigación documental, y los datos fueron analizados bajo la perspectiva de la investigación cualitativa. Como resultado, se presentan discusiones sobre la formación de profesores en conexión con los documentos legales. Se tejen reflexiones con el objetivo de aproximar legislación, docentes e investigadores, de forma humanitaria.

Palabras clave: Humanización; Pedagogía; Documentos Oficiales

Introdução

Gostaríamos de iniciar esta discussão com o esclarecimento a respeito do conceito de humanização posto no título deste trabalho, pois trata-se da base de toda nossa problematização. De acordo com o Dicionário Online de Português (DICIO)1, o termo Humanização é a ação ou efeito de humanizar, de tornar humano ou mais humano, tornar benévolo, tornar afável/sociável. Trata-se de um substantivo feminino que tem o humanizar como seu verbo principal. De acordo com esse mesmo dicionário, humanizar é “[...] atribuir caráter humano a; conceder ou possuir condição humana; tornar-se benéfico; fazer com que seja tolerável; tornar-se civilizado; atribuir sociabilidade a; civilizar-se” (DICIO, 2019, n.p.).

Também buscamos aprofundar esse conceito a partir das discussões apresentadas no Dicionário Paulo Freire, organizado por Streck, Redin e Zitkoski (2010). Nesse livro, segundo Kimieciki (2010, p. 208), “[...] o Homem e a sua humanização são o princípio fundante da arqueologia de reconstrução social, estruturada ao longo de todo o legado deixado por Paulo Freire, tanto através da sua vida como da sua obra”. Trata-se de uma concepção que tem a formação humana como norteadora do desenvolvimento humano e social, do humanizar-se. De acordo com esse mesmo dicionário: “A vocação para a humanização, segundo a pedagogia freiriana, é uma marca da natureza humana que se expressa na própria busca do ser mais” (ZITKOSKI, 2010, p. 210), o que indica uma busca constante pela humanização.

Descolando o conceito de seu uso, parece tão simples e fácil compreender e vivenciar a humanização, já que todos fazemos parte de uma mesma condição: a humana. Contudo, a humanização quando vivenciada no cotidiano é algo bem mais complexo do que simplesmente tornar humano ou mais humano determinado sujeito ou grupo social. E, ultimamente, atribuir caráter humano a determinado sujeito ou grupo nessa sociedade parece que tem sido privilégio de alguns, pois, enquanto um grupo grita seu discurso de ódio, em que “bandido bom é bandido morto”, ou, ainda, quando um mesmo grupo, em plena pandemia da Covid-19, sai pelas ruas pedindo a volta da ditadura ou do AI-52, que foi um dos regimes mais anti-humanitários que conhecemos, existe outro grupo, por exemplo, que tem seu grito silenciado e amedrontado diante de tantas barbáries vivenciadas e tantos extermínios da população negra nesta sociedade dita democrática e humanizada.

Esse movimento de ódio, de sectarismo3, sobretudo de direita, nos assusta e, em muitos momentos, nos paralisa, porém não é nenhuma novidade, infelizmente. Esse movimento já fora denunciado pelo educador e patrono da Educação Brasileira, Paulo Freire, desde a década de 1960, em seu livro Educação como prática da liberdade. Ele demonstrava temor pelos destinos democráticos de nosso país desde aquela época, destinos estes que poderiam intervir na forma humana ou desumana de como nos relacionaríamos diante do contexto que estava por vir. Sua grande luta foi em prol da humanização do homem brasileiro “[...] ameaçado pelos fanatismos, que separam os homens, embrutecem e geram ódios. Fanatismos que se nutriam no alto teor de irracionalidade que brotava do aprofundamento das contradições e que afetavam igualmente o sentido de esperança que envolvia a fase do trânsito” (FREIRE, 1979, p. 54).

O preço pago por denunciar as formas desumanas que vinham embrutecendo o homem foi seu exílio, que durou quase 20 anos. Mesmo sabendo que estamos falando de outros espaços e outros tempos, como o próprio autor coloca em nota de esclarecimento nas primeiras páginas da obra anteriormente citada, queremos deixar claro que o esforço educativo deixado por ele não pode ser silenciado, pois continuamos a viver em uma sociedade dramaticamente contraditória. Sociedade aquela, segundo Freire (1979), e muito próxima daquela que temos hoje, segundo nós, em “[...] partejamento [...] que apresentava violentos embates entre um tempo que se esvaziava, com seus valores, com suas peculiares formas de ser, e que ‘pretendia’ preservar-se e um outro que estava por vir, buscando configurar-se” (FREIRE, 1979, p. 35).

Tirando o tempo que separa uma sociedade da outra (1967-2020), questionamo-nos: O que mudou? Conceitos? Formas de pensar? Formas de agir? Ainda não sabemos ao certo, pois a sociedade de hoje, para nós, é a mesma daquela ou muito parecida em muitas questões: uma sociedade dramaticamente contraditória,4 desigual e excludente, com violentos embates, pautados na cultura do ódio e, em valores ditos cristãos, mas que nada se aproximam do conceito de amor que o Cristo deixou, sociedade esvaziada de diálogo, tomada de moralismos conservadores e que tem em seu povo ainda um pouco de esperança, ou, ainda, esperando o que há por vir.

Nas duas sociedades apresentadas, uma por Freire e uma por nós, há algo que permanece explícito: a problematização em torno da necessidade de uma educação conscientizadora, cuja função seria a promoção da liberdade e da autonomia para todas as pessoas, sujeitos de seu tempo e de seu espaço. Na sociedade de hoje, é explícito identificar um discurso em torno do conceito de humanização que vem sendo abordado por um viés dual e, em muitos momentos, antagônico, na mesma linha já anunciada por Freire (1997, p. 199), quando ele compara os “[...] jardins ao oposto antagônico das favelas e dos cortiços”. Assim, assumimos um posicionamento humano de não nos silenciarmos diante da opressão imposta por esses discursos, por compreender que este pode ser um caminho perpassado pelo viés educativo humanitário.

No entanto, que tipo de viés educativo estamos defendendo? Uma educação atrelada à ética humana e discutida em diferentes meios: acadêmicos, virtuais, mídias, rodas de amigos, entre outros. Nesses meios, por exemplo, não basta apenas debater questões como: O que é ser homem/mulher, ser humano? O que é preciso saber sobre os processos de humanização e desumanização? O que compreende a natureza humana? O que significa diferença? O que são os direitos humanos? Qual a concepção que temos sobre justiça social? Sobre democracia? Quais conflitos envolvem nosso processo de formação humana? Estas são indagações que direcionam nossa discussão para a pauta: A favor de quem e contra quem queremos estar?

Por esse motivo, entendemos que essas questões têm levantado embates cruciais na sociedade atual ao ponto de colocar à nossa frente elementos divergentes que nos forçam a escolher ao lado de quem e contra quem queremos estar. São inúmeras as razões para discutir-se a humanização, porém uma problemática que tem surgido nos últimos anos, em especial após o golpe de 20165, é: Eu posso considerar o outro como humano a partir da minha lente? Que lente seria essa? Uma lente ofuscada pelo ódio e pela ausência de humanidade quando o assunto é o outro? Ou uma lente que enxerga para além daquilo que é possível de ser visto? Uma lente que enxerga o outro como seu igual? Ou seu oposto antagônico?

