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Práxis Educativa

versión impresa ISSN 1809-4031versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.16  Ponta Grossa  2021  Epub 20-Oct-2021

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.16.16433.008 

Dossiê: Paulo Freire (1921-2021): 100 anos de história e esperança

Paulo Freire e a resistência à naturalização da ordem social vigente

Paulo Freire and the resistance to naturalization of the current social order

Paulo Freire y la resistencia a la naturalización del orden social vigente

Lavoisier Almeida dos Santos* 
http://orcid.org/0000-0001-5132-7343

Valci Melo** 
http://orcid.org/0000-0003-3037-142X

Maria do Socorro Aguiar de Oliveira Cavalcante*** 
http://orcid.org/0000-0002-9612-9735

*Professor de Língua Portuguesa nas redes estaduais de Sergipe (SEE-SE) e de Alagoas (SEE-AL). Doutorando em Linguística e Literatura pela Universidade Federal de Alagoas. E-mail: <lavoisierdealmeida@hotmail.com>

**Professor de ensino fundamental na rede pública municipal de São José da Tapera, Sertão Alagoano. Doutor em Educação pela Universidade Federal de Alagoas. E-mail: <melovalci@gmail.com>

***Professora dos programas de Mestrado e Doutorado em Letras e Linguística e em Educação da Universidade Federal de Alagoas. Doutora em Letras e Linguística pela mesma universidade. E-mail: <mdosaoc@gmail.com>


Resumo:

Este trabalho teve por objetivo examinar a importância e a utilização do legado de Paulo Freire para a compreensão da natureza da educação, dos condicionamentos históricos sociais da escola e da relação prática pedagógica-prática social. Para tanto, analisamos um acontecimento discursivo ocorrido em instituições de ensino da cidade de Maceió, Ceará. Para proceder à referida análise, além da teoria freireana, apoiamo-nos nos pressupostos teórico-metodológicos da Análise do Discurso, fundada na França, por Michel Pêcheux, ancorada no Materialismo Histórico-Dialético. A partir do caso analisado, demonstramos que, ao contrário das acusações que atribuem às ideias freireanas a responsabilidade pelos resultados negativos da educação brasileira, o que existe é a total ausência das referidas ideias na realidade concreta das escolas brasileiras na atualidade. Essa constatação reafirma a importância de sua obra como ponto de resistência contra políticas conservadoras e práticas pedagógicas excludentes.

Palabras-clave: Paulo Freire; Educação; Discurso

Abstract:

This work had as an objective to examine the importance and the utilization of Paulo Freire’s legacy for the comprehension of the nature of education, the social historic conditioning of school and the relationship of the pedagogical practice-social practice. For that, we analyzed a discursive event occurred in teaching institutions of the city of Maceió, Ceará, Brazil. In order to carry out this analysis, in addition to Freire’s theory, we relied on the theoretical-methodological assumptions of the Discourse Analysis, founded in France, by Michel Pêcheux, anchored in the Dialectical and Historical Materialism. From the analyzed case, we demonstrate that, contrary to the accusations that attribute to Freirean ideas the responsibility for the negative results of Brazilian education, what exists is the total absence of these ideas in the concrete reality of Brazilian schools today. This fact reaffirms the importance of his work as a point of resistance against conservative policies and excluding pedagogical practices.

Keywords: Paulo Freire; Education; Discourse

Resumen:

Este trabajo tuvo como objetivo examinar la importancia y el uso del legado de Paulo Freire para la comprensión de la naturaleza de la educación, de los condicionamientos históricos sociales de la escuela y de la relación práctica pedagógica-práctica social. Para ello, analizamos un evento discursivo ocurrido en instituciones educativas en la ciudad de Maceió, Ceará, Brasil. Para proceder al referido análisis, además de la teoría de Paulo Freire, nos basamos en los supuestos teóricos y metodológicos del Análisis del Discurso, fundado en Francia por Michel Pêcheux, anclado en el Materialismo Histórico Dialéctico. A partir del caso analizado, demostramos que, contrariamente a las acusaciones que atribuyen a las ideas freireanas, la responsabilidad de los resultados negativos de la educación brasileña, lo que existe es la ausencia total de las referidas ideas en la realidad concreta de las escuelas brasileñas en la actualidad. Esta constatación reafirma la importancia de su obra como punto de resistencia contra las políticas conservadoras y las prácticas pedagógicas excluyentes.

Palabras claves: Paulo Freire; Educación; Discurso

Introdução

Não é de estranhar, pois, que na visão “bancária” da educação, os homens sejam vistos como seres da adaptação, do ajustamento. [...]. Na medida em que esta educação “bancária” anula o poder criador do educando ou o minimiza, estimulando sua ingenuidade e não sua criticidade, satisfaz aos interesses dos opressores: para estes, o fundamental não é o desvelamento do mundo, a sua transformação. O seu “humanitarismo” e não humanismo está em preservar a situação de que são beneficiários. [...]. Por isso mesmo é que reagem [...] contra qualquer tentativa de uma educação estimulante do pensar autêntico. (FREIRE, 2019, p. 83).

A epígrafe que dá início a nossas reflexões, selecionada da obra Pedagogia do oprimido, foi escolhida com a intenção de mostrar a atualidade das ideias de Paulo Freire e a importância de suas contribuições para a resistência dos educadores(as) aos ataques desferidos contra a educação pública na atual conjuntura. Em tempos de pós-verdades e Fake News, quando se fala em revisão da história, em fim das ideologias, em censura do trabalho docente, em neutralidade do fazer educativo – como preconiza o Projeto “Escola sem Partido” - urge retomar o pensamento pedagógico de Paulo Freire a fim de mergulhar na análise da conjuntura política que ora estamos vivendo, e transformar, assim, nossa prática científica e pedagógica em instrumento de luta política para construir caminhos de resistência, pois, como já dizia Pêcheux (2014a, p. 281), “[...] não há dominação sem resistência: primeiro [princípio] prático da luta de classes, que significa que é preciso ‘ousar se revoltar’”.

