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Práxis Educativa

versión impresa ISSN 1809-4031versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.16  Ponta Grossa  2021  Epub 20-Oct-2021

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.16.16554.047 

Dossiê: Paulo Freire (1921-2021): 100 anos de história e esperança

O legado de Paulo Freire sobre a velhice: história de vida e o contexto brasileiro atual

Paulo Freire’s legacy on old age: life history and the current Brazilian context

El legado de Paulo Freire sobre la vejez: historia de vida y el contexto brasileño actual

*Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: <mavilatodaro@ufsj.edu.br>.

**Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP). Doutora em Gerontologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: <meirec@usp.br>.


Resumo:

Paulo Freire nasceu em 19 de setembro de 1921. Completou 60 anos de idade no Brasil, uma vez que seu retorno do exílio se deu em 1980. Morreu antes de completar 76 anos; portanto, segundo o critério etário, viveu a fase da velhice por 15 anos. Nesse sentido, o objetivo deste texto é buscar na obra À sombra desta mangueira, de Freire, reflexões sobre a velhice. A questão que nos moveu a realizar o estudo foi: Que legado esse criador de ideias pedagógicas deixou sobre velhice para os seus leitores? A análise da obra permitiu identificar a concepção de velhice trazida por Freire, à luz do contexto brasileiro de envelhecimento populacional e das pesquisas da área de Gerontologia. Foi possível concluir que o autor não admite que os critérios da velhice possam ser puramente os do calendário, o que aproximou sua história de vida dos estudos acadêmico-científicos sobre velhice.

Palavras-chave: Paulo Freire; História de vida; Velhice

Abstract:

Paulo Freire was born on September 19, 1921. He completed 60 years of age in Brazil, since his return from exile took place in 1980. He died before turning 76, therefore, according to the age criterion, he lived through the old age phase for 15 years. In this sense, the purpose of this text is to seek in the work Under the shade of this mango tree, by Freire, reflections on old age. The question that moved us to carry out the study was: What legacy did this creator of pedagogical ideas leave on old age for his readers? The analysis of the work made it possible to identify the concept of old age brought by Freire, in the light of the Brazilian context of population aging and research in the field of Gerontology. It was possible to conclude that the author does not admit that the criteria of old age can be purely those of the calendar, which brought his life story closer to academic-scientific studies on old age.

Keywords: Paulo Freire; Life’s history; Old age

Resumen:

Paulo Freire nació el 19 de septiembre de 1921. Cumplió 60 años de edad en Brasil, ya que su regreso del exilio tuvo lugar en 1980. Murió antes de cumplir 76 años, por lo tanto, según el criterio de edad, vivió la fase de vejez por 15 años. Así, el objetivo de este texto es buscar en la obra A la sombra de este árbol de mango, de Freire, reflexiones sobre la vejez. La cuestión que nos movió a llevar a cabo el estudio fue: ¿Qué legado dejó este creador de ideas pedagógicas sobre la vejez para sus lectores? El análisis de la obra permitió identificar la concepción de vejez traída por Freire, a la luz del contexto brasileño de envejecimiento de la población y de las investigaciones del área de la Gerontología. Fue posible concluir que el autor no admite que los criterios de vejez puedan ser puramente los del calendario, que aproximó su historia de vida a los estudios académicos y científicos sobre la vejez.

Palabras clave: Paulo Freire; Historia de vida; Vejez

Introdução

A velhice é uma fase do ciclo da vida. Na perspectiva demográfica, tem seus limites dados por números, pois chegamos à velhice aos 60 anos de idade. Entre os termos mais usuais, temos: terceira idade, melhor idade, adulto maduro, idoso, velho, meia-idade, maturidade, idade maior e idade madura (NERI; FREIRE, 2000).

É correto afirmar que a contagem dos anos vividos e, portanto, a idade cronológica, envolve questões objetivas e subjetivas. Ser velho, em uma perspectiva psicológica, tem relação com o senso subjetivo de idade. O conceito de idade psicológica depende de como cada pessoa avalia a presença ou a ausência de marcadores biológicos, sociais e psicológicos do envelhecimento em relação a outras pessoas de sua idade (NERI, 2005).