Paulo Freire ajuda-nos a compreender que é nosso compromisso histórico evidenciar tais problemáticas que são ao mesmo tempo sociais e humanas. Problematizá-las é um compromisso com a libertação de homens e de mulheres. Segundo ele:

O mundo mais humano de suas justas aspirações, contudo, é a contradição antagônica do “mundo humano” dos opressores – mundo que possuem com direito exclusivo – e em que pretendem a impossível harmonia entre eles, que “coisificam,” e os oprimidos, que são “coisificados”. Como antagônicos, o que serve a uns, necessariamente des-serve aos outros. (FREIRE, 2018, p. 196).

E o que é possível de ser visto em um contexto tão contraditório como esse? Em meio a tantas contradições e tantos antagonismos, o que ele ainda nos ensina? O que podemos aprender em 100 anos de história com Paulo Freire (1921-2021)? Queremos aprender sobre a Esperança! E, por esperança, gostaríamos de ressaltar o papel central de uma educação problematizadora que inclua o diálogo e a criticidade em sua essência.

Freire sempre deixou claro o papel da educação em nosso processo de humanização, mas não como solução ingênua ou mágica para resolver questões tão complexas como aquelas que envolvem toda uma sociedade formada por sujeitos diferentes e sujeitos antagônicos. A educação que Freire propunha era aquela que pudesse promover, além de tudo, a esperança, não na pura espera, mas o esperançar

[...] por uma educação que, por ser educação, haveria de ser corajosa, propondo ao povo a reflexão sobre si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades, sobre seu papel no novo clima cultural da época de transição. Uma educação, que lhe propiciasse a reflexão sobre seu próprio poder de refletir e que tivesse sua instrumentalidade, por isso mesmo, no desenvolvimento desse poder, na explicitação de suas potencialidades, de que decorreria sua capacidade de opção. (FREIRE, 1979, p. 64).

Entendemos que o processo de humanização, pelo viés educativo aqui defendido, deve passar necessariamente pelo processo de formação docente crítica – uma formação que atue em favor da autonomia do educando. Já sabemos que ensinar não é transferir conhecimento (FREIRE, 2015) e, para além da discussão sobre os conteúdos fundamentais da prática educativa que envolvem o trabalho docente, é essencial discutir, também, como a política que orienta suas ações está sendo discutida e vivenciada por eles e elas.

Levando em conta essa última problemática, questionamo-nos: Será que as orientações normativas de formação docente são perpassadas por um viés de humanização como aquele que estamos trazendo aqui? Quais seriam as orientações e as contradições presentes em tais documentos que orientam os currículos dos cursos de formação de professores(as)?

Ao problematizarmos tais questões, apresentamos agora nosso texto cujo objetivo é focalizar a discussão aqui elencada, que foi resultado de uma pesquisa do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) realizada entre os anos de 2018 e 2019, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), aprovado no edital PIBIC CNPq 012/2018. A pesquisa trouxe um recorte no campo da formação de professores(as), dos cursos de Pedagogia, na tentativa de entender as formas como a construção dos conceitos de humanização ou desumanização estiveram presentes em tais currículos.

O pensamento freiriano é a centralidade nas discussões trazidas por entendermos que ele pode auxiliar com a discussão sobre a construção de um novo paradigma pedagógico, que tenha como princípio a formação para a humanização, aspecto que consideramos importante de ser problematizado uma vez que, segundo Arroyo (2019, p. 4-5), “[...] o paradigma que persiste no pensamento pedagógico desde a Paideia se propõe acompanhar os processos de formação humana desde a infância, a acompanhar apenas os humanos reconhecidos como educáveis, humanizáveis”. Os processos de formação humana configuram-se, portanto, como segregadores, já que “[...] uma marca persistente no paradigma pedagógico hegemônico é: distinguir e acompanhar os processos de formação humana dos grupos sociais, políticos, culturais reconhecidos como humanos, educáveis, humanizáveis” (ARROYO, 2019, p. 5). É nessa compreensão que o pensamento freiriano se torna central em nossa discussão, visto que, como explicitado por Arroyo (2019, p. 5): “Paulo Freire contradiz esse pensamento pedagógico segregador, identifica-se como educador, em defesa da formação humana ao longo de todos seus escritos e de suas práticas”.

O estudo guiou-se por uma pesquisa documental e bibliográfica, e os dados foram analisados pelo viés da pesquisa qualitativa. Como resultados, apresentamos discussões em torno da formação de professores(as) em conexão com os documentos legais. Toda a discussão foi perpassada por um viés mais humanizado, que, infelizmente, ainda é pouco discutido na literatura.

Anunciando propostas humanizadoras para a construção de um paradigma pedagógico mais humano

São muitos os desafios colocados diante da problemática aqui apresentada, o que nos impulsiona a buscar por referenciais que nos ajudem a dialogar com os posicionamentos diferentes à concepção de humanização na mesma intensidade com que nos permite resistir aos posicionamentos antagônicos, por entendermos que nosso posicionamento frente ao conceito de humanização aqui colocado nos constitui educadoras e cidadãs no mundo, com o mundo e com os outros.

Ao percorrermos tais desafios, há um que nos vem à mente com certa frequência: nesse momento de um discurso voltado à desvalorização profissional e pessoal, de opressão, de mortes induzidas por preconceitos raciais, de coisificação da vida de pessoas que fazem parte de grupos sub-representados, como negros, índios e homossexuais, entre outras tantas perdas, podemos falar também em perda da humanidade ou mesmo uma naturalização dos processos de desumanização?6 Nessa direção, pensamos: Por que não retomarmos, de forma ética e coerente, algumas discussões já problematizadas e elaboradas por Freire? Pensamos que tais questões podem nos ajudar a pensar a formação de educadores(as) na atualidade, de forma a resistir aos desmandos que a sociedade nos impõe, em formato de política pública ou da falta dela; assim, cabe-nos o compromisso com a formação crítica e autônoma dos sujeitos.

Foi nesse direcionamento que nosso estudo se desenvolveu e caminhou rumo aos conhecimentos sobre o tema, sempre partindo da premissa de que “[...] há uma pluralidade nas relações do homem com o mundo, na medida em que responde à ampla variedade dos seus desafios. Em que não se esgota num tipo padronizado de resposta” (FREIRE, 1979, p. 39-40). Nesse sentido, não nos cabe dar nenhuma resposta pronta a tantas inquietações levantadas, mas apenas indicar possíveis caminhos. Assim, partimos de uma revisão bibliográfica com o intuito de partilhar o que outros estudos que corroboram nossa ideia estão apresentando.

Desse modo, por meio de uma busca exploratória realizada no banco de teses e dissertações da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD), no Periódico da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) , no Scientific Electronic Library Online (SciELO) e no Google Acadêmico, encontramos trabalhos que dialogaram com nossa proposta de construção de um paradigma mais humano de educação, em que a centralidade teórica está nas seguintes concepções: humanização e pensamento freiriano.

Foram poucos os trabalhos encontrados nessa fase exploratória (11 no total), o que nos fez refletir sobre a importância de ampliarem-se as discussões sobre o tema e a necessidade de aprofundamento das problematizações sobre a humanização na formação de professores(as). No entanto, desses trabalhos identificados, destacamos a importante contribuição que alguns autores e algumas autoras nos proporcionaram e, no diálogo com a literatura, foi possível ampliarmos o olhar sobre os documentos oficiais que analisamos.

O segundo passo foi a construção de categorias de análise, a partir de uma detalhada revisão sobre os aspectos mencionados pelos(as) diferentes autores(as), aspectos relativos às propostas de educação humanizadora e aos paradigmas pedagógicos humanizadores. As categorias foram: construção do processo de humanização; construção do currículo na escola e formação inicial docente. Todas elas contribuíram para a elaboração da proposta de educação humanizadora que nos baseamos para desenvolver nossa leitura e interpretação dos documentos legais que orientam os currículos dos cursos de Pedagogia.