No atual contexto educacional brasileiro, marcado por ofensivas reacionárias como as do Projeto de Lei 246/20191, que busca instituir o Programa “Escola sem Partido” (BRASIL, 2019), cujo objetivo é controlar o trabalho dos professores, designados como doutrinadores, faz-se necessário reavivar a reflexão acerca da natureza da educação, dos condicionamentos histórico-sociais da escola e, mais especificamente, da relação entre prática didático-pedagógica e ideologia, sob pena de estarmos sendo coniventes com a interdição das gerações futuras ao acesso ao conhecimento historicamente produzido. O “Escola sem Partido”, conforme definição de seu fundador e ex-coordenador, o advogado Miguel Nagib (2019),

[...] se divide em duas vertentes muito bem definidas, uma, [sic] que trabalha à luz do Projeto Escola Sem Partido, outra, o [sic] uma associação informal de pais, alunos e conselheiros preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao superior. (NAGIB, 2019, n.p.).

A segunda vertente referida pelo autor (a uma associação informal) antecede a primeira em termos cronológicos, tendo em vista que, conforme narrativa de seu fundador2, foi criada em 2004, como resultado da indignação de Nagib contra uma analogia feita pelo professor de História de sua filha entre o militante comunista Che Guevara e São Francisco de Assis.

A primeira vertente, constituída de Projetos de lei, passa a existir apenas a partir de 2014, momento que, conforme Penna (2016, p. 44), “[...] o deputado estadual Flávio Bolsonaro pediu ao coordenador do movimento Escola sem Partido, Miguel Nagib, que formulasse um projeto com base nas suas propostas”. Desde então, iniciativas legislativas voltadas à criminalização do que Nagib (2019, n.p.) denomina “[...] militantes travestidos de professores” vêm sendo apresentadas nas esferas municipal, estadual e federal.

Caracterizada pela forte disseminação da ideia de que há, por parte dos professores brasileiros, uma doutrinação esquerdista dos alunos e, pela confusão entre pluralismo político, laicidade do Estado e neutralidade política e ideológica da prática didático-pedagógica, a referida iniciativa, em suas duas vertentes, tem entre seus alvos de ataque as ideias e a pessoa do educador Paulo Freire, responsabilizado, pela extrema direita – principalmente no período eleitoral de 2018 – por todas as mazelas da educação brasileira.

Assim, enquanto diversos países, mundo afora, reconhecem o legado pedagógico e a importância das ideias de Paulo Freire, a exemplo de sua influência na delimitação do campo da pedagogia social na Espanha (ZALDÍVAR; UCEDA, 2021), os setores reacionários brasileiros elegeram o educador pernambucano como o “inimigo número um”. Tanto no site da associação Escola sem Partido (ESP), como em discursos políticos de seus apoiadores, Paulo Freire aparece como “um mal a ser combatido”, seja por ele materializar, no entendimento de seus detratores, o típico perfil do doutrinador ideológico que dizem existir nos processos didático-pedagógicos, seja pela associação forçada que fazem entre as ideias do autor e os resultados negativos da educação brasileira.

No primeiro caso, exemplifica bem essa situação um artigo de opinião publicado no site do ESP e ilustrado por uma charge na qual Paulo Freire aparece com o rosto achatado, lembrando a imagem de um rato, e com a cabeça recortada na altura da testa. A parte recortada da cabeça tem o formato de uma tampa na qual está grafada a sigla CCCP, que corresponde à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em idioma russo. Ao lado da charge, tem escrita a seguinte frase: “Paulo Freire: transformando analfabetos inocentes em analfabetos comunistas desde 1963”3.

O artigo, cuja charge vem logo abaixo do título e antes do nome do autor, intitula-se Paulo Freire e a “educação bancária” ideologizada, é assinado por Luiz Lopes Diniz Filho, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e, conforme nota de rodapé da própria matéria, colaborador do ESP. Em seu artigo de opinião, Diniz Filho, que é autor de um dos livros da dita Biblioteca Politicamente Incorreta, indicada no site do ESP, faz uma simplificação e uma deformação grotesca da pedagogia freireana ao indicar que ela consiste basicamente na contraposição entre a opinião dos estudantes e a posição ideológica do professor sobre a realidade social. Diz o referido autor,

[...] na prática, a coisa funciona assim: o professor questiona os alunos sobre o seu dia a dia, apresenta uma explicação ideológica para os problemas e insatisfações relatados, e depois discute com eles o que acharam desse conteúdo. Se os alunos discordarem da explicação, o professor argumenta em favor do seu próprio ponto de vista ideológico. Ao fim do diálogo, o professor conclui que os alunos que ele conseguiu convencer estão agora “conscientes” da sua “verdadeira” condição de oprimidos e explorados pela sociedade de classes. (DINIZ FILHO, 2013, n.p.).

Ora, para quem conhece minimamente a obra de Paulo Freire sabe que essa caracterização apresentada pelo professor Diniz Filho não corresponde em nada à pedagogia freireana, como procuraremos indicar ao longo deste trabalho. E, antes que se diga que os textos publicados na página do ESP não representam a opinião da associação, mas, sim, de seus colaboradores avulsos, cabe destacarmos que esse mesmo texto foi utilizado como indicação de leitura acerca de Paulo Freire por parte de Miguel Nagib em debate com o professor Ilzver Matos, em um grupo de discussão online4.

No âmbito dos debates político-legislativos, dois casos merecem destaque. O primeiro diz respeito à intervenção do Deputado Federal Eduardo Bolsonaro (2017 apud PENNA, 2017, p. 258) em audiência pública, na Câmara dos Deputados, sobre o ESP. Na ocasião, o parlamentar assim se pronunciou:

O projeto Escola Sem Partido tem que prever uma criminalização, uma pena, porque eles sabem o que eles estão fazendo! E estão fazendo de tão ruim, tão ruim que esses treze anos de PT vão ser difíceis de ser recuperados. A economia a gente corre atrás, corrupção a gente pode debater um projeto de lei, mas a molecada formada na escola – nesse pensamento de Paulo Freire – isso aí vai demorar décadas. (PENNA, 2017, p. 258).