Se o processo de envelhecimento é complexo e multifacetado, então não basta que nos atemos exclusivamente a um marco etário para definir a chegada à velhice. Faz-se necessário ouvir as pessoas e suas histórias de vida para compreendermos mais profundamente a heterogeneidade dos modos de sermos nossos corpos com os outros e com o mundo.

Se a coletividade constrói um modelo ideal para o comportamento das pessoas idosas, como essa experiência individual foi vivida por Freire? Refletir acerca do significado de velhice, por meio dos escritos de Paulo Freire, na obra À sombra desta mangueira, é o objetivo deste artigo e, provavelmente, seja um caminho para quem pretende reinventar o mundo que envelhece, afetando-o e sendo afetado por ele como corpo consciente.

À sombra desta mangueira, a velhice

A obra de Freire, que dá título a esta seção, foi publicada em uma primeira edição no ano de 1995, quando o autor tinha 73 anos de idade. Naquilo que ele chamou de primeiras palavras, o pensador explica a escolha do título:

[...] é, assim, uma licença que me permito e com a qual sublinho a importância que tiveram na minha infância as sombras de diferentes árvores – mangueiras, jaqueiras, cajueiros, pitombeiras. Sombras em que, à luz clara do dia, fui me acostumando a descobrir a razão de ser de ruídos que, no fundo das noites, indecifrados me assustavam. (FREIRE, 2012, p. 26).

Ao exaltar as árvores e suas sombras como algo importante para sua infância, Freire destaca os ruídos que, enquanto criança, não podia explicar. Foi à sombra de uma mangueira que Freire aprendeu a ler e a escrever com seus pais, sentindo o cheiro das frutas e descobrindo a “razão de ser” dos “ruídos” que ele considerava indecifrado.

Talvez, acostumar-se a descobrir, ou exercitar a certeza de que pode saber, seja uma tarefa empreendida pelo autor ao longo de toda a obra. A esse respeito, e na primeira pessoa do singular, o autor escreve: “Sei que sei como sei que não sei o que me faz saber, primeiro, que posso saber melhor o que já sei, segundo, que posso saber o que ainda não sei, terceiro, que posso produzir o conhecimento ainda não existente” (FREIRE, 2012, p. 29).

Por meio dessa frase, Freire avança no paradoxo socrático: “Só sei que nada sei ou sei uma coisa: que nada sei”. A ignorância e a sabedoria anunciadas, tanto em Freire quanto na narrativa de Platão sobre o filósofo Sócrates, revelam a importância de uma educação da pergunta. No caso da temática da velhice, se sabemos o que ela significa em termos etários, também podemos nos perguntar sobre o que ainda não sabemos, na intenção de exercitar a curiosidade.

É no exercício da curiosidade epistemológica que “[...] o corpo humano vai virando corpo consciente, captador, apreendedor, transformador do mundo e não puro espaço vazio a ser enchido por conteúdos do mundo” (FREIRE, 2012, p. 32). A apresentação da expressão corpo consciente nos interessa, sobremaneira, quando pensamos nas pessoas idosas. A idade avançada garante ser corpo consciente e transformar o mundo? Na velhice tratada por Freire, parece-nos que sim, já que seu legado é traduzido pelo desejo de transformar o mundo, sendo corpo consciente na velhice.

A noção de corpo consciente, em Freire (2012), é trazida como corpo inteiro: sentimentos, medos, desejos e razão. O autor afirma que sofre o exílio quando seu “[...] corpo inteiro é por ele tocado” (FREIRE, 2012, p. 84). Freire sofre não como um exilado amargurado, tampouco como um otimista ingênuo ou, ainda, como um portador de qualidades superiores. Nas várias experiências que teve como exilado, ele considerou ser de alto valor o processo de reaprendizagem do Brasil. Em suas palavras, “[...] me esforcei por compreender análises do que vinha ocorrendo no país por parte dos que ficaram na perspectiva de quem vinha de fora” (FREIRE, 2012, p. 87).