Para a análise, então, tomamos como referência os seguintes documentos: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) – Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996); Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia – Parecer CNE/CP Nº 5, de 13 de dezembro de 2005 (BRASIL, 2005); Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada – Resolução Nº 2, de 1º de julho de 2015 (BRASIL, 2015).

A partir da articulação e da aproximação entre os documentos analisados e o pensamento freiriano, explicitamos nosso posicionamento na defesa de perspectivas que considerem um currículo emancipador, como também propostas de formação docente que atendam às atuais demandas educacionais, o que envolve considerar uma grande parcela da nossa sociedade que tem a sua “humanidade roubada” (FREIRE, 1987, p. 30 apudARROYO, 2019, p. 12), uma marca das ações de desumanização que os processos educativos perpetuam por meio de um silenciamento em seu próprio discurso, classificando, segundo Arroyo (2019, p. 9), os educáveis-humanizáveis e os in-humanizáveis, in-educáveis.

Esse delineamento configura-se como possibilidade de construção de paradigmas pedagógicos mais humanizados, que contraponham as concepções pedagógicas hegemônicas que ainda prevalecem nos cursos de formação docente. Assim, as categorias construídas com base nessas pesquisas serão mais bem descritas nos itens a seguir.

Construção do processo de humanização

No que diz respeito ao processo educativo na perspectiva freiriana, em especial sua relação com o processo de humanização dos sujeitos, o autor explicita que:

A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura. (FREIRE, 1979, p. 43).

A educação, para o autor, é entendida como sinônima à humanização; o sujeito, então, como um ser de relações, tendo ele consciência de sua condição de inacabado, estará sempre em busca do que Freire coloca como sua vocação ontológica, a do Ser mais. É nessa compreensão que o processo educativo pode ser transformador, não se configurando como um meio de adaptação dos sujeitos a modelos opressores de sociedade, mas, sim, como um instrumento de transformação da consciência ingênua para a crítica. Isso possibilitará, na qualidade de sujeitos de práxis, um processo de ação e de reflexão, dando-lhes condições de intervir na sociedade de modo que a transformem em um espaço democrático, de iguais direitos para todos(as).

Em contrapartida, ao distanciar-se dessa concepção de educação humanizadora e promover modelos que levam a uma educação opressora, de modo a reproduzir um caráter excludente, há a configuração do que Paulo Freire conceitua de uma Educação Bancária. Segundo o autor, “[...] o ‘saber’ é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão” (FREIRE, 2018, p. 80).

De acordo com Streck (2009), o desafio está em transformar os espaços educativos, novos e antigos, em espaços de humanização, de forma a assumir a pluralidade que há em um mesmo tempo e que se possa ter uma visão alargada quanto à diversidade de experiências que ele pode englobar. Tal aspecto contribui para afirmar-se a necessidade de uma educação para o tempo em que vivemos, que abarque discussões a respeito de um(a) educador(a) que está em tempos de tecnologia e de miséria, um grande desafio no que diz respeito à promoção de uma educação para todos(as), que envolva uma formação docente capaz de atender às necessidades dos(as) educandos(as) diante de tamanha discrepância social, econômica e educativa em uma mesma sociedade.

Um desafio que Freire evidenciou foi o de manter-se fiel a uma pedagogia libertadora, sabendo reinventar-se nos tempos e nos espaços em que viveu, escrevendo, por exemplo, Pedagogia do oprimido no período das ditaduras na América Latina. A obra de Freire (2018) traz a utopia como sonho possível, em que a compreensão da história é colocada como possibilidade e não como determinação, de forma a entender a ação humana como ação histórica e ter como base a incompletude do ser humano para a sua constante busca pelo Ser mais. Nesse direcionamento, diante de uma realidade reconhecida historicamente de que o ser humano é um ser incompleto, tendo ele a consciência de sua incompletude, Medeiros (2013) pontua que a humanização remete a verdadeira vocação do ser humano, enquanto a desumanização é considerada como a distorção dessa vocação.

Consideramos, então, que tomar consciência da condição de desumanizado é o primeiro passo em direção à sua própria libertação, uma consciência crítica a partir da consciência histórica da realidade. Desse modo, uma pedagogia transformadora não deve estar pautada apenas em métodos de ensino e de aprendizagem, mas, sim, na formação integral do sujeito, de maneira a ressaltar a importância das relações sociais e humanas nesse processo. A educação, nesse contexto, tem como foco o ser inacabado, que está em um processo de educar-se; assim sendo, o homem se sabe inacabado e, por isso, se educa. Freire entende a educação como um processo de humanização; logo, Medeiros (2013) utiliza de seus pressupostos para ressaltar que é preciso avançar quanto a uma educação que possibilite a libertação da condição de desumanizado, rumo à desalienação, para humanizar-se.

Dantas e Cavalcante Junior (2009) consideram a escola humanizadora, como espaço de desenvolvimento do pensamento crítico, reflexivo, que implica consciência, autoconsciência e expressão, e ressaltam a importância do diálogo nesse processo. Dessa forma, entendemos que a educação não pode ser pautada na transmissão de ideias e de conhecimentos, ela é comunicação, é diálogo, na medida em que não se restringe à transferência de saberes. Partindo da premissa de que a função da educação é humanizar, a restauração da humanidade deve ser considerada tanto para o oprimido como para o opressor, pois, de acordo com Freire (1987, p. 29 apudPRETTO; ZITKOSKI, 2016, p. 49): “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”; assim, a libertação acontece para ambos, opressor e oprimido.

Além da libertação dos sujeitos envolvidos nos processos de ensino e de aprendizagem, a educação crítica contribui também para o processo de libertação que pode acontecer na escola como instituição que detém aspectos rígidos e dominantes marcados pela lógica do trabalho. Nesse contexto, de uma escola que reproduz a educação denominada bancária, os sistemas educacionais voltam-se para uma formação tecnicista, não havendo espaço para a formação humana do sujeito, uma forma de dominação que mantém os(as) estudantes em uma condição de desumanização posta pela negação do sujeito à sua vocação ontológica, do Ser mais. Freire, portanto, ajuda-nos a pensar a importância da construção de um currículo que seja mais humanizado, que dialogue com a realidade dos(as) estudantes, que respeite suas individualidades, que ensine a relação entre conteúdo e mundo da vida, que escute mais e seja sensível aos que chegam ao interior da escola, pois ela é reflexo de questões que estão do lado de fora. Sujeitos críticos e humanizados, escolas críticas e humanizantes.

Construção do currículo na escola

Em defesa de uma educação humanizadora e libertadora, devemos também pensar em aspectos relacionados à construção de um currículo em que a prática pedagógica esteja pautada em uma relação horizontal entre docente e discente, de modo que o(a) professor(a) aprenda ao ensinar e o(a) estudante ensine ao aprender, respeitando o papel atribuído a cada um.

Braga (2012) salienta o interesse na elaboração de uma nova concepção de currículo, a partir da produção do conhecimento de maneira dialógica. A autora utiliza princípios do pensamento de Freire para dar sustentação à formulação de propostas curriculares humanizadoras. Assim sendo, o foco está em um currículo emancipatório, que tenha como ponto central o diálogo, para que, como apresentado pela autora, em denúncia à face excludente da escola com a reprodução de um modelo em que o mandar e obedecer inspiram políticas e práticas curriculares voltadas ao ajuste social, se anuncie como possibilidade uma pedagogia da humanização.