Outro episódio também envolvendo a família Bolsonaro, apoiadora e protagonista desse tipo de projeto no Brasil, deu-se com o então Deputado Federal e atual Presidente da República, Jair Bolsonaro, no período da campanha presidencial de 2018. Conforme matéria do jornal Gazeta Online, o então presidenciável, em palestra para empresários no Espírito Santo, prometeu, caso eleito, “[...] entrar com um lança-chamas no MEC e tirar o Paulo Freire lá de dentro”5. E, na própria proposta de governo registrada no Tribunal Superior Eleitoral6 (TSE), a coligação “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” apresentou como ideário, na área de Educação, expurgar a ideologia de Paulo Freire.

Diante do exposto, entendemos que o cenário atual exige uma reafirmação do legado educacional de Paulo Freire e de sua incansável resistência às tentativas de naturalização da realidade social (FREIRE, 2011). Para isso, no presente estudo, além de uma retomada das contribuições freireanas para a compreensão da natureza da educação, dos condicionamentos histórico-sociais da escola e da relação entre prática didático-pedagógica e ideologia, procedemos à análise de um acontecimento discursivo que se deu em duas instituições de ensino da cidade de Maceió, Alagoas, que ilustra bem a necessidade de um retorno a Paulo Freire como ponto de resistência às ideologias conservadoras e às práticas pedagógicas excludentes.

Paulo Freire: notas sobre a natureza e a especificidade da educação e a resistência à ideologia da neutralidade didático-pedagógica

Em suas reflexões sobre a educação, Freire (2011) destaca que a capacidade de aprender, ou seja, a educabilidade funda-se na incompletude humana e na sua consciência de que pode ser mais. Diferentemente dos demais seres vivos, o ser humano não é biologicamente determinado, nem nasce socialmente pronto; ele se faz historicamente, por meio das relações sociais, as quais resultam do trabalho, aqui entendido, na esteira de Marx (2013), como uma relação consciente e planejada entre o ser humano e a natureza, a partir da qual o homem não apenas satisfaz as suas necessidades biológicas, mas produz-se enquanto ser social. Nas palavras do Marx (2013, p. 327), “[...] agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências que nela jazem latentes e submete o jogo de suas forças a seu próprio domínio”.

Como se vê, para Marx, é o trabalho que produz o gênero humano, o ser social, em um movimento que Lukács (2013, p. 46) chama de “salto ontológico” por caracterizar-se como “[...] uma ruptura com aquilo que seria o curso normal das coisas”, isto é, uma mudança de substância, de essência. Contudo, uma vez operada a superação da simples animalidade, para que o novo gênero tenha continuidade histórica, é preciso transmitir às novas gerações o conhecimento socialmente produzido. Essa tarefa, portanto, incumbe ao que denominamos, em sentido amplo: educação. Desse modo, enquanto o trabalho dá conta da produção do gênero humano, a educação responsabiliza-se pela (re)produção desse gênero em cada ser singular.

É, pois, nesse fazer-se socio-historicamente de cada ser humano que reside, segundo Freire (2011, p. 17), a natureza da atividade educativa “enquanto prática formadora”. Em outras palavras: a educação caracteriza-se como a atividade social de produção e reprodução da humanidade em cada indivíduo singular para que este, humanizado, não apenas desfrute da vida social, mas também disponha das condições necessárias à sua continuidade.

Nessa tarefa de dar continuidade ao mundo social, Freire (2011) lembra que a atividade educativa, sobretudo em sua versão escolarizada, tanto exige um conjunto de saberes específicos indispensáveis, como também jamais pode ser neutra. Nesse caso, alerta o autor de Pedagogia da Autonomia:

[...] devo deixar claro que, embora seja meu interesse central considerar neste texto saberes que me parecem indispensáveis à prática docente de educadoras ou educadores críticos, progressistas, alguns deles são igualmente necessários a educadores conservadores. São saberes demandados pela prática educativa em si mesma, qualquer que seja a opção política do educador ou educadora. (FREIRE, 2011, p. 23).

Poderíamos agrupar os 27 “saberes necessários à prática educativa”, analisados pelo autor, em três blocos: 1) competência técnico-científica do educador; 2) compreensão de que a educação é uma “experiência especificamente humana”; 3) compreensão de que a educação é “uma forma de intervenção no mundo” (FREIRE, 2011).

O primeiro bloco, a nosso ver, corresponde aos saberes que, como diz o autor, são indispensáveis à prática educativa em si, independentemente do viés ideológico do educador, pois, como alerta Freire (2011, p. 89-90): “[...] o professor que não leve a sério sua formação; que não estude; que não se esforce para estar à altura de sua tarefa não tem força moral para coordenar as atividades de sua classe”.

No entanto, esse bloco de saberes, que envolve: rigorosidade metódica; pesquisa; curiosidade epistemológica; reflexão crítica; apreensão da realidade; segurança; liberdade; autoridade e competência profissional é indispensável, porém insuficiente para uma prática didático-pedagógica que, conforme Freire (2011), propicie a autonomia dos estudantes. Isso porque, segundo o autor, embora também envolva treinamento, a atividade educativa não é redutível a isso, razão pela qual não basta competência técnico-científica para ensinar conteúdos, desenvolver habilidades e treinar aptidões. Como destaca o autor (2011, p. 34-35, grifo nosso): “Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando. Educar é substantivamente formar”.

É, pois, no reconhecimento dessa premissa que se alicerça o segundo bloco de saberes: aquele que, compreendendo a educação como uma atividade especificamente humana, respeita os saberes e a autonomia dos educandos, dispõe-se à decência e a boniteza, à escuta e à afetividade, ao diálogo e à lida com o desafio do novo e do diferente, rejeita toda forma de discriminação, reconhece a diversidade cultural, pratica o bom senso, a generosidade, a humildade e o querer bem aos educandos. Tudo isso se justifica porque, para Freire (2011, p. 16, grifos do autor), “[...] formar é muito mais do que puramente treinar o educando no desempenho de destrezas”.