Ao constituir seu “eu”, fazedor de coisas, pensante e falante, o autor afirma que “[...] o neto oprimido repete o sofrimento do avô” (FREIRE, 2012, p. 52). Essa frase, usada para se referir às maiorias nordestinas do Brasil, indica a imobilização que as situações concretas do nosso país impunham e impõem aos oprimidos. Podemos considerar todos os idosos brasileiros como oprimidos? Ou, ainda: Quem são as pessoas idosas oprimidas no Brasil?

O oprimido, para Freire, só existe em relação ao opressor. O pensador posiciona-se a favor dos oprimidos, reconhecendo-os como ofendidos e interditados de ser. Em sua responsabilidade ética e política, Freire, em suas obras, denuncia a insensatez e a brutalidade daqueles que, sendo opressores, recusam o movimento e a mudança da vida.

A mudança da pirâmide etária, no Brasil, indica o movimento de um país considerado jovem para a transição que ocorre ao longo de 35 anos, até 2015, na qual a maior faixa passa a ser a adulta, devido ao aumento da expectativa de vida. Em 1980, ano em que Paulo Freire estava prestes a completar 60 anos de idade, tínhamos, no Brasil, menos de um milhão de pessoas idosas. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2020), as estimativas para o Brasil, a partir do ano de 2025, são as de que seremos o sexto país do mundo com o maior número de idosos em sua população.

A sociedade brasileira, diante de dados reais, vive um momento de mudança em sua configuração etária. Contudo, o mundo todo também está envelhecendo. Tal fato demanda a compreensão de que: “As sociedades não são, estão sendo o que delas fazemos na História, como tempo de possibilidade. Daí a nossa responsabilidade ética por estarmos no mundo, com o mundo e com os outros” (FREIRE, 2012, p. 64). E o que estamos fazendo com o mundo que envelhece e com os idosos? Por que não os tratamos com a ética necessária? Será que a velhice tem sido considerada, por nós, como tempo de possibilidade e de desejos?

Em 1994, foi implementada no Brasil a lei que dispõe sobre a Política Nacional do Idoso1. A referida legislação adota como princípios basilares garantir ao idoso os direitos de cidadania efetiva na sociedade, avalizando a sua autonomia e sua integração social, bem como a promoção do bem-estar e do direito à vida, colocando esses princípios como deveres do Estado e das famílias. Dessa forma, fica proibida qualquer tipo de discriminação às pessoas idosas (CACHIONI; TODARO, 2016). A respeito dos direitos, Freire (2012, p. 90) escreveu: “Hoje, aos 73 anos, continuo me sentindo moço, recusando, não por vaidade ou para não revelar a idade, os privilégios que a chamada terceira idade usufrui em aeroportos por exemplo”.

Estamos, desde 1994, portanto, sendo convocados ao compromisso com o respeito ao direito dos outros, no caso da legislação anteriormente citada, os idosos. Em suas obras, Freire afirmava seu gosto pela “experiência da tolerância como regra de vida” (FREIRE, 2012, p. 63) e, para ele: “A realidade é multicolor, é arco-íris” (FREIRE, 2012, p. 56). Parece claro para o autor que o marco etário para a definição do início da velhice não alcança a complexidade de uma realidade que é “multicolor”. Ao rotular idosos diferentes, com condições e experiências diferentes, corre-se o risco de homogeneizar o processo de envelhecimento que se revela por meio de uma realidade “arco-íris”.

Para além da questão etária, a diversidade é revelada na população idosa brasileira no que tange à etnia, à classe social, ao nível de escolarização, ao gênero e à raça. Nessa realidade multicolor, os idosos de hoje e do futuro precisam ter garantidos e efetivados os direitos à saúde, ao trabalho, à assistência social, à educação (formal ou não-formal), à cultura, ao esporte, à habitação e aos meios de transportes. A importância de defender os direitos dos idosos cabe a todo o cidadão, de todas as idades.