Para a efetivação dessa concepção de currículo, não é possível que a escola se diga humanizadora e em sua prática pedagógica não considere a historicidade, o diálogo e a autonomia, uma compreensão que Braga (2012) propõe sob a óptica de Freire quanto às perspectivas antropológica, pedagógica e ético-política. O desafio colocado por ela está em reconhecer a historicidade como produção humana, no que tange à perspectiva antropológica, no sentido de entender-se que os sujeitos estão em constante processo de formação, constituindo-se ao longo da história, o que não se configura como uma realidade dada, uma condição pré-estabelecida. Isso perpassa uma relação entre o ser e o ser mais, contrária ao que se perpetua nas relações de dominação marcadas pelo ser e o Ser menos.

No âmbito das discussões em torno dos desafios quanto à construção de um currículo crítico, Guedes (2012) levanta a proposição com relação à contribuição do conhecimento escolar na preservação das relações de poder que oprimem determinados grupos e indivíduos e que garantem os privilégios de outros. Isso confirma a necessidade de se pensar em novas maneiras de conceber o currículo nas instituições escolares, um direcionamento contrário a uma perspectiva dominadora, que contribui para a perpetuação das desigualdades.

Já na perspectiva de uma educação como prática de liberdade (FREIRE, 1979), os sujeitos são vistos como construtores de sua própria história, seres conscientes de sua incompletude, que se encontram em constante processo de formação. Um processo que se dá por meio do diálogo, na sua relação com o mundo, o que implica uma condição de sujeitos que se encontram para além do estar no mundo, pois seu protagonismo está exatamente nessa ideia de formação com o meio que está inserido, uma importante consideração no que se refere a uma formação que realmente avance rumo à sua humanização.

Nesse sentido, o paradigma humanizador de educação, de processos de formação docente humanizadores aqui defendidos, pauta-se na ideia de que “[...] reconhecer os Outros, os oprimidos, como sujeitos de formação humana representa outro paradigma de formação humana” (ARROYO, 2019, p. 6). Diz respeito, então, a uma concepção de educação que reconheça o outro em sua plenitude e busque os elementos históricos que direcionaram as concepções pedagógicas a essa ideologia dominante que está posta. Além disso, destacamos a importância das discussões em torno da permanência de práticas pedagógicas desumanizantes que se sobressaem àquelas críticas e dialógicas, para que possamos, assim, construir um novo paradigma de educação, que esteja sob uma perspectiva humanizadora capaz de libertar o sujeito dessa ideologia dominante, que dificulta o processo de transformação da educação pela perspectiva que aqui defendemos. Como ressalta Arroyo sobre a concepção freiriana, estes “[...] são sujeitos de humanidade, sujeitos de Pedagogias do Oprimido” (ARROYO, 2019, p. 8).

Formação inicial docente

Pensar uma formação de educadores(as) que contraponha a concepção de educação para a dominação é pensar na formação de um profissional que tenha consciência de que o educar para a humanização, fazendo referência a Strapasson (2011), envolve uma prática em que o(a) educador(a) precisa reconhecer-se sujeito participante e construtor da sociedade, da escola, dos projetos políticos e da própria pedagogia, para que, assim, possa humanizar-se, em comunhão com os outros. Além disso, a autora considera que é na tarefa de “ser humano”, que o(a) professor(a), compreendido(a) nessa realidade, é capaz de educar para a humanização. Nesse processo, é preciso que ele(a) se sinta parte integrante do processo de educação, para, então, humanizar-se.

Em meio às discussões sobre o anúncio de uma educação libertadora, apontada como denúncia a uma educação opressora, Brighente e Mesquita (2016) afirmam que, dentro das instituições escolares, os(as) educadores(as) acabam sendo os principais responsáveis pela negação dos corpos dos(as) educandos(as). Um aspecto que evidencia a necessidade de uma formação docente mais humana no âmbito das propostas curriculares dos cursos de Pedagogia. Com isso, os espaços escolares podem constituir-se de relações mais humanas, posto que, ainda de acordo com Brighente e Mesquita (2016), o modelo das instituições escolares, assim com as relações estabelecidas neles, não permite que os corpos se libertem e se humanizem, pois toda a sua lógica está voltada a moldá-los, discipliná-los.

O(a) estudante diante desse modelo de educação, para que tenha êxito no processo de escolarização, precisa reproduzir os padrões estabelecidos, uma domesticação dos(as) educandos(as) que limita a formação de educadores(as) a um mero treinamento de professores(as). Além disso, o que se reproduz é um sistema que tem por objetivo fazer a seleção entre os que “sabem” e os que “não sabem”, seguindo padrões já estabelecidos.

Na direção contrária dessa formação docente desumanizante, temos a proposta trazida por Freire (2015, p. 47), de que “[...] ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”, entendendo que é nessa relação que o aprendizado se consolida, uma vez que não existe docência sem discência.

Tecendo reflexões a partir de aproximações entre os documentos oficiais e as propostas humanizadoras

Entendemos que a construção de propostas libertadoras no âmbito da educação se dá por meio de espaços e de processos de formação docente que contribuam para uma concepção crítica desses profissionais, ao considerarmos a complexidade desse âmbito. Como expressado por Arroyo (2013):

O currículo dos cursos de magistério, licenciatura ou pedagogia é mais do que um conjunto ordenado de conhecimentos, teorias e competências para o eficiente exercício de uma profissão. O currículo na sua totalidade, as relações sociais vividas, o convívio com professores(as) desses cursos são um aprendizado de um determinado perfil de educador(a). Como se aprende a ser professor(a) nesses tempos e espaços de formação? (ARROYO, 2013, p. 129).

De acordo com o autor, é essencial termos uma proposição que possa ser considerada premissa para a articulação entre um referencial teórico que defende uma perspectiva de educação mais humanizada e os documentos oficiais que orientam os cursos de formação docente. Nessa direção, fomos buscar no Parecer CNE/CP Nº5/2005 uma possibilidade de articulação, em especial no que se refere às Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Pedagogia. O documento afirma que “[...] para a formação do licenciado em Pedagogia é central o conhecimento da escola como uma organização complexa que tem a função social e formativa de promover, com equidade, educação para e na cidadania” (BRASIL, 2005, p. 6).

Para a interpretação dessa orientação, podemos fazer referência a Freire (2018, p. 96) quando pontua que “[...] já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”. Nesse sentido, entendemos que a escola tem a função de promover a educação de maneira horizontal, com os(as) educandos(as), de forma que atenda a todos(as) igualmente, em suas especificidades.

Nessa compreensão, Strapasson (2011, p. 38) considera que, para educar-se para a humanização, “[...] é necessário sentir-se sujeito participante e construtor da sociedade, da escola, dos projetos políticos e da própria pedagogia, para, então, humanizar”. Desse modo, será nessa relação homens, mulheres e sociedade, em uma situação de sentir-se parte dos processos de ensino e de aprendizagem, que essa proposta de educação será constituída.

Pensar uma formação docente que considere tal perspectiva como uma questão central, como colocado pelo documento, é fundamental para que a construção do conhecimento com o outro seja possível, sendo ela propulsora de uma educação libertadora. Isso possibilita a construção de uma proposta que contrapõe o que Freire denomina de Educação Bancária, em que “[...] a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador, o depositante” (FREIRE, 2018, p. 80).