Contudo, a prática didático-pedagógica fica incompleta se a ela não forem incorporados saberes como: coerência entre o ensinado e o vivido, esperança e confiança na possibilidade da mudança; comprometimento; reconhecimento da incompletude humana e da politicidade da educação e tomada de posição frente aos projetos formativos e societários em disputa. Ou, como observa Freire (2011, p. 140): “A prática educativa é tudo isso: afetividade, alegria, capacidade científica, domínio técnico a serviço da mudança ou, lamentavelmente, da permanência do hoje”.

Como se nota, Freire recusa-se explicitamente a aceitar a educação como uma atividade meramente técnica, supostamente neutra e alheia aos problemas que afligem o mundo concreto dos estudantes. Diz o autor:

[...] por que não estabelecer uma necessária “intimidade” entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos? [...]. Porque, dirá um educador reacionariamente pragmático, a escola não tem nada que ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar os conteúdos, transferi-los aos alunos. Aprendidos, estes operam por si mesmos. (FREIRE, 2011, p. 32).

Referindo-se a essa suposta neutralidade, Freire (2011, p. 109) caracteriza-a como “essa coisa impossível, acinzentada e insossa que é a neutralidade”. A isso, o autor contrapõe a honestidade intelectual e o respeito ao direito do educando de saber a partir de qual posição social fala o seu mestre. Assim, Freire (2011, p. 98) defende que, por ser “[...] uma forma de intervenção no mundo [...]”, a educação jamais pode ser neutra, pois toda prática didático-pedagógica se coloca diante de alternativas societárias em disputa, entre projetos diferentes de ser humano, de sociedade. Como diz o autor,

[...] para que a educação fosse neutra era preciso que não houvesse discordância nenhuma entre as pessoas com relação aos modos de vida individual e social, com relação ao estilo político a ser posto em prática, aos valores a serem encarnados. Era preciso que não houvesse, em nosso caso, por exemplo, nenhuma divergência em face da fome e da miséria no Brasil e no mundo; era necessário que toda a população nacional aceitasse mesmo que elas, miséria e fome, aqui e fora daqui, são uma fatalidade do fim do século. Era preciso também que houvesse unanimidade na forma de enfrentá-las para superá-las. Para que a educação não fosse uma forma política de intervenção no mundo era indispensável que o mundo em que ela se desse não fosse humano. Há uma incompatibilidade total entre o mundo humano da fala, da percepção, da inteligibilidade, da comunicabilidade, da ação, da observação, da comparação, da verificação, da busca, da escolha, da decisão, da ruptura, da ética e da possibilidade de sua transgressão e a neutralidade não importa de quê. (FREIRE, 2011, p. 108-109).

Assim, para Freire, dando-se no interior de uma sociedade dividida em classes e grupos sociais com interesses em disputa, na qual existem projetos de ser humano e de sociedade não apenas diferentes, mas também conflitantes, a educação não se realiza mediante o atendimento de interesses universais de toda a sociedade. Diferentemente de como era [é] concebida pelas “teorias não críticas” – para usar uma terminologia cunhada por Saviani (2008) –, a educação não é uma atividade autônoma em relação aos conflitos sociais, mas, sim, constitui-se em uma práxis social não apenas atravessada pelos interesses e projetos societários em disputa, mas também direta e/ou indiretamente voltada à intervenção na sociedade. Nas palavras de Freire (2011):

[...] não me parece possível nem aceitável a posição ingênua ou, pior, astutamente neutra de quem estuda, seja o físico, o biólogo, o sociólogo, o matemático, ou o pensador da educação. Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. Não posso estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas. A acomodação em mim é apenas caminho para a inserção, que implica decisão, escolha, intervenção na realidade. Há perguntas a serem feitas insistentemente por todos nós e que nos fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar. [...]. Em favor de que estudo? Em favor de quem? Contra que estudo? Contra quem estudo?. (FREIRE, 2011, p. 75, grifos do autor).

Essa apreensão dos condicionamentos sócio-históricos da atividade educativa e da inerente politicidade da educação é uma das grandes contribuições de Paulo Freire que projetos reacionários como o Escola sem Partido procuram desqualificar. Não bastasse essa forma de ataque, ela vem acompanhada da calúnia de que os problemas da educação brasileira têm relação direta com uma suposta herança maldita do pensamento freireano aplicado no dia a dia das escolas do país.

É na contramão dessa falácia que trazemos para análise um acontecimento discursivo que envolve duas instituições de ensino da cidade de Maceió, capital alagoana, e que evidencia a distância que há entre as ideias freireanas e as práticas pedagógicas ainda dominantes no chão concreto das escolas brasileiras.

O discurso da exclusão e a necessidade de resistência à naturalização da realidade social

Entendendo com Michel Pêcheux, em O discurso: estrutura ou acontecimento, que o discurso é um acontecimento que articula uma atualidade a uma rede de memória e que, por isso, segundo Pêcheux (2015, p. 56), “[...] é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho [...] de deslocamento no seu espaço”, a reflexão desenvolvida nesta seção foi motivada pelos possíveis sentidos com seus respectivos efeitos de identificação e deslocamentos, produzidos pelo posicionamento de algumas professoras, durante o conselho de classe de uma escola estadual da periferia de Maceió, cuja materialidade discursiva será aqui analisada. Na discussão acerca da aprovação ou não de alguns alunos da 3ª série do Ensino Médio, mediante a possibilidade de alguns deles serem reprovados na série em questão e ingressarem na universidade, uma professora emitiu o seguinte posicionamento:

SD1 - Não sei pra quê esses meninos passam na universidade! Não sabem de nada. Quando chegam lá não conseguem acompanhar o ritmo das matérias. Uma amiga minha, que é monitora da disciplina Química I da turma de farmácia de um aluno daqui lá na UFAL, disse que o professor falou com o menino daqui: - “Meu filho, o que é que você está fazendo aqui? Esse lugar não é para você”.