Os propósitos da Política Nacional do Idoso são: a promoção do envelhecimento saudável e a melhoria e/ou a manutenção da capacidade funcional, a fim de garantir qualidade de vida aos idosos. A noção de qualidade de vida em idosos vem sendo amplamente discutida por pesquisadores.

Em um estudo bibliográfico sobre qualidade de vida em idosos, Leite e Kanikadan (2018) realizaram um levantamento nas bases de dados da Biblioteca Virtual em Saúde Pública e Biblioteca Virtual em Saúde, englobando a Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), o Índice Bibliográfico Español en Ciencias de la Salud (IBECS), o Sistema Online de Busca e Análise de Literatura Médica (MEDLINE), a Biblioteca Eletrônica Científica Online (SciELO) e o Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), considerando as publicações entre 2012 e 2016. De acordo com as autoras, a revisão integrativa revelou que a alta carga de doenças e a escassez de contato social foram os fatores mais prevalentes no prejuízo à qualidade de vida do idoso. Já a manutenção da autonomia e o aumento do vínculo social foram os fatores mais determinantes na melhora da qualidade de vida do idoso.

Quando se pergunta aos idosos “Como você avalia a sua satisfação em relação à vida?”, as pesquisas sobre o tema têm revelado aspectos subjetivos experimentados pelas pessoas por meio da afetividade. Em Freire (2012, p. 91), temos que: “Os critérios de avaliação da idade, da juventude ou da velhice, não podem ser puramente os de calendário”.

Interações sociais significativas são, também, oportunidades de conforto emocional na velhice. Sobre o isolamento, Freire (2012) insere a palavra, na obra por nós analisada, unida a outra: comunhão. Para ele: “O isolamento só tem sentido quando, em lugar de negar a comunhão, a confirma como um momento seu” (FREIRE, 2012, p. 28). Ao longo de sua vida, Freire esteve com pessoas e atribuiu aos seus momentos de recolhimento e de isolamento um sentido de autoconhecimento. Tal sentido pode ser resumido na frase: “Recolhendo-me conheço melhor e reconheço minha finitude” (FREIRE, 2012, p. 27-28).

A respeito da finitude, temos em Freire (2012) a necessidade de nos tornarmos conscientes dela. Para o autor, finitude implica processo. Segundo Freire (2012, p. 133): “Tenho insistido na finitude de que somos conscientes e que nos faz estar sendo um ser inserido na busca de ser mais, no fundo, vocação histórica”.

Amadurecer e adquirir sabedoria, ao longo do processo de envelhecimento, mantendo seus sonhos, parece ter sido o propósito de vida principal de Freire. Na obra, ao estabelecer uma comparação entre a juventude e a velhice, o autor afirma que:

Somos moços ou velhos muito mais em função de como pensamos o mundo, da disponibilidade com que nos damos, curiosos, ao saber, cuja procura jamais nos cansa e cujo achado jamais nos deixa satisfeitos e imobilizados. Somos moços ou velhos muito mais em função da vivacidade, da esperança com que estamos sempre prontos a começar tudo de novo, se o que fizemos continua a encarnar sonho nosso. (FREIRE, 2012, p. 91).

A disposição de Freire para começar tudo de novo indica que o educador seguiu vivo e esperançoso na entrada da velhice. Seu modo de pensar o mundo deixa claro o propósito de lutar incansavelmente.

A noção de propósito de vida na velhice é definida pela Gerontologia como “[...] o senso de que a vida tem sentido e intencionalidade, o qual desempenha papel orientador em relação às metas de vida e à tomada de decisões relativas ao uso dos recursos pessoais” (RIBEIRO; YASSUDA; NERI, 2020, p. 2127). As autoras realizaram uma revisão integrativa de literatura sobre propósito de vida que teve como objetivo realizar a análise de uma amostra de artigos, selecionada por critérios teóricos e metodológicos, que tivesse a expressão no título. Os resultados indicaram que a tendência de extrair significado de experiências de vida e ter um sentido de intencionalidade e direcionamento pode orientar o comportamento, contribuindo para o envelhecimento bem-sucedido. Isso significa que idosos com altos níveis de propósito de vida, que trabalham orientados por metas de vida, enfrentam melhor o envelhecimento, investem mais em autocuidado e no desenvolvimento das próprias competências, engajam-se mais, socialmente, e tendem a se envolver mais em atividades significativas.