Quanto à orientação exposta no Parecer CNE/CP Nº5/2005, que “[...] os processos de ensinar e de aprender dão-se, em meios ambiental-ecológicos, em duplo sentido, isto é, tanto professoras(es) como alunas(os) ensinam e aprendem, uns com os outros” (BRASIL, 2005, p. 8), é possível, nesse direcionamento, recorrer às ideias de Freire (2015, p.111) ao dizer que “[...] o educador que escuta aprende a difícil lição de transformar o seu discurso, às vezes necessário, ao aluno, em uma fala com ele”. Isso reforça a concepção de que os saberes devem ser construídos com os(as) educandos(as), visto que tanto educadores(as) quanto educandos(as) possuem conhecimentos a serem compartilhados, devendo eles ser considerados e valorizados de igual maneira.

Outra orientação para a formação do pedagogo do Parecer CNE/CP Nº5/2005 diz respeito a “[...] identificar problemas socioculturais e educacionais com postura investigativa, integrativa e propositiva em face de realidades complexas, com vistas a contribuir para superação de exclusões sociais, étnico-raciais, econômicas, culturais, religiosas, políticas e outras” (BRASIL, 2005, p. 9). Para tal, tomamos como premissa a ideia de um profissional docente pesquisador, o que pode ser entendido como uma exigência diante das diversidades sociais, como também educacionais, posto que sejam muitas as situações que exigem dos(as) educadores(as) novas estratégias de atuação diante das especificidades que se deparam em seu cotidiano de trabalho. A formação do(a) pedagogo(a) deve, então, propiciar que ele(a) utilize seus conhecimentos para ler o mundo em que ele(a) e seus educandos(as) vivem. Com isso, os processos de ensino e de aprendizagem precisam ser repensados constantemente, um exercício que exige professores(as) críticos e reflexivos. Freire (2015, p. 30-31) traz importante contribuição ao afirmar que “[...] ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade”.

Em uma perspectiva docente humanizadora, o(a) educador(a) deve estar sempre em processo de formação, sempre pesquisando, buscando novas estratégias para lidar com as situações do cotidiano escolar, rumo à transformação das desigualdades por meio do conhecimento rigoroso, científico. Além disso, é orientado ao pedagogo, no Parecer CNE/CP Nº 5/2005, “[...] estudar, aplicar criticamente as diretrizes curriculares nacionais e outras determinações legais que lhe caiba, executar, avaliar e encaminhar o resultado de sua avaliação às instâncias competentes” (BRASIL, 2005, p. 9). Refere-se, assim, a uma determinação que vai ao encontro do que apresentamos como uma proposta de trabalho mais próxima à realidade da escola, visto que o fato de se estudar e aplicar criticamente as determinações legais impacta de forma positiva na prática do(a) professor(a).

A formação docente, então, não se restringe a um acúmulo de conhecimentos a serem aplicados em situações reais como, por exemplo, resolução de problemas, mas trata-se de um processo inicial de formação que deverá ser continuado ao longo de sua atuação profissional, sendo ele perpassado pelas construções de conhecimentos advindas de suas vivências nos espaços escolares.

Essa consideração perpassa a proposta de uma educação transformadora, a qual Medeiros (2013) apresenta como uma transformação dos sujeitos em seres da realidade histórica em que se inserem. Para ele, uma ideia da práxis pedagógica, como um compromisso histórico,

[...] deve possibilitar ao mesmo tempo, a transformação da realidade e dos próprios seres humanos. E uma vez assumido que os seres humanos são seres em processo constante de humanização, mas que, ao mesmo tempo, devido às situações históricas específicas encontram-se desumanizados, torna-se necessário descrever como os seres humanos devem tomar consciência de sua própria condição de seres desumanizados e isto como o primeiro passo em direção à sua própria libertação. (MEDEIROS, 2013, p. 131).

Tal reflexão vai ao encontro do que Freire apresenta como a ontologia do ser humano. Nessas condições, o conscientizar-se sobre a condição de desumanização que os sujeitos se encontram é fundamental para que se estabeleçam relações de superação de tal, o que será possível por meio de processos de humanização, rumo à libertação dos sujeitos.

Quanto a essa condição de desumanização, Mendonça (2006) contribui ao defini-la como:

Ação que impede a realização da vocação ontológica e histórica que as pessoas têm para realizarem a sua humanidade, descaracteriza o ser humano na sua própria realidade, alienando-o do seu mundo, tornando-o estrangeiro na sua própria vida. Esse processo leva à inautenticidade do/da homem/mulher se utiliza de vários mecanismos que atuam como instrumentos de domesticação e de opressão dos sujeitos. (MENDONÇA, 2006, p. 56).

Na mesma direção, Arroyo (2013, p. 51) apresenta que “[...] reduzir o papel da escola fundamental e média a ensinar é enfatizar dimensões docentes, ensinantes, e frequentemente esquecer dimensões formadoras”, uma identidade docente marcada pelos cursos de formação, que impede a construção de ações e espaços mais humanizados. Em contrapartida, o que se espera é que as escolas sejam espaços mais humanizados, de modo a contemplar dimensões formadoras, sendo os(as) educando(as) considerados(as) para além da aprendizagem de conteúdos em tempos e espaços delimitados, um “[...] processo de redefinir o saber escolar, as funções sociais, políticas e culturais da escola em função de projetos de sociedade e de ser humano, de cidade e de cidadania” (ARROYO, 2013, p. 53).

Pensando na construção desse espaço institucional, Abensur (2012, p. 294) considera que “[...] doar conteúdos é uma ação desumanizante que procura manter o educando com a mesma visão de mundo dos outros e não com a sua, alienando-o, pois, de sua condição de oprimido e marginalizado”. Assim sendo, é importante a construção de um currículo que proponha a integração de diferentes conhecimentos, de um espaço em que os(as) educadores(as) tenham autonomia para agir e pensar criticamente sobre suas ações, em um exercício de transformação de suas práticas. A autora ainda explicita: “Parece necessário pensar em um currículo que possibilite a sobrevivência dessa escola, ou seja, precisa-se rever o currículo que hoje se encontra nas escolas, que mais parece uma prescrição inflexível e sem alternativas para aqueles que trabalham com ele” (ABENSUR, 2012, p. 292). Com isso, a concepção de currículo defendida é aquela que rompe com a lógica das ideologias dominantes ao defender sua construção coletiva. A autora ainda afirma que o currículo “[...] deve fortalecer a democracia dos saberes e permitir às crianças populares, além da informação e do conhecimento científico, a valorização do conhecimento cotidiano” (ABENSUR, 2012, p. 292).

Ademais, as determinações legais, no Parecer CNE/CP Nº 5/2005, apontam que “[...] não há como estudar processos educativos, na sua relação ensinar-aprender sem explicitar o que se quer ensinar e o que se pretende aprender” (BRASIL, 2005, p. 12). Nessa condição: “Não há outro caminho senão o da prática de uma pedagogia humanizadora, em que a liderança revolucionária, em lugar de se sobrepor aos oprimidos e continuar mantendo-os como quase ‘coisas’, com eles estabelece uma relação dialógica permanente” (FREIRE, 2018, p. 77). Nesse caminho, é assinalado pelos(as) educadores(as) o que será aprendido e ensinado aos(às) educandos(as), como também quais conhecimentos serão construídos a partir do diálogo estabelecido com eles(as). Há, então, uma concepção de educação que, segundo Freire (2018, p. 93), “[...] não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo”.