Esse posicionamento suscitou comentários de outros professores materializados em sequências discursivas, que apresentamos a seguir.

SD2 – Eles não aprendem nada! Não adianta ensinar outro assunto; eles não aprendem mesmo... Só ensino termos essenciais da oração o ano todo e pronto.

SD3: Esses alunos não querem nada com a escola mesmo!.

A partir dos pressupostos teóricos metodológicos da Análise do Discurso, fundada por Michel Pêcheux, ancorada no Materialismo Histórico-Dialético, e com base no pensamento de Paulo Freire, buscamos analisar as materialidades selecionadas a fim de desvelar o discurso que as sustenta e o lugar a partir do qual se constituem os sujeitos que as enunciam. Essa constituição dá-se por meio de um processo de identificação com práticas sociais – ideologicamente atravessadas – que dão as bases do complexo psíquico dos referidos sujeitos. Não há, pois, discurso neutro ou inocente. Como já dito em Cavalcante (2007), o discurso é materialização de uma ideologia, pois, ao produzi-lo, o sujeito o faz a partir de um lugar social com que se identifica e a partir do qual enuncia. É isso que pretendemos desvelar nas materialidades selecionadas.

Para analisar a primeira sequência discursiva, temos de considerar, antes de tudo, que há um discurso que é citado por outro discurso: o discurso de outrem. Segundo Volóchinov (2017), o discurso citado

[...] é o discurso dentro do discurso, o enunciado dentro do enunciado, mas ao mesmo tempo é também o discurso sobre o discurso, o enunciado sobre o enunciado. [...] o enunciado alheio não é apenas o tema do discurso: ele pode, por assim dizer, entrar em pessoa no discurso e na construção sintática como seu elemento construtivo específico. Nesse caso, o discurso alheio mantém a sua independência construtiva e semântica, sem destruir o tecido discursivo do contexto que o assimilou. Mais do que isso, o enunciado alheio, ao permanecer apenas o tema do discurso, pode ser caracterizado superficialmente. Para penetrar na plenitude do seu conteúdo é necessário introduzi-lo na construção do discurso. Se permanecermos nos limites da apresentação temática do discurso alheio, poderemos responder somente a perguntas “como” e “sobre o que” falou NN, mas apenas poderemos descobrir “o que” ele falou ao transmitir suas palavras, mesmo que isso seja feito na forma do discurso indireto. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 249-250).

Aqui já temos algumas pistas para a realização da análise do discurso presente na sequência em questão. A enunciação do professor universitário na enunciação da professora de Educação Básica é, na verdade, um discurso sobre. Há uma preservação temática que aponta para um posicionamento acerca de um determinado acontecimento social que subverteu uma ordem posta: um aluno de uma escola pública da rede estadual de Alagoas, residente em um bairro periférico da capital, concluiu o Ensino Médio e não ingressou no movimento do tráfico existente em sua comunidade ou foi procurar um subemprego na feira local ou em um supermercado, farmácia ou alguma loja do bairro. Mostra-se, assim, segundo Pêcheux (2014b, p. 277), que “[...] não há ritual sem falhas; enfraquecimentos e brechas”. Mesmo ante as determinações postas pela realidade, esse aluno encontrou uma brecha, fugiu às estatísticas e ingressou em um curso de farmácia da universidade federal de seu estado. Contudo, estando ele na universidade, cursando sua Graduação, é interpelado ideologicamente pelo professor: “[...] meu filho, o que é que você está fazendo aqui? Esse lugar não é para você” (SD1, grifo nosso).

É interessante destacarmos que os mecanismos de significação do discurso de outrem no discurso pessoal de um sujeito não se dão em uma dimensão individual, mas sim social. É a estabilização dos sentidos e a identificação ideológica que faz com que um indivíduo tome um determinado discurso de outra pessoa como o seu ou mesmo para dar legitimidade e autorizar tal discurso. Nesse sentido, a reflexão de Bakhtin (1997), em Estética da criação verbal, também sobre a assimilação do discurso de outrem, traz uma contribuição significativa para nos ajudar a compreender a cena discursiva em tela:

[...] a experiência verbal individual do homem toma forma e evolui sob o efeito da interação contínua e permanente com os enunciados individuais do outro. É uma experiência que se pode, em certa medida, definir como um processo de assimilação, mais ou menos criativo, das palavras do outro (e não das palavras da língua). [...]. As palavras dos outros introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos. A expressividade da palavra isolada não é pois propriedade da própria palavra, enquanto unidade da língua, e não decorre diretamente de sua significação. Ela se prende quer à expressividade padrão de um gênero, quer à expressividade individual do outro que converte a palavra numa espécie de representante do enunciado do outro em seu todo - um todo por ser instância determinada de um juízo de valor. (BAKHTIN, 1997, p. 314-315, grifos do autor).

No caso da SD1, o discurso de outrem é o discurso de um professor universitário que foi assimilado criativamente por uma professora de Educação Básica e, agora, está sendo enunciado, em um conselho de classe, para outros professores também de Educação Básica. Em resumo, o que a professora queria dizer é precisamente o que ela traz, por meio da fala do professor, que a universidade não é lugar para os alunos daquela escola: “Não sei pra quê esses meninos passam na universidade! Não sabem de nada”. O discurso de outrem, nesse caso, gera efeito de legitimação e estabilização dos sentidos.

Ora, como alerta Freire (2011, p. 80), “[...] é importante ter sempre claro que faz parte do poder ideológico dominante a inculcação nos dominados da responsabilidade por sua situação”. Assim, em vez de procurar compreender por que o estudante não consegue render academicamente como esperado e buscar meios para que o aluno supere suas dificuldades, o professor opta por naturalizar uma situação que é historicamente construída e, portanto, superável. Com essa postura, o professor inscreve-se na formação ideológica do capital, assumindo a posição de sujeito dominador que determina os lugares sociais que devem ser ocupados por seus alunos.