Freire orientou-se não apenas na velhice, mas, ao longo da vida, pela meta de lutar pela superação das injustiças e dos preconceitos. Essa pode ser considerada como uma de suas aspirações e de seus desejos. Afirmando ser um homem do seu tempo presente, o autor criticou aqueles que, ao ficarem velhos, começam a “[...] recusar a novidade porque ‘no meu tempo era melhor’” (FREIRE, 2012, p. 91).

Rejeitar o tempo presente é uma crítica que Freire (2012) faz aos que ficam velhos. Na seção “Lições do exílio”, escreveu: “Voltava velho? Não” (FREIRE, 2012, p. 90). Em alusão ao seu corpo, afirmou: “Voltava jovem, apesar da aparência, apesar da escassez dos cabelos e da barba branca” (FREIRE, 2012, p. 90). O autor não nega as mudanças em sua aparência física, mas remete a discussão de ser velho ou moço à arrogância e ao desprezo aos outros.

No que tange à aparência física, percebemos que essa questão está ligada à perda de status social, pois a sociedade brasileira tende a valorizar a juventude em uma concepção de produtividade. Podemos perceber isso mediante o acesso aos meios de comunicação, por exemplo. Neles, são divulgadas imagens de juventude como ideais a serem alcançados, como padrões de beleza.

No Brasil, de acordo com Ludgleydson, Sá e Amaral (2011), pesquisas que envolvem a imagem corporal de pessoas com 60 anos ou mais demonstram a visão simplificada e negativa a respeito do próprio corpo. Para os participantes da investigação, 50 homens acima de 60 anos de idade, a aparência física não constitui um fator de importância, não tendo sido evidenciada na maior parte das vezes.

Para Freire (2012), para além da aparência física: “Somos moços, na medida em que, lutando, vamos superando os preconceitos. Somos velhos se, apesar de termos apenas 22 anos, arrogantemente desprezamos os outros e o mundo” (FREIRE, 2012, p. 91). O reconhecimento da importância da luta pelos direitos das pessoas idosas se dá mediante o cenário brasileiro atual, no qual se envelhece “[...] mal e precocemente” (KALACHE et al., 2020, p. 2).

O termo “velho”, usado por Freire em sua obra, não é sinônimo de decadência, dependência ou incapacidade física, mas parece que o autor se refere ao desafio que se enfrenta na velhice de abandonar a “boniteza” da luta por causa da idade avançada. A boniteza, palavra cunhada por Freire, faz parte, segundo Redin (2017, p. 60), da concepção do autor “[...] de vida, bem como amorosidade, bem querer, amizade, solidariedade, utopia, alegria, esperança, estética e genteidade”. Portanto, parece pouco importar a Freire ser bonito estando de acordo com os padrões de juventude. O que realmente interessa é a ligação entre ética, decência, estética e boniteza. Por meio da análise de seus escritos, temos que envelhecer é trocar a boniteza pela feiura, no sentido de desertar do sonho, sepultar a utopia e conservar o que devia ser radicalmente mudado (FREIRE, 2012).

Na esteira dos ensinamentos do filósofo Heráclito (c. 544-474 a.C.), Freire afirma que tudo no mundo é transformação. No pensamento do referido filósofo, não há lugar para o conservadorismo. A esse respeito, Freire alerta que “[...] o conservadorismo é incompatível com a juventude” (FREIRE, 2012, p. 93) e que “[h]á uma forma horrível de envelhecer: a de nos contrapor às necessárias mudanças políticas, econômicas e sociais sem as quais não se dá a superação das injustiças” (FREIRE, 2012, p. 92).