Assim, a ação de ensinar dos(as) professores(as) é envolta também pela reflexão de tal, a fim de transformar-se a realidade, pois, de acordo com Braga (2012, p. 33), “[...] homens e mulheres mais humanizados/as, possivelmente, empreenderão esforços para a constituição de uma sociedade mais humanizada”.

Destacamos, também, a determinação legal do Parecer CNE/CP Nº 5/2005, a qual aponta:

O projeto pedagógico do curso de Pedagogia deverá contemplar, fundamentalmente: a compreensão dos processos de formação humana e das lutas históricas nas quais se incluem as dos professores, por meio de movimentos sociais; a produção teórica, da organização do trabalho pedagógico; a produção e divulgação de conhecimentos na área da educação que instigue o Licenciado em Pedagogia a assumir compromisso social (BRASIL, 2005, p. 12).

Essa é uma questão que nos indaga a pensar sobre as relações que se estabeleceram ao longo da formulação dos cursos de Pedagogia no Brasil. Arroyo (2003) apresenta as relações entre educação, trabalho e exclusão social, olhados por dois vieses: os processos de desumanização que são submetidos versus as lutas por emancipação que se dão nos movimentos sociais, o que caracteriza os processos de humanização. De acordo com o autor, todas as conquistas e os avanços nos processos de educação do país foram resultantes de lutas de movimentos sociais; assim, “[...] a expansão da escola básica popular se torna realidade não tanto porque o mercado tem exigido maior escolarização, nem porque as elites se tornaram mais humanitárias, mas pela consciência social reeducada pelas pressões populares” (ARROYO, 2003, p. 30). Em contraposição a um sistema educacional que insiste, portanto, em reproduzir modelos já ultrapassados, Brighente e Mesquida (2016) pontuam esse impasse no que diz respeito:

A própria estrutura física da instituição, as cercas, os muros, as posições dos alunos dentro das salas de aulas (cada um em sua carteira enfileirada), a constituição de filas para manter a ordem, o panóptico, de Foucalt (2009) descreve, já aguardam os educandos para moldá-los, discipliná-los e dizer a eles como seus corpos devem se comportar. Assim é caracterizado o processo de ensino e aprendizagem. O “professor-juiz”, citado pelo autor (2009), é um vigilante constante desses corpos, sendo que qualquer desvio poderá levar à punição, seja com suspensões, expulsões ou notas abaixo da média estabelecida. (BRIGHENTE; MESQUIDA, 2016, p. 162).

Essa reflexão faz-se pertinente pelo fato de que, ao adotarem-se modelos de educação como esses, há a negação da possibilidade dos(as) educandos(as) construírem uma consciência crítica sobre suas realidades. Tudo isso porque a reprodução de lógicas voltadas à disciplina dos corpos em que os(as) estudantes são moldados(as) para atender a um padrão estabelecido reduz a formação dos(as) educadores(as) que estarão em contato com esses(as) educandos(as) a um simples treinamento. Nessa lógica, o objetivo maior está em atingir metas estabelecidas por um sistema educacional, não se atendo ao que se apresenta como uma concepção de educação para a emancipação, para a humanização. Segundo Arroyo (2013, p. 77), “[...] em nome da modernidade fecharam os horizontes de nossa humana docência. Fecharam os conteúdos. A Lei 5692, dos tempos autoritários, definiu com rigidez as cercas, gradeou o conhecimento e legitimou uma imagem estreita da docência”.

A concepção de educação humanizadora, então, pode libertar os(as) educandos(as) dessa condição de negação dos corpos, que lhes é inculcada por modelos de educação que não lhes possibilita educar-se, humanizar-se, em que “[...] a efetivação dos projetos de autonomia e libertação estão à mercê do processo de desenvolvimento da conscientização individual e, concomitantemente, da libertação social” (SILVA, 2007, p. 263). Diante dessa necessidade de compreensão dos processos de formação humana nos cursos de Pedagogia, destacamos a importância da investigação do aspecto da humanização nos processos de formação de professores(as): uma discussão sobre os documentos que orientam os currículos desses cursos. Uma discussão voltada à promoção de concepções de ensino mais humanas nos processos de formação de professores(as).

Um contexto marcado por desigualdades que perpassam os paradigmas educacionais gera a ânsia por mudanças desse cenário, como também do pensamento político pedagógico que se insere nesses espaços. Arroyo (2019) pontua que:

As violências de Estado são atuais e requintadas contra os mesmos coletivos: os trabalhadores e seus direitos; os jovens pobres, negros, periféricos e seus extermínios; os movimentos sociais por direito à terra, ao teto, ao trabalho, à renda, à saúde, à educação, por identidades de coletivos reprimidos, exterminados. (ARROYO, 2019, p. 3).

Para tal, o diálogo com os documentos oficiais proporciona reflexões quanto à construção de um novo paradigma de educação, no mesmo sentido apontado por Streck (2009), quando ele afirma que:

A pedagogia, se deseja ser transformadora, precisa assumir-se como um saber que assume a sua dimensão projetiva (PERESSON, 2006), ou seja, de não se satisfazer em descrever as práticas educativas e apontar as falhas para um melhor funcionamento. Uma pedagogia transformadora é uma pedagogia que combina a forte inserção na realidade com a capacidade de imaginar novos cenários. (STRECK, 2009, p. 98).

Esse caráter transformador da Pedagogia é, na perspectiva aqui apresentada, entendido como resultado do processo de educação, uma educação para a humanização, o que o coloca como premissa para o estabelecimento das relações entre os diferentes sujeitos, como também entre sujeito e sociedade. Isso remete a um modo de ver e estar no mundo, de forma a possibilitar a superação da condição de desumanização em que os sujeitos são postos diante da negação do desenvolvimento da vocação ontológica do ser humano, a do Ser mais. Assim, ao referenciarmo-nos às ideias de Freire, quanto ao entendimento da educação como um processo de humanização, defendemos uma Pedagogia humanizadora, que possui, como apresentado por Streck, um caráter transformador.

Outro documento orientador diz respeito à Resolução Nº 2, de 1º de julho de 2015, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada (BRASIL, 2015). Suas explicitações apontam:

Compreende-se a docência como ação educativa e como processo pedagógico intencional e metódico, envolvendo conhecimentos específicos, interdisciplinares e pedagógicos, conceitos, princípios e objetivos da formação que se desenvolvem na construção e apropriação dos valores éticos, linguísticos, estéticos e políticos do conhecimento inerentes à sólida formação científica e cultural do ensinar/aprender, à socialização e construção de conhecimentos e sua inovação, em diálogo constante entre diferentes visões de mundo. (BRASIL, 2015, p. 3).

Partindo dessa compreensão, entendemos a necessidade de articulação de diferentes visões de mundo. Para isso, tomamos como referência o conceito de “Diálogo” de Paulo Freire (2018, p. 109, grifo do autor), em que o autor coloca que “[...] o diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu”. Nesse sentido, sendo a formação de professores(as) uma construção e apropriação de diferentes valores no que tange aos aspectos científicos e culturais quanto aos processos de ensino e de aprendizagem, a opção por um referencial teórico dialógico como base para a interpretação dos documentos oficiais coloca o estudo como defensor de uma perspectiva de trabalho resultante dos princípios que norteiam esse referencial, um deles o diálogo com os diferentes. Com isso, consideramos a ideia de Freire (2018, p. 111): “A pronúncia do mundo, com que os homens o recriam permanentemente, não pode ser um ato arrogante. O diálogo, como encontro dos homens para a tarefa comum de saber agir, se rompe, se seus polos (ou um deles) perdem a humildade”. E, assim, o posicionamento aqui apresentado diz respeito a uma maneira de considerar tais orientações legais, mantendo-nos em um processo de diálogo com os documentos oficiais, de maneira a construir elementos que nos ajudem a pensar um modelo de educação mais humanizada.