A universidade não é para ser frequentada por um aluno de uma comunidade pobre, advindo de uma escola pública de um bairro periférico. Esse lugar social está interditado para tal jovem. Para jovens iguais a ele, destinam-se os cursos “profissionalizantes”, que lhes fornece alguns rudimentos para que sobrevivam do subemprego ou da informalidade. Determinando os lugares sociais dos sujeitos, aquele professor interdita discursivamente a universidade, o curso superior de farmácia àquele jovem, pois, na formação ideológica do capital, a posição sujeito que aquele jovem deve assumir não é de farmacêutico, mas sim de balconista, caixa, auxiliar de farmácia ou agente de serviços gerais.

Observa-se, na SD1, que tanto a materialidade produzida pelo professor universitário quanto a da professora de Educação Básica naturalizam a exclusão social e a legitimam diante dos colegas professores, durante o conselho de classe, ao dizer que a universidade para aqueles alunos era uma aventura vã, engendrando uma cadeia de outros discursos que tentavam, por meio da repetição, estabilizar o sentido de uma incompatibilidade entre aqueles jovens e a universidade.

Como diz Freire (2011, p. 124), em sua crítica ao neoliberalismo, “[...] uma das eficácias de sua ideologia fatalista é convencer os prejudicados das economias submetidas de que a realidade é assim mesmo, de que não há nada a fazer, mas seguir a ordem natural dos fatos”, pois esta é a ordem “natural” da sociedade capitalista: não há lugar para todos no mercado nem há lugar para todos na universidade.

De acordo com Silva (1996), uma das estratégias de suma importância para a legitimação do Estado capitalista é a naturalização do social. Essa naturalização não é o retorno à natureza, mas sim a consideração como natural daquilo que é histórico, produto do desenrolar histórico das relações sociais. Nessa perspectiva, as relações sociais são desvinculadas das relações com o poder e vistas como naturais e inevitáveis. Assim, as causas das desigualdades sociais não são atribuídas ao modo de produção capitalista e às relações de exploração, inerentes a esse modo de organização da sociedade, mas às “escolhas inadequadas dos indivíduos”. Segundo Cavalcante (2007),

[...] a difusão da crença no processo de naturalização é uma arma do discurso neoliberal contra os que apontam para o agravamento das desigualdades sociais. Difundindo-se essa crença, apagam-se as condições em que se dá a competição e, sendo a competição uma tendência natural do ser humano, as relações de dominação, exploração, exclusão não seriam inerentes ao modo de produção capitalista, mas um processo natural. (CAVALCANTE, 2007, p. 91).

Assim, analisando as discursividades produzidas pelos professores, percebe-se o processo de naturalização da desigualdade social dos alunos da escola pública que “ousam” ingressar na universidade. “O que eles vão fazer lá? Esse lugar não é para eles”. “Eles não aprendem nada”. “Não adianta ensinar”. “Eles não querem nada com a escola”. Em nenhum momento, os professores desconfiam que também lhes cabe uma parcela de culpa pelo não aprendizado do aluno, que, assumindo essa postura, sua inscrição ideológica/discursiva colabora com a manutenção do status quo do modelo de sociabilidade burguesa, eximindo o Estado de sua responsabilidade pelas condições precarizadas com que penaliza a educação pública.

A partir dessa óptica, o presente texto é uma tentativa de, a partir da Análise de Discurso filiada a Michel Pêcheux, do Materialismo Histórico-Dialético e do constructo teórico de Paulo Freire, apresentar a prática docente discursiva, isto é, a posição discursiva assumida pelo professor em sala de aula, como um elemento que engendra e fortalece uma relação ideológica de poder estabelecida entre o professor e os alunos. O exercício do poder pressupõe, pois, a ação de alguns sujeitos sobre outros sujeitos e dos sujeitos sobre si mesmos e consiste em formas de governar as condutas, as ações e os comportamentos. Essa relação materializa-se na utilização de sua prática discursiva de professor para exercer dominação sobre os alunos, desqualificando-os, contribuindo para a manutenção do status quo. É isso que observamos nas sequências discursivas que seguem, já apresentadas anteriormente: SD2 – “Eles não aprendem nada! Não adianta ensinar outro assunto; eles não aprendem mesmo... Só ensino termos essenciais da oração o ano todo e pronto”; SD3: - “Esses alunos não querem nada com a escola mesmo!”.

Essa prática nada tem a ver com Freire (2011, p. 74) para quem “[...] ensinar exige a convicção de que a mudança é possível, [...] de que o mundo não é. O mundo está sendo” e de que o processo de construção do conhecimento, sendo contínuo, nunca está concluído. Assim, o aluno que “ainda” não sabe poderá vir a saber, desde que lhe sejam dadas as condições apropriadas para a sua aprendizagem. Essa é outra prática assumida pelo professor, que opta por uma pedagogia crítica, libertadora, utilizando os processos de ensino e de aprendizagem para contribuir com a emancipação do aluno, criando condições para que supere suas dificuldades, colocando em questão o modelo de sociabilidade do capital.

Assumindo uma prática frontalmente contrária ao afirmar categoricamente “Eles não aprendem nada! Não adianta ensinar outro assunto”, a professora, ao tempo que expressa uma relação de poder, comete um ato de violência, pois, no dizer de Freire (2019, p. 45-46, grifo do autor): “Basta, porém, que homens estejam sendo proibidos de ser mais para que a situação objetiva em que tal proibição se verifica seja, em si mesma, uma violência [...] porque fere a ontológica e histórica vocação dos homens – a do ser mais”.