Em uma clara valorização das relações intergeracionais, Freire (2012) refere-se à disponibilidade de juntos, jovens e velhos, refazerem o mundo. No que diz respeito ao desempenho do papel social de avô, Freire (2012) faz referência ao neto, no que tange ao uso de tecnologias. O autor narra um fato interessante em relação às vantagens dos instrumentos tecnológicos que encurtam o espaço e o tempo. “[...] um dos meus netos me telefonou para dizer-me que ‘caíra’ no seu computador, filiado a uma rede internacional de comunicação, a mensagem de estudiosa alemã solicitando meu endereço. [...]. Quinze a vinte minutos depois, a tecnologia viabilizava minha conversa com a professora alemã” (FREIRE, 2012, p. 122).

Para Freire (2012, p. 92): “O ideal, contudo, é quando se junta à disponibilidade da juventude do jovem a sabedoria acumulada do ‘velho’ jovem. Do jovem que não envelheceu”. No ponto de vista do autor, há jovens que sendo conservadores envelhecem. E há, também, aqueles que mesmo jovens podem agir com sabedoria.

Neri (2005) apresenta as contribuições do psicólogo alemão Paul B. Baltes (1939-2006) à Psicologia do Envelhecimento e à Psicologia do Desenvolvimento, no que tange à concepção de sabedoria. Para a autora, embora a sabedoria seja vista como fenômeno que envolva características cognitivas, motivacionais e emocionais, ela não é uma variante da inteligência medida por testes convencionais, mas, sim, uma manifestação de inteligência prática e uma manifestação dos mecanismos de seleção, otimização e compensação descritos por Baltes e Baltes (1990). Em seu artigo, Neri (2005) indica, ainda, que um novo elemento foi introduzido no conceito por Baltes e Staudinger (2000): sabedoria é a orquestração do desenvolvimento humano em busca da excelência, tanto em termos individuais quanto coletivos.

A busca da excelência pode, segundo os escritos de Freire, estar situada na obra analisada por meio da expressão: ser mais. Nas situações limites pelas quais passamos ao longo de nosso desenvolvimento humano, ser mais é nossa vocação humana. Não estando totalmente prontos, podemos sempre nos reinventar.

O desafio da humanização inclui a dimensão religiosa, isto é, com as ideias do humanismo cristão. As pessoas idosas têm associado à espiritualidade e à religiosidade a qualidade de vida na velhice. Santana, Cupertino e Neri (2009) conduziram um estudo envolvendo idosos, entre 65 e 103 anos de idade. Eles investigaram a crença religiosa e a importância e os significados por eles atribuídos à religiosidade. Entre os idosos da amostra, 361 responderam questões sobre crença religiosa e sobre a importância e os significados que atribuíam à religiosidade. A maioria dos idosos era católica e atribuía alto valor à religiosidade em suas vidas. Os principais temas associados à religiosidade foram: fonte de significado existencial, expressão de tradição cultural, regulador moral e estratégia de enfrentamento. Não foram observadas diferenças estatisticamente significativas em relação a gênero e idade, com exceção de religião, como estratégia de enfrentamento, mais frequente entre as mulheres, e de religião como expressão de tradição cultural, mais citada pelos católicos. As principais associações apontadas pela análise de correspondência foram: ser católico, ser mulher, ter 70 anos ou mais, alta frequência de menções à religiosidade como fonte de significado e expressão de tradição cultural e baixa em religiosidade como fonte de transcendência; ser não religioso, ser homem, ter menos de 70 anos e enfatizar a religiosidade como regulador moral e fonte de desenvolvimento pessoal; e ser espírita e enfatizar a religiosidade como busca de transcendência.

Na experiência pessoal de velhice, Freire (2012), na obra analisada por nós, inclui a dimensão religiosa e traz as palavras Cristo, fé e Deus em vários trechos. O autor teve uma formação cristã-católica. Mesmo que em suas entrevistas falasse que não se identificava com a Igreja, ele afirmava sua “camaradagem com Cristo”. Nas noções de amorosidade, comunhão e transcendência, é possível reconhecer, desde seus primeiros escritos, a aproximação das suas ideias com o humanismo cristão (SEGALA, 2017).