Nessa direção, Pretto e Zitkoski (2016) contribuem com a discussão ao apresentarem a problemática sobre as instituições escolares se configurarem como espaços desumanizadores. Os autores consideram, ao fazerem referência às ideias do professor Miguel Arroyo (2013), que, para a superação dessa situação:

Toda essa desumanização enfrentada pela escola de nossos dias cabe em uma proposta de escola pública que se propõe a trabalhar inicialmente pela “recuperação da humanidade que lhes é roubada em outros tempos e espaços.” Nesse sentido é preciso muita conscientização, coragem e amor por parte das autoridades, dos profissionais da educação e da própria sociedade para transformar a atual escola de pedra em uma escola em que a educação consiga resgatar a humanidade perdida. (PRETTO; ZITKOSKI, 2016, p. 54).

Na defesa desse modelo de educação mais humanizada, destacamos o que a Resolução Nº 2/2015 coloca quanto ao que se entende por educação: “[...] processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino, pesquisa e extensão, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas relações criativas entre natureza e cultura” (BRASIL, 2015, p. 4). Dessa maneira, diante da complexidade que envolve os processos de formação humana na perspectiva de uma educação humanizadora, uma inquietação é o fato de que ainda há perspectivas que relutam em ampliar suas concepções pedagógicas, sendo elas mantenedoras de modelos que não fazem sentido algum aos(às) estudantes.

Na ânsia de realizar uma aproximação entre a proposta humanizadora de educação aqui discutida e a Resolução Nº 2/2015, indicamos o que essa Resolução apresenta em um de seus princípios:

A formação dos profissionais do magistério (formadores e estudantes) como compromisso com projeto social, político e ético que contribua para a consolidação de uma nação soberana, democrática, justa, inclusiva e que promova a emancipação dos indivíduos e grupos sociais, atenta ao reconhecimento e à valorização da diversidade e, portanto, contrária a toda forma de discriminação [...]. (BRASIL, 2015, p. 4).

Nessa direção, pensar o currículo como instrumento de superação das situações de discriminação de determinados grupos em detrimento de outros é fundamental, posto que, quanto às relações de poder e conhecimento, Moreira (2001, p. 42 apudGUEDES, 2012, p. 32) apresenta “[...] como o conhecimento escolar tem contribuído para preservar relações de poder que oprimem determinados grupos e indivíduos e garantem os privilégios de outros”. Isso deve ser combatido no sentido do atendimento do exposto na orientação da Resolução Nº 2/2015, quanto “[...] à consolidação da educação inclusiva através do respeito às diferenças, reconhecendo e valorizando a diversidade étnico-racial, de gênero, sexual, religiosa, de faixa geracional, entre outras” (BRASIL, 2015, p. 6). Assim, rumo à valorização de todos os grupos, é desejável um trabalho que, ao fazer referência a outro dos princípios da Resolução Nº 2/2015, em que “[...] a articulação entre formação inicial e formação continuada, bem como entre os diferentes níveis e modalidades de educação” (BRASIL, 2015, p. 4), se torne parte do processo formativo dos(as) educadores(as).

Para finalizar, apresentamos o disposto na LDBEN - Lei Nº 9.394/1996, em seu Título VI, quanto aos profissionais da educação: “§ 8º Os currículos dos cursos de formação de docentes terão por referência a Base Nacional Comum Curricular” (BRASIL, 1996, n.p.). Um direcionamento que segmenta os processos de formação docente – uma orientação que se apresenta como instrumento de melhorias quanto ao campo da formação de professores(as), mas que não se efetiva como tal, em virtude de suas restrições quanto aos aspectos legais, os quais, de acordo com Guedes (2018):

O que se tem de concreto, em termos legais, é a institucionalização da Base Nacional Comum Curricular, a ser respeitada obrigatoriamente, que vai implicar diretamente na formação inicial de professores, vez que os programas e os currículos dos cursos devem adequar-se à BNCC, devendo ser implementados no prazo de dois anos. Para as entidades educacionais, a política ora lançada, caracteriza-se como centralizadora e verticalizada, traduzindo-se em retrocesso para a efetivação e materialização de um “Sistema Nacional de Educação e do Plano Nacional de Educação, que leve em consideração a necessária articulação entre a formação inicial, formação continuada e condições de trabalho, salário e carreira dos profissionais da educação. (Manifesto/2017, p.1). (GUEDES, 2018, p. 95-96).

Nessa compreensão, não é possível a identificação da autonomia quanto à realização de um trabalho que tenha como elementos norteadores a contribuição das diversas entidades envolvidas no processo de educação, posto que o que se concretiza é a construção de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) pautada em concepções de um determinado grupo. O que continua a se perpetuar, portanto, são os interesses envoltos pela lógica de mercado no sistema educacional, reproduzindo, então, as ideologias de um grupo dominante, fruto de disputas por diferentes projetos de sociedade, de sujeitos e de projetos formativos.

Além disso, o exercício proposto quanto à análise dos dispositivos legais no âmbito da formação de professores(as) trouxe-nos outras questões, que apresentamos como proposições a serem trabalhadas por outros estudos. Por exemplo, para fazermos referência à Resolução Nº 2, de 1º de julho de 2015, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura), retomamos a narrativa de Guedes (2018):

O Art. 22 dessa Resolução estabeleceu o prazo de dois anos, a partir da sua publicação, para os cursos em funcionamento, se adequarem ao normativo. É motivo de perplexidade o lançamento da nova política de formação, quando as DCN/2015 não foram, ainda, implantadas completamente, não houve conclusão de nenhuma turma de licenciandos, da matriz curricular orientada pelas Diretrizes, nem tão pouco houve tempo para se avaliar os resultados dessa política em andamento. (GUEDES, 2018, p. 94-95).

Essas proposições que apresentamos são, também, nossas inquietações, as quais gostaríamos de elencar como futuras discussões no que diz respeito à análise e à interpretação dos documentos legais que embasam a construção de nossos currículos de formação de professores pelo viés aqui defendido. Contudo, diante da complexidade que a temática envolve, enfatizamos a importância da incessante busca por referenciais que ajudem a superar as situações de desigualdade educacional, o que entendemos como um exercício necessário de ser realizado por todos os grupos, e não deve ou não deveria ser determinado por um só grupo, entidade educacional ou política pública.

Considerações finais

Na busca por problematizações a respeito dos processos de formação humana, defendemos o compromisso de denúncia das estruturas desumanizantes e de anúncio de propostas humanizantes nos processos de formação docente, pois, como já mencionamos, essa é a maneira pela qual será possível a superação das condições de opressão rumo à humanização, à vocação ontológica do ser humano, sua condição de Ser mais. Diante disso, pensar em ações que vão ao encontro da proposta de construção de um paradigma humanizador de educação, como identificado neste estudo, se torna possível a partir das aproximações apresentadas entre orientações legais e referenciais teóricos que possibilitam um verdadeiro pensar sobre a realidade, sobre as reais condições sociais que nos encontramos.

Assim, ao retomarmos nossa questão inicial, sobre as possibilidades apresentadas no âmbito da formação de professores(as) quanto à reflexão em torno de uma educação mais humanizada, reafirmamos o pressuposto de que os processos de formação de professores(as) se constituem como espaços para a construção de um novo paradigma de educação, podendo ele ter como princípio a formação para a humanização. Isso em decorrência do que foi discutido quanto à importância da humanização nesses processos de formação docente, podendo ampliar as propostas de trabalho no que diz respeito à construção de seus currículos de formação.