Essa interdição do “ser mais” está materializada em SD2 (grifo nosso): “Não adianta ensinar outro assunto; eles não aprendem mesmo... Só ensino termos essenciais da oração o ano todo e pronto”. Além da interdição, temos aqui evidenciada também uma relação de poder – a de limitar os conteúdos que serão ministrados. Essa posição vai frontalmente de encontro à posição de Freire para quem, como já dito, a atividade educativa não é redutível à transmissão mecânica de conceitos e de informações, cabendo ao aluno apenas memorizar passivamente. Não basta competência técnico-científica para ensinar conteúdos, desenvolver habilidades. Como destaca Freire (2011, p. 34-35, grifo do autor): “Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando”.

O ensino dos conteúdos deve permitir ao aluno a apropriação crítica do cotidiano, a fim de possibilitar o processo de problematização do instituído, a partir de apropriações cada vez mais complexas da conjuntura social. Para Cavalcante e Patrício (2013),

[...] essa é a função de uma prática pedagógica que se quer libertadora, uma vez que essa prática tem como objetivo mediar a superação do instituído, pois entende que, apesar das determinações sociais e históricas, o sujeito pode mover-se e atuar sobre elas; nem sempre da forma que gostaria mas dentro das possibilidades e limites que a objetividade lhe oferece. (CAVALCANTE; PATRÍCIO 2013, p. 59).

Quando não assumem essa perspectiva, escola e professores eximem-se de sua função social de possibilitar ao educando seu desenvolvimento como ser social, uma vez que limitam a apropriação do conhecimento pelo indivíduo, reprimindo o desenvolvimento de suas possibilidades criadoras. Essa opção nada tem a ver com uma educação emancipatória; nada tem a ver com Paulo Freire.

É interessante retomarmos o pensamento de Volóchinov (2017, p. 98), em Marxismo e Filosofia da Linguagem, acerca da palavra e sua relação com a ideologia: “A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social”.

A partir do pensamento de Volóchinov (2017), podemos afirmar que, por meio da palavra, isto é, em meio a uma determinada prática discursiva, os professores materializam sua prática docente e, ao inscreverem-se ideologicamente nessas práticas, revelam sua posição de sujeito, ou seja, sua identificação ideológica com o projeto societário do capital.

Destacamos também que, para legitimar essa prática, os professores se utilizam de um discurso de culpabilização das vítimas, pois, a todo tempo, o aluno é colocado como culpado pelo seu insucesso. Na escola básica, ele não aprende porque “não quer nada com a escola”; na universidade não acompanha a disciplina de Química I do curso de Farmácia - espaço inapropriado para ele. Com isso, retira-se do Estado a responsabilidade por não ter oferecido a esse aluno as condições mínimas para a sua aprendizagem; não se colocaram, ao menos, as condições precárias de formação desse aluno; não se pontuou que, durante alguns meses de sua formação no Ensino Médio, a escola não tinha professor de Química e que boa parte de seus professores não eram concursados, mas sim contratados como monitores, gerando uma grande rotatividade de docentes com rupturas desastrosas à sua formação. Não se leva em consideração que, mesmo assim, o aluno foi aprovado no curso de Farmácia da universidade federal de seu estado.

É estabilizado o sentido de que o aluno é o culpado, e não o Estado, por não oferecer a educação de qualidade que figura na legislação; o aluno é o culpado, e não a universidade que não tem um programa paralelo para auxiliar jovens que a ela chegam com deficiências em sua formação básica.

Considerações finais

Ante essa realidade, constata-se que, nos dias atuais, nas escolas públicas brasileiras, o que precisa urgentemente ser superada é a “educação bancária” que se apoia em um discurso monológico em uma dissertação narrativa que fala de uma realidade fragmentada, estática, alheia à experiência existencial dos educandos, pois, segundo Freire (2019, p. 80): “A palavra, nestas dissertações, se esvazia da dimensão concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca, em verbosidade alienada e alienante. Daí que sejam mais som que significação e, assim, melhor seria não dizê-la”.

A prática docente como uma prática pedagógica libertadora traz a palavra não somente “sonora”, mas também – e principalmente – como força transformadora e, por isso, com essa palavra o homem se faz a si mesmo e produz a sua realidade. A educação bancária do discurso narrativo traz a proposta de os alunos guardarem, arquivarem os dados do conhecimento. No entanto, na perspectiva de Paulo Freire, os grandes arquivados não são os conteúdos, mas sim os homens, pois, sem a busca, sem a práxis, os homens não podem ser. Professores e alunos anulam-se, arquivam-se na proporção da ausência da criatividade da transformação e do verdadeiro saber, pois, segundo Freire, (2019, p. 81), “[...] só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também”.

O discurso, nesse sentido, é profundamente antropológico, revelando o homem como um ser imperfeito, insatisfeito, nunca pronto, uma obra sempre inacabada. O homem não É (Esse), mas Está sendo (in fieri), pois é o homem um projeto infinito. Segundo Freire (2019),

[...] na verdade, diferentemente dos outros animais, que são apenas inacabados, mas não históricos, os homens se sabem inacabados. Têm a consciência de sua inconclusão. Aí se encontram as raízes da educação mesma, como manifestação exclusivamente humana. Isto é, na inconclusão dos homens e na consciência que dela têm. Daí que seja a educação um que fazer permanente. Permanentemente, na razão da inconclusão dos homens e do devenir da realidade. Desta maneira, a educação se refaz constantemente na práxis. (FREIRE, 2019, p. 102).

O homem é visto, por essa prática pedagógica, como ser histórico e, por isso, como ser que está sendo e que tem consciência de sua realidade de ser inacabado. Dessa forma, o discurso docente como prática libertadora projeta os alunos para o futuro que é essencialmente possibilidade, cuja realização, mesmo sendo sujeita a condicionamentos sócio-históricos, jamais é pré-determinada mecanicamente, como postulava a teoria da pré-destinação calvinista ou mesmo o pré-determinismo freudiano.