É no sentido de uma busca coerente entre a fé e o engajamento na luta por um mundo melhor que Freire (2012, p.140) afirma: “Não é fácil ter fé”. O equilíbrio entre o que é pregado e a ação de quem pratica e experimenta a fé é valorizado pelo autor. Ele denuncia aqueles que conciliam “[...] a fé no Cristo e a discriminação racial, de sexo, de classe, de nação” (FREIRE, 2012, p. 140). Ao criticar o uso da religiosidade como possibilidade de alienação, aniquilamento e acomodação, o autor defende um Deus “[...] a serviço de quem devem estar a justiça, a verdade, o amor” (FREIRE, 2012, p. 138). A fé de Freire é aquela, portanto, que move e engaja, de um Deus que não pune nem nos testa no sofrimento e na dor. Seu pedido a Deus era que o “[...] mantivesse e até aumentasse a disposição para a luta contra as ofensas dos poderosos sofridas pelos fracos e oprimidos” (FREIRE, 2012, p. 81).

A respeito da discriminação etária, temos nas pesquisas em Gerontologia o termo ageism, traduzido em alguns estudos como idadismo. Butler (1969) definiu o fenômeno do preconceito em relação aos idosos como uma forma de intolerância comparável à racial, à religiosa ou àquela que se estabelece com base no sexo das pessoas, dando origem a políticas e a práticas discriminativas.

A discriminação é um tema recorrente na obra de Freire, que ora analisamos. O autor faz uma denúncia franca à realidade social brasileira, afirmando-se contrário a qualquer tipo de discriminação, com destaque à que se direciona aos velhos. Em suas palavras, “[...] não importa se contra o negro, a negra, contra a mulher, contra homossexuais, contra o índio, contra o gordo, contra o velho” (FREIRE, 2012, p. 142).

Considerações finais

O objetivo deste texto foi buscar, na obra de Freire (2012), intitulada À sombra desta mangueira, reflexões do autor sobre a velhice. Em resposta à questão que nos moveu a realizar o estudo, podemos afirmar que o legado de Freire vai além da criação de ideias pedagógicas.

A análise da obra permitiu identificar a concepção de velhice trazida por Freire, à luz das pesquisas da área de Gerontologia. Foi possível concluir que o autor não admite que os critérios da velhice possam ser puramente os do calendário, o que aproximou seu pensamento das concepções acadêmico-científicas sobre velhice.

A obra analisada dialoga com as pesquisas mais recentes na área de Gerontologia. Nesse sentido, o legado freiriano estende-se para outras áreas do conhecimento além do campo da Educação. Na forma de dizer suas palavras, Freire produziu sentidos a conceitos caros à Gerontologia, como: a heterogeneidade da velhice, as relações intergeracionais, a sabedoria, a religiosidade, a aparência física e a qualidade de vida.

O livro À sombra desta mangueira revelou-se, portanto, uma fonte fecunda para nos provocar, como pesquisadoras, a seguir buscando em outras obras de Freire os sentidos de velhice. Em uma perspectiva crítica e humanizadora, e de compromisso com a luta pela transformação, podemos afirmar que Paulo Freire nos ajudou, e pode ajudar os leitores, a ler o mundo que envelhece.

Na esperança de que possamos construir uma sociedade melhor para as pessoas de todas as idades, a força da obra de Freire e sua história de vida foram imprescindíveis para a compreensão de seu legado sobre a velhice. Sejamos, no contexto contemporâneo, tal qual nos convidou Freire: nossos corpos inteiros na velhice. Corpos conscientes que seguem dispostos para a luta à medida que envelhecem.

Notes

1Lei No 8.842, de 4 de janeiro de 1994 (BRASIL, 1994).

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Recebido: 04 de Agosto de 2020; Revisado: 17 de Março de 2021; Aceito: 19 de Março de 2021; Publicado: 27 de Março de 2021

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