Ressaltamos o quão amplo é o campo de estudos sobre o tema apresentado e, assim, a importância de continuarem-se as problematizações, ainda mais quando nos deparamos com novas determinações legais, como é o caso da então política de implantação de uma BNCC em nosso sistema educacional. Além disso, é importante enfatizarmos a possibilidade de superação do paradigma hegemônico que se perpetua em nosso sistema educacional a partir do que foi possível construir sobre um pensamento pedagógico mais humano. E, com isso, refletir sobre o papel da pedagogia em reforçar a ideia dos sujeitos não humanos, dos seus processos de desumanização, o que ocorre quando insiste em distinguir estudantes educáveis dos não educáveis, ao determinar os que sabem e os que não sabem, e, pior que isso, rotular os que aprendem e os que não aprendem.

O que a pedagogia continua a perpetuar é um silenciamento no próprio discurso educacional, de que a não aprendizagem de grupos que historicamente foram submetidos à processos de segregação é de responsabilidade deles próprios, dos desumanizados. Um posicionamento que traz consigo uma legitimação entre os educáveis e os não educáveis nos próprios currículos de formação. No entanto, como nos apresenta Freire, todos somos sujeitos de humanidade, e o não reconhecimento dessa nossa condição coloca os(as) educandos(as) em processo de desumanização, em que sua humanidade é roubada, como também sua condição ontológica de Ser mais.7

São muitos os desafios quanto ao desenvolvimento de uma educação que insira esses sujeitos que são colocados à margem da sociedade e dos processos educacionais. O que é reforçado por um sistema de educação que mantém um pensamento pedagógico direcionado aos considerados já humanos, aos que serão educáveis. No entanto, o pensar sobre um paradigma mais humano de educação, que considere esses sujeitos, possibilita reflexões sobre possibilidades em torno dos processos de formação docente. Um refletir que nos impulsiona a lutar por perspectivas de trabalho que vão ao encontro de um pensamento pedagógico mais humano. Assim sendo, é possível apresentarmos algumas perspectivas para os diferentes âmbitos: Universidade, Escola e Sociedade:

  • Na Universidade: sentimos a necessidade de uma abordagem mais humana em seus currículos de formação, de modo que os(as) educandos(as) sejam formados(as) para lidar com as diferenças nos espaços escolares. Aqui entendemos que a formação vai para além dos discursos, pois teoria freiriana é práxis: ação e reflexão; caso contrário, é puro verbalismo ou ativismo.

  • Na sociedade: recorremos para a importância de respeitar-se a formação de professores(as) como campo de humanização pelo viés das políticas públicas. Não acreditamos que essa formação tenha de ser feita a partir de disputas de poder, o que almejamos é uma educação que seja dialogada com a sociedade, que seja utópica, no sentido freiriano, difícil porém possível.

  • Na escola: entendemos a necessidade de construção de espaços formativos que considerem a humanização como processo central de educação. Importante destacarmos que a defesa dessa proposta indica espaços coletivos de aprendizagem, já que, segundo o referencial freiriano, não é possível fazer mudança sozinhos(as) no mundo.

Então, a partir de tudo o que escrevemos, ainda vem em nossa mente a reflexão posta neste dossiê: “Por que insistir em disseminar seu pensamento e seu trabalho como marcos atemporais e universais de luta amorosa contra tudo que desumaniza e coisifica homens e mulheres em diferentes épocas e de diferentes formas?”. A resposta que encontramos é que disseminar conhecimento é uma forma de resistir a uma sociedade opressora e desigual e que vidas importam! E disseminar conhecimento em torno das ideias de Paulo Freire sempre foi e sempre será uma forma de esperançar, principalmente em uma sociedade em que o pensamento freiriano quase sempre é desconsiderado ou mal compreendido.

Assim, gostaríamos de encerrar esta discussão desejando ter lançado elementos que possam auxiliar pesquisadores(as) e professores(as) a pensar questões relativas ao conceito de humanização posto no título deste trabalho e foco de nossa escrita. Esperamos que os efeitos trazidos por essa leitura possam provocar ações benéficas e contrárias à barbárie e que, em nosso caráter humano, prevaleça a tolerância, a civilidade e a humanidade, como adjetivos que complementam o verbo principal: humanizar. Uma humanização que, a nosso ver, necessita de uma constante capacidade de luta contra os discursos de ódio e de intolerância, de um enfrentamento aos processos de desumanização como negação dos processos de humanização, assim como um encorajamento diário para que possamos denunciar a desumanização e anunciar a humanização.

Notes

1Disponível em: https://www.dicio.com.br/humanizacao/. Acesso em: 21 maio 2020.

2Ato Institucional Nº 5, de 13 de dezembro de 1968: “São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições Estaduais; O Presidente da República poderá decretar a intervenção nos estados e municípios, sem as limitações previstas na Constituição, suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais, e dá outras providências” (BRASIL, 1968, n.p.).

3Na obra Educação como prática da liberdade, Freire explica o conceito de sectário. Segundo o autor: “O radical, pelo contrário, rejeita o ativismo e submete sempre sua ação à reflexão. O sectário seja de direita ou de esquerda, se põe diante da história como o seu único fazedor” (FREIRE, 1979, p. 57).

4Utilizamos o conceito “contradição” para sermos fiéis aos escritos de Freire, em Pedagogia do oprimido. O autor, nessa obra, afirma o seguinte: “A libertação, por isto, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição pressores-oprimidos, que é a libertação de todos. A superação da contradição é o parto que traz ao mundo este homem novo não mais opressor; não mais oprimido, mas homem libertando-se” (FREIRE, 2018, p. 19). Analisar uma sociedade como contraditória significa entender que a libertação dos homens e das mulheres, fruto dessa contradição, ainda não foi efetivada.

5Ver O golpe de 2016 e a Educação no Brasil, organizado por Krawczyk e Lombardi (2018).

6Reconhecemos a histórica segregação de grupos a partir de suas condições sociais, políticas, econômicas, de produção e trabalho, entre outras. Contudo, neste artigo, trazemos uma discussão em torno de um referencial que busca problematizar a questão da humanidade como algo universal, em outras palavras, um direito inerente a qualquer ser humano.

7Na literatura científica, já temos muitos trabalhos sendo produzidos no sentido de colaborar com a crítica a esse sistema de alienação que reproduz e perpetua silenciamento em várias esferas educacionais: nos processos de ensino, de aprendizagem, de avaliação, entre outros. Entre os autores e as autoras podemos destacar trabalhos de Teresa Esteban, Maria Tereza G. Tavares, Ana Maria Saul e outros importantes nomes. Apesar de reconhecermos que a obra de Freire permite diferentes compreensões, a partir das distintas lentes teóricas, gostaríamos de enfatizar que a nossa construção se deu por meio de um caminho que optou pelo anúncio de um paradigma mais humano de educação nas diferentes esferas sociais. Apoiamo-nos, portanto, em Arroyo e Freire como centrais nesta discussão.

*Este trabalho foi realizado com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) aprovado no edital do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica - PIBIC CNPq 012/2018.

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Recebido: 19 de Junho de 2020; Revisado: 19 de Fevereiro de 2021; Aceito: 20 de Fevereiro de 2021; Publicado: 28 de Fevereiro de 2021

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