Para Freud (1978), o homem não é senhor de seu futuro, pois este é fruto exato de acontecimentos passados que determinam as atitudes futuras do indivíduo. Nessa perspectiva, não há possibilidades de ressignificação para acontecimentos não desejados: se alguém, na infância, sofreu algum atentado sexual, na fase adulta terá sérios distúrbios afetivos e, assim, se procederia com todos os acontecimentos negativos da vida de um indivíduo. Para Calvino, segundo Weber (2009), haveria uma parcela de homens que nascia selada para a salvação, pré-destinada às maravilhas de Deus. Haveria também outra parcela, na verdade, um rebanho de condenados, que nascia “ferrada”, marcada para a condenação. Não importava o que fizessem que perdidos ou salvos estavam. O sinal para classificar os homens em escolhidos ou renegados era suas posses e posição social.

Uma prática pedagógica libertadora deve levar em conta que ninguém é escravo do passado, nem refém do presente e, de forma alguma, é alheio a seu futuro, pois o homem se faz, fazendo sua história pessoal em sociedade. Nessa perspectiva, é interessante destacarmos o que fala Freire (2019) sobre essa práxis libertadora que projeta educandos e educandas para o futuro:

[...] não é fixismo reacionário, é futuridade revolucionária. Daí que seja profética e, como tal, esperançosa. Daí que corresponda à condição dos homens como seres históricos e à sua historicidade. Daí que se identifique com eles como seres mais além de si mesmos – como projetos – como seres que caminham para frente, que olham para frente; como seres a quem o imobilismo ameaça de morte; para quem o olhar para trás não deve ser uma forma nostálgica de querer voltar, mas um modo de melhor conhecer o que está sendo, para melhor construir o futuro. Daí que se identifique com o movimento permanente em que se acham inscritos os homens, como seres que se sabem inconclusos; movimento que é histórico e que tem seu ponto de partida, o seu sujeito, o seu objetivo. (FREIRE, 2019, p. 102-103).

O sujeito desse movimento é o homem, pois é uma busca de ser mais, de humanização, que é, segundo Freire (2019), a vocação primeira do homem, e tal busca só pode acontecer na comunhão, na solidariedade das existências. Por isso, o processo ideológico de dominação é um processo de desumanização: essa busca de ser mais nunca pode acontecer nas relações antagônicas entre opressores e oprimidos.

Educadores e educandos fazem-se sujeitos de seu processo, fugindo de um intelectualismo alienante, superando o autoritarismo de uma prática de dominação. O mundo já não é algo externo do qual se fala por meio de um discurso inconsistente, mas é o mundo o mediador dos sujeitos da educação, é nele que acontece a incidência da ação transformadora dos homens, local onde é engendrado seu processo de humanização. É de grande pertinência, aqui, o pensamento de Freire (2011):

[...] creio que nunca precisou o professor progressista estar tão advertido quanto hoje em face da esperteza com que a ideologia dominante insinua a neutralidade da educação. Desse ponto de vista, que é reacionário, o espaço pedagógico, neutro por excelência, é aquele em que se treinam os alunos para práticas apolíticas, como se a maneira humana de estar no mundo fosse ou pudesse ser uma maneira neutra. (FREIRE, 2011, p. 95, grifo do autor).

Assumimos com Freire que, independentemente da perspectiva pedagógica que o professor assuma, sua prática será ideológica. A neutralidade ideológica pretendida pelo Projeto de Lei Escola sem Partido é inatingível, pois, ao proferir sua palavra, ao assumir sua prática, o professor está assumindo uma posição, está ontologicamente se produzindo. Há, nessa ação, um pôr teleológico orientado para uma finalidade.

É nesse sentido que entendemos que a proposta de neutralidade ideológica da escola e da prática docente é impossível de ser alcançada, pois a não tomada de partido inviabiliza o ser do professor em sua práxis pedagógica. A esse respeito, diz Freire (2011):

[...] não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. [...]. Não posso ser professor a favor de quem quer que seja e a favor de não importa o quê. [...]. Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais. Sou professor a favor da luta constante contra a ordem capitalista vigente que inventou essa aberração: a miséria na fartura. (FREIRE, 2011, p. 100, grifo do autor).

A partir das sequências discursivas analisadas, chegamos à lamentável conclusão de que o legado de Paulo Freire, salvo raríssimas exceções como aquela analisada por Voltas, Saul e Saul (2021), está ausente da realidade concreta das escolas brasileiras, causando-nos indignação as acusações feitas ao grande educador pela onda neoconservadora que invade o país, atribuindo-lhe a culpa pelos resultados negativos da educação no Brasil. Nesse cenário – e diante da grandiosidade da obra de Paulo Freire –, entendemos ser necessária a retomada e a reafirmação do legado do referido autor, a fim de mostrar a atualidade de sua teoria pedagógica e sua importância como ponto de resistência contra políticas conservadoras e práticas excludentes impostas à educação brasileira.

Notes

1O Projeto é uma versão atualizada do PL 867/2015, arquivado pela Câmara dos Deputados em dezembro de 2018. A árvore de apensamento de projetos dessa natureza na Câmara Federal encontra-se disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_arvore_tramitacoes?idProposicao=2190752. Acesso em: 27 fev. 2019.

2Depoimento do fundador, disponível em: http://www.escolasempartido.org/sindrome-de-estocolmo/114-caso-sigma. Acesso em: 1 mar. 2019. Uma contraposição é apresentada por Penna e Salles (2017) em um estudo no qual analisam as influências intelectuais de Nelson Lehmann da Silva e Olavo de Carvalho nas teses defendidas pelo Movimento Escola sem Partido.

3Disponível em: http://escolasempartido.org/artigos-top/382-paulo-freire-e-a-educacao-bancaria-ideologizada. Acesso em: 1 mar. 2019.

4Disponível em: http://escolasempartido.org/doutrina-da-doutrinacao-categoria/446-coordenador-do-esp-debate-com-dois-professores-o-tema-da-doutrinacao-ideologica-em-sala-de-aula. Acesso em: 1 mar. 2019.

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Recebido: 10 de Agosto de 2020; Revisado: 19 de Novembro de 2020; Aceito: 20 de Novembro de 2020; Publicado: 30 de Novembro de 2020

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